O Descobrimento Do Tibet

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O Descobrimento Do Tibet

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    ACADEMIA DAS SCINCIAS DE LISBOA

    o DESCOBRIMENTO DO TIBETPELO

    P. ANTNIO DE ANDRADEDa Companhia de Jesus, em 1624,

    NARRADO EM DUAS CARTAS DO MESMO RELIGIOSO

    ESTUDO HISTRICO

    FRANCISCO MARIA ESTEVES PEREIRA

    COIMBRAIMPRENSA DA UNIVERSIDADE

    I.Q2 1

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  • o DESCOBRIMENTO DO TIBET

  • ACADEMIA DAS SCIEXCIAS DE LISBOA

    o DESCOBRIMENTO DO TIBET

    P. ANTNIO DE ANDRADEDa Companhia de Jesus, em 1624,

    NARRADO EM DUAS CARTAS DO MESMO RELIGIOSO

    ESTUDO HISTRICOPOR *

    FRANCISCO MARIA ESTEVES PEREIRA

    COIMBRAIMPRENSA DA UNIVERSIDADE

    1921

  • PARECER

    A respeito da publicao do estudo < Descobrimento do Tibetpelo Padre Antnio de Andrade, da Companhia de Jesus, em 1624

    apresentado classe de letraspelo scio efectivo Sr. F. M. Esteves Pereira

    So bem conhecidas dos bibligrafos as publicaes que osJesutas, enviados como missionrios nos fins do sculo xvi e xvuao Oriente e ao Brasil, nos deixaram impressas. Preciosidades bi-bliogrficas, escritas principalmente com o pensamento religioso, certo que encerram tambm importantes dados geogrficos ehistricos e curiosas impresses sobre o estado social dos povos,que procuravam converter religio catlica.

    A Relao do Padre Lus Fris, as cartas coligidas pelo Pa-dre Amador Rebelo, e as Anuas do Padre Giro so outros tantosmonumentos de alta valia para a histria do nosso gigantesco es-foro de alm-mar.

    Se Portugueses houve que se imortalizaram na descoberta denovos mares, novos continentes e novas ilhas, arando o oceanocom quilhas ousadas, outros houve que se imortalizaram percor-rendo os continentes ignotos aos europeus, lutando com as intem-pries de climas vrios, com a aridez dos desertos e com a sel-vageria e desconfiana dos indgenas.

    Um destes foi o Padre Antnio de Andrade, cuja viagem agora objecto do estudo do Sr. F. M. Esteves Pereira. Em duasdas suas cartas se funda o nosso erudito conscio : a primeira,publicada em 1626, intitulada Novo descobrimento do Gram Ca-ihayoy mas cuja nova edio se impe no s pelo interesse dotexto, como tambm por constituir hoje uma raridade bibliogr-fica; a segunda, ainda no publicada na ntegra em portugus, ede cujo original da primeira via se serviu o Sr. Esteves Pereira-

  • Suprfluo seria certamente* encarecer tal documentao pre-cedida pelo nosso conscio de comentrios proficientes acerca dabiografia do intemerato jesuta beiro, que cvanglicamente se in-titulava indigno filho de V. P., bem como da descrio do Tibet-a regio asitica descoberta pelo Padre Antnio de Andrade.

    Por tudo isto, pois, a seco de Histria de parecer que sedeve publicar to valioso trabalho, acompanhando-o do fac-similede algumas pginas do curioso original, incluindo-o assim nas suaspublicaes.

    Academia das Scincias de Lisboa, 9 de Junho de 1921. ^

    Pedro de AzevedoJos Maria RodriguesAntnio Baio, relator.

  • No se pode duvidar que os Religiosos daCompanhia de Jesus, que Jios sculos xvi e xviifo-ram mandados para as misses estabelecidas nospases do Oriente, eram animados def to viva ede to intenso sentimento de abnegao de si mes-mos, que afrontavam com todas as dificuldades^ earrostavam os maiores perigos, tendo s em vista

    a glria de Deus e a exaltao daf catlica. Nema distncia dos lugares, nem a intemprie dos cli-

    mas, nem as privaes do que mais necessriopara sustentar a vida, da alimentao, do vestu-rio, e da habitao, os intimidava: abandonavam afamlia e a ptria, e iam pregar a f crist a povosde linguagem, usos e costumes diferentes, e muitasve{es hostis, que habitavam longnquos pases, nosquais se estabeleciam, e que adoptavam como novaptria. As virtudes que fieram ilustres os Reli-giosos das misses de Etipia, da ndia, da China,e do Japo, alguns dos quais a igreja catlica ve-nera como santos, no brilharam menos nos Reli-

    giosos que primeiro visitaram o Tibet, e alifunda-ram a misso e deram comco sua Cristandade.

  • 8CojHO o nosso principal intento dipulgar duascartas do P. Antnio de Andrade, Religioso daCompanhia de Jesus, nas quais se referem os su-cessos das suas duas viagens ao Tibet e o comeoda Cristandade do mesmo pas, pareceu necessriodar sucinta notcia daquele pas e dos seus habitan-

    tes para se avaliar a coragem, a perseverana, a re-

    signao nos sofrimentos, e o {lo apostlico, queo P. Antnio de Andrade mostrou nesta empresa,pelo que o Conde Almirante, Visori da ndia, o re-comendava ao Rei de Portugal como mui digno deser favorecido, porque era religioso de muita vir-tude.

    A isto deve acrescentar-se que o P. Antnio deAndrade foi o primeiro europeu que ousou subiras encostas do Himalaia, transpor as suas monta-nhosas solides perpetuamente cobertas de neve,atravessar o deserto, e entrar no Tibet, donde en-viou noticias certas e circunstanciadas do que elemesmo viu naquelas inspitas regies, e do que ob-servou das feies e costumes dos seus habitantes,

    mostrando-se no menos intrpido viajante e pers-picaz observador, do que {eloso apstolo.

  • P. ANTNIO DE ANDRADEDA COMPANHIA DE JESUS

    Antnio de Andrade (i) foi natural da vila deOleiros, do distrito de Castelo Branco, na provn-cia da Beira Baixa. Seus pais chamavam-se Bar-tolomeu Gonalves e Margarida de Andrade; enasceu no ano de i58i. Entrou para a Compa-nhia de Jesus no Colgio de Coimbra aos i5 deDezembro de 1596. Quando no ms de Dezem-bro de 1597 comeou a haver noviciado em Lis-boa, para cuja fundao foram mandados novi-os, uns do Colgio de vora e outros do deCoimbra, entre os que foram enviados de Coim-bra, um deles era o Irmo Antnio de Andrade.Depois de completar o noviciado pouco tempose demorou em Portugal; porque na armada doano de 1600 partiu para a ndia com mais deza-nove Padres e Irmos da Companhia.

    O Irmo AntQio de Andrade foi embarcado

    (i) Acerca da vida do P. Antnio de Andrade veja-se P. An-tnio Franco, Imagem da virtude em o noviciado da Companhiade Jesu na corte de Lisboa, Coimhva, 1717, liv. II, cap. 3i; G. Som-mervogel, Bibliothqiie de la Compagnie de Jesus, t. 1, c. 329-33 1;C.Wessels, Antnio de Andrade, trad. portuguesa, p. 4, 5, 6, etc.

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    na nau S.Valentim, em que ia o Visorei Aires deSaldanha; a armada partiu de Lisboa a 22 deAbril de 1600, e chegou a Cochim a 22 de Outu-bro do mesmo ano(i).

    O Irmo Antnio de Andrade proseguiu ecompletou no Colgio de S. Paulo em Goa os es-tudos que professavam os Padres da Companhiade Jesus at receber ordens sacras. Depois foimandado para a misso dos Mogores, cuja resi-dncia era em Agra, onde provavelmente apren-deu a lngua persiana com os Mouros de Cache-mira (2).

    A 3o de Maro de 1624 o P. Antnio de An-drade, que j ento era o Superior da Misso dosMogores, partiu de Agra com o Irmo ManuelMarques, com intento de acompanhar Jahangirrei dos Mogores (3), (i 605-1627), que ia cami-nhando para Lahore. Chegado a Dehli, encon-trou grande nmero de gentios (budistas) queiam em romaria a um famoso pagode, por nomeBadr, situado a quarenta dias de caminho doIndusto, prximo do grande deserto que correentre ele e o Gro Tibet. Querendo aproveitar

    (ij Luiz de Figueiredo Falco, Livro eiu que se contem toda a

    fazenda c jx\tI ;\itrimonio, Lisboa, iSSg. p. igi; Compendio univer-sal de todos os Visoreys, Governadores, Capites Geraes, etc, pelo

    P. Manuel Xavier, Nova Goa, 19 17, p. 38.

    (2) Quem for missionrio no Mogol deve aprender a lnguaIndustan e a Persiana que se fala na corte. ( P. Ferno de Queiroz,Conquista temporal e espiritual de Ceylo, liv. i, cap. xvi, p. 91.)

    (3) N. Manucci, Storia do Mogor, ou Mogol Historv, transla-ted bv Williams Irvine, London, 1906-1908, vol. i, p. 157-178.

  • II

    esta ocasio que se lhe oferecia para ir at aodito pagode, e dali seguir para o Tibet, resolveufazer esta jornada com o Irmo Manuel Marquesem companhia dos mesmos gentios.

    Os principais lugares do itinerrio seguidopelo P. Antnio de Andrade e seu companheiroforam os seguintes (i):

    Localidades

    AgraDehli

    Srinagar .

    BadrinathManaMana Pass ( Portela de Mana)Chaparangue

    Latit. N.

    27 12'

    28041'30" i5'

    So" 52'

    3o 45'

    3i 6'

    31 2q'

    Long. O. Green i Altitud*

    78 14'

    77 18'

    780 40'

    79 28'

    79" 44'

    79 3o'

    79 45'

    2:300"

    3:170"

    3:i78"-

    5:604"'

    4:750'"

    O P. Antnio de Andrade informa que a al-tura (de polo) da cidade de Chaparangue erade trinta e um para trinta e dois graus para o

    norte (2); isto mostra claramente que le levava

    consigo na sua viagem um instrumento de medira altura dos astros, provavelmente astrolbio, etboas da declinao do sol, e que sabia servir-sedeles.

    Foram grandes os trabalhos e molstias queos dois Religiosos sofreram na jornada pela es-

    (i) As latitudes e longitudes so deduzidas ds cartas do li-vro : Western Tibet and the British Borderland, bv Charles A.Sherring, London, 1906: G. Wessels, Antnio de Andrade, trad.port., p. 7, >

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    treiteza dos caminhos, pela aspereza do clima, epela falta de mamimento, sobretudo ao atressaro deserto, onde no havia mato nem erva verde,mas tudo eram penedias ou cho coberto de neve.Chegados a Chaparangue, que era a principal ci-dade de Coque (Gugue), um dos reinos em que sedividia o Tibet, visitaram o rei (Gyalpo), que su-pondo-os mercadores lhes preparava bom acolhi-mento pelo proveito que deles esperava; mas sa-bendo que no traziam mercadorias os recebeucom friesa ; contudo depois de os ouvir mais devagar, foi melhor disposto em seu favor prome-tendo-lhes liberdade para pregarem a sua f.

    Tendo-se demorado em Chaparangue durante,vinte e cinco dias, os dois Religiosos, com licena

    do rei, e com promessa de voltar no ano seguinte,partiram para o Industo, chegando a Agra de-pois de ter gastado sete meses nesta viagem.

    O P. Antnio de Andrade narra os sucessosdesta primeira viagem na sua carta datada deAgra, de 8 de Novembro de 1624, dirigida aoProvincial Andr Palmeiro.

    O P. Antnio de Andrade no faltou ao cum-primento da promessa que fizera ao rei de Tibet(Coque); e depois de receber ordem expressa dosseus superiores de Goa, empreendeu uma segundaviagem sendo acompanhado do P. Gonalo deSousa e do Irmo Manuel Marques. Estes Reli-giosos partiram de Agra a i 7 de Junho de 1625,e seguindo pelo caminho mais curto, chegaram primeira cidade do Tibet a 28 de Agosto, no

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    passando a viagem de dois meses e meio. No ca-minho no lhes faltaram incmodos, principal-mente em Srinagar; porque apesar de se teremprovido em Lahore de um formo do rei dos Mo-gores para o raja de Srinagar, e de uma carta donavabo Assafean para o mesmo raja, foi-lhes to-mada a maior parte do fato que levavam. Che-gados ao deserto o P. Antnio de Andrade foiacometido de seses dobres, bem intensas; con-tudo apesar disso proseguiram o seu caminhoat chegarem a Chaparangue.

    O P. Antnio de Andrade descreve na cartadatada de i5 de Agosto de 1626, dirigida aoP. Mucio Vitelleschi, geral da Companhia de Je-sus, o recebimento que teve na corte, os traba-lhos da fundao da misso, e a construo daprimeira igreja em Chaparangue.

    No se sabe ao certo o tempo que o P. An-tnio de Andrade residiu na misso do Tibet; certo que le permaneceu ali durante o ano de

    1627, porque so conhecidas trs cartas dele da-tadas de Chaparangue, de 2 de Fevereiro, de 29de Agosto e de 2 de Outubro do mesmo ano, etalvez ainda se demorou mais um ou dois anos;contudo sabe-se que em i63o residia em Goa,era Provincial da Companhia de Jesus na ndia;e como tal enviou em i63i quatro ReUgiosos daCompanhia de Jesus para a misso do Tibet,como consta de uma sua carta datada de Goa a4 de Fevereiro de i633, em que trata circunstan-ciadamente da converso dos gentios do Tibet.

  • MO P. Antnio de Andrade, depois de acabaro tempo que lhe pertencia de ser Provincial daCompanhia de Jesus, foi Reitor do Colgio deGoa; le sempre desejou muito voltar para a mis-so do Tibet, que tinha fundado; mas quando sepreparava para partir para o Tibet com seis Re-ligiosos, morreu de repente, a 19 de Maro de1634, havendo suspeitas de ter sido envenenado.

    O P. Antnio de Andrade era religioso demuita virtude, e to estimado dos Padres e Ir-mos da ndia, que o nomeavam por santo (i).

    Entretanto os Religiosos da Companhia deJesus (2), que estavam na misso do Tibet, foramobrigados a retirar-se para a parte ocidental domesmo pas; o P. Estevo Cacela chegou em

    1627 a Gegaze, onde foi bem recebido; e por suamorte, sucedida em i63o, seguiu-se-lhe o P. Ca-bral. Uma revoluo poltica obrigou-o a ir paraLeh. na margem esquerda do rio Indo; e o sobe-rano de Ladak aprisionou o rei de Chaparanguecom toda a sua famlia, e mandou transportarpara Leh todos os cristos em nmero de quatro-centos. A 4 de Abril de i63i partiram de Cha-parangue para Leh os Padres Francisco de Aze-vedo e Joo de Oliveira, gastando vinte e um diasna viagem. Em 1642 ainda estava em Chapa-

    (1) Veja-se a carta do Conde Almirante Visorei da ndia, de28 de Fevereiro de 1627, e Compendio universal de todos os Viso-reys, Governadores, Capites geraes etc, pelo P. Manuel Xavier,da Companhia de Jesus, Nova Goa, 1917, p. 38.

    (2) C.Wessels, Antnio de Andrade, trad port.. p. 24.

  • ID

    rangue o Irmo Manuel Marques; mas no sesabe se ali permaneceu sempre desde 162 5. Apartir de i65o faltam as noticias da misso doTibet; parece que ela se extinguiu por falta deReligiosos, em razo da grande mortandade quehouve na viagem, da permanncia em terras toinspitas, e emim por causa da rigorosa perse-guio que lhe fizeram.

    E justo que no fiquem, no esquecimento osnomes dos Religiosos da Companhia de Jesus,que estiveram na misso do Tibet; aqueles deque se alcanou noticia foram os seguintes (i):

    1. P. Antnio de Andrade;2. Irmo Manuel Marques;3. P. Gonalo de Sousa;

    4. P. Estevo Cacella, falecido em i63o emXegace;

    5. Joo de Oliveira;6. Aiano dos Anjos, falecido em 1 636 no Tibet;7. Manuel Dias, falecido em 1629 em Mo-

    rong

    8. Francisco de Azevedo;

    9. Domingos Gapere;10. Francisco Morando;11. Nuno Quaresma;12. Estanislau Malpichi;i3. Ambrsio Correia;i3. Bonarte Godinho:14. Manuel Monteiro.

    ?

    (!) C.Wessels, Antnio de Andrade, trad. port, p. 22, nota 1.

  • o TIBET

    O pas(i), conhecido na Europa pelo nomede Tibet, constitudo pela sobreelevao da su-perfcie da terra, que forma o ncleo do sistemaorogrfico e idrogrfico da sia central, e estcompreendida em 76 e 96" de longitude orientalde Greenwich, e 28" e 35" de latitude norte. Estasobreelevao limitada ao poente e sul pelas

    montanhas do Himalya, ao norte pelos montesKuen-lun, ao nascente pelos montes Bayan-kara.

    A sua superfcie avaliada em 3 :80o milhares dequilmetros quadrados. O Tibet actual, como es-tado constitudo, limitado: ao poente pelo Hi-

    malya de Cacheinira, e pelos montes Tsong-ling;ao norte pelos montes Kuen-lun e Xan-chan, pelo

    deserto de Gobi, e pela parte sul da MongliaOccidental; ao nascente pelas provncias chinesas

    de Kansu, Sse-tchuen, e Yun-nan; ao nordeste,

    pelo Butan; ao sul pelo Sikkim, e ao sudoeste

    pelo Nepal.

    Este pas (2) denominado pelos naturais Bod--Yul, que si^mcapas de Bod, sendo Bod a forma

    (i) L. de Millou, Bod- Youl ou libei, Paris, igofi, p. \^.

    (2) Ibidem, p. I e 2.

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    tibetense, a que corresponde a palavra snscritaBhot, pela qual osJndianos designam o mesmopas. Os (Chineses do a este pas o nome de Si--tsang ou Mei-tsang; e os Mongis, o de Tanqut.Entre os Europeus o mesmo pas designadopelo nome de Tibet, diversamente escrito, deri-vado da expresso tibetense Tho-bhod, pas alto,provavelmente por intermdio do persiano, quenos sculos xvi e xvii era a lngua da corte dosreis Mogores.

    Clima. O Tibet (i) pertence pela sua lati-tude zona dos pases temperados; mas a suagrande elevao acima do nvel do mar (altitude),em mdia de 3:6oo'", torna-o igual ao das regiesmais frias como a Sibria. O vero dura desdeJunho a Setembro; de dia o calor intenso; masde noite grande o frio, havendo geadas at emJulho. No inverno, que se segue qusi sem transi-o ao vero, o frio extremamente rigoroso eacompanhado de abundantes e frequentes neves.O clima do Tibet muito incmodo no s pelabaixa temperatura do inverno, mas sobretudo pe-las seguintes causas : excessiva rarefao do ar,que produz, nas pessoas no acostumadas a cli-mas frios, a doena chamada mal das montanhas;grande secura do ar, que faz murchar e secar osvegetais, e desconjuntar e fender os objectos e m-veis de madeira; frequncia e violncia do vento,

    (i) l.. de Millou, Bod-Youl ou Tibel, p. 22 a 24.

  • q

    que nos meses do vero levanta e arrasta nuvensde poeira e de areia que produzem a cegueira, eno inverno torna o frio insuportvel, chegando aproduzir a morte at de animais bravios.

    Populao. A populao doTibet(i) com-pe-se de elementos muito diversos, sobretudonas fronteiras, sendo mesclados com os Uigures,Mongis e Chineses; na parte central do pasque se encontra a raa mais pura, a que os na-turais do o nome de Bod-pa, e os Chineses cha-mam Tu-fan,Tu-pho e Si-fan.

    O Tibetense pertence famlia mongol, masmuito mesclada com outro elemento, que lhe tirouparte das suas feies caractersticas. O Tibe-tense de alta estatura; tem os ombros e peitolargos; os membros vigorosos. O rosto qua-drado e grande; a testa alta e recta; o nariz pe-queno, a boca larga, os lbios delgados, o mentoquadrado, e a maxila inferior pesada. As masdo rosto so menos salientes, que as dos Chine-ses, e os olhos menos apertados. O cabelo preto,e a barba rara. A cor do corpo antes trigueirado que amarela, e algumas vezes inteiramentebranca, nas pessoas das classes superiores. gil, flexvel e robusto.

    A populao do Tibet actualmente avaliadaem seis milhes de habitantes estveis, e em quinze

    milhes de nmadas.

    (i) L. de Millou, Bod-Youl ou Tibet, p. 48, 49 e 47.

  • IO

    Diviso poltica. -^ iMarco Paulo, veneziano,que viajou na sia nos anos de 1270 a 1291, cesteve na corte do Gro Co (Kubilai khan), reidos Trtaros, escreveu a relao de tudo o queviu c ouviu no curso das suas viagens. No seulivro, Marco Paulo descreve brevemente o pas doTibet; diz que muito grande, e que nele haviaoito reinos, e grande nmero de cidades e de cas-telos (i).

    Segundo informa o P. Antnio de Andrade (2),no princpio do sculo xvii fazia-se distino entreo pas que os Prsios denominavam Gro Tibet,que os Industanes chamavam Potente, e o pe-queno Tibet, que era situado alm do reino deCachemira, e que, sendo de gentios, havia poucosanos que tinham recebido a seita de Mahamed.No mesmo tempo o Gro Tibet, ou Potente, com-preendia os seguintes reinos : Coque, Ladaca, Ma-riul, Rudoc, Utsang, e mais dois que ficavam parao oriente; e todos estes reinos com o grande reinode Sop (Monglia) faziam a gro Tartria. Emtodos aqueles reinos a gente era da mesma seita,e falavam a mesma lngua com pouca diferena.

    Dos oito reinos ou provncias, em que antiga-mente se dividia o pas do Tibet, no princpio (3)do sculo XIX os Chineses anexaram ao seu iri-

    (i) Voyage de Marc Poi chap. cxvi, no Recueil des voyages etde Muoires, tome I, Paris, 1824, p. 128; The Book 0/ ser MarcoPolo, trad.Yule et Gordier, II, Paris, igoS, liv. 11, cap. xuvi (p. 49).

    (2) P. Antnio de Andrade, Carta segunda, p. 5.(3) L. de Millou, Bod-Youl ou Tibet, p. 32 e 38.

  • prio as provncias de Kansu e de Sse-tchucn : o

    rei de Gachemira anexou a provncia de Ladak,e o Governo da ndia Inglesa estendeu o seu

    domnio sobre a provncia de Sikkim; de modoque actualmente o Tibet somente compreende asprovncias de U, de Tsang, de Nagari e deKhams,

    A provncia de U (dBus) situada no centrodo Tibet; a sua principal cidade Lhasa, ondereside o Dalai-Lama, e que a capital do Tibet.Foi fundada em ySS J. C. pelo rei Thi-srong deTson; em 1640 Ngavang Lobzang, quinto Dalai--Lama, transferiu para ela a sede dos Dalai-Lama,depois de ter derrubado o rei do Tibet com au-xlio do exrcito da Monglia.

    A provncia de Tsang situada a sudoeste doTibet, e confina com a provncia de U. Estas

    duas provncias constituem o Tibet central; a

    regio que os Chineses designam pelo nome deUs-Zang (U e Tsang). A sua principal cidade Digartchi.

    A provncia Xgari (n Ngari) situada na parteocidental do Tibet, e divide-se em trs distritos:Ludauk ou Ruthok, Gugu e Purang; as suas ci-dades mais importantes so Garthok no distritode Ludauk, Tchabrang (Chaparangue) no distritode Gugu, e Purang-dakla no distrito de Purang.

    A provncia de Khams situada na parteoriental do Tibet, e confina com a China; a suacapital Tsiamdo, outrora chamada Kam.

    Se se compara a diviso do Tibet indicada

  • 22

    pelo P. Antnio de Andrade com a precedenteparece que deve identiicar-se

    :

    Ladaca, com a provncia de Ladak anexadapelo rei de Cachemira;

    Mariul, nome antigo da regio situada ao sulde Ladak;

    Coque, com o distrito Gugu da provncia de

    Riidoc, com o distrito de Ruthok ou Ludaukna provncia de Ngari;

    Utsang, com as provncias de U e Tsang.Os dois reinos situados ao oriente, com as pro-

    vncias de Kansu e Sse-tchuen, anexadas pelo im-prio chins.

    Lngua e escrita. A lngua falada (i) pelasgentes do Tibet pertence famlia mongol, e temgrande afinidade com o chins, o siams, o ana-mita, e sobretudo com o birmans; uma lnguamonosilbica, sendo cada pala^Ta formada poruma consoante com uma vogal; para aumentar

    o nmero io restrito de palavras assim forma-das, empregam-se prefixos e sufixos, constitudosou por uma s consoante, ou por uma slaba for-

    mada de consoante e vogal. A lngua escreve-secom caracteres especiais, que, segundo tradi-o, foram compostos no sculo vii por TheomiSambota, imitao dos caracteres devanagarido snscrito usado no Nepal.

    (i) L. de Millou, Bod-Youl ou Tibet, p. 1 1 e segs.

  • 23

    Religio.A religio antiga dosTibetenses(i),chamada Bon-po (seita de Bon), consistia na ado-rao animista e fetichista das foras da natu-reza, e de espritos que podiam ser bemfazejosou malfazejos, conforme eram satisfeitos ou des-contentes do culto que lhes prestavam.

    Esta crena persiste ainda em uma parte dapopulao geralmente a menos civilizada. Se-gundo o testemunho dos anais chineses, o bud-dhismo foi introduzido no Tibet no reinado doimperador Tai-tsung da dinastia dos Tang (627--65o J. C); porm esta doutrina no era a que oakya Muni tinha ensinado, mas a doutrina daescola Mahyna, ou denominada buddhismo donorte; e esta doutrina modiicou-se e desenvol-veu-se no prprio Tibet com o decorrer dos s-culos. O buddhismo do Tibet, assim transfor-mado, dividiu-se em diversas seitas, das quais amais importante, denominada Gelugpa,foi devidas reformas feitas por Tsongkhapa no sculo xv,que estabeleceu a sede da sua seita no mosteirode Galdan. Os seus sucessores instituram odogma da incarnao dos Grandes Lama da seitaGelugpa, fundaram o mosteiro de Tachilhumpoem 1445, transferiram a sede pontifical do mos-teiro de Galdan para o de Depung, e adoptaramo titulo de Gyetso (Rgya mtso), oceano de Majes-tade, em mongol Tale, donde a forma Dalai.

    (i) L. de Millou, Bod-Youl ou Tibet, p. i53 e segs.; E. Schla-gintweit, Le Bouddhisme au Tibet, trad. fr., Paris, 1902.

  • 24

    o quinto Dalai-Lama, J-Nvagang-Lozang--Thubtan-Jismed-Gyetso (i 6 17- 1682), aprovei-tando as circunstncias, e para defender a reli-gio, que dizia ameaada, promoveu a guerrados Mongis Kochot contra o rei do Tibet; esendo este vencido, os vencedores entregaram oreino ao Dalai-Lama, que reuniu assim a sobe-rania espiritual e temporal, que ficou intacta em

    poder dos Dalai-Lama seus sucessores sob a pro-teco da China, elevando ao mesmo tempo aseita Gelugpa condio no s de religiodominante, mas governante por meio de umateocracia absoluta. Ao mesmo Dalai-Lama atribudo o dogma da incarnao perptua doDhyni-Bodhisatt\ a Tchanresi (em snscrito Ava-lokitevara), padroeiro do Tibet, nos Dalai-Lamaque se sucedessem.A religio assim modificada designada pelo

    nome de Lamaimismo, e compreende no s asinstituies religiosas e sociais do Tibet, mastambm a teocracia absoluta identificada no Da-lai-Lama, o qual ainda atualmente estende a suaautoridade espiritual no s sobre o Tibet, massobre parte da China ocidental, sobre a Mon-glia, sobre os Buriates da Sibria, e sobre partedos Cossacos do Don.

    So muito interessantes as noticias acerca dareligio dos Tibetenses, que o P. Antnio de An-drade d nas duas cartas, apesar do pouco co-nhecimento que quele tempo le possuia da ln-gua tibetense, a cujo estudo logo se aplicou para

  • 2D

    poder catequizar. As principais podem resumir-seno seguinte (i).

    Os Tibetenses crem e confessam que Deus Trino e Uno. A primeira pessoa chamam LamaConjoe, a segunda, Cho Conjoe^ que quere dizerlivro grande, e a terceira Sangiii Conjoe, quequere dizer ver e amar na glria. Os seus sacer-dotes, a que do o nome de Lamas, dizem que asegunda pessoa Cho Conjoe, o livro grande deDeus, por onde eles lem e trazem entre suasmos. A primeira pessoa Lama Conjoe, em tibe-tense blama dkon mchog, significa o respeitvelprecioso; a segunda pessoa Cho Conjoe, em tibe-tense chos dkon mchog, significa a lei preciosa; aterceira pessoa Sangui Conjoe, em tibetense san-gha dkon mchog, significa, o sangha comunidade,precioso. Assima trindade que os Tibetensesconfessavam, corresponde ao tri-ratna, trs jiasdo Buddhismo, isto : o Buddha, o Dharnia (Lei),e o Sangha (comunidade) (2).Os Tibetenses (3) tm outras divindades que

    chamam Ls, e correspondem aos anjos; estesso sem nmero, e reduzem-se a nove classes,todas espritos puros incorpreos. L, em tibe-tense lha, significa ente divino, e corresponde aosnscrito deva; e compreendem-se sob este nomediversas divindades inferiores, que tm a seucargo a guarda do universo.

    (i) P. Antnio de Andrade, Carta segunda, p. 19.(2) Sylvain Lvi, Carta particular.

    (3) P. Antnio de Andrade, Carta segunda, p. 8; e L. deMillou, Bod-Youl ou Tibet, p. 217 e 218.

  • 26

    Lamas. Os seus eclesisticos ou sacerdotestm o nome de Lamas; esta palavra escrita lam-bas na carta primeira, e Lamas na segunda; ela

    a transcrio do tibetense Bla-ma [que se pro-nuncia la-ma{iy].s Lamas (2) so em grande nmero, divi-

    dem-se em dez ou doze classes, mas todos profes-

    sam a mesma crena. Os Lamas no casam; unsvivem em comunidade com superior em seus mos-teiros, outros em suas casas particulares; todos

    porm se sustentam de esmolas que pedem. Seutrajo de panos de l; trazem um vestido seme-lhante roupeta, mas sem mangas, ficando os

    braos nus; pela cintura cingem um outro panoque chega at aos ps; a capa de duas ou trs

    varas de comprido e pouco mais de uma delargo; todo este trajo de cor vermelha, somente

    a capa de cor vermelha ou amarela. Tmduas espcies de barretes, um a modo de capelode frade, que s cobre a cabea e pescoo, e no

    o peito; outro de forma semelhante a mitra, masfechado na parte superior. Sua profisso (3)

    rezar grandes lendas, e ler pelo seu livro, a qual

    lio tem para si ser to boa como a orao, eque por ela Deus perdoa muitos pecados.Os Lamas usam (4) resar com rosrio de cento

    (1) L. de Millou, Bod-Youl ou Tibet, p. 820 e segs., e 49.(2) P. Antnio de Andrade, Carta segunda, p. 6.

    (3) Idem, Ibidem.

    (4) L. de Millou, Bod-Youl ou Tibet, p. 245-246 e 253.

  • e oito contas (i); c a sua reza mais ordinria soas palavras: Om manipatmeonri ; mas no sabema sua significao. O P. Antnio de Andrade (2)lhe deu por significao a frase seguinte: Conjsiimbo ja dip ta e R, que significa : Senhor, per-doai-me os tneiis pecados.

    Como se sabe a expresso acima indicada a celebre frmula mstica de seis silabas (vidysadaksari), em snscrito : Om manpadme hm(3),que significa : Salve, jia no loda; assim seja: que,segundo tradio, foi ensinada pelo Bodhisattva'Ichanresi (4), e j se encontra em uma obra tra-duzida em chins entre os anos de 980 e looiJ.C. (5).

    Os Lamas tm duas espcies de jejuns (6); emum que observam em certo dia do ano, e chamamNliiin, que quere dizer jejum de grande aperto(rigoroso); outro que observam em determinadosdias, e que chamam Nhen, que quere dizer je-jum ordinrio, que menos rigoroso, podendocomer sobretudo depois do meio dia. '

    Os Tibatenses(7) traduzem em seus livros pelapalavra Lama o snscrito guni, que significa mes-

    (i) Sven V. Hedin, En el cora^on de sia, Atravs dei Tibet,trad. P.Vizueie, Barcelona, 1906, p. 256.

    (2) P. Antnio de Andrade, Carta segunda, p. 25.*

    (3) Monier Williams, Sanskrit-English Dictionary, p. 235.(4) Journal Asiatique, igiS, I. p. 3(4 e nota; L. de Millou,

    Bod-Youl ou Tibet, p. 246 e 271.(5) Journal Asiatique, igiB, I, p. 314 e nuta.() P. Antnio de Andrade, Carta segunda, p. 6 e 7.(7) 1.. de Millou, Bod-Youl ou Tibet, p. 212 e 2i3, 220 e 221.

  • 28

    tre, director espiritual; mas pelo seu trajo e ma-neira de viver sustenlando-se de esmolas, os La-

    mas correspondem aos bikhsii dos Buddhistas dandia.

    Os Lamas pouco ou nada sabiam acerca daSanta Cruz; tinham-na debuxada no seu livrocom um tringulo no meio e certas letras miste-riosas, que eles no sabiam explicar (i). Esta cruzera provavelmente o sinal denominado em sns-crito svastiky que , como se sabe, uma cruz de

    quatro braos iguais, cujas extremidades so do-bradas no mesmo sentido. O P. Antnio de An-drade conta (2) que em Chaparangue viviam trsou quatro ourives naturais de outras terras, que

    distavam da mesma cidade dois meses de cami-nho, que professavam a mesma seita (buddhismo)que os Tibetenses; e que eles lhe afirmaram quena sua terra tinham nas igrejas algumas cruzes,umas feitas de madeira e outras de vrios metais;e que em sua lngua a cruz tinha o nome de lam-

    dar. Os ourives ( 3 ) eram certamente do Nepal, ea palavra lamdar corresponde com bastante exac-tido ao nome snscrito Indra, que no Nepal e vul-

    garmente pronunciado Indar, e em honra de quemeram feitas as mesmas cru>:es.

    Notcias antigas. -As mais antigas noticias,

    (i) P. Amnio de Andrade, Carj segunda, p. 20.21 Idem, ibibem.

    f3) Silvain Lw, Le Xepl, Paris. 1905, p. 70-80.

  • ^9

    que conservaram os escritores do ocidente (Eu-ropeus) acerca do Tihet, tiveram por motivo ocomrcio de uma droga empregada na farmciae na perfumaria, o almiscar.

    Como se sabe, o almiscar produzido porum pequeno ruminante da famlia dos cervos,Moschiis moschifenis, que habita nas altas plan-

    cies e montanhas da Sibria, da Monglia e doTibet. O almiscar a secreo de uma glndulaque existe somente no macho-; esta glndula tema forma de um saco (ou papo), e o volume deuma laranja pequena; e situada, entre a pele ea carne, no abdmen, tendo o orifcio aberto umpouco adeante do prepcio. A secreo da gln-dula da cor do chocolate, escura (castanho);tem a consistncia oleosa quando est fresca, etorna-se compacta, quebradia e granulosa peladesecao. Os caadores, depois de morto o ani-mal, tiram a glndula inteira com o seu contedo,e a fazem secar. E sob esta forma bruta, almis-car em papos, que vendida nos mercados daChina e da ndia, donde esta droga trazidapara a Europa, e outros pases da sia, frica eAmrica, para ser empregada como droga medi-cinal e como perfume (i).

    A mais antiga meno do almiscar dada

    (I) Grand Encyclopedie, s. v. musc. Veja-se a notcia acercado almiscar: Voyage de Marc Pol no Reciieil de voyages, ei me-moires, Paris, 1824, cap. i.xxii, ( p. 7? ) ; The book ofser Marco Polo,cd.Yule et Cordier, 1 .ondon, 1903, I, p. 275 e 279: Livro de DuarteBarbosa, (i3i6), ed. da Academia, 1867, p. 32.

  • 3u

    por S. Jernimo (346-384) no tratado contra .)o-viniano (lib. II, ed.Vallarsi, II, p. 337).

    Na medicina (teraputica) o almiscar men-cionado em um receiturio de Acio de Amida,fsico, que exercia a sua profisso em Constanti-nopla pelos anos de 540 J. C.(i).

    Uma noticia muito interessante acerca do al-mscar e do animal que o produz, dada por Cos-mas Indicopleustes (cerca de 543 J. C.) na suaTopografia christ; como se segue (2):

    Kastri. O moschos (cervo do almiscar) um animal pequeno; e os naturais do pais, emsua prpria lngua, chamam-lhe kastri; e elesperseguindo-o, trapassam-no com frechas, e atan-do (o saco ou papo que contm) sangue coalhado,junto do umbigo, o cortam; porque esta a partedele. que tem bom aroma, isto , o que entre ns chamado moschos (almiscar); e a parte restantedo corpo dele lanam fora.

    O nome grego kastri corresponde perfeita-mente ao snscrito kastri, almiscar, e ao indus-

    tani l:asturi. Em snscrito kastrika designa nos o almiscar, mas tambm o animal que o pro-duz. O grego p-a/o, moschos, corresponde bemao snscrito miiska, que significa testculo, scroto,

    certamente pela confuso deste rgo com o saco

    (1) Jarl Charpentier, Sume addiional remarques. . . em Geo-grafiska Annalen, 1919, p. 3-4.

    (2) The Christian Topography of Cosmas Indicopleustes, ed.Winstedt, Cambridge, 1909, p. 3i'j e nota p. 349.

  • 3ou papo, em que a glndula segrega o almscar.

    Os Tibatenses ao alm iscar chamam lats; e aomelhor e mais fino chamam lats karpo, almscarbranco (i).

    Outro fsico (mdico) bisantno(2) SimeonSeth, que viveu pelos anos de 107 5 J. C. deu adescrio do animal que produz o almscar; dizque um antlope da corpulncia do mais grossounicrnio, o que exagerado; mas o que inte-

    ressante da sua descrio o seguinte : to [i-a^^ouStopa l5v] (71V t>V KpeTTWV ^ytT(X.l V Tzokzi Tivl TCoXu

    Tou Xop(7s; vaTo)aKOTpa Xsyofxev^ TouTrxa. IstO :c( h diferentes espcies de almscar, a melhor dasquais produzida em uma cidade, que a maisoriental de Chorasene, chamada Tpata.

    A palavra Tpata provavelmente a transcri-o do chins Tii-pot, pela qual os Chineses de-signam o pas do Tibet.

    Notcias dos viajantes da idade mdia.

    Marco Paulo, veneziano, que viajou na sia nosanos de 1270 a 1291, no seu livro que escreveu,

    d notcias do Tibet (3); mas le no esteve nestepas, e limitou-se a transmitir as notcias, um

    pouco confusas, que alcanou dos mercadores,

    ( i) The book of Ser Marco Polo, ed.Yule et Cordier, , p. 279.(2) Jarl Churpeniier, Some addiiionel remarques on vol. I of

    Dr. Sven v. Hedin Southern Tibet, nos Geograjiska Anualen, 1919,H. 3-4.

    (3) Voyjge de Marc Pol, na Recueil de voyages et demmoi-res, Paris, 1824, cap. cxv et c.xvi.

  • 3-2

    que frequentavam a corte do Gro Co (Kubilaikhan).

    Frei Odorico de Pordenone, religioso da Or-dem de S. Francisco, que viajou na sia centralnos anos de i3i8 a i33o, na relao das suasviagens descreve do modo seguinte (i) um reinode nome Riboth, que tem sido identificado com oTibet

    :

    cc Gap. XXIX, Du Royaume de Riboth. De ceste province m'en alay jusques une

    autre trs grande qui a nom Riboth, et marchist

    Inde. Cet royaume est subgiet au grant Gaan,et y treuve on pain et vin en trs plus grant ha-

    bondance que en nuUe part du monde. Les gensde ce pais demeurent en tentes de fuerre noir.Leur maistre cite est moult belle toute de blanchepierre, et Ics rues bien paves. Elle est appeleGota. En ceste cite nul ose espandre sang hu-main, ne aussi de quelque best pour la reveranced'un ydole qu'on y adore. En ceste cite demeureiobassy c'est dire leur pape en leur langage. II

    est chef de tous les ydolatres et donne les benei-ces du pays sa guise.

    Os comentadores desta passagem identificamRibolli com Tibet (2); Gata com Lhasa(3); e con-sideraram iobassy como defeituosa transcrio

    (1) Les voyages en Asie au XIV sicle du bienheurcux FrreOdoric de Pordenone, Religieux de Saint Franois, publisparH.Cordierj Paris, 1891, p. 449 e ^fo.

    (2) Les Voyjges en Asie, p. 455.( 3) Ibidem, p 458.

  • 33

    oriental, iilug- bakhschy, que significa grande la-ma, que a designao vulgar do superior doconvento (i).

    Durante muito tempo Frei Odorico Porde-none foi considerado como o primeiro europeuque visitou o Tibet; esta opinio foi aceita pormuitos eminentes gegrafos, entre outros porH. Yule, H. Cordier, e pelo.Dr. Sven v. Hedin;mas o Dr. Laufer, depois de atento exame dapassagem acima transcrita, concluiu que FreiOdorico Pordenone no atravessou o Tibet pr-prio nem esteve em Lhasa(2). Deve ainda acres-centar-se que a cidade de Lhasa sede do DalaiLama somente depois de 1640.

    Notcias dadas pelos Portugueses. Duranteos trs sculos xiv, xv e xvi nenhuma outra noti-cia positiva acerca do Tibet dada pelos escri-tores ocidentais; e tambm nenhum viajante eu-ropeu se aventurou a visitar aquele pais, que era

    assim conhecido s de nome.Nos primeiros anos do sculo xvii constou aos

    Portugueses estabelecidos em Goa, que um Por-tugus, por nome Diogo de Almeida, tinha resi-dido no pais do Tibet durante dois anos. FreiAntnio Gouveia, religioso da Ordem de S. Agos-tinho, no seu livro miulao Jornada do Arcebispode Goa D. Frey Aleixo de Meneies, Primai da n-

    ( i) Les Voyages en Asie, p. 462.(2) Jarl Charpentier, Some additional remarks, p. 27a,

    3

  • 34

    dia oriental, Religioso da Ordem de Santo Agosti-nho, impresso em Coimbra em 1606, refere damaneira seguinte os sucessos relativos ao men-cionado Diogo de Almeida

    :

    Livro I, captulo I.... Conforme a noticia e informao que foy

    dada ao Arcebispo [^D. Aleixo de jMenezes] porhum Portugus chamado Diogo de Almeida, ho-mem de credito, depois de partido, afirmo, Bentode Ges, no deve ser a Christandade de que sedeu noticia na Corte do Mogor a do Catayo, comoprimeyro se cuidava sem outro fundamento mais,que no se saber doutra Christandade, situadapra aquellas partes alem dos Reynos do Mogor,seno a do Cathayo: mas outra muito mais pertodas terras do iMogor, e com que ha mais comer-cio, que chamo Thibete, aonde este Portugusresidio dois annos, e diz estar o Reyno de Thi-bete alem do de Guixumir, que ha pouco sogeitouo Rey Mogor, antre o qual e o de Thibete se nometem mais que has serras altissimas, que porrezo da muita neve se no podem passar emcertos tempos do anno, quando ella cae; senoquando com a fora do sol se desfaz e derrete;donde vem a ser o caminho mais difficultoso, quecomprido por ser forado aos que caminho (seno vo em mono) esperar por ella, no avendode l entrada deste Reyno mais que quinhen-tas legoas de serta, cujo Reyno chamo Tam-miquia; e em todo o Reyno se no consente in-

    fiel algum^ seno mercador de passagem; e a

  • 33

    fortaleza principal em que o Fiey mora que he

    senhor grande, e isento, se chama Babgo; he oReyno rico de ouro e pedraria, com a qual se or-no as molheres, e se trata custosamente; soos naturais na cor alvos, a modo de Jas, e bemacondicionados; tem em si muitas Igreijas rica-mente ornadas com retabolos e imagens de Christonosso Senhor, e de nossa Senhora, e dos SagradosApstolos (i); tem muitos sacerdotes, que guar-dam continncia, como os nossos, e nos trajos separecem com elles, tirando trazerem toda a ca-bea rapada; tem Bispo a que chamo Lambo,e o que tinho de presente era tido entre elles por

    santo, e contavo delle muitos milagres, e entreoutros; que fazendo sua mais continua habitaocom grande penitencia num spero deserto, quecom hum rio largo se divide da principal cidade,quando vinha celebrar os oicios divinos a ellanas solenidades principais, no tomava outra em-barcao pra passagem do rio, seno o mantoque trazia, ou ha pelle de cabra sobre que seassentava, chegando enxuto cidade ; o que tudo

    (i) o Bodhisattva Avalokitevara muito venerado na Chinasob o nome de Kuan-yiu, e no Tibet sob o nome de Padmapani.Parece que esta divindade a apropriao de uma antiga deusada China, que fizeram uma incarnao de Avalokitevara; porcausa desta origem, ela representada umas vezes como homem,outras vezes como mulher, outras vezescom muitas mos. Pad-mapani a divindade padroeira do Tibet; a deusa da miseri-crdia, que d socorro aos fracos e consola os aflitos; os Tibe-tenses representam-na por uma mulher que tem nos braos ummenino, o que lhe d certa semilhana com a Virgem Maria dosChristos. {Journal Asiaique, igi^, I, p.425 nota 2, e427 nota i.)

  • 36

    testemunhou o dito Portugus Diogo de Almeidadiante do Arcebispo no anno de 6o3, dandolhe ju-ramento aos Santos Evangelhos, com intento deprocurar o bem desta Christandade, sendo assi,e mandar ministros a ella, da qual por ser secu-lar, e no ter mais intelligencia das cousas eccle-siasticas, no sabia dar outra informao de seusritos, nem de erros alguns se os tinho. Do quetudo se espera que traga perfeita informao odito Irmo Bento de Ges, porque se entende queesta sem falta he a Christandade, de que os Mou-ros mercadores davam noticia na corte do Mogor,e no a do Cathayo que he muito mais longe; ealm deste Reyno do Thibete ha outro, que tam-bm chamo Thibete pequeno, que possuem Mou-ros da ceita do Xaa Rey da Prsia, que por ven-tura ser aquella provincia de Thibete, de que

    fala Marco Paulo em seu livro no fazendo men-o de nella haver Christandade alguma.

    Pelo mesmo tempo, isto , no comeo do s-culo XVII os Mouros de Cachemira(i), que vinhamcomerciar s terras mais prximas do Industo,afirmavam que o Gro Tibet era todo povoadode cristos, pela semelhana que havia entre osseus templos e as igrejas dos cristos. Os Religio-sos da Companhia de Jesus, que ento residiamna corte do Rei Mogor, tendo ouvido estas noti-cias, julgaram conveniente tomar mais inteira in-formao do que passava na verdade; e para isso

    (i) P. Antnio de Andrade, Caria segunda, p.

  • 37

    partiu de Cachemira um Padre em descobrimentodo mesmo pais; mas foram tantas as dificuldadesque encontrou, principalmente por causa das ne-ves que de continuo cursam nos caminhos, quefoi obrigado a voltar para p Industo.

    Alguns anos depois, o P. Antnio de Andra-de (2), que residia na corte do Rei Mogor, e erasuperior da misso estabelecida em Agra, tevevrias informaes por via dos Mouros de Ca-chemira e de outras pessoas dignas de f, que to-das eram conformes entre si, pelas quais pareciaque a gente do Tibet era crist e tinha recebidoa f em tempos antigos; mas a princpio no en-controu modo de passar ali por causa das gran-des dificuldades^, que os Mouros representavamhaver nesta viagem; at que no ano de 1624 selhe ofereceu ocasio de empreender a jornada,que efectuou como at-rs se disse.

    (i) P. Antnio de Andrade, Carta segunda, p. 1 e 2.

  • DUAS CARTASDO P. ANTNIO DE ANDRADE

    CARTA PRIMEIRA

    A carta do P. Antnio de Andrade, datada deAgra, de 8 de Novembro de 1624, foi publicadasob o titulo

    :

    Novo descobrimento do Grani Cathayo, ou rei-nos de Tibet, pello Padre Antnio de Andrade, daCompanhia de Jesus, Portuguei, no ano de 1624.Com todas as licenas necessrias. Em Lisboa,por Matheus Pinheiro. Anno de 1626.

    um folheto de (6 folhas, do formato de 8.",medindo 0^,190X0"', 140; cada pgina tem 32 li-nhas quando completa; e mais uma na parte su-perior com o ttulo Novo descobrimento do GramCathayo; cada linha tem em mdia 46 letras. Asfolhas so numeradas na pgina reto de i a i5,seguindo-se outra folha sem numerao, em queesto impressas as licenas do Santo Oficio e doOrdinrio.

    Este folheto muito raro ; h um exemplar naBiblioteca Nacional de Lisboa (Histria, Sgii,P), e outro na livraria do Arquivo Nacional daTorre do Tombo.

  • 40

    No Cod. 49-V-7, folhas 425-436, da Bibliotecada Ajuda existe uma cpia desta carta feita nandia. O manuscrito tem na lombada o ttulo

    :

    (f Jesutas na sia China.Esta carta foi transcrita, modificada na forma,

    pelo P. Antnio Franco na Imagem da Virtudeem o noviciado da Companhia de Jesu na corte deLisboa, Coimbra, 17 17, p. 376-400.

    Em Castelhano foi publicado em Madrid, porLuis Sanches, 1626.

    Em italiano, em Roma por Francisco Corbel-leti, 1627; em Npoles, por Egidio Longo, 1627;Nuovo scoprimento dei Gran Cathayo ... da G.Gabrielli, Napoli, 1827.

    Em francs : Le Gran Cathay ou royaumes de,Tibet nagueres decouverts, Gand, 1627; Relationde la nouvelle decouverte du Grand Cathay^ Pont---Mousson, 1628.

    Em Polaco: Cracvia, por Frederico Szem-beck, 1628.

    Em flamengo: Gante, por Jacobo Dyckio, 1 63 1

    .

    Veja-se: Barbosa iMachado, Biblioteca Lusitana, t. I, p. 2o3,s. V.

    Inocncio Francisco da Silva, Diccionario bibliographico Por-ugue^, t. I, p. 86-87.

    C. Sommervogel, Bibliothque de la Compagnie de Jesus, t. I,c. 339-33 1.

    CARTA SEGUNDA

    A carta do P. Antnio de Andrade, datada(de Chaparangue) de i5 de Agosto de 1626, no

  • foi at agora publicada em portugus na integra.Existe em manuscrito autgrafo, cuja cpia foto-grfica serviu para a impresso feita adiante.

    O manuscrito um folheto de 20 folhas me-dindo o"',2ioXo'",i53, sem numerao; na cpiafotogrfica as pginas so numeradas de i a 40,

    Em uma folha que serve de capa est escritopor letra diferente da da carta

    :

    GoaAnnua do Tibat do Anuo

    de 1626i." Ma

    Uma via desta carta foi remetida ao Rei dePortugal pelo Conde Almirante Visorei da ndia,com a sua carta datada de Goa a 28 de Feve-reiro de 1627, como se v do sumrio inserto noLivro das Mones, livro 26, fli. 14 v. a i5 v. (i).

    Esta carta foi extratada pelo P. Manuel daVeiga na Relaam geral do estado da Christandadede Ethiopia ... e do que de novo succedeo no des-

    cobrimento do Thibet, a que chamo Gram Ca-thayo, Lisboa, por Mateus Pinheiro, i528, fl. i3oV. a 1 24 V. ; e ainda pelo P. Antnio Franco, naImagem da Virtude em o noviciado da Companhiade Jesu na corte de Lisboa, Coimbra, 17 17, p. 400a 418.

    Traduzida em castelhano foi publicada sob o

    (1) Veja-se adeante pg. 42.

  • 42

    ttulo : Segunda carta. Pi'Osigue el descubrimentodei grau Catayo, o Reyno dei Gran Thibet, por

    el Padre Antnio de Andrade, de la Compahia deJesus, Portugus, escrita a su General; y enviadadei Visorey de la ndia a Su Majestad, en este anode 162'/. s. 1. e a. foi. folhas 6. No fim : De Cha-parangue corte dei Rey dei gran Thibet, i5 de

    Agosto de 1626. El Padre Antnio de Andrade.Con licencia dei Senor Don Gonalo Perez deValenuelo, en Segvia, por Diego Framenco.

    Traduzida em italiano foi publicada no livro

    :

    Lettere anmie dei Tibet de mdcxxvi, et delia Cina deiiiDcxxiv scritte ai M. R. P. Mutio Vitelleschi, Gene-

    rale delia Compagnia de Giesu, Roma, 1628.

    Veja-se: C. Sommervogel, Biblioihque de la Compagnie deJesus, Bruxelles, 1893, t. I, c. 329-33 1.

    N. 85

    O Provincial da Companhia a quem pedi re-lao do que passaua nesta christandade, e es-

    tado em que hora est, me enuiou o que vai na

    primeira via, que por ser muito grande e se me

    dar tarde no ouue lugar de se copiar por mais

    vias, e conforme ao que se diz desta noua chris-

    tandade he ha cousa mui grande e mui digna deser fauorecida de V. Majestade, e o Padre Ant-nio dAndrade que a descobrio he religioso demuita virtude, e he.de crer que por ella e pollo

    muito que trabalhou neste descobrimento, foi

  • 43

    nosso Senhor seniido de lho conceder a clle.Guarde Deus a Catholica pessoa de V. Mages-lade como a christandade ha mister. De Goa a28 de fevereiro de 1627. O Conde Almirante.

    Livro das Mones, Livro 24, fl. 14 v. e i5 r.

    Lisboa, 25 de Maio de 1921.

  • CARTA PRIMEIRA

    NOVO DESCOBRIMENTO DO GRAM CATHAYO OU REINOS DE TBET,PELLO PADRE ANTNIO DE ANDRADE,

    DA COMPANHIA DE JESU, PORTUGUEZ, NO ANNO DE 1624.COM TODAS AS LICENAS NECESSRIAS.

    EM LISBOA, POR MATHEUS PINHEIRO. ANNO DE 1626.

    Entre as grandes felicidades e victorias do notauelanno de i23, pode Hespanha com razo contar e can-tar a alegre noua do nouo descobrimento do Gram Ga-thayo, e Reynos de Tibet, cousa tantos annos ha dosPortuguezes desejada, e com tantos trabalhos e peri-gos dos Pregadores Euangelicos em vo t agora inten-tada. Digo felicidades e victorias do anno de i625, porser o Santo, e nelle a Rainha S. Isabel, Padroeira e Se-nhora deste reino canonizada; a Bahya restaurada comtanta gloria nossa, quanta infmia dos imigos; Bredrendida, depois de to perfiado cerco; a armada dosOlandezes vencida pella Portugueza no Oriente; a deInglaterra frustada de seus intentos, e rebatida dos nos-sos com tanto valor no Occidente; a Frota e nos dandia, liures quasi milagrosamente da dos imi(*)gos.Felicidades so, que fazem notauel, e memorauel oanno de 1626, e a ns notauel obrigao a ser deliassempre lembrados, pra dar a sua diuina Magestadeas deuidas graas. E com muito mr rezo deue omundo todo festejar a reduo do grande imprio deEthiopia obedincia da Sancta Igreja Gatholica Ro-

    i.r

    I1V

  • 4

    mana: imprio to grande, que elle s he igual, oumayor que toda nossa Europa, pois tem de largo qui-nhentas legoas, e de comprido setecentas. Ambasestas emprezas to gloriosas guardou a diuina Proui-dencia, por tantos sculos, pra os generosos espiritesPortuguezes, e pra o espirito e zelo das almas dos re-uerendos Padres da Companhia de Jesu, como vere-mos nas relaes seguintes, das quais a primeira, comomais breue, sair logo, e a outra aps ella, Deos que-rendo, pois no he rezo fiquem em eterno silenciosepultadas duas das mores faanhas que ha muitos s-culos fizero os vares Apostlicos, e Euangelicos con-quistadores. O teor da primeira relao, fielmente ti-rada do seu original, he o seguinte.

    Nesta darei conta a V. R. da peregrinao que fize-mos s terras do Tibet, deixando muitas particularida-des, assi por escusar ser comprido, como porque nempra escreuer esta, tenho tempo. Aos trinta de Marode 1624 partimos de Agra, o Padre Manoel Marqueze eu, pra acompanhar a el' Rey, o qual eu tinha dei-xado quando passou por Agra, por rezo de ha grandedoena em que cahi; chegamos cidade do Deli, daqual actualmente partio muitos Gentios a hum famosoPagode, em romaria, que dista de Agra mes e meo decaminho; e como tnhamos muitas informaes tiradaspor varias vias com grande diligencia, com as quaisnos- certificamos, serem aquelles Reynos de Christos,

    2,r alem da fama, que de vinte annos a (*) esta parte,tinha chegada aos Padres na mesma conformidade:vendome em companhia de gente, que me podia ser-uir de guia em grande parte do caminho, e que perdidaesta ocasio, tarde se offerecia outra: me resolui a ir

    tomar noticia daquellas naes, principalmente sendo

    em tempo que el Rey hia pra o Reyno de Caximir, naqual jornada bastaua acompanhalo hum Padre, como

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    de etTeito o acompanhou ; e eu j de volta, intentauavir tomalo a Laor, quando saisse do Caximir, e pelloque tomada resoluo ultima, e ordenadas algas cou-sas tocantes a esta misso, e deixando por superior deliaao Padre Francisco Gursi; e no duuidando ser estaa vontade de V. R., pois a empreza mostraua ser degrande gloria de Deos, e por outra parte no icauafaltando nada nesta estancia, nos pozemos a caminhopra o Tibet, na maneira seguinte.

    Com todo o segredo possiuel nos partimos da ci-dade do Deli, ha madrugada, indo vestidos como osMogores por baixo das lobas, e logo em saindo dasportas pra fora, como era escuro as despimos e apa-recemos com toucas e cabayas, sem disto terem noti-

    cia os prprios Christos e moos nossos, que at linos tinho acompanhado caminho de Laor: deixado ocaminho real, comeamos trauessar as terras dei Rey,por caminhos mais breues que nos foi possiuel, atque passados quinze dias chegamos ao cabo das terrasdo Indostam, e ficamos ao p das serras, que so doRaj de Siranagar. Grandes dificuldades tiuemos des-tas saidas das terras dei Rey Mogor, e entrando nasterras de Siranagar; desta banda nos tinho por Mo-gores fugidos, e que por nenhum modo nos deixariopassar, antes presos nos mandaro a elRey, por teremordem sua pra isso; e confirmauose, vendo que nemramos Gentios, nem mercadores, pois no leuauamosfato; por outra parte os de (*) Siranagar auiao que era- 2,vmos, Mogores, mandados pra espiar a terra, pellomuito que se temem deste Rey; e passados algs dias,vendonos nestas talas, quando parece se fechauam detodo os caminhos pra ns, nos deu o Ceo franca pas-sagem, ensinandonos a pr s confiana naquelle porcuja gloria fazamos esta jornada.

    Com muita diligencia, e maior alegria, comeamosa subir as serras; so ellas as mais fragosas e altas,

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    que parece pode auer no mundo, e bem longe estoude poder declarar a V. R. a difficuldade com que porellas subimos; basta saber depois de andar dous diasdesde pella manha at noite, no acabauamos de pas-sar ha, cortando pellos mais altos picos, e nelles porcaminho ta estreito, que por muitas vezes no he maislargo, que quanto cabe hum s p, andando bs peda-os assi, p ante p, pegados com as mos, pra noresualar, pois o mesmo he errar o pr o p bem de-reito, que fazemos em pedaos pellos ares. So peliamaior parte aquellas serras to talhadas a pique, comose por arte estiuessem a plumo, correndolhe l no pro-fundo como em hum abismo o rio Ganga, que por sermui caudaloso, e se despenhar com notauel estrondo porgrande penedia entre serras to juntas acrescenta comseu echo o pauor, que a estreiteza do caminho causa,a quem vai passando. Tem as descidas mais difficul-tosas e perigosas, pois carece homem em muitas par-tes de remdio de se poder pegar com as mos comonas subidas, e assi he necessrio descer em muitas par-

    tes, como quem desce escada de mo, dando as costasao caminho que vai fazendo. Duas consideraes nosfacilitauo muito estas dificuldades das serras; a pri-

    meira, ver que assi as passaua com muita alegria mui-

    tos Gentios que hio em romaria ao seu Pagode, e ns

    por gloria de Jesu Christo no^so Deos no fazamos

    mais que elles; outra que entre estes idolatras auia mui-

    3,r tos de creci(#)da idade, j com os ps na coua e muito

    inferiores a ns nas foras e na idade, que nos seruia

    de boa confuso, e tambm de nos animar neste cami-nho. Costumo estes Gentios ir assi muitos juntos,hs aps joutros, por o caminho no dar lugar a irdous par a par; e vo dando grandes viuas e euges a

    seu Pagode de contino com estas palavras (ye Badry-nate ye ye) aleuantando qualquer a primeira palaura,

    e respondendo todos; com bem magoa nossa ouuiamos

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    ns estas vozes do inferno, e j que no podiamos to-mar outra vingana do maldito Pagode, nos apostaua-mos a lhe lanar com a mesma frequncia, outras tantas

    maldies, e pedir corte do Ceo, em nosso nome,desse outros tantos louuores e glorias ao Senhor Jesu.Logo na primeira jornada, a cada tiro de frecha, acha-uamos vrios Pagodes de obra sumptuosa, pella mayorparte, todos com alampadas acesas, mas todos de variasfiguras, e todos abominaueis, e redicolos; por guardase seruidores tem muitos Jogues, que logo nas figurasmostro serem ministros do diabo; entre outros vimoshum j muy velho, com as unhas e cabelo ta crescido,e a catadura io disforme que parecia o prprio diabo;e elle sem fallar palaura, como ha estatua, recebia os

    louuores e reuerencias dos Gentios, que debruados porterra lhe beijauam os ps. Desejei a este, o que dousmeses antes tinha este Rey mandado fazer a outro maisdisforme; e foi que indo elle caa em Agmir, ao longode hum grande tanque, onde concorrio naquelles diasgrande numero de Gentios pra suas superstioens, viohum Jogue tam horrendo na figura, que tinha os cabelosda cabea compridos de quatro couados, e as unhasmais de palmo; e elle tam sem pejo, que com nada secobria; era grande o concurso de Gentios, que lhe hiaa beijar os ps, e tudo el Rey foy notando, ficando o Jo-gue immouel, sem lhe fazer (*)nem ha minima reue- 3,vrencia; voltando o Rey da caa, o mandou chamar; deuo Jogue por reposta que no iria seno a hombros dehomens em o andor real; ouuindo el Rey esta reposta,o mandou trazer a rasto pellos cabellos, e tendoo diantede si, lhe disse que ou elle era diabo, ou retrato viuo

    do mesmo, pois no se podia imaginar cousa maisenorme; e logo lhe mandou cortar os cabellos e unhas,e dar outro castigo deuido sua descompostura, e apsisso hum grande numero de assoites, e que o leuassempelos Basares, pra que os rapazes com suas zomba-

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    4,r

    nas vingassem, ou recompensassem os louuores e re-uerencias que lhe fazio os Gentios: outro tanto se de-uia ao Jogue de que assima fallei.

    Mas tornando s serras so ellas pella mayor partecheas de muito aruoredo, do meo pra baixo, comograndes pinheiros de varias castas, e de estranha gran-deza, hus como os nossos, e outros mais frescos, queno do fruto, mas de muito melhor madeira, to al-tos, sem tortura alga, que passo por duas e trs altu-ras da torre do Bom Jesu de Goa; no he encareci-mento, seno realidade muito certa; em muitas parlesachamos grande numero de peegueiros e pereiras car-regadas de muita fruta verde, e muitas aruores de ca-nela, cvprestes, Ivmoeiros, rozais grandssimos, com ro-zas sem numero, muitos amoras de sylua, has pretas,como as nossas, outras vermelhas como medronhos,mas todas muito boas; ha serra vi toda de aruoresde S. Thom, sem folha, mas to carregadas de flores,has brancas e outras como as da ndia, e ellas tocan-dose has s outras com os ramos, de sorte que pare-cia toda a serra hum monte de flores, ou ha s flor; efoi a mais fermosa vista neste gnero que em toda aminha vida tiue;' ha grande numero de outras aruores,como castanheiros, sem fruta, mas quebram com ra-malhetes de fermosissimas flores, de maneira que cadacacho he (#)hum fermoso e grande ramalhete da figurade hum acypreste, ta talhado, que no deixa a naturezalugar a se lhe acrescentar cousa alga pra sua perfei-o. As flores como as nossas so muitos lyrios, ro-zas, e asusenas, e outras em grande numero, to peri-grinas, como fermosas, e em muitas partes vi grandestractos de terra, cuja erua era s manjerona, to finacomo a nossa, mas a folha mais meuda; porm o quefaz as serras mais apraziueis, e menos diflicultosas aoscaminhantes, so as muitas fontes que delias correm,has despenhandose dos mais altos picos, outras bro-

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    tando de viuas pedras ao longo do caminho, de agoato cristalina e fresca, que no ha mais que desejar.Assi chegamos cidade de Siranagar, aonde resideo Raj, e no tem outra, porm hum grandssimo nu-mero de aldes como villas pequenas. He a gente destaterra nos costumes muy diferentes da gente Industana,no degolo os carneiros e cabras, que comem, masafogonas, e dizem que ficando o sangue espalhado,faz a carne mais gostosa; e assi sem esfolar as rezes,com a pelle chamuscada, e a carne mal assada corren-dolhe o sangue, a comem; de ordinrio ando descalose com os ps gretados e cheos de golpes, e to caleja-dos, que correm sem molstia alga por sima de pe-dras muy agudas e espinheiros, sem se ferirem.

    Nesta cidade nos fizero grandes exames de quemns ramos, de nossa preteno; no podamos diz^que [ramos] mercadores, que fora acertado, pois noleuauamos fato; respondi, que eu era Portuguez, e quehia ao Tibet em busca de hum irmo meu, que hauiaannos l estaua, segundo as nouas que me chegaro,entendendo ser o Rev; e reuoluendonos o fato de vestirque leuauamos, quando viro as lobas pretas, pergunta-ro a rezo; ao que respondi, que leuauamos pra asvestir, se acaso aquelle meu irmo fosse morto, em si-nal de (*)d, por ser aquella a cor que se usaua nas nos- 4,7sas terras; ento ficaro mais persuadidos que teria lalgum irmo, como dizia; depois de cinco dias nos dei-xaro passar por particular merc de Deos; e ns comtoda a breudade possuel, fomos caminhando obra dequinze dias por serras menos fragosas que as passa-

    das; e passadas ellas, chegamos a outras cheas de neue,nas quaes a sombra e a frescura de fontes nos era jmenos necessria por auer j grande frio. Passamoso rio Ganga muitas vezes, no por pontes de cordabem difficultosas, como no caminho que tnhamos dei-xado atrs, mas por sima da neue que o cobria por

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    grandes iraios, indo elle fazend(j por baixo se cursocom grande estrondo. No pude entender, como erapossiuel cair tanta neue, que abobadasse to caudalosorio, sem serem bastantes suas agoas a leuala, e derre-

    tela; pareceme que das serras ao pee das quaes elle

    corre, no podendo sustentar a machina, e grande pezoda neue, cae sobre este rio como a montes, ficando como pezo, e queda mais composta e densa, cobrindo assipor sima em muitas partes, como hum tiro de espin-garda, em outras mais, e em outras menos; deixandoem lugares has concauidades, e aberturas medonhas,que no causo pequeno pauor aos que passao por sima,no sabendo a que hora e ponto cahiro aquellas abo-badas, como caem muitas vezes, seruindo a muitos desepultura. Assi fomos passando algiis dias, at que acabo de mes e meo chegamos ao Pagode Badrid, queest nos confins das terras do Siranagar ; a este ha grandeconcurso de gente, ainda das partes mais remotas, comode Seyla, e Bisnaga, e outras que a elle vem em ro-maria. Quando de Goa voltamos, vierom em nossacompanhia dous moos Chingals de Seyla, compridaj sua romaria a este Pagode; queixarose que noacharo esmolas pra se sustentar, e que padecio

    5,r muita fal(*)ta; compadecime delles, e mandeilhe darhs bazarucos, que faziam hum larim de Goa; pormsabendo elles que no ramos gentios, no asseitaroesmola, dizendo que s de Bramenes, ou de Baneanesa recebio.

    Est este Pagode Badrid situado ao p de ha serra,de que nascem varias fontes de muito boa agoa; entreoutras brota ha de agoa ta quente, que a no podesoportar a mo por breue espao, a qual se reparte portrs partes, ficando a cada ha como um boi de agoa;e assi entra em vrios tanques, nos quaes temperadacom outra fria, se lauo os romeiros, auendo que comella purificauo suas almas, e fico sem peccado algum;

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    e no ha pra elles na vida bcmauenturana maior,que se chegar a se lauarem nesta agoa purificadora desuas almas. Est este Pagode com os ps em o pr-prio lugar donde a fonte brota, que aqui o poserao osseus Bragmenes, fingindo a esta outras mil patranhas;entre elias dizem, que o fogo vendose cheo de pecca-dos, pellos muitos males que fazia no mundo, abra-sando casas e fazendas, consumindo campos e aruore-dos, pezaroso de to graues culpas se fora pedir rem-dio delias ao Pagode Badrid, o qual lhe disse, queficasse naquelle lugar com elle, que assi ficaria purgadode todos aquelles pecados; teue o fogo por grandemerc esta que lhe fazia o Pagode, e assi se ficou aseus ps; e por isso sahia aquella fonte de agoa toquente como viamos. Fizlhe instancia, que se o fogocstaua aos ps do Pagode, como dizia, to manco equieto, como fazia ainda pello mundo os mesmos ma-les que primeiro, abrazando quanto encontraua? Res-pondero, que o fogo que andaua agora pello mundo,era ha s parte das quinze que tem o fogo, e queficando as quatorze quietas aos ps do Badrid, aquen-tando aquella fonte, a decima quinta fazia os males quelhe apontauo. Dizem mais que o Pagode tudo quantotocaua pri(*)meiro, tornaua em ouro, ou fossem paos, 5,,,ou pedras, ou qualquer outra matria; mas que hum fer-reiro por cobia, leuou certa cantidade de ferro, e lan-andoo no fogo que aos ps do Badrid estaua por assio abrandar, e fazer maior pra ficar com mais ouro,tocandoo no Pagode com esta cobia e com o ferroainda quente se ressentira tanto delle, que nunca maisquizera conuerter as cousas em ouro, como de primeiro;destas patranhas conto muitas. As offertas que no seuthesouro entro, so sem conto, e assi dizem que hegrandssimo o thesouro que tem de ouro, prata, aljo-fre, e pedraria. Tirados trs meses do anno todos osmais est este Pagode coberto e encrauado na muita neue,

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    que cae sobre elle, e as aldes roda so neste tempoinhabitaueis, passandose seus moradores pra outras,que esto mais abaixo, trs ou quatro jornadas, ondea neue faz menos impresso.

    As gentes destas terras, posto que pertencem ao Rajade Siranagar, so porm de outra casta; a iingoagemhe diferente; comem carne crua, e assi como vo es-folando o carneiro, o vao comendo, principalmente todaa gordura que tem; e os neruos dos pes he pra elles omelhor bocado; as tripas depois de mal enxagoadas naagoa, as fazem em bocadinhos, e assi as vo logo co-mendo; alga porm cosem, mas no lhe espero maisque a primeira feruura, dizendo que a carne muito co-zida perde o sabor e substancia. Comem a neue comoentre ns o po, ou doce; vendo eu hum menino de douspra trs annos com hum pedao nas mos comendodelle, me pareceo que lhe faria muito mal; mandeilhedar has passas, que atualmente nos mandara dar oRaj do Pagode, e que lhe tirassem das mos o torroda neue; tomou elle as passas, e comeando a comeras botou fora logo, chorando pella sua neue; e assi me-

    6,r ninos, grandes (*)e pequenos comem a carne crua, earrs, assi como vem de Lyra, e outras sementes destasorte; e com isto ficam muto fortes e sos, bem fora dasclicas da ndia. Aqui lauram e semeiam as raolheres;e os homens fio; estas trazem por jias nas orelhashas folhas como olas de palmeira, enroladas de ma-neira, que represento dous fusos, que saindo das ore-lho assim dereitos, lhe correm pello rosto hum palmoe meo de comprido.

    Na ultima destas pouoaoens chamada Man, esti-uemos alguns dias esperando que quebrassem as neuesde hum famoso deserto, que corre daqui atee as ter-ras do Tibet, que se pode passar em dous meses doano somente, no dando ellas lugar nos outros dez acomercio algum. Desta alde ultima vo sobindo logo

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    algas grandes serras, que nos dous meses que por ellasha passagem, se atrauesse.m em vinte dias; no tem po-uoao alga, porque nem lugar ha em que a possaauer, nem aruore, nem erua, nem outra cousa mais quepenedias de neue, chouendo de continuo sobre ellas; po-rem nos dous meses do anno, em que ha passagem,fica a terra descuberta na fralda dos montes por al-

    gas partes, e onde no fica, esto as neues to com-pactas, que he fcil passar por sima; no se acha po-rem lenha nem cousa em que acender fogo; e assia matalotagem que uzo os passageiros, he farinhade seuada assada, a qual, quando querem comer, dei-tam em agoa, e fazem um polme que bebem, sem maistornar ao fogo, porque o no ha; e desta maneira pas-sam, e se sustento naquelle deserto; e morrem pormmuitos, e dizem elles, que ha certos vapores pesonhen-tos que a terra descuberta de si lana, de modo queestando um homem sem lhe doer pee, nem mo, lhedo hs desmaios que em menos de hum quarto de hora(*jacabam; e eu creo que nasce isto da grande frial- e.vdade e falta de comer; e assi se lhe apaga o calor na-tural e falecem de repente. Tanto que as neues doqualquer lugar, logo o Raja do Pagode de Badridmanda pedir licena ao Rev doTibet, com certo tributoque lhe paga, pra de c irem as cfilas s suas terras.Algis dias estiuemos esperando com determinao depassar na primeira cfila; porem neste meo tempo ti-uemos muitos auisos e sinais manifestos, que o Raj deSiranagar nos mandaua represar, e que no passsse-mos adiante; certificados disto, foi grande a aflio quepassamos, vendo que depois de tantos trabalhos passa-dos, e caminhos to compridos, se cortaua assi a nossaperteno, e se acabauam as esperanas de entrar na-quella terra, que pra ns era de mais valia que a dePromisso. Depois de vrios discursos nesta matria,e posto o negocio nas mos de Deos, pois era seu, me

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    resolui de intentar o caminho do deserto occultamente,em que fosse fora de tempo, no duuidando do parti-cular fauor e proteco do Ceo. Depois de tomadas to-das as informaes do caminho, e do tempo que na pas-sagem se podia gastar, deixei o irmo nesta alde, porme parecer que no passaria mal algum, e me pus acaminho ha madrugada sem ser visto, leuando comigoa dous moos. Christos, e hum serrano daquelles porguia; elle e qualquer de ns leuaua hum cambolim prase cobrir, e hum alforje com alga cousa pra comer.Caminhamos dous dias com a maior pressa que nos foipossiuel, posto que com trabalho, por rezo das neuesque neste logar comeauo a se passar com difficul-dade; se no quando a outro dia pella menha chega-ro a ns outros trs serranos, mandados pelo Gouer-nador da terra, com grandes ameaas e medo aos quenos guiauo, se fossem mais por diante; dizendolheque sua molher e filhos ficauao em estreita prizo, e

    7,r seu fato (*)confiscado; e se logo no voltasse, auio demorrer todos; e a mim com varias ameaas e medos,procuraro amedrontar, dizendo que meu companheiro,que estaua na aldeia, passaria muito mal, se eu logono voltasse ; e o fatinho que tnhamos, seria tomadopor perdido, e sobre tudo que auia de morrer infalli-uelmente, se hia por diante, por no ser ainda tempode passar aquelle deserto, com outras muitas cousas eespantos desta calidade. O serrano que nos guiaua,voltou logo; e eu como tinha todas as informaoens docaminho, me fui por diante com os dous moos, porse no atreuerem trs que tinho vindo a mais, que anos mouerem com palauras. Inuocado o nome de Jesue ajuda do Senhor, continuamos por diante; porm otrabalho que passamos foi muito excessiuo, porque nosacontecia muitas vezes ficar encrauados dentro na neue,hora at os hombros, hora at os peitos, de ordinrioat o joelho, canando a sair asima, mais do que se pode

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    crer, e suando suores frios, vendonos no poucas vezes

    em risco da vida; muitas vezes nos era necessrio ir

    por sima da neue com o corpo, como quem vai nadando,porque desta maneira no se encraua tanto nela; assi

    fomos continuando, dormindo as noites sobre a mesmaneue, sem ter mais abrigo que deitar hum dos trs cam-bolins que leuauamos, por sima delia, e cobrindonos to-dos trs com os outros dois; e no era este o maiortrabalho, porque mais sentiamos a neue, que comeauaa cair, das quatro horas da tarde por diante, quasi toda

    a noite, to meuda e to espessa, que nos no deixauaver, estando Juntos, acompanhada com hum vento tezoe sobre maneira frio, cobrianos por sima dos cambo-iins; e o remdio era sacudila por muitas vezes, prano ficarmos enterrados debaixo delia. Nos ps, mos .e rosto, no tinhamos sentimento, porque com o dema-siado rigor do frio, licauamos totalmente sem (*)sen- 7.

    tido; aconteceome pegando em no sei que, cahirmehum bom pedao do dedo, sem eu dar fee disso, nemsentir ferida, se no fora o muito sangue que delia cor-

    ria. Os pees foram apodrecendo de maneira, que demuy inchados, nolos queimauo depois com brazas vi-uas, e ferros abrazados, e com muy pouco sentimentonosso; a isto se acrecentaro dous grandes males, o pri-

    meiro que cada hum de ns tinha hum mortal fastio,com que ficauamos como que impossibilitados pra co-

    mer; no me lembra que em doena liuesse outro iguala este; mas a necessidade precisa fazia que sobre todas

    as repugnancias comesse alga cousa, e com^ muita fora

    e com algas inuenoens, procuraua com os moos omesmo, mais do que nunca fiz a doentes graues. A ou-tra cousa que nos foi de pena, era no achar agoa pra

    beber, a qual ainda no meo de taes frios nos era bemnecessria, por rezo da secura que causaua o muito tra-

    balho; no era esta falta por faltarem fontes, mas por

    todas correrem ocultamente por baixo da nue, e pella

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    mesma maneira o rio Ganga, vindo quasi todo este ca-minho por baixo delia. Comamos pedaos da mesmaneue, e s vezes quando o sol comeaua de aquentar,derretamos ha pouca em hum prato de latam. Nestaforma fomos caminhando atee o alto de todas as ser-ras, onde nasce o rio Ganga de um grande tanque, edo mesmo nasce tambm outro, que rega as terras doTibet. J neste tempo tnhamos a vista dos olhos quasitoda perdida, mas eu a perdi mais tarde que os moos,polia muita diligencia que fiz em resguardar os olhos;mas no foi bastante pra no ficar quasi cego, pormais de vinte e cinco dias, sem poder rezar o OfficioDiuino, nem ainda conhecer hija s letra do Breuirio.

    (*)Tanto que chegamos ao alto das serras, se se-guiam logo has grandes campinas das terras do Tibet;mas como j vamos muito mal, nem diusauamos maisque tudo branco, sem se poder discernir por que partepodamos passar adiante; e assi perdemos todas as es-peranas de o poder fazer, faltandonos os sinais, pellosquais o fazamos atee aly; e Ja neste lugar no estaua-mos da cidade real mais que cinco legoas de caminho, etermos como por mpossiuel podermos j passar auante,pois no aparecia mais que campinas de neue, e poroutra parte irnos faltando o mantimento; e os trs mo-os que era necessrio calsalos, e descalsalos, cobrilose descobrilos, e ainda meterlhe o comer na boca. Tra-tei com elles o que deuiamos fazer, e assentamos na-quella noite que a outro dia pella menha voltassemelles pra a alde, onde tinha ficado o irmo, e pode-rio l chegar, andando bem em seis dias; e eu meficaria entretanto soo ao pee daquella altssima serra,

    em hum lugar que por ser muito hmido, se derretianelle a neue, e tinha algum abrigo do vento, ao longode ha grande pedra, com abunduncia de agoa do tan-que, que asima disse, ficandome bastante prouimentodo necessrio, pra oito ou noue dias, em que o irmo

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    da alde me poderia mandar outro, ou ser Deus ser-uido, que apparecesse algum que me guiasse no querestaua de caminho atee o Tibet.

    Chegada a menha, me despedi dos moos, enco-mendandolhe quanto pude a dehgencia no caminhar,que como hauia de ser sempre pra baixo, e por ca-minho que ja sabiam, poderio muy bem hir com maispresteza, como lhe importaua, porque incorria a sua

    vida e a minha: a reposta foi poremse a chorar comomeninos, e que elles (*)sem mim no podio dar qua- 8,vtro passos, e que por nenha via se atreuio sem mim,como na precedente noite me tinho prometido. Nunca

    com elles pude acabar outra cousa; e assi parece foiDeos seruido, porque sem duuida elles mofreriao no ca-minho, se fossem ss, como logo experimentei. Nestaforma fui forado a voltar, quasi do cabo da jornada,com os mesmos sobresaltos de ser l represado, com que

    tinha chegado aly, dos quais me parecia estar j seguro,

    com ser o caminho volta muito fcil, pois era de con-tinua descida; foi comtudo grande o trabalho que tiue,em fazer andar os moos, porque j os pees hio taes,

    que se no podio ter sobre elles; e assi caminhamosde volta trs dias e meo, quando sobre a tarde ouuihas vozes como de homem que bradaua naquelle de-serto, mas no vimos quasi nada, nem podamos sabero que seria; fomos porem endireitando pra aquellaparte onde soauo os brados, donde nos veo encontrarhum serrano com nouas do irmo, o qual lhe deixarammandar os de Mani, antes o solisitaro muito praisso, achandose muy alcanados do que tinho feito,temendose que se nos acontecesse alga desgraa, comocomo j imaginauo, lhe tomara o Rey do Tibet estreitaconta quando o soubesse. De grande consolao nosfoi egte homem, do qual soubemos nouas certas do ir-mo; e como os temores de sermos represados estauoj apagados, buscando os da alde cousas que dar ao

  • 6o

    Raj pra nos no impedir, que foi noua de grandealegria. Por este homem nos mandou o irmo humpouco de refresco de grande estima; e foi ha poucade farinha de seuada assada, e hum pouco de mel, eJuntamente pra nos cobrir roupa, e pra nos amparardo frio; seruionos este homem de guia por outros trsdias, no cabo dos quaes chegamos a hum lugar, em quea neue era pouca, e hauia couas de pedras, debaixo das

    9,r quaes nos podamos reco(*)lher; distaua este logar daalde trs jornadas; aqui descansamos alguns dias ateeo irmo chegar, e com elle ha cfila que se antecipoupor nosso respeito; quando chegou o irmo, no o pudeconhecer, seno depois de o ter nos braos. JulgueV. R. que consolao aueria entre ns, ainda algs diasdepois do descanso; he porm certo, que nunca me vicom tanto alento e foras, como neste to trabalhosocaminho, e mal poderia quem me conheceo, julgar queem mim as aueria pra tantos trabalhos. Depois doirmo chegar nos detiuemos por alguns dias naquellelugar, em quanto quebrauo mais as neues, em quese passou quasi hum mes, e ouue lugar a tornarmosa fazer de nouo o prprio caminho, mas j com maisfacilidade, e sem trabalho, que tiuesse semelhana como primeiro; s me faltaua a mim a vista, e no hemuito pois atee os mesmos serranos, que desta segundavez foram comnosco, com serem costumados, e nasci-dos entre as mesmas neues, padessero grandes doresnos olhos por alguns dias, sem lhe valer antolhos decertas redes que fazem pra defender a vista dos rayosdo sol, que ferindo a neue, cegaua os olhos com a con-tinuao de poucos dias.

    J neste tempo se tinha mandado recado ao Rey doTibet; e assi teue de ns noticia, mandando ao cami-nho dous homens, pra nos acompanharem e seruirem,ordenando aos da cfila, que tiuessem de ns grandecuidado, e nos leuassem como cousa muita sua; e a

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    mim me mandou escreuer que fosse muito alegre prasuas terras, porque quanto delias me seruisse, me da-ria. Tudo isto succedeo, pollo que se escreueo de nsao mesmo Rey, que ramos gente muyto estranha, enunca vista por aquellas terras. Trs dias antes de che-garmos, nos mandou trs cauallos, dous pra ns, eoutro pra algum dos moos, sendo necessrio; quando

    J che(*)gamos cidade, sahia a gente pellas ruas, e as ^.vmolheres s janellas a nos ver, como cousa muy rarae estranha. O Rev por ento no apareceo; estaua po-rm a Rayhha a hia varanda do pao, donde nos quizver; fizemoslhe a deuida reuerencia, e assi nos recolhe-mos perahas casas que nos tinho aparelhadas. Ima-ginaua el Rey, e assi lho tinho escrito, que ns de-uiamos trazer algas prolas e joyas de grande preo,posto que no ramos mercadores, pois no podia aueroutro fundamento de viagem to trabalhosa, que em-prenderamos. Certificado porm j por via de outrosquem ramos, e que no ramos mercadores, nem tra-zamos peas ricas como cuidaua, ficou com menoraluoroo de nossa vinda; e sem nos querer fallar dousou trs dias, mandando perguntar o pra que tnhamosvindo; respondi que eu no viera a suas terras pracomprar e vender, porque no era mercador; assi maisque no tinha vindo pra delias leuar cousa alga;nem delle queria algas das mercs que me tinhamandado oferecer; s lhe pedia que desse audinciapor espasso de ha hora, e que ento lhe descobririaa causa de minha vinda, e no de outra maneira; masque estiuesse- certo, que lhe seria de gosto. Auida alicena, nos recebeo com beneuolencia, estando somentecom elle hum seu cunhado; seruia de linguahum MouroQueiximir, pello qual lhe dei conta da preteno comque viera sua corte e os muitos trabalhos que a estaconta tinha passado; e saber pra me certificar das no-uas, que me tinham chegado de ser Christo, e seguir

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    com seus pouos a verdadeira ley; e que se era ser-uido, alli me tinha pra declarar e mostrar os erros dasua; e que desejos de sua saluaao somente me faziodesterrar de minha ptria, deixar irmos e amigos, epassar tantos trabalhos; que se aproueitasse da oca-sio, que Deos lhe metia nas mos, lembrandolhe, que

    io,r por tantos (*)annos atras a no tinha dado a seus an-tepassados, que se no fizesse indigno das mercs queo Ceo lhe oFerecia, etc. O Mouro como ouuio estapratica, entendendo nossa preteno, procurou quantopode desfazer nella, segundo se conjeituraua do seufallar; de modo, que com eu no entender aquella hn-goa, me parecia a mim claramente, que usaua elle deengano; e fuy forado ao ameaar algijas vezes, que ofaria castigar seueramente, no sendo fiel em referir ael Rey o que se mandaua dizer, assi que logo auia detomar outro lingoa Gentio, e de nouo praticar a el Rey,o que lhe no queria dizer. Bastou porem o que elledisse a el Rey, pra el Rey se deixar .entrar, e lhe irmosparecendo melhor, que na primeira entrada. A Raynha,que tudo estaua ouuindo na outra casa, detrs de haguarda porta, mandou dizer a el Rey, que nos queriaver, e nos fallou de p; mas tornados ao Rey, quiz ellaestar presente, e disse entre outras cousas que sentiagrande pezar de eu no saber sua lingoa, porque muitolhe agradara o que tinha ouuido de nossa ley. He estaRaynha tida por molher prudentissima, e assi o pare-ceo em seu trato, e nas perguntas e repostas da pratica;mandaram por ento ser J tarde, que nos recolhessem,mas que folgario de fallar comnosco deuagar naquel-las matrias da ley e saluao. Ao dia seguinte fuichamado bem cedo, porque j aquelle pequeno gro damostarda Euangelica hia lanando raizes, e causandograndes efeitos nos coraes dei Rey e da Raynha;neste dia, como nos demais, seruia hum Gentio de lin-goa; pratiquei deuagar de nossa santa ley, declarando-

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    lhe algus mistrios principaes, com tanto gosto do bomRey e da Raynha, que dahi por diante no podiam es-tar sem ns outros, no se fartando de ouuir as nouasdo Ceo, e mais sendo to certo, que o menos do quese lhe dezia, podia ser entendido, pois era necessriofalar por trs lingoas differentes, (*) entendendo cadaqual delias muito pouco da matria que se trataua. Or-denou el Rey, que pra ns no ouuesse porta fechadaem sua casa, e que a todo tempo entrssemos e sasse-mos, como em effeito se fez, ainda nos tempos que seno deixaua entrar no Pao; quasi todos os dias tnha-mos presentes do Rey e da Raynha, daquellas cousasque hauia na terra, a saber, carneiros, arrs, farinha,manteiga, jagra, passas e vinho de uuas em grandeabundncia, de maneira que no s bastaua pra os dacasa, mas dauamos continuas esmolas, abrangendo amuitas charidades. As passas so de duas castas, haspretas muito meudas, mas muito boas e doces, outrasmuito grandes e brancas, mas muito Secas e azedas;todas vem dez ou doze dias de caminho doutras cida-des do mesmo Rey, como tambm o vinho de uuas.Passauose j muitos dias, e passauase o tempo emque era necessrio voltarmos antes de se fecharem asserras; pedi licena ao Rey, dilatandoa de dia em dia,no acabaua de a dar; at que claramente me disse,que no me deixaria vir de suas terras, sem primeirolhe dar palaura tirmada com juramento, de logo voltarno seguinte anno, pra ficar com elle de uagar, j quepor ento no era possiuel, conforme s razoens, quelhe apontaua: eu quando o vi to desejoso de nossaficada, lhe respondi, que lhe daria a palaura, que mepedia de voltar logo, sendo contente o meu lamba mayor,cujo sbdito eu era, como sem falta seria, mas com ascondioens, que eu lhe daria por escrito, como dei. Foia primeira, que me auia de dar plenrio poder, praem suas terras poder pregar a santa F sem ningum

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    me ir mo; a segunda, que me daria lugar, e sitio prafazer Igreja e casa de orao; terceira, que me no auiade ocupar em cousas prprias de mercadores, se porventura pretendesse algas de nossas terras, pois eracontra o que professauamos; quarta, que sendo caso,que pello tempo em dian(*)te, fossem algs mercado-res Portugueses a suas terras, ns no assistiriamos emcompras e vendas de suas peas, nem a semelhantesmatrias, como se nunca ouuesse tais mercadores;quinta, que no daria credito a cousa alga que lhe dis-sessem os Mouros Queiximiris contra ns, pois erammui contrrios nossa santa ley. A isto acudio logo aRaynha que os Mouros era m gente, qual era a leyque professauo, e de todo encontrada com a sua, pora qual rezo nem das portas da cidade pra dentro osdeixauo viuer, como na verdade no deixo, e s vem cidade a seus tratos. Ouuidas as condioens pellobom Rey e a Raynha, fez logo passar hum papel seladocom suas armas reaes na forma seguinte.

    Ns el Rey do Reyno do Potente, recebendo grandealegria com a vinda do Padre Antnio Frangim s nos-sas terras, pra nos ensinar a santa ley, ao qual toma-mos por nosso mestre lamba maior, e lhe damos todaa autoridade pra liuremente poder pregar e ensinaraos nossos pouos a ley santa, nem consentiremos quealgum lhe d por isso molstia, e lhe mandaremos darsitio e toda a ajuda que quizer, pra fazer casa de ora-o, e somos contentes que sendo caso que venho anossas terras mercadores frangues, o dito Padre e seuscompanheiros no entreuenho em cousa algCia na ma-tria de compras e vendas, pois so contra o que pro-fesso; assi mais no daremos credito a cousa que con-tra os ditos Padres quiserem intentar os Mouros, porquebem entendemos, que como no tem ley, assi encontroaos que seguem a verdadeira; e pedimos em tudo en-carecidamente ao Padre grande, nos enuie logo o dito

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    Padre Antnio, pera remdio de nossos pouos. Dadaem ChaparangLie firmada com nossas armas, etc.

    Passou mais outro papel em Parseo, por via dosMouros, firmado com suas armas, em que manda atodos os Queixi(*)mires de Agra, ou Lar, que tem co-mercio em suas terras, que sendo chamados por mim,ou por qualquer Padre, faco tudo o que lhe manda-rem, e por sua via leuem nosso fato ao Tibet, como sefosse do prprio Rey; tudo isto ordenou pera na via-gem no termos molstias com direitos e outras vexa-oens senielhantes. No primeiro dia que falamos comel Rey, e vio o fato que leuauamos, como costumauafazer sempre, que logo parecia de pobres, entre outrascousinhas, achou ha fermosa imagem de nossa Se-nhora, em lamina, com o menino Jesu dormindo, cousamuito perfeita; ficou pasmado de a. ver, e a Raynhaainda mais, sem embargo de muitas pinturas muitoboas; e quando lhe declarei, o que representauao, selhe dobrou o gosto, em que por grande espao esteuevendo a santa imagem. Achou mais algas cruzes deSalsete, algas nominas, e varonicas, e hs selicios edisciplinas; perguntou meudamente por cada ha dascousas, e pera que seruio; o que se lhe declarouquanto foi possiuel; calou-se por ento; mas passadosalgs dias, quando j estaua, e se nos mostraua to af-feioado a nossas cousas, como fica dito, me pedio commuita instancia algas cousinhas pera si, e pera a Ray-nha, Prncipes, e seus sobrinhos;. no lhas dei logo porlhe acrescentar os desejos e reuerencia quellas cousas;por muitas vezes mas tornou a pedir, auendo que comellas lhe faria Deos muitas mercs, e que lhe ficariocomo boas armas contra hs e outros imigos. Dousdias antes de me dar licena, lhes leuei sete, pera setepessoas nomeadas, e lhas offereci todas juntas em humpapel; mas elle no nas quiz receber assi, dizendo quedesse eu a cada hum a sua, como fiz, dando a primeira

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    a el Rey, que a recebeo desbarretado, e com summa re-uerencia, pondoa sobre os olhos e cabea, e logo alanou ao pescoo preza por hCia cadea de ouro; omesmo fez a Raynha, que se seguio. Prncipe, cunhado,e sobrinhos, a cujas pessoas lancei (*)as santas Cruzes,que lhe ficaro parecendo mui bem. O cunhado, quenaquella tarde se partia por General de hua bem arris-cada guerra, me disse, que hia com a sagrada Cruzcheo de confiana, e segurssimo de nosso Senhor pormeo delia os liurar dos perigos da guerra, como liurou,dandolhe vitoria com muita facilidade e honra sua.Era muito pra ver a grande deuao de todos, e a re-uerencia com que tratauo as santas relquias. Deimais a cada hum ha nomina que lhe lancei ao pes-coo, e ao outro dia aparecero todos com as nominasem bolsas de seda pra mais resguardo. O dia ultimome deteue o Rey consigo por mais tempo; e eu pordespedida lhe offereci aquella lamina em que estaua aimagem da Sacratssima Virgem, e o menino Jesu, deque assima fiz meno, dizendolhe que por nenhOa viaauia de largar de mim aquella sagrada imagem, maspor estar certo, que elle lhe teria todo o respeito eacatamento, lha deixaua como hum riqussimo thesouro,e como hua fortaleza inexpugnauel, a quem poderia edeuia recorrer no meo de todos os perigos e trabalhosdalma e corpo; e estiuesse certo de remdio e socorro;elle estimou a imagem quanto se no pode crer, e postode joelhos lha puz sobre a cabea e da Raynha; e por-que estaua presente muita gente, me pedio lha mos-trasse, o que fiz com grande alegria e consolao detodos, que desbarretados e os joelhos em terra, e comas mos leuantadas adoraro a sagrada imagem, comestranha deuao e reuerencia; e querendolha deixar,logo me pedio a tornasse a leuar pra nossa casa, emquanto mandaua aparelhar lugar decente pra a reco-lher, como se fez. Indo eu ja com ella nos braos,

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    encontrei em outra sala de baixo ao Veador da fazenda,acompanhado de muita gente, o qual me pedio, lhemostrasse a imagem, de que J tinha noticia; poremhum dos que o acompanhauo, [disse] em lingoa Par-sea, de que eu sabia algCias palauras, que a desejauaver por coriosidade de cousa to boa e perfeita.

    (#)Ouuida esta palaura, tornei a recolher e cobrir a i2,vimagem, que j lhe hia mostrando, dizendo, que aquel-las cousas tam diuinas e santas no se vio por coriosi-

    dade, se no pra lhe fazer a deuida reuerencia e ado-rao. O Veador da fazenda reprendeo asperamentea palaura de que o outro tinha usado, pedindome quelha mostrasse, porque elle no por coriosidade, maspra a adorar de todo o corao a desejaua ver. Vioacom todos os presentes, com tanta deuao e reueren-rencia, que no podia homem reter as lagrimas de con-solao, vendo o diuino Jesu nos braos de sua mysantissima, assi adorado e reconhecido por quem he,de gente to remota e apartada, e nunca vista. Nobautizei logo o Rey e a Raynha, por no ter tempobastante pra os catechizar, e no os deixar arriscadosa retroceder.

    Do que mais sucedeo at sairmos da cidade.Bem se deixaua ver o sentimento em que ficauo o

    Rey e a Raynha, e toda sua corte, quando nos partimos,dizendo despedida que voltssem