O descentramento do sujeito na vinheta de Retrato Falado1 DESCENTRAMENTO DO... · que é no...

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1 Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI 24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR O descentramento do sujeito na vinheta de Retrato Falado 1 Juliana Mastelini Moyses 2 Resumo: O objetivo do trabalho é fazer um paralelo entre a ideia de descentramento do sujeito apresentada por Hall (2004) no livro A identidade cultural na pós-modernidade e a vinheta de abertura de Retrato Falado, quadro transmitido pelo programa Fantástico da Rede Globo entre 2000 e 2007. O quadro trazia histórias reais dramatizadas por atores e as cenas eram intercaladas com depoimentos das pessoas envolvidas. Em uma das vinhetas que o quadro apresentou durante o período em que foi ao ar, os rostos das depoentes aparecem embaralhados com o rosto da atriz que as interpreta, formando um quebra-cabeça. Seguindo os conceitos de Hall, mostramos como o sujeito do Retrato Falado é construído, a partir da vinheta, pelo recorte e se constrói na multiplicidade. Palavras-chave: Comunicação; descentramento do sujeito; quadro Retrato Falado; vinheta. Abstract: The object of the work is make a parallel between the idea of decentering the subject presented by Hall (2004) in the book The question of cultural identity and the opening sequence of Retrato Falado, frame transmitted by program Fantástico of Rede Globo between 2000 and 2007. The frame brought true histories dramatized by actors and the scenes were intercalated with testimonies of the people involved. In one of the opening sequences that the frame presented during the period in which it was transmitted, the deponents’ faces appear mixed with the face of the actress who plays her, forming a puzzle. Following the Hall’s concepts, we show how the subject of Retrato Falado is built, from the opening sequence, by clipping and it builds in the multiplicity. Introdução O presente trabalho traça um paralelo entre a ideia de descentramento do sujeito apresentada por Hall (2004) no livro A identidade cultural na pós-modernidade e a vinheta de abertura do quadro Retrato Falado, transmitido pela Rede Globo entre 2000 e 2007. Hall apresenta cinco momentos do pensamento moderno sobre o sujeito 1 Trabalho apresentado no GT 4- Abordagens Analíticas em Comunicação Visual, do Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI. 2 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: [email protected].

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Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI

24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR

O descentramento do sujeito na vinheta de Retrato Falado1

Juliana Mastelini Moyses2

Resumo: O objetivo do trabalho é fazer um paralelo entre a ideia de descentramento do

sujeito apresentada por Hall (2004) no livro A identidade cultural na pós-modernidade

e a vinheta de abertura de Retrato Falado, quadro transmitido pelo programa Fantástico

da Rede Globo entre 2000 e 2007. O quadro trazia histórias reais dramatizadas por

atores e as cenas eram intercaladas com depoimentos das pessoas envolvidas. Em uma

das vinhetas que o quadro apresentou durante o período em que foi ao ar, os rostos das

depoentes aparecem embaralhados com o rosto da atriz que as interpreta, formando um

quebra-cabeça. Seguindo os conceitos de Hall, mostramos como o sujeito do Retrato

Falado é construído, a partir da vinheta, pelo recorte e se constrói na multiplicidade.

Palavras-chave: Comunicação; descentramento do sujeito; quadro Retrato Falado;

vinheta.

Abstract: The object of the work is make a parallel between the idea of decentering the

subject presented by Hall (2004) in the book The question of cultural identity and the

opening sequence of Retrato Falado, frame transmitted by program Fantástico of Rede

Globo between 2000 and 2007. The frame brought true histories dramatized by actors

and the scenes were intercalated with testimonies of the people involved. In one of the

opening sequences that the frame presented during the period in which it was

transmitted, the deponents’ faces appear mixed with the face of the actress who plays

her, forming a puzzle. Following the Hall’s concepts, we show how the subject of

Retrato Falado is built, from the opening sequence, by clipping and it builds in the

multiplicity.

Introdução

O presente trabalho traça um paralelo entre a ideia de descentramento do

sujeito apresentada por Hall (2004) no livro A identidade cultural na pós-modernidade

e a vinheta de abertura do quadro Retrato Falado, transmitido pela Rede Globo entre

2000 e 2007. Hall apresenta cinco momentos do pensamento moderno sobre o sujeito

1 Trabalho apresentado no GT 4- Abordagens Analíticas em Comunicação Visual, do Encontro Nacional

de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI. 2 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Estadual de Londrina

(UEL). E-mail: [email protected].

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que desencadearam em rupturas na ideia de um sujeito fixo detentor de uma identidade

unificada.

Retrato Falado é um quadro de humor baseado na vida real. Trazia

histórias de telespectadoras que enviavam suas cartas ou e-mails à equipe do programa.

Analisamos a vinheta presente nos dois últimos episódios do DVD lançado em 2005

com 15 histórias do Retrato Falado. A vinheta traz diversos retratos das mulheres que

participaram do quadro. Cada rosto é uma peça do quebra-cabeça. Algumas peças

formam parte do rosto da atriz que interpreta as personagens. As peças se movimentam

como se buscassem completar esse rosto, que, porém, nunca se completa. Em vez disso,

ele sempre está embaralhado com retratos das personagens. A vinheta, portanto, com

sujeitos fragmentados, possibilita um olhar da perspectiva do descentramento que Hall

descreve.

Retrato Falado

Retrato Falado contava história reais de telespectadoras que enviavam

suas cartas à equipe do programa. Surgiu como um quadro do recém criado programa

Zorra Total, em 1999. No final do primeiro ano, foi transferido para o Fantástico.

Segundo o site oficial do programa, tornou-se “rapidamente um dos maiores sucessos

do Fantástico”.

O quadro era dirigido por Luiz Villaça e encenado pela atriz Denise

Fraga. Foram apresentadas histórias românticas, cômicas e dos mais variados estilos,

nas quais a atriz encarnava personagens reais. Segundo o site, o quadro ficou no ar até

2001, quando ganhou prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte na categoria

Humor. Em 2003, voltou a ser exibido a pedido dos telespectadores que continuavam a

mandar suas histórias ao programa. A partir de 2004, segundo Caminha (2007, p. 141),

passou a ser exibido por temporadas, com cerca de 12 a 16 episódios por ano.

No livro Retrato Falado - histórias fantásticas da vida real (2005),

Denise Fraga explica o processo de produção do quadro. A atriz conta que a equipe do

programa recebia cerca de 500 cartas ou e-mails por semana. Dois pesquisadores

selecionavam as histórias e escolhiam cerca de 50 que eram transmitidas ao diretor.

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Apesar da grande quantidade de cartas, Fraga explica que muitas vezes não conseguiam

uma boa história. E se a história tivesse um bom começo, mas um final ruim, era

abandonada. “Partimos do princípio de que um dos charmes do programa é o fato de a

história ser real. Sendo assim, se o começo é bom, mas o final não, não inventamos

outro desfecho, simplesmente abandonamos a história” (2005, p. 268). Questões de

produção também eram definidoras para se abortar uma história.

A seguir, todos os possíveis envolvidos eram entrevistados e os

roteiristas se baseavam nessas entrevistas para escrever o roteiro do episódio. Eles,

então, enriqueciam as histórias “com estatísticas e dados interessantes, e a dramatização

[era] intercalada por depoimentos de personagens reais envolvidos nos casos narrados”

(HEITZMANN, 2011, p. 216).

A vinheta de abertura

A análise aqui presente se volta para a vinheta de abertura do quadro

analisado presente nos dois últimos episódios do DVD, intitulados Dente por dente, ou

jaqueta por jaqueta3 e Denise Alice ou Renata Fraga?

No início dos episódios, a atriz Denise Fraga apresenta a história que será

contada. Ao fundo, uma espécie de quebra-cabeça movimenta desenhos que

representam fotos 3X4 de mulheres que provavelmente tiveram suas histórias contadas

no Retrato Falado. Os rostos vão se alternando rapidamente de forma que não é

possível identificar facilmente uma pessoa, já que os desenhos apresentam apenas

alguns traços pessoais (Imagem 1).

3 Quando o episódio foi ao ar, não apresentava título. O título aparece no DVD que foi lançado em 2005

com 15 histórias.

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Imagem 1

Entre os retratos aparecem também peças que formam o rosto da atriz

que interpreta todas as personagens no quadro. A face da atriz aparece grande e o

tamanho das peças que formam o retrato das pessoas são apenas partes da figura dela.

Enquanto a atriz fala, as peças se movimentam ao fundo na busca de formarem o rosto.

Mas este não se completa. E o desenho ao fundo sempre mistura retratos das

personagens e da atriz.

A seguir, depois que a atriz fez a apresentação do episódio aparece a

vinheta propriamente dita. As imagens do quebra-cabeça continuam a se movimentar ao

fundo enquanto uma animação da atriz de corpo inteiro aparece na frente dos desenhos

com uma máquina fotográfica na mão. A animação “olha” para o telespectador e dá as

coordenadas para um possível fotografado (Imagens 2 e 3).

Imagem 2 Imagem 3

Quando a posição está boa, sinaliza com um gesto e “tira” a foto. Da

câmera fotográfica, então, sai um flash que ilumina toda a tela e em seguida o nome do

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quadro é apresentado. Cada letra de “Retrato Falado” aparece em um quadrado que

desliza do canto direito até formar as palavras ao centro da tela em um fundo verde sob

o foco de uma luz em forma de círculo, como num teatro. A seguir, começa-se a contar

a história (Imagem 4).

Imagem 4

A vinheta de Retrato Falado à luz das ideias de Hall

Stuart Hall (2004) mostra como o sujeito do Iluminismo, visto como

possuidor de uma identidade fixa e estável, foi sendo desconstruído por uma série de

pensadores, que descentraram esse sujeito, “resultando nas identidades abertas,

contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós-moderno” (p. 46) e mudando a

forma como a identidade é conceitualizada.

Hall explica que aqueles que defendem a noção de uma fragmentação da

identidade moderna, argumento apresentado em todo livro A identidade cultural na pós-

modernidade, defendem que o sujeito foi deslocado. Esse deslocamento é descrito

através de cinco rupturas nos discursos do conhecimento moderno que lançam um olhar

analítico sobre a constituição do homem.

A primeira ruptura diz respeito aos estudos marxistas que defendem que

o homem produz história a partir de condições já dadas. Assim, não tem vez a ideia de

um sujeito fixo. Este se transforma a partir de condições que lhes são externas. A

questão principal a que nos detemos é a de que o homem não é um ser pronto, acabado e

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singular, mas um ser em construção. E que ele é formado na multiplicidade de

condições com as quais se depara ao longo da vida.

O sujeito do Retrato Falado está em construção, apesar de uma narrativa

sobre ele já ter sido produzida e contada no quadro. Essa narrativa mescla a fala do

personagem sobre si mesmo, o toque dos roteiristas, produtores e diretor, e a

interpretação da atriz. São diversos palpites sobre um mesmo personagem. Assim, como

mostra a vinheta, o sujeito do Retrato Falado se constrói na relação com os outros, tanto

que é no embaralhamento das peças e dos rostos que a face da atriz busca se completar,

através do diálogo entre atriz e personagem.

Vilas-Boas, no livro Biografismos, no qual apresenta reflexões sobre as

escritas de vida, defende a importância de se ter a consciência que o indivíduo não se

constrói sozinho. Para o autor, nenhuma pessoa é um “self-made nascido com o gene da

vitória” (2008, p. 135). Ao contrário, a pessoa a quem o biógrafo retrata contou com a

colaboração de muitos coadjuvantes, a quem o autor chama de “co-autores” da obra de

seus biografados. Para se ter o entendimento de que as pessoas não constroem sozinhas

seu “universo consagrador”, ele fala da necessidade de reconhecer a importância do

mundo das experiências comuns.

Relacionada a essa ideia de que o ser humano não se constrói sozinho,

Geertz (1989) fala que a cultura é tão importante para o ser humano que condiciona o

próprio ser do indivíduo. É por isso que o autor defende que sem homem não haveria

cultura, mas certamente sem cultura também não haveria homem. Somos “animais

incompletos e inacabados que nos completamos e acabamos através da cultura” (p. 36).

Assim, ideias, valores, atos e até mesmo as emoções dos seres humanos

são produtos culturais, como o próprio sistema nervoso o é. “Não é diferente com os

homens: eles também, até o último deles, são artefatos culturais”, (GEERTZ, 1989, p.

37). E o autor fala que assim como a cultura nos modelou e continua nos modelando

como espécie, ela também nos modela como indivíduos separados. Portanto, o homem

não é nem um ser imutável subculturalmente nem o resultado de cruzamentos culturais

estabelecidos. Ele está em construção.

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Por essa perspectiva, a noção de um homem pronto e constituído pode ser

uma ilusão, já que ele pode estar tão envolvido com onde está, quem é e no que acredita

que sua constituição é inseparável desses aspectos.

O segundo descentramento mostrado por Hall, que rompe com a ideia de

um sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa, vem da descoberta

do inconsciente por Freud, por afirmar que o ser humano é formado com base em

processos do inconsciente regidos por outra lógica que não a da razão.

No livro A crítica da razão sensível (1998), Michel Maffesoli mostra

como a razão não tem mais o papel de única provedora de respostas em nossa

sociedade, e aí, a importância dos sentidos, pois existem outras formas de conhecimento

que não precisam do aval da ciência e nem por isso são inferiores. São, apenas, saberes

diferentes. Ele defende que o imaginário traz um tipo de saber raro com verdades

múltiplas. Dessa forma vê o “sensível como parte integrante da natureza humana”

(p.22).

Ao falar do sensível, Maffesoli faz uma crítica ao racionalismo defendido

na modernidade, uma razão abstrata, separada, que dificulta a compreensão da vida em

seu desenvolvimento. Para haver um entendimento do que a experiência vivida tem de

denso, imagético e simbólico, o autor diz ser preciso ativar todas as capacidades do

intelecto humano, “inclusive as da sensibilidade” (p. 27). Para ele racionalismo e

irracionalismo são sempre complementares e a vida é sempre um movimento que

exprime a união de contrários.

É preciso saber desenvolver um pensamento audacioso que seja capaz de

ultrapassar os limites do racionalismo moderno e, ao mesmo tempo, de

compreender os processos de interação, de mestiçagem, de interdependência

que estão em ação nas sociedades complexas (p. 37).

Em contraposição ao saber abstrato, que vem de fora do objeto, Maffesoli

fala da razão interna das coisas. Dessa forma, pratica-se uma ideia que Maffesoli credita

a Scheling de uma “ciência criativa”, que possibilita vincular natureza e arte, conceito e

forma, corpo e alma. E que considera que a vida tem suas razões que muitas vezes a

razão desconsidera. E por isso a importância de um pensamento relativizante, que

admite uma multiplicidade de valores.

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“Nada, nem ninguém, jamais é exclusivamente aquilo que parece ser em

um dado momento. É sempre mais, e isto porque há, em cada um e em cada fenômeno,

algo de performado que convém desenvolver” (p. 60). Assim, o autor defende que os

sociólogos devem fazer o mesmo que os romancistas fazem com seus personagens:

procurar fundamento e não simples causas para perceber a razão interna, mesmo que

esta se contraponha à razão funcional e instrumental as quais estamos acostumados.

Voltando às ideias de Hall, o autor explica que a respeito da identidade,

pensadores psicanalíticos como Lacan defendem que o eu como unificado é uma ideia

que

a criança aprende apenas gradualmente, parcialmente e com grande

dificuldade. Ela não se desenvolve naturalmente a partir do interior do núcleo

do ser da criança, mas é formada em relação com os outros; especialmente

nas complexas negociações psíquicas inconscientes, na primeira infância,

entre a criança e as poderosas fantasias que ela tem de suas figuras paternas e

maternas (p. 37).

A ideia de Nancy Huston (2010) vai no mesmo sentido. Para ela, a

identidade das pessoas vem das histórias e narrativas que lhes são contadas durante a

primeira infância: “acreditamos nelas, gostamos delas, nos agarramos a elas” (p. 29).

Huston, assim, mostra que os humanos são seres em processo e em

constante construção. Nesse sentido, além de questões constitutivas e racionais do ser,

este é formado pelos impulsos inconscientes e pelo que é histórico, social e cultural.

Assim, tem-se a noção de um sujeito dividido, devido a sua própria formação

inconsciente.

A partir da vinheta do Retrato Falado, percebe-se que, apesar de o

telespectador olhar para a história transmitida pelo quadro como uma reconstituição dos

acontecimentos, e, assim, propor um indivíduo como unidade, este se apresenta na

dividido. E por mais que se busque unificá-lo, ele permanece dividido. Fala Hall:

assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de

processos insconscientes, e não algo inato, existente na consciência no

momento do nascimento. Existe sempre algo ‘imaginário’ ou fantasiado

sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em

processo”, sempre “sendo formada” (p. 38).

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Para Hall, a identidade plena que está dentro de nós como indivíduos não

é tão importante quanto aquilo que está em falta e se completa com o que nos é exterior,

“pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros” (p. 39). Assim, o

mais importante no quadro não é a busca por uma unidade do sujeito que tem sua

história contada, não é descobrir sua essência para recontá-la aos telespectadores, mas o

processo de complementação que se dá pelo toque da atriz, dos produtores, diretor e

roteiristas. Portanto, como ela é representada por si e pelos outros.

Mesmo assim, o telespectador busca saber quem é, e como é,

verdadeiramente, a personagem que tem sua história contada no quadro. E

“psicanaliticamente, nós continuamos buscando a ‘identidade’ e construindo biografias

que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque

procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude” (HALL, 2004, p. 39).

O terceiro descentramento que o pensador apresenta concerne às ideias

advindas do pensamento de Saussure. Para o linguista, não somos autores daquilo que

expressamos com nossa língua, pois apenas podemos dizer o que as regras nos

permitem, já que a língua é um sistema social, não individual. Assim, não se expressa

apenas o que se quer. “Falar uma língua não significa apenas expressar nossos

pensamentos mais interiores e originais. Significa também ativar a imensa gama de

significados que já estão embutidos em nossa língua e em nossos sistemas culturais”

(HALL, 2004, p. 40). Não se pode, portanto, fixar o significado de uma palavra em

ligação direta com o mundo que existe fora dela. Esse significado depende da relação de

similaridade e diferença com as outras palavras, explica Hall.

Relacionadas a isso estão as ideias de Geertz (1989) sobre o pensamento

humano, que, para ele é tanto social como público, e “seu ambiente natural é o pátio

familiar, o mercado e a praça da cidade” (p. 33). Pensar, diz Geertz, não consiste nos

acontecimentos na cabeça, mas num tráfego entre símbolos significantes, como

palavras, gestos, desenhos, sons musicais, enfim, qualquer coisa que esteja afastada da

simples realidade e que seja usada para impor significado à experiência.

Esses mecanismos simbólicos vinculam o que os homens são capazes de

se tornar e aquilo que eles realmente se tornam. Porque “tornar-se humano é tornar-se

individual, e nós nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais” (p. 37).

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Esses padrões culturais são criados historicamente, e a partir deles damos forma, ordem,

objetivo e direção a nossas vidas.

Falar de linguagem no contexto da análise do Retrato Falado é essencial

já que é através da linguagem, e das narrativas sobre si, que o sujeito busca se formar.

Este é construído através da linguagem. Desde o nome do quadro, a ideia se faz

presente: Retrato Falado. É um retrato que se constrói a partir da fala e do que a pessoa

conta sobre si. Um retrato construído através das palavras não pode ser algo fixo,

fechado, já que o significado das palavras, como visto, é cambiável, “inerentemente

instável: ele procura o fechamento (a identidade), mas ele é constantemente perturbado

(pela diferença)” (p. 41).

O retrato falado busca um fechamento, uma identidade. A própria atriz

que interpretava as personagens buscava essa identidade. Ela conta que quando o

quadro nasceu, tentava imitar todos os gestos e maneira de falar das personagens.

Assim, “quando o programa ia ao ar, eu era apenas um fantoche opaco diante daquela

realidade tão brilhante que é uma pessoa falando espontaneamente diante de uma lente”,

explica Fraga (p. 269).

Com o tempo, percebeu que o importante não era a cópia:

Não adiantava: eu era Denise e nunca seria Irene. Com o tempo, fui

percebendo que o mais importante da minha profissão é justamente

interpretar. E o que é interpretar? Perceber algo e passar para o outro a sua

percepção. Foi muito bom quando vi que, melhor que ser Irene, era eu ser

essa terceira pessoa que o ator é capaz de criar: nem Denise, nem Irene, mas

Irene-Alice (p. 269).

Portanto, mesmo que se tentasse imitar a personagem, a diferença estava

presente. E na vinheta, mesmo que o quebra-cabeça tente se completar, as peças se

embaralham e promovem o diálogo entre personagens e atriz. O conteúdo transmitido

pela vinheta não acaba ali, e a história contada no quadro carrega outros significados

que não estão aparentes. Não é possível transmitir tudo aquilo que foi vivido e

apreendido por meio de todos os sentidos humanos através apenas da fala. A linguagem

não consegue abarcar a totalidade do significado.

O quarto descentramento de que fala Hall diz respeito às ideias de

Foucault sobre o poder disciplinar. Para o pensador, o poder disciplinar, exercido pelas

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instituições sociais, visa manter todas as instâncias do ser humano sob controle e

disciplina. Esse poder atinge primeiramente a espécie humana como um todo e depois o

ser como indivíduo. O que faz com que o sujeito, apesar de se inserir em uma instância

social, se individualize ainda mais. Nisto consiste o paradoxo dos regimes disciplinares:

“quanto mais coletiva e organizada a natureza da instituição da modernidade tardia,

maior o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito individual” (p. 43), e

por isso o descentramento.

O quinto descentramento é o impacto do feminismo como crítica teórica

e como movimento social. No que diz respeito ao descentramento do sujeito, o

movimento questiona a distinção entre o privado e o público com o slogan “o pessoal é

político” (p. 45). Com isso, leva para a discussão pública, questionamentos que antes

diziam respeito apenas à esfera privada, como família, sexualidade e trabalho

doméstico.

Isso diz respeito também à vinheta do Retrato Falado. Além do fato de o

quadro só contar história de mulheres, ele traz para o âmbito público, histórias que

aconteceram, e pertencem, ao espaço privado. Na vinheta, os rotos privados ganham a

extensão pública, indo ao ar em uma rede nacional de televisão.

O movimento feminista, explica Hall, politizou questões referentes à

subjetividade ao afirmar que aquilo que somos depende da maneira como somos

formados e produzidos como sujeitos generificados. Nesse sentido, não cabe a ideia de

um ser com uma identidade fixa, esta depende das relações que esse ser irá desenvolver

ao longo da vida.

Considerações finais

A partir da análise aqui expressa, que lançou um olhar sobre a vinheta do

quadro Retrato Falado à luz da ideia de descentramento do sujeito defendida por Hall

(2004), percebe-se que apesar de buscarmos uma imagem fixa de um personagem, isto

não é possível. Uma pessoa, sua identidade e, portanto, sua imagem, é algo sempre em

processo. Assim como o sujeito do Retrato Falado. Seu eu não termina na história

contada, ou na forma como ele se vê e transmite no olhar para a lente, e nem tampouco

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no episódio transmitido pela televisão, depois que a história passou pelas mãos dos

produtores, roteiristas, diretor e atriz. Ao telespectador ainda cabe a tarefa de construção

e desconstrução do personagem. O resultado disso é um sujeito recortado, em

fragmentos múltiplos, assim como são múltiplos os aspectos que tensionam a

constituição do sujeito.

E como esses aspectos são múltiplos, não cabe aqui fechá-los. Se não

existe um sujeito com uma identidade fixa, seria um erro buscar um retrato que seja

fixo, que, portanto, não daria conta da multiplicidade do sujeito a quem se propõe

retratar. A vinheta de Retrato Falado propõe essa impossibilidade de fixidez. Em

nenhum momento o rosto da atriz Denise Fraga se completa, de forma que aparece

sempre embaralhado com os rostos das retratadas. O que permite entender que o retrato

apresentado no quadro não é nem da atriz nem da retratada, mas uma mistura dos dois.

E por mais que se busque o rosto unificado e completo, este sempre está em processo, e

a diferença se faz presente.

Referências

CAMINHA, Marina. O mundo cotidiano do Retrato falado: diálogos com a telenovela.

In: ECO-PÓS. v.10, n.2, julho-dezembro 2007, p. 128-145. Disponível em:

http://www.revistas.ufrj.br/index.php/eco_pos/article/view/1022/962. Acesso em 17 de

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MEMÓRIA GLOBO. Retrato Falado e outros quadros de Denise Fraga. Disponível

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http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/programas-

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VILAS BOAS, Sérgio. Biografismo: reflexões sobre as escritas de vida. São Paulo:

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