O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil · aliança estratégica com...

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O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil Luiz Felipe d’Avila e Oliver Stuenkel nº3 2010 PAPERS

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O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

Luiz Felipe d’Avila eOliver Stuenkel

nº3 2010PAPERS

O clp–Centro de Liderança Pública dedica-se ao preparo e desenvolvimento de líderes políticos que estejam comprometidos em promover mudanças transformadoras na sociedade brasileira e que busquem implementar políticas públicas eficientes e inovadoras. O clp é uma organização sem fins lucrativos e apartidária.

ObjetivoTornar os líderes políticos brasileiros verdadeiros agentes de mudanças transformadoras.

MissãoDesenvolver líderes transformadores, capazes de formular e implementar políticas públicas inovadoras de modo eficaz, ético e responsável.

VisãoOs líderes transformadores desafiam crenças, costumes e atitudes arcaicas e mobilizam a sociedade em torno da implementação de políticas públicas inovadoras.

O clp concentra suas atividades em cinco áreas:• Seminários e workshops criados sob medida para governantes e líderes

políticos selecionados rigosamente;• Debates para ampliar a discussão sobre temas políticos e políticas públicas;• Programas de estudos e de intercåmbio com universidades e intituições

orientadas para a liderança política;• Publicações de pesquisas, estudos e trabalhos (papers);• Desenvolvimento de ferramentas de liderança e gestão para o setor público.

O que é o CLP

Luiz Felipe d’AvilaDiretor-Presidente

Beatriz PedreiraCoordenadora de Relações Institucionais

Denise Zuanazzi Coordenadora de Eventos

Carlos Da CostaDiretor Acadêmico

Rogério Schmitt Coordenador de Estudos e Pesquisas

Quem é o CLP

É com muita satisfação que divulgamos aos nossos leitores o terceiro número dos clp Papers, a linha de publicações do Centro de Liderança Pública destinada a debater os princi-pais temas da agenda institucional brasileira. Esses “position papers” têm como objetivo estimular os nossos líderes políti-cos a liderar mudanças e políticas públicas transformadoras.

O tema deste volume – a política externa brasileira – não poderia ser mais oportuno. Trata-se de uma questão que ganhou uma grande e inédita visibilidade nos últimos anos, pelo menos para a imprensa e para os formadores de opi-nião. Muitos até acreditam que, nessa próxima campanha eleitoral, a política externa terá lugar de destaque no discur-so dos principais candidatos presidenciais.

Esse volume tem algumas novidades em relação aos dois que o antecederam. A primeira delas é o fato de con-ter não um, mas dois artigos sobre o mesmo tema. Am-bos foram escritos por membros da equipe do clp: Luiz Felipe d’Avila (nosso diretor-presidente) e Oliver Stuenkel (nosso ex-pesquisador visitante). Os dois textos se com-plementam perfeitamente, e devem ser lidos como partes de um mesmo trabalho.

A segunda novidade é que esse número dos clp Papers foi o resultado prático de um painel por nós promovido em 30 de outubro do ano passado. Naquela ocasião, versões preli-minares dos dois artigos foram submetidas a um seleto time de debatedores: o embaixador Rubens Barbosa e os cientis-tas políticos Sérgio Fausto (ifhc) e Ricardo Sennes (Pros-pectiva Consultoria). Esse formato se repetirá também nas duas próximas edições dos clp Papers.

Vale alertar que as versões definitivas dos dois artigos foram concluídas pelos autores no início desse ano. Portan-

Apresentação

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to, alguns dos episódios mencionados nos textos já tiveram desdobramentos posteriores. No entanto, isso não altera em nada as conclusões apresentadas.

Boa leitura!

Rogério SchmittCoordenador de Estudos e Pesquisas

Centro de Liderança Pública (clp)

O desafio de tornar a política externa

relevante para o Brasil

Luiz Felipe d’Avila e

Oliver Stuenkel

PA P ERS

Nº 3 | Junho de 2010

Copyright © 2010 clp / Luiz Felipe d’Avila e Oliver StuenkelTradução: Patrícia Neves Capa: Marcelo M. GirardDiagramação: IMG3

2010

Todos os direitos reservados aoclp – Centro de Liderança PúblicaAvenida Nove de Julho, 5094São Paulo SP BrasilCEP 01406-200 - Tel. (11) 2364-9518e-mail: [email protected]: http://www.clp.org.br

Sumário

O desafio de tornar a política externa relevante para a nação 9Luiz Felipe d’Avila

A política externa, segundo Lula 12

O Barão do Rio Branco e a institucionalização da política externa 15

Política externa e interesse nacional 20

Resolvendo o paradoxo da política externa 37

A estratégia de política externa do Brasil 39Oliver Stuenkel

Temas globais 40

Temas regionais 59

Conclusões 115

O desafio de tornar a política externa relevante para a nação

Luiz Felipe d’Avila

10 Luiz Felipe d’Avila e Oliver Stuenkel

Existe um enorme descompasso entre a visão ideológica da política externa do governo Lula e a crescente importân-cia econômica, política, regional e mundial do país. A atuação diplomática do governo aponta para um horizonte em que o Brasil pretende exercer a sua “independência externa” distan-ciando-se dos Estados Unidos e da Europa e forjando uma aliança estratégica com países da América do Sul e do eixo “Sul-Sul”, que engloba os países africanos e as nações emer-gentes da Ásia e do Oriente Médio. Por outro lado, a crescente relevância econômica, energética, ambiental e estratégica do Brasil no âmbito internacional revela uma nação que ambicio-na participar de maneira efetiva da formulação e da implemen-tação de medidas transnacionais. Este é o Brasil que aspira a conquistar um assento no Conselho de Segurança da Nações Unidas, engajar-se no redesenho do Fundo Monetário Inter-nacional e comandar a Organização Mundial do Comércio.

A tentativa de conciliar a visão da política externa do go-verno Lula com o pragmatismo necessário para converter a crescente importância do Brasil numa atuação relevante na arena internacional não produziu bons resultados. O go-verno fracassou nas negociações da rodada de Doha quando tentou liderar a formação de um bloco de países emergen-tes. O Brasil foi derrotado na tentativa de eleger o embai-xador Luiz Felipe Seixas Corrêa para dirigir a omc e João Sayad para presidir o bid. Além de não conquistar o assento no Conselho de Segurança da onu, o país tampouco conse-guiu fortalecer a integração econômica na América do Sul. As exportações brasileiras para o Mercosul caíram 10% nos últimos dois anos e o bloco econômico nunca esteve tão dis-tante do seu propósito de se tornar uma zona de livre co-mércio. A tentativa de o Brasil exercer o poder e influência para mediar um acordo entre o presidente deposto de Hon-

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duras, Manuel Zelaya, e o governo hondurenho transfor-mou-se num fiasco diplomático. A atuação da diplomacia brasileira colaborou para acirrar a tensão política do país, criando um impasse nas negociações que só terminou quan-do os Estados Unidos resolveram intermediar um acordo entre o caudilho deposto e o governo hondurenho.

Quanto a popularidade internacional do presidente Lula, ela resultou em muitos aplausos e pouquíssimos re-sultados concretos. De fato, os governantes estrangeiros descobriram que a melhor maneira de lidar com o Brasil é enaltecer o presidente da República nos atos públicos e não ceder às pressões do governo brasileiro nas negociações às portas fechadas. Assim, os presidentes Hugo Chávez (Venezuela) e Fernando Lugo (Paraguai), o casal Kirch-ner (Argentina), os presidentes Barack Obama (Estados Unidos) e Nicolas Sarkozy (França) mantêm suas barrei-ras protecionistas contra os produtos brasileiros (Europa e Estados Unidos), conquistam vantagens comerciais (Ar-gentina e Paraguai) e apoio político (Venezuela) sem ter de fazer concessões ao Brasil.

O próximo presidente da República terá de fazer uma op-ção clara pelo rumo da política externa. Ele poderá continu-ar a eleger como prioridades internacionais o fortalecimento da diplomacia “Sul-Sul”, a integração da América do Sul e limitar a participação do país na arena global à defesa de seus interesses nacionais. Neste caso, continuaremos a ser um mero membro do coro das nações e exerceremos pouca in-fluência na elaboração das políticas internacionais. A segun-da escolha é mais audaciosa e condizente com o crescente papel e importância internacional do país. Além de exercer a sua liderança regional na América Latina e fortalecer os la-ços comercias com as principais nações emergentes, o Bra-

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sil aprofundará sua atuação na arena internacional. Este é o país que pretende participar do redesenho do fmi e que se prontifica a emprestar 10 bilhões de dólares à instituição; é também a nação que contribui com a onu, enviando tropas para missão de paz no Haiti e colaborando para o restabe-lecimento da paz interna naquele país. Ao invés de exercer um papel irrelevante, o Brasil se tornará um importante ator coadjuvante, disposto a participar e a se engajar na discussão e na elaboração de políticas globais.

O desafio de transformar a política externa num tema relevante para o país exigirá visão, coragem, determinação e liderança política. Será necessário desmistificar crenças, contrariar interesses políticos e enfrentar as resistências de uma nação que ainda reluta em exercer o poder de maneira relevante na arena internacional. A relevância internacional de uma nação não é determinada pelo número de aplausos que o presidente da República recebe em fóruns estrangei-ros ou por fazer parte do g-20, o grupo das vinte nações mais importantes do mundo; tampouco ela é definida pela nossa habilidade de sediar a Copa do Mundo ou os Jogos Olímpicos. A relevância externa do Brasil será determinada pela sua habilidade de converter em poder a sua capacidade de influenciar na elaboração, formulação e implementação de medidas que contribuam não só para a defesa do interes-se nacional como também para o bom funcionamento do sistema internacional.

A política externa, segundo Lula

A política externa do governo Lula retrata uma curiosa fusão de crenças tradicionais da diplomacia brasileira com o viés ideológico do Partido dos Trabalhadores. O Itamaraty,

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por exemplo, acredita que a defesa dos interesses nacionais deve ser perseguida por meio de incursões pontuais na arena internacional. O objetivo da diplomacia circunscreve-se ao cardápio clássico que consiste em proteger a agricultura, o co-mércio e a indústria nacional; resguardar a segurança das nos-sas fronteiras; cultivar boas relações com os nossos vizinhos e manter relações cordiais com a maioria das nações do mundo, não importa se são grandes potências democráticas ou feudos ditatoriais. O Brasil sempre foi um defensor do princípio de não intervenção em assuntos internos de outros países.

O presidente Lula revestiu os valores tradicionais da nos-sa política externa com tintas do credo ideológico petista e procurou imprimir uma nova visão da diplomacia brasilei-ra. No mundo concebido pelo governo Lula, o Brasil tem de se posicionar ao lado das nações pobres e emergentes contra a imposição das grandes potências europeias e dos Estados Unidos. É preciso tecer acordos, forjar interesses comuns, aplainar as discórdias no eixo Sul-Sul para poder articular uma ação conjunta capaz de se contrapor aos interesses dos países ricos. Não é por outra razão que governo costuma apontar como trunfos da sua política externa o aumento do comércio internacional do Brasil com os países da África e da Ásia, o ingresso da Venezuela no Mercosul, a criação da Unasul (que aspira unir toda a América do Sul numa região de livre comércio), a popularidade e o reconhecimento do presidente Lula nos fóruns internacionais como um legítimo interlocutor dos interesses e aspirações dos países emergen-tes nas discussões globais. Segundo o governo, a diploma-cia petista aumentou a diversidade das parcerias comerciais brasileiras, gerou uma América do Sul mais forte e indepen-dente da influência americana e deu mais voz aos interesses regionais nos fóruns internacionais.

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Quando a visão ideológica e os ditames partidários se so-brepõem aos interesses do Estado, os objetivos da política externa tornam-se turvos, resultando em ações mal defini-das e em derrotas diplomáticas que prejudicam o Brasil. Ao cedermos sistematicamente às pressões da Argentina para reduzirmos tarifas de produtos brasileiros, prejudicamos a indústria nacional e retardamos o processo de transforma-ção do Mercosul numa zona de livre comércio. Ao sermos excessivamente condescendentes com os governos popu-listas da América Latina, contribuímos para o enfraqueci-mento da democracia e incentivamos decisões voluntaristas que dilapidam as instituições, as liberdades individuais e o desenvolvimento econômico da região. As ações arbitrárias dos caudilhos afetam diretamente os interesses brasileiros. A expropriação de propriedades privadas e a nacionalização da economia na Bolívia e no Equador atingiram as empresas brasileiras. Os campos de petróleo pertencentes a Petrobras foram confiscados pelo governo boliviano e a construtora Odebrecht foi expulsa do Equador.

Esses exemplos ilustram os riscos e os perigos de confun-dir os interesses nacionais com os interesses partidários, a política de Estado com a política de governo, a visão de país com os credos ideológicos. Enquanto não tivermos uma vi-são clara dos nossos interesses nacionais e das nossas priori-dades internacionais, vamos continuar a ser vítimas da nossa própria omissão, aceitando tratados, fazendo concessões e tolerando medidas que são prejudiciais ao Brasil e à ordem internacional. É preciso retornar às lições da nossa história diplomática para clarear conceitos, princípios e ideias que norteiam a nossa política externa.

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O Barão do Rio Branco e a institucionalização da política externa

No início do século xx, havia um chanceler brasileiro que compreendia as implicações negativas de nos dedicarmos exclusivamente aos problemas domésticos e ignorarmos a importância das relações exteriores. Seu nome era José Ma-ria Paranhos Júnior, mais conhecido como Barão do Rio Branco. Durante os quase dez anos em que comandou o Itamaraty (1902-1912), transformou a diplomacia brasileira num poderoso e eficiente instrumento de política de Estado. Primeiro, ele soube definir as prioridades da política externa com clareza, resolvendo todas as disputas de demarcação de fronteiras com os nossos países vizinhos. Segundo, compre-endeu o papel relevante que o Brasil tinha a desempenhar na preservação da ordem e da paz no continente americano, o que lhe possibilitou alterar gradualmente o eixo da diploma-cia brasileira da Europa para os Estados Unidos. Terceiro, empregou o seu prestígio pessoal e sua autoridade incontes-te em assuntos diplomáticos para blindar a política interna-cional dos rompantes demagógicos que costumam ditar a política nacional.

Quando foi nomeado ministro das Relações Exteriores pelo presidente Rodrigues Alves em 1902, o Barão do Rio Branco já era um verdadeiro herói da diplomacia brasileira. Em 1893, ele resolvera pacificamente a disputa do territó-rio das Missões com a Argentina. Os dois países resolveram submeter a discórdia territorial à arbitragem do presidente americano Grover Cleveland. Pragmático, estudioso, de-talhista e legalista, Rio Branco mergulhou em documentos, tratados, mapas e dados históricos para defender a legitimi-dade da posse brasileira. A tese bem fundamentada do Ba-rão, respaldada em seis volumes de documentos, persuadiu

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o presidente Cleveland de que o Brasil tinha direito à área em disputa. A vitória diplomática de Rio Branco encerrou uma querela que poderia ter criado sérios confrontos entre Brasil e Argentina. Em 1894, o Barão do Rio Branco foi no-vamente convocado a defender o país no caso da fronteira do Amapá com a Guiana Francesa. França e Brasil resol-veram submeter a disputa à arbitragem do governo suíço. O Barão, mais uma vez, venceu a disputa. O rio Oiapoque fora aceito como o divisor da fronteira entre a Guiana Fran-cesa e o Brasil.

Ao assumir a chancelaria em 1902, Rio Branco deu se-guimento a sua obra-prima de solucionar as questões fron-teiriças do Brasil. Firmou tratado com a Bolívia em 1903, definindo as fronteiras do Acre com aquele país. No ano seguinte, o Barão sofreu sua primeira e única derro-ta diplomática. Perdeu a disputa com a Inglaterra na de-marcação da fronteira com a Guiana Inglesa. Em 1905, definiu-se os limites fronteiriços com a Guiana Holande-sa. Em seguida, celebrou tratados com a Colômbia (1907), Uruguai (1908) e Peru (1909). A resolução diplomática dos conflitos territoriais sepultou a principal fonte de dis-córdia entre o Brasil e os seus vizinhos. Mas as vitórias di-plomáticas não foram coroadas apenas pela competência do Barão de arregimentar dados e documentos para ilus-trar os argumentos jurídicos e análises históricas. É preciso visão política, capacidade de mobilizar apoio em torno dos objetivos diplomáticos e perseverança para resolver as dis-putas entre as nações sem colocar em risco a estabilidade da ordem internacional.

A diplomacia requer destreza para manter um olho fo-cado na defesa dos interesses nacionais e o outro na pre-servação do bom funcionamento do sistema internacional.

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Enquanto buscava o entendimento diplomático com os paí-ses vizinhos sobre a demarcação das nossas fronteiras, Rio Branco procurava estreitar as relações do Brasil com os Es-tados Unidos. A mudança gradual do eixo da diplomacia brasileira da Europa para a América foi impulsionada por interesses políticos, econômicos e regionais. Primeiro, o Brasil necessitava da neutralidade dos Estados Unidos para resolver as disputas fronteiriças com seus vizinhos de for-ma pacífica. O antagonismo americano poderia gerar dois tipos de intervenções indesejadas. Os americanos poderiam insuflar os nossos vizinhos a resistir ao “expansionismo ter-ritorial” do Brasil ou oferecer apoio militar aos países que se sentissem ameaçados pela ambição brasileira. Alguns paí-ses, como a Bolívia, procuraram angariar o apoio americano, mas ao não encontrar o respaldo diplomático e militar, se es-forçaram para buscar o entendimento com o Brasil.

Além de apoiar tacitamente a política de Rio Branco de resolver as disputas fronteiriças de forma pacífica, os Esta-dos Unidos tornaram-se o principal parceiro comercial do Brasil. Em 1903, o governo americano reduziu para zero a taxa de importação sobre o café brasileiro e em 1909 caíram também as tarifas para a borracha e o cacau brasileiros.

A aproximação entre Brasil e Estados Unidos foi coro-ada com a elevação da repartição diplomática brasileira em Washington ao título de embaixada. Como dissera Joaquim Nabuco, o primeiro embaixador brasileiro em Washington, “o título de embaixada vale uma política”. Ao escolher a ca-pital dos Estados Unidos para se criar a primeira embaixada brasileira1, Rio Branco indicara claramente o principal eixo da política externa do país.

O Barão acreditava que a afinidade política e os inte-resses comerciais entre os dois países serviriam para se-

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dimentar não só o entendimento bilateral como também preservar a paz no continente americano. Brasil e Estados Unidos estavam alinhados em torno dos objetivos priori-tários na América Latina. A preservação da paz regional dependia da capacidade de cultivar o entendimento diplo-mático entre as nações, respeitando o princípio de não in-terferência nos assuntos domésticos, fortalecendo os laços comerciais e evitando que as potências europeias intervies-sem nas questões continentais. Quando a Venezuela decla-rou moratória em 1902 e suspendeu o pagamento da dívida externa, Inglaterra, Alemanha e Itália enviaram navios de guerra para o país a fim de bloquear os portos venezue-lanos até receberem o pagamento que lhes era devido. A atitude das nações europeias suscitou a reação das nações sul-americanas e dos Estados Unidos, revelando claramen-te que não tolerariam a ingerência europeia nos assuntos internos da América Latina.

Rio Branco desempenhou um papel notável na construção da política de Estado que coroou a reputação externa do Bra-sil. Compreendia que o bom funcionamento da ordem in-ternacional dependia da habilidade de conciliar a defesa dos interesses nacionais com a preservação da ordem e da paz externa. A coerência entre o discurso e as ações do Barão re-velou a confiança do Brasil nas leis internacionais e no seu repúdio ao uso da força e da política intervencionista para resolver as disputas no continente americano. Esta atitude dissipou o temor entre os países vizinhos de que o gigante bra-sileiro poderia se tornar uma potência belicosa e expansionista. Na diplomacia, o conteúdo é tão importante quanto a forma.

O Barão dedicou-se com afinco ao preparo e à forma-ção do corpo diplomático. Profissionalizou a conduta da política externa, investindo na formação dos diplomatas

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e preparando-os para defender com objetividade, prag-matismo e civilidade os interesses nacionais. Sua obsessão em transformar os nossos diplomatas nos melhores repre-sentantes dos interesses, da cultura e dos valores brasilei-ros no exterior estabeleceu um marco inédito na política brasileira: a institucionalização do conceito de excelência na seleção e formação do servidor público. Há mais de um século, o Itamaraty, por meio do Instituto Rio Branco, continua a selecionar, formar e preparar de forma criterio-sa o seu corpo de servidores. Não é por outra razão que os diplomatas brasileiros gozam de grande reputação e pres-tígio internacional.

Apesar dos golpes de Estado, ditaduras e governos po-pulistas, a política externa manteve uma certa distância do contágio demagógico da política local desde a revolução de 1930. Os discípulos de Rio Branco continuaram a sua mis-são de blindar a política internacional dos rompantes po-pulistas que costumam ditar a política nacional. Enquanto Getúlio Vargas flertava com o fascismo e com a Alemanha nazista, Oswaldo Aranha transformou o Itamaraty na trin-cheira da defesa dos princípios democráticos. Defendia a aliança com os Estados Unidos na segunda guerra mundial, aliou-se aos americanos na defesa da criação das Nações Unidas (onu) e foi um dos defensores da criação do Estado de Israel. Os chanceleres Afonso Arinos e San Tiago Dan-tas trilharam o caminho da “política externa independen-te” durante o conturbado período da presidência de Jânio Quadros, o interregno parlamentarista e a ascensão de João Goulart. Francisco Rezek e Celso Lafer foram o esteio da política externa no governo do presidente Fernando Collor, mesmo que o seu processo de impeachment e a volta da hi-perinflação tenham abalado o país.

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O governo do presidente Lula é uma das raras exceções que permitiu a infiltração da ideologia partidária na elabo-ração da política externa. Não custa relembrar o exemplo de Rio Branco. Monarquista convicto, sua preferência ideoló-gica jamais se transformou num empecilho para a formula-ção de uma política de Estado compatível com os interesses da República brasileira. Para o Barão, a política externa de-veria ser embasada na defesa dos interesses nacionais e da ordem internacional e não nos ditames dos credos ideológi-cos e dos interesses partidários.

Política externa e interesse nacional

O Brasil precisa retomar rapidamente o caminho traçado pelo Barão do Rio Branco, que procurou trilhar uma política de Estado condizente com a defesa dos interesses nacionais e com o papel do país na preservação da estabilidade internacio-nal. Para isso, o Brasil terá de criar uma visão clara e pragmá-tica dos objetivos da política externa, eleger suas prioridades, fazer escolhas coerentes com os princípios que defende e trans-formar as relações internacionais num assunto relevante para a sociedade. Esses desafios adaptativos provocarão mudanças transformadoras na conduta da política externa. Ao exercer um papel mais atuante na arena internacional, seremos obri-gados a fazer escolhas difíceis e tomar partido em questões que poderão despertar descontentamento em alguns países; defenderemos medidas impopulares que serão vitais para os nossos interesses nacionais e para a credibilidade do sistema in-ternacional. As mudanças transformadoras são difíceis, duras e impopulares, mas elas são cruciais para a preservação da paz mundial e da prosperidade doméstica. A implementação des-sas mudanças exigirá coragem, visão e liderança política.

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O Brasil só exercerá um papel relevante no sistema in-ternacional se atuar em três frentes: assumir o seu papel de liderança regional, estreitar os laços diplomáticos com as principais potências emergentes e fortalecer as relações di-plomáticas com os Estados Unidos e a Europa em torno da preservação da credibilidade e da legitimidade da ordem in-ternacional. Para converter essas prioridades em política de Estado, precisamos responder a três questões fundamentais.

“Por que o Brasil precisa de uma política externa?”

Porque as decisões internacionais afetam profundamente os interesses nacionais. No mundo globalizado, as nações são interdependentes. Elas estão entrelaçadas por alianças, tratados e obrigações que geram um intenso fluxo de capital, mercadorias, gente e ideias. Dependemos do mundo para ter acesso a mercados, capital e conhecimento. Dependemos do grau de confiança econômica, política e institucional que transmitimos ao mundo para atrair investimentos, gerar ri-queza e estimular o crescimento econômico sustentável (o principal instrumento de redução da desigualdade social). Por outro lado, o mundo depende de nós para produzirmos bens e mercadorias, zelarmos pela floresta Amazônica e co-laborarmos – em concerto com as outras nações – com a pre-servação da estabilidade regional e da paz internacional.

A crescente interdependência global revela a necessidade de alinhar os interesses nacionais aos interesses internacio-nais. Não há com dissociar o impacto das ações externas na política doméstica. Uma crise econômica, um desastre am-biental, um ataque terrorista ou um conflito nuclear provo-cam perdas, instabilidades e desajustes em todos os países, afetando dramaticamente a paz e a ordem mundial. Um país

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como o Brasil, que está entre as dez maiores economias do mundo, é reconhecido como uma potência regional e per-tence ao seleto grupo de nações plenamente democráticas não pode desempenhar um papel marginal nas relações in-ternacionais. Uma nação que se exime de participar ati-vamente da comunidade das nações corre o risco de ver os seus interesses nacionais prejudicados por disputas e deci-sões internacionais.

Os países que se isolaram da comunidade das nações para defender ferozmente o seu regime político, a sua ideologia partidária e a sua soberania nacional transformaram-se em ilhas de tirania, subdesenvolvimento econômico e miséria social. Cuba, Libéria e Mianmar retratam o sacrifício eco-nômico, político e social que a sociedade tem de pagar para permanecer fechada ao intercâmbio salutar de produtos, de gente e de ideias com o restante do mundo. Outra for-ma perigosa de isolamento se dá quando uma das grandes potências se recusa a desempenhar um papel atuante na po-lítica externa. Após a primeira guerra mundial, os Estados Unidos optaram por uma política externa isolacionista, con-tribuindo para o agravamento da crise econômica e das tur-bulências políticas que levaram o mundo à segunda guerra mundial em 1939.

A participação responsável e o envolvimento permanente das principais potências mundiais no esforço coletivo de ze-lar pela credibilidade e legitimidade do sistema internacional são fundamentais para a criação de instituições e de mecanis-mos capazes de assegurar o entendimento entre as nações. De fato, este foi o principal motivo pelo qual o mundo foi capaz de atravessar inúmeras transformações desde 1945 num clima de relativa paz entre as grandes potências. Nes-te período, enfrentamos o surgimento das armas nucleares,

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vivemos a Guerra Fria, presenciamos o fim do comunismo e mergulhamos na era da globalização sem que houvesse uma guerra mundial capaz de destruir o sistema internacional.

“Quais devem ser as prioridades da política externa?”

A política externa brasileira tem de refletir a sua impor-tância regional, relevância econômica e também o papel global do país na elaboração, implementação e preservação das medidas que colaborem com o bom funcionamento do sistema internacional. O próximo presidente da República deve estabelecer claramente as nossas três prioridades ex-ternas. Primeiro, exercer o seu papel de liderança regional; segundo, expandir os laços comerciais e diplomáticos com os principais países emergentes; terceiro, fortalecer a aliança com os Estados Unidos e a Europa em torno da defesa da legitimidade e credibilidade do sistema internacional, cuja importância é vital para a preservação da paz, da ordem e da estabilidade global.

A atuação do Brasil na América Latina deve ser pau-tada pela defesa dos princípios democráticos e do livre comércio na região. A tradução desses valores em ação po-lítica exigirá clareza de propósito, determinação e coragem de sepultar a atual política ideológica e partidária. A omissão do Brasil em fortalecer os laços diplomáticos com os países que zelam pela defesa do regime democrático, do estado de direito, das eleições limpas e das liberdades individuais (Co-lômbia, Peru, Uruguai, Chile e México), colaborou para o enfraquecimento da democracia no continente americano. A excessiva tolerância comercial com os parceiros do Merco-sul e a falta de empenho do Brasil em promover o avanço da abertura econômica contribuíram para o retrocesso do livre

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comércio na região. A defesa incondicional dos princípios democráticos e da abertura comercial deverá causar descon-forto e tensão entre o Brasil e algumas nações latino-ameri-canas. Ao invés de cortejar lideres populistas que recorrem aos mecanismos democráticos para destruir a própria demo-cracia, o Brasil apoiará as nações que estejam lutando para institucionalizar e preservar os governos democráticos. Ao invés de fazer concessões comerciais irrestritas aos países da América do Sul, elas serão condicionadas à promoção do avanço da abertura econômica e da pavimentação do cami-nho da transformação do Mercosul numa zona de livre co-mércio, como fora concebida pelos seus fundadores.

A opção pela defesa dos princípios democráticos e do li-vre comércio não está alicerçada em crenças ideológicas, mas no conceito de razão de Estado. As artérias da democracia e do livre comércio fomentam o intercâmbio salutar de gente, conhecimento e investimentos. Elas alimentam as relações econômicas e fortalecem os vínculos políticos que promo-vem o entendimento entre as nações. O estado de direito, por sua vez, assegura o cumprimento de lei e acordos, pro-movendo a confiança nas instituições, a previsibilidade das ações do Estado e colaborando para a preservação de rela-ções estáveis e permanentes entre os países.

As repúblicas governadas por caudilhos e governos au-toritários são imprevisíveis. A figura do presidente ou do partido absolutista que está acima das leis e das instituições pode oferecer ótimos negócios de ocasião, mas não estimula a formação de vínculos duradouros entre as nações. O vo-luntarismo político, a serviço do líder supremo ou do partido único, sufoca a criação de instituições estáveis e de governos previsíveis que pavimentam o caminho da confiança e do entendimento entre os povos. Este risco torna-se mais pre-

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mente conforme o Brasil se descola rapidamente do restante da América do Sul em relação à estabilidade institucional da democracia (eleições limpas e livres, alternância de poder, li-berdade de imprensa, independência do poder Judiciário), à sua pujança econômica e à sua competitividade internacional.

Este descolamento político-econômico oferece uma oportunidade tentadora para os adeptos da “revolução bo-livariana” começarem a articular alianças regionais contra o “imperialismo brasileiro”. Há uma nítida diferença entre o desejo do Brasil de se tornar uma nação cada vez mais competitiva e inserida na economia global e a aspiração das repúblicas bolivarianas de recorrer à nacionalização da economia, aumento de tarifas comerciais e adoção de me-didas protecionistas que nos isolariam política e economi-camente das principais potências e dos mercados globais. Um país como Brasil, que conta com um das pautas de ex-portação mais diversificadas e sofisticadas entre as nações emergentes, não tem interesse em fazer parte do Mercosul bolivariano. A postura clara e inequívoca da diplomacia brasileira em prol da democracia, do livre comércio e do estado de direito é vital para a defesa dos interesses nacio-nais e para a criação de uma ordem internacional estável na América Latina.

O Mercosul precisa evoluir ou acabar. Ao fazer conces-sões comerciais sem negociar contrapartidas objetivas e claras que colaborem para a construção do livre comércio na América do Sul, o Brasil contribuiu para o insucesso do Mercosul. Desde a sua criação, o bloco econômico conti-nua atolado em medidas protecionistas e disputas tarifárias que não promoveram maior abertura comercial. Apesar das concessões comerciais que o Brasil vem fazendo inin-terruptamente à Argentina, o comércio entre os dois países

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reduziu-se drasticamente nos últimos dois anos. Em 2007, o Mercosul representava 17% das exportações brasileiras; em 2009, caiu para 7%. Pode-se atribuir um percentual desta perda à atual recessão mundial, mas o fato é que houve uma clara opção do governo argentino de substituir as exporta-ções brasileiras por produtos chineses, europeus e america-nos. Hoje, eles representam 70% das importações do país.

Um dos maiores desafios adaptativos da diplomacia bra-sileira é compreender que a política de Estado dita a polí-tica comercial e não vice-versa. Os acordos comerciais, as concessões tarifárias e os tratados bilaterais não são apenas mecanismos de troca de mercadorias, mas também de apro-ximação política e de entendimento diplomático. A criação de uma agenda política em torno dos temas globais não deve nos levar a cairmos na tentação de aumentar drasticamente as nossas parcerias comerciais com os países asiáticos a pon-to de nos tornarmos dependentes das nossas exportações para a China. A crise econômica mundial de 2008 revelou a importância da decisão do Brasil de não depender excessiva-mente de um principal parceiro comercial. Nossas exporta-ções estão bem distribuídas entre América Latina, Europa, Estados Unidos e Ásia. Este equilíbrio prudente deve ser mantido tanto no comércio como na política.

A expansão do comércio com os principais países asi-áticos e a busca do entendimento político em torno de questões globais devem fazer parte das prioridades da po-lítica externa brasileira. O Japão continuará a ser um im-portante aliado do Brasil. Os nossos laços diplomáticos não se dissolverão com a crescente importância da Rússia, Índia e China. As relações do Brasil com o Japão foram forjadas por meio da centenária história da imigração japonesa para o país, do nosso sólido comércio bilateral e da nossa afini-

27O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

dade democrática. Na diplomacia, a tradição é um ingre-diente fundamental na consolidação do lento e gradual tear da confiança e o do entendimento entre as nações. A em-polgação com as novidades e modismos nas relações inter-nacionais costumam levar os países a incorrer em aventuras perigosas, causando sérios danos aos interesses nacionais e à ordem mundial.

Os Brics (Brasil, Rússia, China e Índia) vêm tentando for-mar um bloco de pressão para ter mais voz e poder na nova ordem mundial, mas até o momento fracassaram em criar uma agenda comum capaz de uni-los. As rivalidades políti-ca, econômica, comercial e territorial entre Rússia, Índia e China na Ásia dificultam a construção de um bloco coeso, capaz de atuar como contrapeso ao domínio americano e eu-ropeu. O Brasil é, ao mesmo tempo, um parceiro e um rival comercial, cuja ambição de se tornar uma potência global não encontrará apoio no restante do bloco dos Brics. Índia e Brasil foram incapazes de perseguir uma estratégia co-mum nas negociações de Doha. A China vetou a pretensão do Brasil de se tornar membro do Conselho de Segurança da onu e promete se transformar num importante rival comer-cial e político na América Latina. A China poderá oferecer uma “terceira via” aos países latino-americanos que desejam ampliar as suas alianças comerciais. O Chile, por exemplo, não aderiu ao Mercosul. Preferiu seguir o seu próprio des-tino, buscando uma atuação internacional independente e estabelecendo uma série de tratados bilaterais com países asiáticos, a União Europeia e os Estados Unidos.

Enquanto a retórica ideológica prevalecer sobre os interes-ses de Estado, a união dos países emergentes na arena interna-cional continuará a se manifestar por meio de mera bravatas. Quando cessarem os discursos anti-imperialistas e formos

28 Luiz Felipe d’Avila e Oliver Stuenkel

obrigados a delinear os objetivos comuns, depararemos com a realidade das divergências dos interesses econômicos, das dificuldades políticas e das prioridades comerciais que nos separam. Ao transparecer as diferenças, tornamo-nos uma presa fácil para os nossos adversários que sabem alimentar as discórdias e fomentar as dissidências entre os países emergen-tes. De fato, o poder da diplomacia dos países desenvolvidos não está apenas no tamanho de sua economia, na sua capaci-dade militar e no exercício de sua influência política. Ela resi-de primordialmente na sua habilidade de coordenar esforços, superar divergências e de compreender a relação de causa e efeito entre a preservação da estabilidade do sistema interna-cional e a defesa do interesse nacional. Se os países emergentes pretendem se tornar uma força política internacional, terão de passar por um teste de maturidade diplomática e de deter-minação política. Serão obrigados a renunciar a certas crenças ideológicas e nacionalistas que os impedem de superar os obs-táculos momentâneos para construir uma atuação internacio-nal mais eficaz e relevante.

As nações emergentes relutam em compreender a evo-lução do conceito de soberania. Assim como os países eu-ropeus do século xvii, acreditam que os estados devem se engajar nas relações internacionais apenas para resolver as disputas e os conflitos que ameaçam a segurança e a sobe-rania nacional. A diplomacia é, portanto, percebida como um instrumento a ser empregado de maneira objetiva, pon-tual e incisiva quando os interesses geopolíticos são amea-çados. Qualquer tipo de ingerência ou intervenção externa em assuntos domésticos representa uma clara violação ao conceito de soberania nacional. Não é por outra razão que a atuação internacional dos Brics está predominantemente concentrada em questões geopolíticas.

29O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

O Brasil elegeu a América do Sul como sua prioridade externa e pretende exercer o seu poder para conter o avan-ço dos países que procuram estender a sua influência na re-gião, como China, Rússia e Estados Unidos. A China, por sua vez, trata as suas relações com Taiwan e Tibete como assuntos domésticos e procura administrar as disputas ter-ritoriais com a Índia e Japão utilizando uma mistura fina de acordos econômicos e aumento substancial dos inves-timentos militares. Na Índia, os grandes desafios diplomá-ticos residem na administração dos conflitos com os seus vizinhos, especialmente Sri Lanka, Nepal, Bangladesh e Paquistão. Já a Rússia considera a expansão da Otan e da União Europeia em direção às ex-repúblicas soviéticas e aos países bálticos como uma ameaça à sua segurança na-cional e como um ato de intromissão das grandes potências ocidentais na sua esfera de influência.

A predominância das questões geopolíticas revela tam-bém uma certa desconfiança do propósito e da necessidade das instituições multilaterais. Trata-se de uma relação de amor e ódio. Os países emergentes querem fazer parte do clube das organizações multilaterais para gozar da impor-tância, legitimidade e vantagens que lhes são conferidas, mas suspeitam que esses arranjos costumam resvalar em assuntos que tangem à autonomia do governo e à soberania nacional. Se os Brics forem capazes de superar esses temores, poderão vir a exercer um papel preponderante na atuação conjunta em torno de alguns temas globais que transcendem as preo-cupações imediatas da geopolítica.

A visão realista sugere que a convergência de interesses poderá ser forjada em torno de alguns temas pontuais. Es-colhê-los de forma criteriosa é vital para que sejam capazes de articular uma atuação objetiva, coordenada e eficaz. O

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Brasil poderia estimular este processo buscando cooperar com os outros membros dos Brics em torno de temas como segurança nuclear e finanças internacionais. O surgimento de novas potências nucleares, por exemplo, não lhes inte-ressa. O malogro do Tratado de Não-Proliferação Nuclear desencadearia uma nova corrida armamentista, aumentan-do a tensão política entre as nações (especialmente na Ásia e Oriente Médio) e causando instabilidade à ordem global. Portanto, dissuadir a Coreia do Norte e o Irã de desenvolver armas atômicas deve ser uma das colaborações importantes dos Brics para a preservação da paz mundial.

A mesma preocupação com a estabilidade financeira inter-nacional poderia uni-los em torno do desafio de reformar as instituições e os acordos que regulam as atividades financeiras. Os países emergentes detém 75% das reservas de capital do mundo, o que lhes confere um papel preponderante na discus-são de temas econômicos e financeiros. Além de credores dos países ricos, o estímulo ao crescimento da demanda doméstica das economias emergentes tornou-se vital para a recuperação da economia mundial. É impossível resgatar a credibilidade das instituições financeiras e o dinamismo da economia mundial sem o apoio, envolvimento e compromisso dos principais paí-ses emergentes. Temos muito a contribuir na discussão, formu-lação e implementação na reformulação do sistema financeiro. A experiência recente do Brasil no combate à inflação, na im-plementação de um exitoso programa de reestruturação dos bancos (Proer), e na criação de marcos regulatórios na área fi-nanceira pode enriquecer o debate e contribuir para o aprimo-ramento das medidas internacionais. A crise mundial sepultou a legitimidade do g-7. A nova ordem econômico-financeira tem de ser arquitetada pelo g-142.

31O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

Esta atuação objetiva e realista da política internacional exigirá a revisão da política de Estado. Conforme as obri-gações externas exigem um esforço permanente das nações na busca por soluções, mediações, apoio e aliados que legi-timem as medidas e as ações do sistema internacional, os Es-tados são obrigados a renunciar a uma fatia da sua soberania doméstica em nome dos interesses globais. Não é possível limitar a atuação internacional apenas à defesa dos interesses nacionais e das questões geopolíticas. Este é o motivo pelo qual o terceiro objetivo da política externa brasileira é forta-lecer os laços diplomáticos com os Estados Unidos e a Eu-ropa em torno da defesa da legitimidade e da credibilidade do sistema internacional.

A preservação da paz e da estabilidade do sistema interna-cional requer um engajamento constante e permanente das grandes potências em alianças militares (Otan), instituições multilaterais (onu e omc), blocos econômicos (União Eu-ropeia), tratados regionais e acordos bilaterais que permi-tem forjar o entendimento, resolver disputas e acomodar os interesses estratégicos dos Estados. A criação da União Europeia, por exemplo, revela a determinação dos países europeus de renunciar a parte da sua soberania em troca da criação de instituições que assegurem o livre comércio, a de-mocracia e a segurança nacional de forma mais eficaz do que se agissem como nações independentes. Os próprios Esta-dos Unidos, que costumavam interpretar o seu “esplêndido isolacionismo” como uma dádiva de Deus, perceberam que era muito difícil zelar por seus interesses estratégicos culti-vando apenas acordos bilaterais que tratassem de questões geopolíticas, econômicas e militares. O presidente Franklin Roosevelt foi o primeiro estadista americano a engajar os Estados Unidos em alianças permanentes. Ele foi o arqui-

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teto das principais instituições multilaterais do pós-guerra, como a onu, fmi e Banco Mundial.

Nesta primeira década do século xxi, o sistema inter-nacional atravessa um momento delicado. As instituições multilaterais enfrentam o seu teste de fogo. O malogro das ações coletivas em conter massacres e genocídios no Con-go, Sudão e Ruanda, a incapacidade de dissuadir a Coreia do Norte e o Irã de continuar a desenvolver o seu progra-ma de armas nucleares e a dificuldade de retomar as nego-ciações comerciais interrompidas após a rodada de Doha, testarão a credibilidade das instituições multilaterais em responder a esses desafios. Se fracassarem, o mundo poderá viver uma nova corrida armamentista (e nuclear) e presen-ciar o renascimento de medidas protecionistas e de acordos bilaterais para preencher as lacunas herdadas do fracasso da rodada de Doha. Por outro lado, o multilateralismo passou com louvor pela crise financeira internacional em 2008/09. As principais potências econômicas souberam coordenar ações políticas e orquestrar a adoção de medidas econômicas e monetárias para salvaguardar o sistema financeiro interna-cional, evitando assim o colapso da economia mundial. Ou-tro sinal alentador é o desejo dos países emergentes, como a China, de fazer parte de instituições multilaterais, como é o caso do seu ingresso na omc.

Um dos desafios do sistema internacional é ser capaz de acomodar o surgimento de novas potências globais. China, Índia e Brasil despontam como países importantes para o bom funcionamento da ordem global. A criação do g-20 foi um primeiro esboço de alargar o número de participan-tes das principais decisões globais. Mas o anacronismo da representação dos países emergentes na instituições mul-tilaterais, como no fmi e Conselho de Segurança da onu,

33O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

ainda persiste. As reformas das instituições multilaterais precisa começar pela ampliação dos países membros e da rediscussão sobre o seu papel e propósito de cada uma delas. É preciso sepultar as organizações ineficientes e re-formar aquelas que continuam a ter um papel relevante a desempenhar. A participação do Brasil neste processo é de vital importância.

O Brasil reúne uma combinação única de história, política e comércio entre os países emergentes. A sua unidade ter-ritorial e linguística, a inexistência de conflitos domésticos e internacionais motivados por disputas políticas, raciais e religiosas, e a crescente importância da inserção brasileira na economia global livraram o país dos traumas religiosos, étnicos e territoriais que dificultam o enraizamento da liber-dade, da criação de instituições democráticas e da integra-ção do país com o restante do mundo. Somos uma das raras nações emergentes em que a democracia está plenamente enraizada e institucionalizada. Nossas instituições democrá-ticas são capazes de garantir a liberdade de imprensa, direito à propriedade privada, eleições livres e o privilégio de fazer, dizer, trabalhar, morar e expressar as nossas ideias e opi-niões sem que sejamos presos, exilados ou assassinados por agentes do Estado. Apenas 20% dos países do mundo têm o privilégio de desfrutar das benesses da plena democracia. O Brasil é um deles.

Ao contrário de outras nações que ainda lutam para construir instituições pluralistas, superar rivalidades his-tóricas e sepultar os valores “revolucionários” que fo-mentam governos autoritários e medidas de exceção que despertam suspeitas e desconfianças do mundo externo, o Brasil sente-se à vontade participando da ordem global, interagindo com outros países e buscando o entendimen-

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to supranacional. Compartilhamos os mesmos valores e princípios que moldaram a criação das instituições multi-laterais e acreditamos que por meio das relações interna-cionais, podemos buscar o entendimento e a resolução de conflitos entre as nações.

O Brasil poderia utilizar a sua cordialidade diplomática e poder de sedução para se tornar um influente mediador em lugares onde a animosidade local e o descrédito das grandes potências costumam entupir as artérias do enten-dimento diplomático. Construímos boas relações com países africanos e as nações do Oriente Médio e podemos atuar como mediadores e colaboradores do difícil diálogo entre eles. O Brasil poderia ser não só um parceiro impor-tante dos países emergentes como também um aliado va-lioso dos Estados Unidos e da Europa na construção de uma nova ordem econômico-financeira mais estável e con-fiável. Poderíamos contribuir significativamente nas nego-ciações sobre mudanças climáticas, aquecimento global, acordos comerciais, segurança nuclear, combate ao tráfico de drogas, crescimento sustentável, programas de combate à pobreza e regulamentação do sistema financeiro. Somen-te por meio de uma atuação diplomática objetiva e coeren-te com a defesa dos interesses nacionais e dos princípios que sustentam a credibilidade do sistema internacional, a participação do Brasil será valorizada e reconhecida como algo relevante para a ordem e para a paz mundial. Preci-samos enfim, traduzir a nossa competência diplomática e exercer a nossa liderança política colaborando com a cons-trução do entendimento em torno dos temas globais. A superação deste desafio exigirá que respondamos à nossa terceira indagação:

35O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

“Como transformar a política externa em algo relevante para os brasileiros?”

A política externa não pode continuar a ser tratada como um assunto de gabinete, cujo debate permanece circuns-crito a diplomatas, burocratas e alguns raros políticos. O próximo presidente da República terá de abrir as portas do Itamaraty e envolver a sociedade civil na discussão de pro-posições e na elaboração de medidas internacionais. Apesar da excelência dos nossos diplomatas, eles jamais reunirão a visão aguçada da iniciativa privada, o conhecimento de cau-sa do terceiro setor e o faro político dos parlamentares que são necessários na formulação de propostas e na negociação de tratados internacionais. É literalmente impossível exigir que os nossos diplomatas sejam capazes de negociar acordos internacionais que envolvam desde a alíquota de um tipo de parafuso até os detalhes de medidas multilaterais para com-bater o aquecimento global. A crescente complexidade das relações internacionais e a miríade de assuntos que compre-endem a política externa exigem o envolvimento da socieda-de no processo de discussão e de negociação de projetos e acordos internacionais.

Se formos capazes de explicar a visão e as prioridades da política externa, o Itamaraty conseguirá amadurecer a discussão de suas propostas, atrair o apoio da sociedade e mobilizar a opinião pública em torno dos seus objetivos. Conforme a política internacional se torna mais relevante, maior será o despertar do interesse das pessoas pelos temas globais que afetam as nossas vidas cotidianas. Um tratado internacional sobre o aquecimento global pode afetar dra-maticamente a competitividade das empresas nacionais, dificultar o aumento da produtividade agrícola e limitar se-

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veramente a soberania do país numa parte significativa da Amazônia. Um acordo comercial entre o Brasil e Argen-tina pode causar enormes prejuízos às exportações brasi-leiras e à geração de empregos em determinadas indústrias nacionais. Se desejarmos assumir o ônus dessas medidas, é preciso explicar aos brasileiros os motivos que nos leva-rão a sacrificar alguns interesses momentâneos por ganhos futuros. A política externa é um assunto demasiadamente importante para ser tratado unicamente por diplomatas. O próximo presidente da República terá um desafio gigantes-co: transformar a política externa num assunto relevante para a sociedade.

O Congresso, as universidades, as entidades de classe, os think-tanks e a mídia têm um papel fundamental a desem-penhar no fomento da discussão, no debate de propostas e na proposição de temas que ditam os interesses inter-nacionais do Brasil. A amplitude deste embate de ideais e propostas é fundamental para colaborar para o amadure-cimento de questões vitais da política externa. No mundo multipolar, os interesses são permanentes, mas as alianças são temporárias. Os aliados e os adversários mudam de acordo com os desafios e os interesses. O Brasil, por exem-plo, poderá estar engajado numa disputa comercial com os Estados Unidos sobre a alíquota do aço e com a Europa sobre produtos agrícolas, mas atuará como seus aliados no esforço para fazer cumprir o Tratado de Não Proliferação Nuclear. A China, um dos nossos principais parceiros co-merciais, poderá continuar a barrar a entrada no Brasil no Conselho de Segurança da onu e a nossa ambição de exer-cer um papel mais relevante no sistema internacional. A Argentina, o nosso grande aliado na América do Sul, pode-rá apoiar a investida dos aventureiros populistas (Chávez,

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Morales e Lugo) de transformar o Mercosul no bloco boli-variano para contrabalançar o crescente poder econômico e político do Brasil na região.

A administração das alianças no mundo multipolar re-quer uma mistura fina de realismo, visão objetiva e com-preensão do contexto antes de planejar a ação política. A defesa dos interesses nacionais tem de estar alicerçada na defesa dos valores e princípios que prezamos. Somente assim, seremos capazes de navegar num mundo volátil e complexo sem perder a visão e a essência dos interesses do Estado e dos nossos objetivos internacionais. Na era pós-Lula, não haverá mais espaço para ambiguidades e bravatas na política externa. Elas despertam suspeitas, incertezas e desconfiança em outros países. Elas causam a falsa ilusão de que há homogeneidade de interesses entre as nações emergentes e que podemos convertê-las na formação de um bloco dos países em desenvolvimento contra os países ricos. Esses erros crassos de diagnóstico e de atuação da diplomacia brasileira refletem a visão ideológica e precon-ceituosa que nos fizeram perder poder, influência e credi-bilidade na comunidade internacional.

Resolvendo o paradoxo da política externa

A crescente importância internacional do Brasil nos obrigará a fazer uma escolha clara e indelével na política externa: assumir uma postura atuante e relevante na are-na internacional ou continuar a agir de maneira discreta e pontual nas relações exteriores. Esta escolha terá profun-das implicações na definição do papel do Brasil no mundo. A diplomacia brasileira costuma concentrar seu esforço na defesa dos interesses nacionais na arena externa, mas

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ela não está estruturada para transformar a política de Es-tado em ações concretas capazes de influir na definição, formulação e implementação de medidas transnacionais que colaborem com o fortalecimento do sistema interna-cional. Neste sentido, a política externa brasileira pode ser relevante para a defesa dos interesses brasileiros, mas ela é irrelevante para a preservação do bom funcionamento da ordem internacional.

A conversão do nosso peso econômico e influência re-gional e o emprego da nossa rara habilidade de cultivar boas relações diplomáticas com a maioria das nações só serão transformados em poder na arena externa quando estiver-mos dispostos a mudar o rumo da política externa e trans-formá-la em algo relevante e vital para o país. Isto exigirá a criação de uma visão clara e realista dos nossos interesses nacionais. Demandará habilidade política do próximo pre-sidente da República de mobilizar o Itamaraty, envolver o Congresso e engajar a sociedade na compreensão e dimen-são dos nossos desafios internacionais. Exigirá, enfim, a atuação coerente do país em torno dos objetivos e princí-pios que defendemos e acreditamos. Parafraseando Montes-quieu, a coerência é um privilégio da lucidez. Ela é o alicerce fundamental para resgatarmos a confiança, a importância e a relevância da nossa atuação internacional.

Notas

Na Europa, as representações diplomáticas brasileiras não possuíam o titulo de embaixadas.

2 g-7: Estados Unidos, Grã Bretanha, Alemanha, França, Japão, Canadá e Itália. Sete novos países foram adicionados ao grupo: Rússia, China, Índia, Brasil, México, Turquia e África do Sul.

A estratégia de política externa do Brasil

Oliver Stuenkel

1. TEMAS GLOBAIS

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1.1. Coerente, mas baseada em quais princípios?

O Brasil está passando por uma fase boa. Ele suportou notavelmente bem a crise financeira global, e o país parece pronto para se recuperar em 2010. Os repórteres frequente-mente usam as palavras “estrela do rock” ou “celebridade” para descrever o presidente Lula, e alguns até atribuíram à sua política externa a vitória do Rio de Janeiro como cidade-sede das Olimpíadas de 2016.

A posição internacional do Brasil parece, portanto, ter melhorado muito. Ele é um membro pleno de um g-20 mais fortalecido, e ele empresta dinheiro ao fmi – algo que teria sido inimaginável há apenas alguns anos. Ao lado da China e da Índia, o Brasil agora tem, pela primeira vez, a oportu-nidade de contribuir, mesmo que de um modo ainda limita-do, para o desenho da política mundial. Parece que o Brasil se beneficiou bastante da política externa de Lula, e pode-se afirmar que o estilo carismático do presidente brasileiro aju-dou, de fato, a aumentar a visibilidade do Brasil no mundo.

No entanto, uma análise mais cuidadosa mostra que, ain-da que a imagem de Lula seja muito admirada ao redor do mundo, sua política externa tem ficado distante do ideal, por vezes atrapalhando a defesa dos interesses nacionais do Brasil, em vez de ajudá-la. Apesar do engajamento maior do Brasil no cenário mundial, um olhar mais próximo também revela que as coisas não são tão róseas quanto parecem. O Brasil se defronta com uma série de desafios internacionais – como um continente sul-americano cada vez mais dividido – e o atual governo pouco fez para cuidar dessas questões. A decisão do Comitê Olímpico de fazer do Rio de Janeiro a sede das Olimpíadas de 2016 é digna de nota, mas não pode ser atribuída à política externa de um país. Ela apenas é pro-

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va da habilidade de Lula em se associar a eventos positivos. O crescente poderio do Brasil é, em grande parte, o resulta-do de seu recém-descoberto valor econômico. Além disso, o Brasil se beneficiou enormemente do rótulo de Bric e de um consenso emergente entre os formuladores da política ocidental, em parte devido à pressão brasileira, de que as es-truturas de governança global precisam da participação das potências emergentes.

Se relativizarmos a atual febre internacional sobre o Brasil, podemos notar que a política externa de Lula é fre-quentemente problemática. Ainda que preservando alguns aspectos da política externa tradicional, ele alterou par-tes significativas da estratégia de política externa do Brasil. Tornou prioridade a diplomacia Sul-Sul, alinhando-se com países africanos Tentou fortalecer a integração regional au-mentando o foco do Brasil na América do Sul. E seguiu uma estratégia mais ideologicamente à esquerda.

Quão bem funcionaram essas mudanças? Se o Brasil mar-cou pontos em algumas áreas, como na filiação ao g-20, suas vitórias foram predominantemente intangíveis, e fracas-saram em assegurar benefícios tangíveis. O Brasil adotou uma estratégia regional coerente, quase hiperativa, mas essa política esteve baseada em princípios altamente dúbios. Ao mesmo tempo, o governo Lula seguiu uma política externa oportunista, a qual por vezes pareceu estar desconectada dos interesses nacionais do Brasil.

Como consequência, nossos vizinhos estão inseguros e desconfiados sobre as intenções do Brasil. Apesar dos esfor-ços de Lula, a América do Sul não está mais unida do que quando ele assumiu o cargo, e a capacidade de o Brasil li-derar a região está seriamente comprometida. Enquanto o governo insiste em falar sobre o alto “pib diplomático” do

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Brasil, as políticas orientadas pelos princípios errados ero-diram a credibilidade e o “soft power” do país na região. Mais do que forjar um Mercosul mais forte baseado na de-mocracia e no livre comércio, Lula agora fala de uma mal-definida Unasul, inclusiva demais para representar qualquer coisa. As diferenças políticas entre os membros da Unasul são tão grandes que eles sequer foram capazes de escolher um secretário-geral durante a sua primeira reunião, no final de 2008 em Salvador. Em vez de apresentar uma política ex-terna visionária e proativa, Lula meramente reagiu a eventos na região. Ele se manteve ocupado “apagando incêndios”, e fracassou em articular uma alternativa clara à revolução bo-livariana propagada por Hugo Chávez. Mais do que criticar as compras de armamentos da Venezuela (parte dos quais foi reconhecidamente parar nas mãos das Farc colombianas), Lula reclama da renovação de um contrato entre os eua e a Colômbia, o qual permite aos americanos utilizar bases aé-reas colombianas – e que não desestabiliza a América do Sul tanto quanto Chávez. Quando Lula chama de democrático o governo da Venezuela, ele se iguala ao general Golbery do Couto e Silva, que chamava a ditadura brasileira de uma “democracia especial”. A democracia, entretanto, não é um conceito abstrato, e Lula não concede aos venezuelanos os mesmos direitos pelos quais lutava no Brasil nas décadas de 70 e 80.

Onde, exatamente, Lula se equivocou? Os defeitos de sua política externa derivam de dois grandes erros. Primeiro, a política externa brasileira sob Lula é coerente e proativa, mas baseada na interpretação errada de princípios e valores. Por exemplo, Lula diz genuinamente que gosta de promover a democracia – mas a sua definição de democracia e de direi-tos humanos difere significativamente dos seus sentidos tra-

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dicionais. Numa região em que as instituições democráticas ainda não estão firmemente estabelecidas, um compromisso com uma forma questionável de democracia, como aquela da Venezuela, pode ter consequências potencialmente desas-trosas. O Brasil precisa, portanto, se assegurar de que todos saibam o que ele representa. Em segundo lugar, ele ignorou análises cuidadosas de políticas. Diversos episódios mos-tram que o Brasil fracassou em diagnosticar corretamente a situação, o que algumas vezes prejudicou o posicionamento do país. Por exemplo, o Brasil não tomou uma posição clara em Honduras, onde leu grosseiramente mal a situação desde o início. O Brasil considera ilegítimo o governo de Porfirio Lobo, que ganhou eleições razoalmente livres, mas tem re-lações amigáveis com os autocratas Raúl Castro em Cuba e Mahmoud Ahmadinejad no Irã.

Os dois erros de Lula são altamente visíveis quando ob-servamos uma série de casos recentes em duas categorias – no nível global e no nível regional. Nossa crítica à política externa do presidente Lula não significa que a política exter-na brasileira era à prova de falhas antes do seu governo. O presidente fhc, por exemplo, foi igualmente passivo em re-lação à Venezuela e a Cuba. Mais do que criticar as ações do passado, esse trabalho quer propor políticas melhores para o futuro.

Nessa análise, a nossa meta é avaliar a política externa do Brasil, e baseado nessa avaliação, fazer recomendações espe-cíficas sobre como acreditamos que o próximo presidente pode exercer uma liderança melhor na área de política ex-terna. Sempre que julgamos e recomendamos políticas go-vernamentais, é importante esclarecer quais são os objetivos dessas políticas. Acreditamos que os aspectos relacionados

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abaixo deveriam ser, sem nenhuma ordem particular, os objetivos da política externa brasileira. Eles servirão como princípios orientadores ao longo dos estudos de caso.

Objetivos da política externa do Brasil:

- Garantir a estabilidade econômica e democracias fortes na América do Sul

- Fortalecer a liderança regional do Brasil- Garantir reservas estáveis de energia na região- Ganhar acesso a mercados consumidores externos, como

os eua, a ue e a Ásia- Proteger o meio ambiente global, especialmente a Amazônia- Promover globalmente os direitos humanos- Promover a não-proliferação e o desarmamento- Combater o tráfico de drogas e o crime internacionais- Democratização da governança global

1. Governança global

Desde que o presidente fhc assumiu o poder em 1995, o Brasil se empenha pela democratização da governança global. O presidente Lula corretamente prosseguiu e apro-fundou a determinação brasileira nessa matéria. As insti-tuições que perfazem o sistema atual de governança global não refletem as estruturas correntes de poder – mas elas es-tão passando por mudanças significativas, como demonstra a transformação do g-7 no g-20 como o mais importante palanque mundial. No entanto, a democratização da gover-nança global está apenas no começo. O Conselho de Segu-rança da onu, por exemplo, reflete o mundo em 1945, e as

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instituições de Bretton Woods ainda são dominadas pelas po-tências ocidentais. Democratizar tais instituições seria, por-tanto, não apenas benéfico para que o Brasil defendesse seus interesses na arena mundial, mas também para que o mundo encontrasse soluções mais duradouras aos problemas mais prementes. Como a nação mais forte da América do Sul, o Brasil tem a responsabilidade de representar a região nas ins-tituições globais. Na recente cúpula do fmi em Pittsburgh em outubro de 2009, o ministro Mantega, da Fazenda, anunciou que o Brasil compraria o equivalente a us$ 10 bilhões em co-tas do fmi. Essa atitude é louvável, e sublinha o compromisso do Brasil em assumir responsabilidade nas estruturas de go-vernança global. Quando implementada em 2011, ela marcará um deslocamento significativo na direção certa.

O sucesso aparente do Brasil pode, em parte, ser explica-do pela ativa política externa de Lula. Mas o Brasil também se beneficia da ascensão da Índia e da China, cujo peso cres-cente fez com que as estruturas tradicionais de governança global parecessem antiquadas.

Progressos no Conselho de Segurança da onu são menos prováveis, também porque o governo Lula baseou sua estra-tégia em princípios questionáveis, e tentou obter apoio de aliados problemáticos. Por exemplo, em 2005, um grupo de diplomatas brasileiros viajou para Cartum e prometeu não condenar o Sudão por genocídio desde que o governo suda-nês apoiasse o Brasil em seus planos para um assento perma-nente no Conselho de Segurança.

Essa por vezes flagrante desconsideração por valores bá-sicos é não apenas moralmente inaceitável, mas também uma estratégia ruim. Para os outros países, a impressão era de que a política externa do Brasil não era baseada em princípio al-gum. Ela afastava os países que estão comprometidos com a

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democracia e os direitos humanos. O Brasil está hoje mais distante de seu objetivo de se tornar um membro permanen-te do Conselho de Segurança da onu do que estava em 2002, no final do mandato de Fernando Henrique Cardoso.

O g-4 (composto por Brasil, Alemanha, Japão e Índia), criado para pressionar conjuntamente pela reforma do Conselho de Segurança, dificilmente será o veículo correto para o Brasil. Os outros três membros do g-4 se defrontam com forte resistência em suas regiões (por parte, respecti-vamente, da Itália, da China e do Paquistão), o que torna improvável que todos os quatro membros sejam aceitos. A pretensão brasileira tem a oposição da Argentina, mas essa resistência é muito mais fácil de ser resolvida do que a opo-sição do Paquistão a um assento permanente para a Índia, ou do que a oposição da China ao Japão. Os planos do g-4 são adicionalmente agravados pelo fato de que a Europa já está sobre-representada. Mais do que conceder um assento adicional à Alemanha, a União Europeia deveria ter um só assento, ocupado em sistema de rodízio pela França, pelo Reino Unido e pela Alemanha. Assim, o Brasil deveria per-seguir por conta própria a sua meta de reformar o Conselho de Segurança da onu.

Em vez da politicagem e das táticas obscuras, o Brasil deve se tornar um parceiro confiável guiado por um cla-ro conjunto de valores, o que o ajudará em suas chances de receber um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

2. Mudança climática

Os formuladores da política brasileira estão cada vez mais conscientes do fato de que seu país desempenha um papel

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crucial na mudança climática global. De modo mais impor-tante, a Amazônia (60% da qual está em território brasilei-ro) é o maior reservatório de carbono do mundo. Admite-se que o desmatamento contribui com 20% das emissões glo-bais de carbono.

Um pouco antes da Conferência da Mudança Climáti-ca em Copenhague, o Brasil assumiu um compromisso de reduzir emissões de carbono, o que é um passo na direção correta. Mas muito mais pode ser feito, e o Brasil perde uma oportunidade de se posicionar como um líder global na mu-dança climática.

A força hidrelétrica gera mais de 80% da eletricidade consumida pelo Brasil, muito mais do que qualquer outra grande economia no planeta. Portanto, o Brasil deveria re-conhecer e colher os frutos de suas próprias vantagens es-pecíficas, e assumir a liderança na mudança climática. Um acordo deveria incluir: (1) a adoção de metas de redução da emissão de dióxido de carbono, (2) a entrada de investimen-tos externos na tecnologia verde moderna, e (3) a assistên-cia financeira para reduzir o desmatamento. Dessa forma, o Brasil poderia se tornar a “menina dos olhos” dos investido-res ambientalmente conscientes.

Alguns governos ocidentais empenharam vastas quan-tias para ajudar a reduzir o desmatamento na Amazônia. Os brasileiros são, compreensivelmente, relutantes em permitir que regras de forasteiros amarrem as suas mãos na gestão de seu território soberano, mas essa suave paranoia não deve ser uma barreira intransponível nas negociações.

Além disso, uma atitude imaginativa do governo brasilei-ro poderia fortalecer as relações do Brasil tanto com os Esta-dos Unidos quanto com a Europa, já que eles são atentos às questões climáticas. A maior parte da transferência de tec-

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nologia se daria entre o Brasil, os eua e a Europa. E a maior parte do dinheiro dirigido a ajudar na redução do desmata-mento viria desses países.

A questão de como lidar com a floresta amazônica está intimamente relacionada à questão da mudança climática. Mesmo que apenas 20 milhões de pessoas (10% da popu-lação total) vivam naquela área, o desmatamento ameaça os ciclos de chuva do Brasil, que permitem ao país ser o maior exportador agrícola do mundo. A taxa de desmatamento foi reduzida recentemente, mas o ponto de vista governamental de que deve-se escolher entre o crescimento econômico e o meio ambiente prejudica a reputação internacional do Brasil como pioneiro da sustentabilidade ambiental.

O governo Lula empenhou esforços para reduzir o des-matamento, mas uma complexa combinação de fatores fra-cassou em deter a destruição da floresta. Em algumas partes da Amazônia, a maioria da população depende, direta ou in-diretamente, da derrubada de árvores, do trabalho em serra-lherias ou da criação de gado.

O problema principal é que, economicamente, destruir a floresta ainda faz sentido para as pessoas. Os madeireiros re-tiram as árvores mais valiosas da área, e então os fazendeiros entram para criar gado ou para plantar soja. É por isso que o ritmo do desmatamento acompanha os preços da carne e da soja, com um hiato de cerca de um ano. Porém, o “boom” econômico gerado nessas áreas é geralmente de curta dura-ção. Estudos mostram que a maioria das áreas retorna ao seu tamanho econômico anterior tão logo a fronteira da flores-ta tropical tenha se deslocado. O risco de menos chuva em todas as outras áreas do Brasil, entretanto, é permanente. Como um todo, o desmatamento tem, desse modo, severas consequências negativas para a economia brasileira.

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Uma combinação de estratégias é provavelmente a me-lhor solução. Ao invés de punir os que cortam as árvores, o governo precisa lhes dar algo mais lucrativo para fazer. Uma opção é desenvolver uma economia viável para a flo-resta, que inclua os seus habitantes, baseada em produtos da floresta como óleos de peixes amazônicos para utilização em cosméticos – ainda que isso leve anos para prosperar. E, em qualquer caso, a política amazônica brasileira deve estar bem alinhada com a sua política externa.

Alguns países, como a Alemanha e a Noruega, empenha-ram dinheiro para desenvolver indústrias viáveis. Outra possibilidade seria simplesmente remunerar os que vivem próximos à floresta para que não derrubem mais árvores. A implementação dessas ideias será certamente desafiado-ra. Por exemplo, pagar as pessoas para que não cortem a floresta requer a distribuição de direitos de propriedade para pessoas que provavelmente ocuparam a terra de modo ilegal, o que seria recompensar um crime. A ausência de direitos de propriedade torna a Amazônia uma terra de ninguém, o que incentiva a invasão e o uso comercial de florestas imaculadas.

A abundância de argumentos e ideias mostra as dificulda-des mas também as possibilidade de se reduzir significativa-mente o desmatamento.

Se o Brasil estiver disposto a permitir que outros paí-ses o ajudem, ele receberá uma enorme boa vontade in-ternacional. O Brasil tem todo o direito de afirmar a sua soberania sobre a Amazônia, mas a sua paranoia sobre o território amazônico não pode mais ser uma desculpa para adiar uma solução de que o nosso planeta precisa com urgência.

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3. Comércio

As questões comerciais expõem uma certa lacuna entre a política externa do Brasil e o seu interesse nacional, e mos-tram que a diplomacia Sul-Sul faz com que o Brasil saia perdendo economicamente. Por um lado, o Brasil apoiou uma proposta da omc que incluía reduções nos subsídios agrícolas em países desenvolvidos, assim como reduções de tarifas industriais em países em desenvolvimento, porque o país se beneficiaria de tal acordo. Por outro lado, a estraté-gia Sul-Sul do Brasil o alinha à Índia que, tal como outros países, está menos interessada em abrir os seus mercados. Existe desse modo uma clara contradição que precisará ser encaminhada pelo próximo governo. Ela também levanta questões prementes sobre o futuro do Mercosul, dado que a Argentina igualmente se opõe a uma abertura adicional dos mercados. Sem um entendimento comum, fica reduzi-da a capacidade do Mercosul em viabilizar acordos regio-nais, o que piora as oportunidades comerciais brasileiras. Quando o Brasil rejeitou os termos da Alca, sequer propôs uma contra-oferta, mandando o sinal errado para os Esta-dos Unidos. Com a entrada da Venezuela, as coisas ficarão ainda mais complicadas.

O comércio exterior brasileiro possui uma distribui-ção geográfica bem diversificada. 20% do comércio do Brasil tem lugar com os eua, 30% com a América Latina, 25% com a ue e 25% com o resto do mundo, principal-mente a Ásia. A porcentagem asiática está crescendo com vigor, mas o país exporta majoritariamente commodities para a Ásia, principalmente a China. Os bens brasileiros de valor agregado, por contraste, são predominantemente exportados para a América do Sul. Uma outra parte signi-

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ficativa é exportada para os eua, e uma parte menor para a Europa.

Esse panorama traz vantagens significativas para a pers-pectiva estratégica brasileira. Ela não depende de nenhum país isoladamente, o que a torna mais forte diante de re-cessões. Ao lado da Índia e da China, que não entraram em recessão, o Brasil aguentou admiravelmente bem a crise financeira global, e atravessou somente uma cur-ta recessão. Ao mesmo tempo, ela força o Brasil a manter relações estáveis com todas as regiões, sublinhando a ne-cessidade de permanecer flexível no que concerne às nego-ciações de comércio.

Os Estados Unidos e a Europa seguem sendo merca-dos prioritários para o Brasil, e o próximo governo deve buscar um acordo comercial com ambos. Ao longo dos últimos seis anos, esse processo foi difícil por causa da politização dos acordos de comércio. Negociar acordos bilaterais de comércio com os eua e a União Europeia não significa uma concessão ao imperialismo. O Brasil precisa avaliar objetivamente suas oportunidades comer-ciais. O Brasil precisa lentamente encarar o fato de que acordos de comércio com a ue e com os eua se tornarão, em algum ponto, uma realidade que trará fortes benefí-cios para o Brasil.

Um aspecto notável é a minúscula importância econô-mica da África para o Brasil. O comércio tem crescido, ainda que a partir de uma base muito pequena. Os ganhos econômicos brasileiros decorrentes de uma parceria com a África não recompensam o significante esforço político de Lula. Há um claro descasamento entre esforços políticos e comerciais e resultados. Enquanto as maiores companhias brasileiras buscam melhor acesso aos mercados na Améri-

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ca do Norte e nos Estados Unidos, os mercados africanos representam apenas uma demanda limitada pelos produtos brasileiros. O próximo governo deve manter laços com a África, mas ela certamente não deve ser uma prioridade da política externa brasileira. O Itamaraty, ao mesmo tempo, devia consultar ainda mais as maiores empresas. As grandes companhias internacionais do Brasil – como a Embraer, a jbs Friboi e a Odebrecht – detêm conhecimento relevante e po-deriam dar conselhos pragmáticos.

Com relação aos acordos comerciais com nações de-senvolvidas, atualmente o Brasil tem atuado em duas frentes. Enquanto tenta ganhar acesso aos mercados dos países desenvolvidos, está despreparado para negociar regras para os investimentos, os serviços e a propriedade intelectual em seus acordos de comércio. Essa estratégia não apenas causa antipatia em nossos parceiros comer-ciais, como também é pouco provável que seja uma estra-tégia vitoriosa.

Quando o Brasil estiver mais preparado para negociar regras em relação à propriedade intelectual e aos investi-mentos, será mais provável alcançar acordos significativos de comércio. Na mesma linha, é míope a resistência do Brasil em incluir temas sociais. Em vez de se posicionar como um país visionário prestes a se tornar parte do “pri-meiro mundo”, o Brasil adotou uma posição mais confliti-va que complica as negociações comerciais, e que também não o beneficia. Parte do governo Lula igualou a inclusão de questões sociais a uma “rendição ao Ocidente”, quan-do ela seria, na verdade, benéfica para o Brasil. Essa ava-liação dogmática prejudica o Brasil. No que diz respeito às negociações de comércio, o país precisa, portanto, adotar uma posição mais avançada, e concordar em princípio com

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a negociação de regras de investimento e com a inclusão de temas sociais.

Por fim, acordos de comércio são atualmente vistos pelo governo Lula como instrumentos de política externa. A avaliação das condições econômicas e comerciais é de im-portância apenas secundária. Essa estratégia é mal orientada porque nossos parceiros comerciais não compartilham da noção brasileira de uma política comercial mais politizada. O governo Lula erra ao acreditar que ganha amigos quando concorda com acordos de comércio desvantajosos, mas na verdade não ganha amigo algum.

Os acordos comerciais do Brasil com a África mostram esse desequilíbrio. Pelo Brasil, eles foram motivados politi-camente e vistos como feitos generosos. Para nossas contra-partes africanas, foram meros acordos comerciais. Isso criou falsas expectativas e desapontamento no lado brasileiro. O próximo governo precisa parar de tratar os acordos comer-ciais como uma ferramenta da política externa, mas simples-mente pelo que são: ferramentas para melhorar a inserção brasileira na economia global.

O Brasil deveria, portanto, desvincular-se do g-20 de Doha para melhor representar seus interesses. Como dis-cutiremos em maior detalhe adiante, o próximo presiden-te precisa seriamente avaliar se o Mercosul não atrapalha o Brasil quando ele negocia acordos bilaterais de comércio com outras nações. O Brasil é grande o suficiente para al-cançar acordos significantes por conta própria. A noção de que a abertura do mercado brasileiro tornou possível a sua ascensão nas duas últimas décadas tornou-se amplamente aceita. O Brasil permanece relativamente fechado, e precisa encontrar a melhor maneira de abrir-se mais para estimular o crescimento ainda mais.

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4. Proliferação nuclear

Assim como na política ambiental, o Brasil está bem po-sicionado para posicionar-se como um país visionário. A decisão do Brasil e da Argentina em assinarem o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, e formarem uma aliança estra-tégica, é uma conquista considerável, comparável à aliança franco-germânica formada após a Segunda Guerra Mundial.

O Brasil não possui o peso estratégico para influenciar o processo de paz no Oriente Médio, a disputa entre o Irã e o mundo desenvolvido referente ao Tratado de Não-Proli-feração, ou o impasse entre a Índia e o Paquistão, mas pode servir como um poderoso exemplo de uma nação que deci-diu operar através das instituições multilaterais.

Uma política guiada por princípios deveria, assim, ser su-blinhada por uma política externa consistente e pró-multi-lateralismo, direcionada para a redução e para a eventual destruição das armas nucleares em geral.

O tnp permanece como um pilar da política externa bra-sileira, e o Brasil não deveria abrir mão dessa posição sob circunstância alguma. Como acertadamente apontado pelo presidente Barack Obama, o único propósito das armas nu-cleares atualmente é a dissuasão. Elas não podem ser usadas como parte de uma campanha militar. Historicamente, o Brasil tem ficado distante das principais tensões geopolíti-cas, e é bem improvável que vá necessitar de tal dissuasão. A tendência global está apontando para a redução dos arsenais nucleares e potenciais. Aqueles países que mostram interes-se em adquirir armas nucleares se tornam párias no sistema internacional. A Índia é uma exceção, mas seu status nuclear não será mais relevante uma vez que a sua disputa regional com o Paquistão tenha sido resolvida. Se o Brasil e a Índia

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se tornarem parte do Conselho de Segurança, o Brasil se-ria o único membro sem armas nucleares. Ele também já é o único Bric desarmado. Ao contrário da suposição geral, isso não representa qualquer desvantagem para a posição do Brasil no mundo. Uma decisão brasileira em adquirir armas nucleares causaria tensão e divisão na América La-tina, transformando um dos continentes mais pacíficos do mundo em um dos mais potencialmente desordenados. Portanto, qualquer discussão para mudar o status nuclear do Brasil é mal-orientada.

1.1.1. Recomendações

Após décadas de bipolaridade durante a Guerra Fria, o sistema internacional atravessou uma breve fase unipolar e está agora atravessando uma ou duas décadas uni-multi-polares antes de ingressar num século xxi verdadeiramen-te multipolar. A América do Sul será um desses polos, e o Brasil está destinado a liderar a América do Sul. O presi-dente fhc lançou as fundações para uma economia susten-tável e forte. O presidente Lula foi sábio ao não reverter as políticas econômicas de Fernando Henrique, o que lhe permitiu colher os frutos plantados pelo seu predecessor. O Brasil ainda é um dos novatos no g-20 e em outras are-nas das grandes potências – o que lhe dá uma grande opor-tunidade de definir sua visão e deixar claro aquilo que representa.

Graças ao seu estilo popular e informal, o presidente Lula aumentou o “soft power” brasileiro. Ao mesmo tem-po, ele paradoxalmente desperdiçou esse “soft power” por seu repetido fracasso em tomar posição e defender ques-tões fundamentais do interesse nacional do Brasil – como

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a defesa da democracia e o respeito aos direitos humanos. Se Lula usa frequentemente o termo ‘democracia’, ele apa-rece como um mero conceito teórico, equivalente a não defender democracia nenhuma. Isso não significa que to-das as suas decisões de política externa tenham sido mal-direcionadas. A oposição dos presidentes Cardoso e Lula à Guerra do Iraque – que os Estados Unidos iniciaram sem um mandato das Nações Unidas – estava claramente ali-nhada ao compromisso brasileiro com o multilateralismo. A Guerra do Iraque foi ilegal, e Lula tem todo o direito de condená-la. Mas as críticas de Lula à invasão russa da Ge-órgia foram muito mais silenciosas.1 E quando perguntado sobre os abusos aos direitos humanos e a fraude eleitoral no Irã, Lula insistiu em que se tratava de um assunto inter-no, com o qual o resto do mundo nada tinha a ver. O fato de que a primeira viagem internacional pós-fraude eleitoral de Mahmoud Ahmadinejad o tenha levado a Brasília não joga uma luz positiva nas preocupações brasileiras com os direitos humanos e a democracia.

Fernando Henrique Cardoso foi o primeiro presidente a falar da necessidade de democratizar a governança global. São laudatórios os esforços de Lula para construir em cima disso, e o próximo governo precisa continuar esse proces-so. O seu sucesso, porém, será determinado pela sua capa-cidade em aderir a uma agenda coerente e com princípios. É preciso coragem para criticar os amigos. Lula frequente-mente se rendeu à opinião pública, engajando-se em críticas aos eua, o que abala a amizade entre as nações mais podero-sas das Américas do Norte e do Sul. Se a política externa do próximo governo for guiada por valores fundamentais – de-mocracia, direitos humanos e multilateralismo – o Brasil irá melhorar consideravelmente a sua capacidade de defender

seu interesse nacional no exterior. O próximo presidente se defrontará com um significante desafio adaptativo. No pas-sado, a meta do Brasil era promover a estabilidade política na América Latina, não importando o seu formato político. A decisão de defender a democracia no continente deve ba-sear-se na crença firme de que a democracia – não o conceito teórico, mas a sua versão aplicada – é um sistema mais está-vel no longo prazo. Os governos democráticos são mais pre-visíveis e, desse modo, estimulam relações mais fortes entre as nações do continente.

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2. TEMAS REGIONAIS

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2.1. A confusa política latino-americana do Brasil

Além do foco na diplomacia Sul-Sul, o governo Lula ten-tou fortalecer a integração regional e posicionar-se como um líder no continente. Alguns analistas, inclusive aqueles na Casa Branca, identificaram o Brasil como o líder “de fac-to” da América do Sul. O Brasil até pode ser o maior país sul-americano, mas há pouco que sugira que ele tenha uma influência significante sobre os seus vizinhos. Na verdade, alguns exemplos nos últimos anos mostraram que o Brasil tem muito pouco controle sobre as ações de seus vizinhos. A política regional do Brasil foi a que mais sofreu em decor-rência de uma política externa direcionada por princípios questionáveis.

Ao fracassar em aderir a princípios claros e em ser pro-ativo, o Brasil pouco contribuiu para uma América do Sul unida. Ao contrário, sua indecisão sobre o que o Mercosul deveria ser causou suspeita e incerteza entre seus vizinhos. Nem o Mercosul e nem a Unasul oferecem um caminho cla-ro, e o Brasil é o único país com a capacidade de articular uma visão para essas organizações.

Os dois maiores erros de Lula – sua política proativa ba-seada em princípios e valores fundamentais equivocados e seu fracasso em levar em conta análises mais cuidadosas de políticas – comprometeram severamente a política regional brasileira.

Caso 1: América do Sul – Uma cisão crescente entre demo-cratas e populistas

A situação: o crescimento da esquerda populista em alguns países latino-americanos

61O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

Enquanto o Brasil, o Uruguai, o Chile e a Colômbia se-guem comprometidos com a democracia, populistas de es-querda chegaram ao poder em vários países do continente. Enquanto as democracias buscam aumentar a competiti-vidade econômica e uma maior inserção das economias latino-americanas no mercado global, a “outra metade” do continente prefere uma economia mais fechada e dirigida pelo Estado. Além disso, as democracias da América do Sul geralmente não percebem os eua como uma ameaça, e se alinham às demais democracias. Mas os governos populis-tas procuram um maior alinhamento com outros populis-tas e com ditadores, como Cuba, Irã e Rússia. A noção de que a América Latina esteja no caminho correto para a de-mocratização é falsa. A última pesquisa do Latinobarome-tro revelou que, em sete países latino-americanos, menos pessoas acreditam que a democracia seja preferível a qual-quer outra forma de governo do que na pesquisa de 2007. No Brasil, apenas 47% das pessoas responderam positiva-mente, enquanto que essa porcentagem havia sido de 50% em 1996.2

A escolha: Quais eram as opções de Lula? O que ele esco-lheu fazer? Foi uma boa ou má decisão? Por que ele tomou essa decisão?

Lula pode tanto assumir o papel de um ativo promotor da democracia, ou o de um ator mais passivo, que age apenas em resposta a crises. Lamentavelmente, apesar de defender retoricamente a democracia, ele escolheu o segundo cami-nho. As vantagens são claras: Lula não ofende ninguém, e o Brasil permanece em termos cordiais mesmo com aqueles que desrespeitam os princípios democráticos.

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A desvantagem, entretanto, pode ser maior ainda. Maior país sul-americano e uma das suas democracias mais está-veis, o Brasil tem a oportunidade excepcional de expressar sua preferência por regimes democráticos, e assim apoiar a democracia na América Latina inteira. Com Lula, o Brasil desperdiçou tal oportunidade. O país deveria ter usado o Mercosul não apenas como um veículo para maior compe-titividade e maior inserção na economia mundial – mas tam-bém como um meio para promover a democracia. Em vez disso, o Brasil permitiu que o presidente Chávez falasse em nome do Mercosul, e o usasse para difundir a sua revolução bolivariana – o que complicou ainda mais a já fraca reputa-ção da instituição no exterior.

Em alguns casos, Lula teve um papel construtivo quando surgiram problemas na região. Mas, em geral, ele adotou pa-liativos de curto prazo para os problemas mais gerais, e não conseguiu convencer os líderes latino-americanos de que a região deve estabilizar as suas instituições e tornar-se mais competitiva. Um compromisso com a democracia nada tem a ver com estar na direita moderada ou na esquerda mode-rada. Tem a ver com a crença de que alguns direitos – huma-nos e econômicos – são inalienáveis, e de que um governo que não respeita esses direitos restringe o potencial de seus constituintes – como na Venezuela, onde a liberdade de opinião foi severamente limitada. Além disso, “promover a democracia” nada tem a ver com o tipo intervencionista de políticas norte-americanas durante o governo Bush. Nós certamente não recomendamos que o Brasil se intrometa ativamente nos processos políticos de outros países. Em vez disso, o Brasil deveria usar meios mais sutis de demonstrar preferência por vizinhos que respeitem os direitos humanos e a estabilidade das instituições políticas – retoricamente,

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através de melhores condições de comércio, ou através do Mercosul.

O governo brasileiro não conseguiu usar o Mercosul como um veículo para a democracia. Quando a Venezuela decidiu solicitar ingresso, a resposta de Lula poderia ter sido simples e clara: a Venezuela será bem-vinda no clube caso satisfaça a cláusula democrática do Mercosul e o seu interes-se em fortalecer a competitividade.3 Porém, em vez de uma conversa franca, Lula deixou o resto do mundo no escuro sobre o futuro e o propósito do Mercosul. A estrutura ins-titucional opaca do Mercosul, manchada por incontáveis exceções, não apenas reduz a sua reputação institucional no exterior, mas também tem um impacto em como o mundo vê o Brasil. Quase vinte anos após a sua concepção, o Mer-cosul sequer está funcionando como uma área de livre co-mércio. A entrada da Venezuela vai diminuir ainda mais a capacidade de agir do bloco, pois Hugo Chávez quer ape-nas usar o Mercosul como uma plataforma política. O livre comércio iria expor as grandes ineficiências provocadas por sua política econômica estatista.

O Brasil parece ter perdido controle sobre uma institui-ção regional que deveria ser capaz de guiar, e há um perigo de que o Mercosul passe em breve a representar valores não apoiados pelo Brasil.

A incoerência da política regional brasileira, e o seu fra-casso em assumir a liderança regional, limitam significante-mente a sua influência internacional. Por exemplo, em 2005, o Brasil lançou Luiz Felipe de Seixas Corrêa à presidência da Organização Mundial do Comércio (omc) após o Uruguai já ter lançado outro candidato. Isso causou choque entre os seus vizinhos, e provocou a derrota de ambos os candidatos sul-americanos. Em seu projeto de obter um assento per-

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manente no Conselho de Segurança da onu, ele não obteve o apoio da Argentina. Em sua tentativa de agradar a todos, Lula estabeleceu relações cordiais com os governos radicais da Bolívia e do Equador, o que não os impediu de naciona-lizarem empresas brasileiras – uma estratégia descrita como “algo por nada”. Até mesmo Lugo, o novo líder eleito do Paraguai, não hesitou em desafiar o Brasil ao pedir a renego-ciação de um antigo contrato de energia. Muitos explicaram a postura de Lugo como mera política populista doméstica, mas sua atitude também levanta questões sobre a capacidade de liderança do Brasil na América do Sul.

O discurso “terceiro-mundista” de Lula agravou ainda mais a situação. Ao criticar o sistema financeiro internacio-nal, os Estados Unidos, as instituições de Bretton Woods e os “banqueiros de olhos azuis”, Lula afastou ainda mais os eua e a Europa. Isso é tanto mais lamentável na medida em que as decisões políticas efetivas do Brasil foram louváveis, como o fortalecimento do fmi. Infelizmente, Lula foi for-çado a adotar uma política externa mais radical e “desen-volvimentista” para compensar as facções de esquerda do eleitorado e do seu ministério, em troca de uma política fis-cal conservadora.

Mesmo que os presidentes Bush e Obama tenham reco-nhecido o Brasil como o líder da América do Sul, o governo Lula não fortaleceu a reputação brasileira ao seguir uma po-lítica externa altamente imprevisível e contraditória, a qual revela lacunas significantes entre a retórica e a ação.

Se a retórica sobre a integração permaneceu forte, houve poucos projetos concretos para viabilizá-la. Projetos como a Unasul ou o Conselho de Defesa Sul-Americano dificil-mente irão muito longe, apenas agravando a confusão geral. A infraestrutura de transportes na América do Sul continua

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em má forma. O fato de que a maioria dos bens comerciali-zados entre o Brasil e o Cone Sul sejam transportados por navio diz bastante sobre o estado lamentável do transporte terrestre, como as ferrovias.

A avaliação: O que ele deveria ter feito? Que condições te-riam que haver existido para que ele tivesse feito a escolha certa?

O governo brasileiro deveria ter oferecido uma política regional clara e com objetivos coerentes. O Brasil tem, como líder do continente, os recursos para estabelecer as diretri-zes com as quais as nações sul-americanas orientarão a sua política externa. Se o Brasil promover seus assim chamados “princípios não-negociáveis” não apenas na retórica, mas na realidade, isso sem dúvida terá um forte impacto sobre o cli-ma político na região.

É compreensível a relutância de Lula em se mostrar ex-cessivamente dominador e confiante, e o Brasil não deve-ria emergir como uma potência imperialista no continente. Todos os nossos vizinhos são, em princípio, temerosos da expansão e da dominação brasileiras, e esse medo deve ser levado a sério. O Brasil precisa, assim, agir cuidadosamente. Isso não significa, no entanto, que o Brasil não deve diver-gir de vizinhos que se desviem de nossos valores e ideais em comum. A capacidade de fazer mudanças na região inclui a capacidade de divergir e de confrontar, na medida certa.

Agora que a Venezuela é parte do Mercosul, será cada vez mais difícil negociar como um bloco. Na última cúpula en-tre a Europa e a América Latina, em Madri, foi assinado um acordo de comércio entre a ue e os países da América Cen-tral. Um acordo entre a ue e o Mercosul, por outro lado, pa-

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rece muito menos provável. O Brasil pode se contentar com um Mercosul de mais baixo perfil. É importante notar aqui que aceitar uma área funcional de livre comércio não signi-ficaria um passo para trás, mas um passo para a frente – pois isso seria algo que o Mercosul jamais foi. As declarações de Lula em seguir o exemplo da União Europeia criam elevadas expectativas entre os vizinhos e conduzem inevitavelmente ao desapontamento, pois tal estrutura não será possível por mais uma ou duas décadas. Projetos de integração motiva-dos por conceitos ideológicos, e não por interesses comer-ciais, estão destinados ao fracasso.

Mesmo que a Venezuela paralise o Mercosul, o Brasil não deveria descartá-lo sob circunstância alguma, já que isso pode tumultuar severamente o clima político na região. Apesar de todos os problemas, o Mercosul serve a um dos seus propósitos primários – o de evitar conflitos entre Ar-gentina e Brasil. Mesmo como uma plataforma para o diálo-go regional, o Mercosul é extremamente importante e útil. O Brasil não deveria abandonar o discurso simbólico sobre a importância da integração regional. Caso ele comprometa significantemente a capacidade brasileira de assinar acordos de comércio, o Brasil deveria simplesmente rebaixar o Mer-cosul a um mero palco de conversas sem quaisquer obriga-ções comerciais.

Seja como o Mercosul vier a se desenvolver, dada a con-tinuada importância econômica da região, especialmente no que se refere às exportações com valor agregado, o Brasil deveria investir em projetos de infraestrutura, e ajudar as li-nhas de oferta de energia através do continente.

No final, o caminho da integração seletiva parece ser o mais atraente e útil para o Brasil. A integração seletiva con-siste na integração do comércio, da política de investimen-

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tos e da infraestrutura de transporte e comunicação. Por um lado, ela permitiria ao Brasil demonstrar seu compromisso com a região. Por outro lado, o Brasil não teria que perder autonomia alguma, e ficaria livre para assinar acordos bila-terais de comércio com os eua, a União Europeia, a Índia e a China. O Brasil é mais forte com o Mercosul unido, mas caso se revele que o Mercosul reduz o nosso espaço de ma-nobra, precisamos estar preparados e dispostos a negociar acordos bilaterais de comércio. E, se necessário, reduzir o Mercosul ao status de um acordo de livre comércio. O Brasil já demonstrou ser capaz de negociar acordos comerciais por conta própria.

Caso 2: Venezuela – A política partidária de Lula

A situação: A Venezuela se torna mais autocrática e agressiva

O presidente Chávez da Venezuela incapacita lentamente a democracia de uma Venezuela rica em petróleo, e deses-tabiliza a região ao propagar a sua revolução bolivariana. A Venezuela se candidata ao Mercosul, advogando um mudan-ça no foco do bloco: do livre comércio para preocupações sociais.

A escolha: Quais eram as opções de Lula? O que ele esco-lheu fazer? Foi uma boa ou má decisão? Por que ele tomou essa decisão?

Frente a um Hugo Chávez crescentemente autocrático e linha dura, Lula tinha a opção de tomar uma posição clara e criticar a extensão dos danos à democracia na Venezuela. Essa desaprovação pode ir da retórica ao distanciamento in-

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formal, e daí a ações mais substanciais. Lula também tinha a opção de ignorar o fato de que Chávez esteja lentamente desmontando a democracia na Venezuela, e de que ele adote uma estratégia internacional altamente disruptiva. Ele pode-ria se alinhar a Chávez e a seu projeto bolivariano.

A questão de como responder à candidatura venezuela-na ao Mercosul tem um importante papel nesse contexto. O Brasil pode tanto apoiar o ingresso venezuelano, sob o argumento de que a integração da Venezuela seria a melhor maneira de controlá-la. Ou ele pode bloquear o ingresso da Venezuela, sob o argumento de que a noção básica de demo-cracia e de liberalização comercial do país é tão fundamenta-lista que torna as concessões improváveis.

Lula decidiu seguir uma política anti-confronto – até mesmo afirmando que a Venezuela seria muito bem vinda caso ingressasse no Mercosul – na esperança de que Chávez possa ser controlado através da integração. A estratégia de Hugo Chávez é proativa e visionária, apesar de baseada em valores questionáveis, mas Lula meramente reage aos movi-mentos venezuelanos.

Há alguns argumentos em favor dessa decisão. Como resposta a Lula, Chávez tomou gosto pelo Brasil, e ele tem poupado as empresas brasileiras de sua onda de nacionali-zações. Ao mesmo tempo em que a Venezuela se torna um lugar cada vez menos atraente para se fazer negócios, ela su-biu, desde 1999, do 18° para o 7° lugar na lista de destino das exportações brasileiras. Alguns alegam que a abordagem anti-confronto de Lula evitou a entrada da China na Vene-zuela. Finalmente, alguns acreditam que, ao não criticar Chávez, e ao integrar a Venezuela no Mercosul, Lula pode de algum modo controlar Chávez e evitar uma radicalização adicional.

69O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

A estratégia de Lula para a Venezuela está baseada no pressuposto de que o Brasil não pode impedir Chávez de seguir com a sua revolução bolivariana. É verdade que, a menos que o preço do petróleo caia para, digamos, menos de 30 dólares por barril, Chávez não depende de ninguém, nem mesmo das importações brasileiras. Assim, pode fazer pouco sentido isolar a Venezuela nesse momento, já que isso poderia até contribuir para a radicalização das políti-cas chavistas.

Esses argumentos, no entanto, se baseiam em evidências espúrias. A vantagem econômica que o Brasil obtem da par-ceria Lula-Chávez pode ser efêmera. Chávez é imprevisível. Não está absolutamente claro se seu tratamento preferencial ao Brasil continuaria sob um novo governo eleito em 2010. Chávez poderia perfeitamente bem começar a nacionalizar empresas brasileiras quando Lula deixar o poder. Além dis-so, é lícito perguntar porque a Venezuela afinal precisa se tornar membro do Mercosul, dado que o comércio já é forte agora, antes mesmo do seu ingresso.

A noção de que Lula pode melhor controlar Chávez de-pois que a Venezuela fizer parte do Mercosul é ilusória e ar-riscada. Quando o g-7 incorporou a Rússia, as sete nações mais ricas do planeta acreditavam que a filiação russa aju-daria a democratizar o país. Depois que a Rússia se tornou um membro, ela fez exatamente o oposto. A cláusula demo-crática não-oficial do novo g-8 se tornou coisa do passado, enfraquecendo severamente o seu propósito. O mesmo pro-vavelmente vai acontecer no Mercosul. A atual influência de Lula sobre Chávez é limitada, mas ela não aumentará após a entrada da Venezuela no Mercosul.

A omissão de Lula em mencionar a cláusula democrática do Mercosul ao lidar com o desejo da Venezuela de ingres-

70 Luiz Felipe d’Avila e Oliver Stuenkel

sar no clube o fez parecer fraco e descompromissado com a defesa dos fundamentos do Mercosul. O Brasil é o único país que poderia se erguer contra a Venezuela no Mercosul. Com base nas preferências de Chávez, parece certo que o seu ingresso paralisará o Mercosul na discussão de acordos comerciais com terceiros, como os eua. Pior, a posição indi-ferente de Lula torna provável que Chávez sequestre o Mer-cosul e o empregue para beneficiar sua causa.

A política lulista de não confrontar a Venezuela causa problemas imediatos. Lula declara ser comprometido com a democracia e os direitos humanos, mas ele não criticou Chá-vez por suprimir movimentos oposicionistas, por limitar severamente a liberdade de imprensa, ou por ajudar orga-nizações terroristas como as Farc, afirmando haver “demo-cracia demais” na Venezuela. Isso suscita questões sobre o comprometimento de Lula com a democracia no continen-te. Um líder da América do Sul, portanto, não precisa temer reprimendas ou críticas brasileiras caso ele escolha enfra-quecer lentamente a sua própria democracia.

Por fim, na recente disputa relativa ao uso norte-ameri-cano de bases aéreas colombianas, Lula alinhou-se ao pre-sidente Chávez e manifestou preocupação sobre o plano colombiano. Enxergar na presença militar dos eua uma ameaça à soberania da Venezuela é, na melhor das hipóteses, algo forçado. Ao mesmo tempo, Lula não repreende Chávez por suas grandes compras de armas vindas da Rússia, e pelo acúmulo de evidências de que parte dessas armas de algum modo foi parar nas mãos das Farc.

A avaliação: O que ele deveria ter feito? Que condições te-riam que haver existido para que ele tivesse feito a escolha certa?

71O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

O próximo governo brasileiro precisa tomar posição e mostrar que não concorda com a política externa de Hugo Chávez e com sua decisão de agarrar-se ao poder.

Ao mesmo tempo, é claramente equivocado isolar a Ve-nezuela. O isolamento leva à radicalização. Porém, isso não significa que Lula tinha que manter silêncio sobre as políti-cas anti-democráticas de Chávez e, mais importante ainda, sobre suas agitações internacionais. Dizer “não” às ambi-ções venezuelanas no Mercosul é algo que pode ser feito de modos sutis.

Lula deveria assim ter buscado um compromisso, que consistiria em continuar colaborando com Chávez, mas adotando também uma posição pró-democracia que trans-mitisse um sinal claro para a Venezuela e a região. Por exemplo, Lula poderia saudar abertamente o ingresso ve-nezuelano, e destacar que aprovaria a sua admissão somente se o país se comprometesse com os princípios democráticos que representam a fundação do Mercosul. Outra oportuni-dade seria simplesmente mencionar a preocupação brasileira com a liberdade de imprensa na Venezuela, sem atacar dire-tamente o governo venezuelano.

A fim de lidar apropriadamente com a Venezuela, o pró-ximo governo precisa seguir uma política norteada pelos in-teresses nacionais do Brasil. Os laços pessoais e ideológicos com Chávez podem temporariamente evitar a nacionaliza-ção de empresas brasileiras, mas nada fazem para promover a visão de longo prazo brasileira: a de um continente sul-americano estável e democrático.

A decisão de Lula em apoiar a Venezuela e não a Colôm-bia na disputa sobre o uso das bases aéreas pelos nortes-americanos afastou os eua ainda mais, e permitiu a Chávez dominar mais ainda o discurso político da América do Sul.

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Caso 3: Colômbia – O fracasso de Lula em escolher entre a democracia e o terrorismo

A situação: O presidente democraticamente eleito da Co-lômbia combate uma insurgência

Nos últimos oito anos, o presidente colombiano Alvaro Uribe liderou uma firme iniciativa de segurança, que provo-cou uma queda na violência relacionada às Farc e que per-mitiu o crescimento da economia. Mas a guerrilha continua a ser um problema. O presidente Uribe também busca laços mais próximos com os Estados Unidos, o que o coloca em oposição a Hugo Chávez.

A escolha: Quais eram as opções de Lula? O que ele esco-lheu fazer? Foi uma boa ou má decisão? Por que ele tomou essa decisão?

Como líder do continente e vizinho da Colômbia, o Bra-sil poderia ter adotado uma clara postura pró-democracia. Lula poderia ter declarado apoiar a luta contra as Farc atra-vés de todos os meios possíveis. Por outro lado, Lula pode-ria ter escolhido permanecer em silêncio.

Lula decidiu não apenas ficar em silêncio, mas elevar as Farc ao nível de um ator internacional reconhecido, enquan-to o Alto Comissariado da onu para os Direitos Humanos publicamente condenava as Farc. Diversos governos, in-cluindo os Estados Unidos, o Canadá e a União Europeia já reconheceram as Farc como um grupo terrorista, mas o Brasil não. Isso tem consequências negativas de longo al-cance – mancha a imagem externa do Brasil e enfraquece a democracia e a estabilidade na América do Sul. A atividade

73O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

criminosa das Farc espalha o crime através do continente, inclusive no Brasil. As Farc atacam civis não-envolvidos no conflito, plantam minas terrestres, recrutam meninos e me-ninas, mantêm reféns (alguns dos quais por mais de 10 anos) em troca de resgate e de vantagens políticas, e são responsá-veis por desalojar civis em conflitos.

A incapacidade de Lula em alinhar-se mais claramente com Uribe e em criticar os laços do presidente Chávez com o grupo terrorista só podem ser explicados pela sua antipa-tia em relação ao governo de centro-direita de Uribe, e pela sua visão romanceada da insurgência marxista-leninista das Farc. Trata-se de um outro exemplo de como a política par-tidária, determinada por alianças políticas tradicionais, é o princípio diretor da política externa de Lula.

A avaliação: O que ele deveria ter feito? Que condições te-riam que haver existido para que ele tivesse feito a escolha certa?

A atitude do Brasil para com a Colômbia precisa ser guia-da pelos interesses nacionais brasileiros: a promoção da de-mocracia e a luta contra o crime organizado e o tráfico de drogas na América do Sul. Devido à luta armada na Colôm-bia, os investidores internacionais ainda associam a América do Sul ao tráfico de drogas e ao crime internacional. Ainda que eles compreendam que há uma diferença entre o Brasil e o resto do continente, o conflito na Colômbia joga uma luz negativa sobre o continente como um todo. O governo Lula deve oferecer toda a ajuda de que o governo colombia-no precisa para derrotar o movimento guerrilheiro. O go-verno colombiano por vezes já empregou táticas ilegais no seu combate contra as Farc, e precisa encontrar maneiras de

74 Luiz Felipe d’Avila e Oliver Stuenkel

deter tais práticas – como ataques que deixam muitas vítimas civis. Isso, entretanto, não altera o quadro geral.

O Brasil também precisa condenar abertamente as Farc e reconhecê-la como uma organização terrorista. É um para-doxo o fato de que o governo democraticamente eleito de Uribe seja mais isolado na América do Sul do que um se-mi-ditatorial governo venezuelano, suspeito de colaborar com os terroristas. Ao mesmo tempo, é lamentável que o presidente Uribe tenha cogitado mudar a constituição para poder concorrer a um terceiro mandato – uma posição que mina claramente a força das instituições no continente, e um mau sinal para os outros. Mas, em relação às Farc, uma posição clara sublinharia o compromisso do Brasil com uma região estável e democrática, reduziria a apreensão do nosso vizinho, e mostraria a dedicação brasileira aos direi-tos humanos e à democracia. Sob o presidente Fernando Henrique Cardoso, a não-participação do Brasil no grupo reunido pela onu para permitir um acordo entre o governo colombiano e os rebeldes já limitara a influência brasileira na região.

Caso 4: Argentina – O parceiro cada vez mais instável

A situação: A cisão econômica e política entre o Brasil e a Argentina está se ampliando

À medida que crescem a força econômica e a estabilida-de política do Brasil, a Argentina vai se tornando economi-camente instável, e sua política é cada vez mais populista e desequilibrada. Governos populistas tendem a atribuir a fa-tores externos as suas preocupações internas, e o Brasil pode receber parte da culpa.

75O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

Quando Nestor Kirchner chegou ao poder em 2003, a Argentina acabara de experimentar o trauma do colapso econômico. Ainda que a culpa fosse de políticas específicas, Kirchner disse que o problema era o neoliberalismo. Nos últimos seis anos, Nestor Kirchner e agora sua mulher, Cris-tina Fernandez de Kirchner, cometeram muitos dos erros evitados pelo governo Lula. O Estado tem um papel cada vez maior na economia, os investidores estrangeiros não são bem tratados, e as importações brasileiras encontram um número crescente de barreiras. Na mesma linha, a Argentina está se tornando menos competitiva, enquanto seus políti-cos seguem recusando-se a enfrentar os desafios fundamen-tais de sua enferma economia. A nacionalização dos fundos de pensão e a publicação sistemática de números de inflação “massageados” são mais um sinal de uma política desespe-rada e populista, que visa os benefícios de curto prazo em vez da sustentabilidade financeira. A presidente Kirchner se recusa a entrar em acordo com os credores privados, e mal-trata o fmi. Quem estaria disposto a socorrer a Argentina se ela fracassar novamente? Dada a sua situação política, parece improvável que a Argentina recupere a estabilidade econô-mica no curto prazo.

O Brasil, por outro lado, está lentamente se tornando mais aberto, competitivo e integrado à economia mundial. Devido à baixa inflação, o crescimento em termos reais da renda brasileira é tão elevado como o da argentina, mas o Brasil tem muito mais capacidade de manobra caso as coisas dêem errado. Por exemplo, ele pode cortar as taxas de juros ou aumentar os gastos, algo que a Argentina não pode. Os termos da relação entre os dois países estão assim invariavel-mente destinados a mudar, se tornando mais complexos, e seus interesses vão, portanto, se diferenciar fortemente.

76 Luiz Felipe d’Avila e Oliver Stuenkel

A escolha: Quais eram as opções de Lula? O que ele esco-lheu fazer? Foi uma boa ou má decisão? Por que ele tomou essa decisão?

O presidente Lula poderia ter mantido fortes laços com a Argentina durante seus infortúnios e cooperado com as suas, por vezes, exageradas demandas por concessões co-merciais. Ou ele poderia ser duro e arriscar deteriorar o re-lacionamento e, como alguns alegam, a crescente influência venezuelana sobre a Argentina.

Lula decidiu manter as relações aquecidas com a Argen-tina. O governo brasileiro tem se disposto a pagar um preço cada vez maior, na forma de concessões comerciais, para evi-tar uma ruptura. Mas isso tem um custo político. A susten-tabilidade dessa estratégia é questionável, pois as concessões são finitas e o Brasil não pode gastar todos os seus trunfos de negociação sem receber nada em troca. Tal estratégia foi se-guida devido, em grande parte, ao fato de que a deterioração das relações entre o Brasil e a Argentina poderia ter sérios efeitos de longo prazo sobre a política de segurança da Amé-rica Latina.

É um motivo razoável. Apesar da ascensão da Venezue-la, o acordo entre o Brasil e a Argentina para o não-desen-volvimento de armas nucleares é o fundamento da paz e da estabilidade na América do Sul. A colaboração nas áreas da tecnologia espacial, energia nuclear, segurança e cultura de-veria ser preservada e fortalecida. Nesse contexto, é compre-ensível a decisão de Lula de não “abandonar” um amigo em necessidade. Mas é questionável o modo pelo qual ele tem se conduzido, cedendo a muitos dos pleitos argentinos.

A fim de preservar uma importante ferramenta de nego-ciação, o governo brasileiro não pode continuar a fazer tan-

77O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

tas concessões como fez no passado. O efeito das concessões é questionável. Apesar dos esforços do Brasil, as relações com a Argentina não estão particularmente boas. Além dis-so, as concessões comerciais têm um efeito de curto prazo, mas esse efeito provavelmente evaporará, e as demandas da Argentina provavelmente aumentarão.

A avaliação: O que ele deveria ter feito? Que condições te-riam que haver existido para que ele tivesse feito a escolha certa?

À medida que as economias brasileira e argentina se tornam crescentemente heterogêneas, será delicado ne-gociar acordos mutuamente benéficos de comércio com terceiros (como a China). O Brasil deve, portanto, buscar outros caminhos que não o comércio para fortalecer o seu relacionamento com a Argentina – áreas como projetos de infraestrutura, defesa e o combate contra o crime internacio-nal. A colaboração em algumas dessas áreas já é expressiva, como nos casos da tecnologia e dos treinamentos militares conjuntos. O Brasil precisa criar uma amizade que possa perdurar mesmo que o Mercosul deixe de existir do modo pelo qual o conhecemos hoje.

Se o constante sorriso de Lula para todos os lados cria benefícios de curto prazo, o próximo governo precisa aprender a tomar ações mais duras de vez em quando. A Ar-gentina pode estar mais fraca do que antes, mas suas institui-ções ainda são fortes o suficiente para impedir a ascensão de alguém como Hugo Chávez.

Há um consenso emergente entre a classe política na Ar-gentina de que o país não pode e não deve competir com o Brasil pela posição de liderança na América do Sul. Mais e

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mais formuladores de política argentinos aceitam o fato de que as relações bilaterais não são entre dois iguais. Alguns compararam a relação entre o Brasil e a Argentina à dos Esta-dos Unidos com o Canadá – o que indica que a Argentina terá cada vez menos condições de confrontar seriamente o Brasil. A Argentina está mais dependente do Brasil do que nunca, e seu espaço de manobra contra o Brasil está diminuindo.

O Brasil deve seguir uma série de metas em relação à Ar-gentina. Primeiro, precisamos de uma relação forte e con-fiante, evitando uma rivalidade regional que tiraria nossa atenção de outros assuntos-chave e limitaria severamente nossa capacidade de usar a região como uma plataforma de lançamento para nossas ambições globais. Uma relação es-tável entre a Argentina e o Brasil ainda é crucial para a ma-nutenção da estabilidade na América do Sul – similarmente à importância das relações franco-germânicas para a União Europeia. O Brasil deve reconhecer abertamente a Argenti-na como seu mais importante parceiro comercial, e destacar o seu “relacionamento especial”.

No entanto, isso não deveria significar que o Brasil deve ceder a cada uma das demandas argentinas, especialmente quando as críticas ao Brasil por parte do governo argentino servem para angariar apoio doméstico. No passado, o Brasil fez um número crescente de concessões comerciais à Argen-tina. Essas concessões são finitas, então o Brasil perderá um importante instrumento de negociação caso continue na sua trajetória atual. Sem deixar de reconhecer as necessidades das duas nações, o Brasil deve afirmar-se o suficiente para mostrar que uma forte amizade inclui a opção de dizer não. No futuro, as concessões comerciais devem ficar condicio-nadas à disposição argentina em resolver permanentemente as suas pendências.

79O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

Mas uma parceria forte entre a Argentina e o Brasil con-tinua sendo imperativa, e o Brasil precisa ter um canal de comunicação direto e frequente com a presidente argentina. Os principais problemas entre ambos devem ser esclareci-dos aberta e honestamente.

Caso 5: Bolívia – Leniência perigosa

A situação: Evo Morales nacionaliza a indústria do gás da Bolívia e tenta chantagear o Brasil

Em 2006, a Bolívia nacionalizou os seus campos de gás, incluindo os de propriedade da Petrobras, o maior investi-dor na Bolívia. O exército boliviano invadiu as instalações brasileiras numa ação altamente politizada, e Evo Mora-les anunciou na televisão que a Bolívia não aceitaria mais a dominação estrangeira, reivindicando um expressivo au-mento nos pagamentos brasileiros. Essa ação não apenas foi contrária à lei internacional, mas também mostrou uma ausência completa de respeito ao Brasil e a Lula, que havia previamente se vangloriado de sua amizade próxima com Morales.

A escolha: Quais eram as opções de Lula? O que ele esco-lheu fazer? Foi uma boa ou má decisão? Por que ele tomou essa decisão?

Lula poderia ter deixado claro que a ação da Bolívia era inaceitável para o Brasil, pois ela tentava alterar um contrato existente. A outra opção era seguir uma política mais lenien-te, e mostrar indiferença ou até compreensão com o presi-dente Morales.

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Lula optou pela segunda maneira. Em vez de críticas abertas a Morales, Lula ressaltou que a Bolívia era livre para fazer o que quisesse dentro do seu território. Privadamen-te, no entanto, o governo brasileiro teria criticado duramen-te o presidente boliviano. No final, o Brasil concordou em aumentar em 11% os seus pagamentos pelo gás boliviano – uma notável conquista quando se considera a posição da Bo-lívia na negociação diante de um Brasil muito maior.

Além do dano econômico direto causado ao Brasil, o inci-dente tem consequências de mais longo alcance. O fato de que as expropriações não provocaram críticas duras transmite uma mensagem poderosa para o mundo sobre o valor dos con-tratos na América do Sul – tornando a região menos atraente para o ied (Investimento Estrangeiro Direto). Assim como as expropriações politicamente motivadas no Equador e na Ve-nezuela, a ausência de críticas duras levanta questões sobre a democracia e o estado de direito. O papel do Brasil como líder do continente torna ainda mais preocupante a falha de Lula em defender os direitos brasileiros. Enquanto o presidente Mora-les anunciava que a Bolívia “cumpriria todos os contratos”, ele pode em breve fazer novas demandas. As ações do Brasil não ajudaram a tornar a relação mais confiável.

Além disso, a recusa brasileira em condenar abertamen-te a inaceitável confrontação boliviana foi avaliada de perto por líderes em outros países da região, como o Paraguai, a Argentina e o Equador. Morales mostrou como é possível, convenientemente e sem correr riscos, provocar um sen-timento doméstico anti-brasileiro sempre que as taxas de aprovação estiverem em baixa. O recém-eleito presidente Lugo do Paraguai seguiu um caminho similar. O compor-tamento do Brasil deu um mau exemplo, e esse episódio pode facilmente produzir uma reação em cadeia sem contro-

81O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

le caso os líderes populistas adotem uma estratégia cada vez mais conflitiva e violenta como um meio de negociação ou para apaziguar as facções locais.

A inação de Lula nesse incidente pode ser parcialmente explicada por uma afinidade ideológica com os presidentes Morales e Correa, o que dificulta a defesa dos interesses e valores do Brasil. Morales foi duramente criticado em par-ticular, mas isso pouco contribuiu para desincentivar outras nações em seguirem o mesmo caminho. Outro motivo para a posição suave do governo brasileiro com a Bolívia pode ser a dependência brasileira do gás boliviano. Metade das im-portações de gás do Brasil vem da Bolívia, e as cidades den-tro e ao redor de São Paulo são especialmente dependentes do gás boliviano. Um fim repentino das importações certa-mente teria consequências severas no Brasil. Mas a Bolívia é igualmente dependente dos pagamentos brasileiros, então isso não pode justificar a chantagem boliviana ao Brasil.

A avaliação: O que ele deveria ter feito? Que condições te-riam que haver existido para que ele tivesse feito a escolha certa?

Em vez de guiado pela ideologia, Lula deveria ter avaliado cuidadosamente a situação. Um “tapa no pulso” teria mos-trado à Bolívia – e a outros violadores potenciais de regras na América do Sul – que o Brasil não aceitará esse compor-tamento entre aliados. Uma punição severa poderia ter cau-sado um abalo nas relações entre os países, mas uma firme repreensão pública, ou a ameaça de retaliação, teria transmi-tido um sinal mais claro para a região.

Através de uma política regional coerente e compromis-sada, a Bolívia entenderá o que o Brasil representa, e o que

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esperar dele. Se a política externa brasileira for guiada pela defesa dos interesses nacionais e não pela política partidária, o país poderá avaliar situações como essa de um modo mais esclarecido. O comportamento do Brasil para com o Equa-dor mostra que houve uma experiência educativa. Quando o Equador expulsou os gerentes da Odebrecht, o Brasil cha-mou seu embaixador de volta, uma resposta mais adequada e que mostra que o Brasil pode ser duro se o desejar.

Se o Brasil lidar com a Bolívia de acordo com princípios fundamentais, as relações podem se deteriorar temporaria-mente, mas elas melhorariam no longo prazo. Em vez de um pai anti-autoritário, o Brasil assumiria o papel de uma bene-volente, ainda que às vezes rígida, figura de autoridade.

Há um potencial significante para a construção de uma amizade forte e baseada em valores, e para a busca conjun-ta de soluções. O Brasil pode auxiliar a Bolívia a encontrar soluções para a terrível situação de sua população indígena sem amedrontar os investidores internacionais, a estabilizar a sua política e a colocar um fim ao seu papel de o país mais pobre do continente.

Mas, mesmo a melhor política externa brasileira para a Bolívia pode não ser capaz de impedir que esse país em im-passe – e que detem a segunda maior reserva de gás da Amé-rica do Sul – de se tornar ainda mais instável. Trata-se de um outro lembrete para que o Brasil diversifique ainda mais os seus fornecedores de energia, e para que considere investi-mentos em recursos domésticos de gás.4

Caso 6: América Central e Caribe

A situação: O Haiti continua a ser tão instável que tropas estrangeiras são necessárias para estabilizar o país, os líderes

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cubanos continuam a desafiar a democratização, e o presi-dente Zelaya é deposto em Honduras

Desde 2004, o Brasil lidera a força de paz da onu no Hai-ti, para poder estabilizar a frágil democracia na parte ociden-tal da ilha. Após as dificuldades iniciais, a impressão é que as forças brasileiras estão se saindo bem.

O Brasil faz esforços expressivos para estabilizar uma democracia no Haiti, mas tolera e não critica o regime dos Castro em Cuba. De acordo com a Human Rights Watch, o país abusa sistematicamente dos direitos humanos, incluin-do tortura, prisão arbitrária, julgamentos injustos e execu-ções extra-judiciais.

Ao mesmo tempo, um golpe militar e o refúgio tempo-rário do presidente Zelaya na embaixada brasileira mostra-ram ao mundo que a democracia não criou raízes sólidas na América Central.

A escolha: Quais eram as opções de Lula? O que ele esco-lheu fazer? Foi uma boa ou má decisão? Por que ele tomou essa decisão?

O Brasil não foi forçado a assumir um papel de lide-rança no Haiti. Ao contrário, o Brasil tomou a iniciativa de sublinhar seu papel de liderança na região. O envolvi-mento brasileiro transmite um forte sinal para o mundo do compromisso brasileiro com a democracia na Amé-rica Central e no Caribe. A condenação feita pelo Brasil do recente golpe de estado em Honduras fortaleceu ain-da mais esse sinal. Mas a decisão de Lula de não criticar Cuba é contraditória, e enfraquece o compromisso brasi-leiro com a democracia.

84 Luiz Felipe d’Avila e Oliver Stuenkel

A política brasileira para Cuba reflete claramente a au-sência de princípios norteadores de Lula, e sua obsessão em agradar a todos os lados. Seu fracasso em condenar as seve-ras e contínuas violações dos direitos humanos em Cuba é um exemplo crasso do relativismo e da fraqueza brasileira. Se é importante tentar integrar Cuba, é igualmente impor-tante confrontar as políticas internas do presidente Castro.

É incongruente que o Brasil envie tropas para pacificar e democratizar uma ilha ao mesmo tempo em que não criti-ca outra ilha dos arredores, e que é a sede do último regime anti-democrático e autoritário do hemisfério ocidental. No meio dessa confusão, a importante atividade brasileira no Haiti pode perder o seu valor simbólico.

Em relação a Honduras, o governo Lula estava errado ao oferecer refúgio ao ex-presidente Zelaya na embaixada bra-sileira, na medida em que isso comprometeu severamente a habilidade do Brasil em negociar com os dois lados. Pior ainda, porém, é o fato de que o Brasil não reconhece o novo presidente de Honduras, Porfirio Lobo, que ganhou elei-ções mais livres do que as eleições cubanas.

A avaliação: O que ele deveria ter feito? Que condições te-riam que haver existido para que ele tivesse feito a escolha certa?

A decisão brasileira em liderar a relativamente pequena operação no Haiti tem um forte valor simbólico, e sublinha a ambição do Brasil de assumir um papel mais sério no hemis-fério ocidental. Como tal, o engajamento brasileiro no Caribe é um passo na direção certa. O Brasil precisa se afirmar como um contrapeso aos Estados Unidos, e mostrar que a América Central está dentro da esfera dos interesses brasileiros.

85O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

A política do Brasil para Cuba, por outro lado, mancha o sinal transmitido pelo Brasil com sua política para o Haiti. Lula desfruta de um forte relacionamento pessoal com a li-derança cubana. Mas, em vez de usar essa relação para per-suadir Cuba a democratizar-se em algum grau, ela limita a influência do Brasil em Cuba, pois Lula reluta em criticar seu amigo. O mesmo que auxiliou Lula e o pt quando luta-vam contra um regime militar que, ao menos no seu início, contou com apoio americano.

De modo similar à política do Brasil para a Bolívia e a Ve-nezuela, o governo brasileiro se deixou guiar por princípios errados, não agiu em nome do interesse nacional brasileiro, e prejudicou a reputação do Brasil.

Durante a Cúpula das Américas em Trinidad e Tobago em 2009, Lula apelou ao presidente Obama para que os eua suspendessem o embargo contra Cuba. Ele está certo sobre o fato de que o embargo, imposto à ilha comunista em 1962, pouco fez nesses mais de 45 anos para ajudar o povo cubano. O embargo americano contra Cuba é pouco sábio por uma série de razões: os eua fazem comércio com outros regimes comunistas (como a China), o embargo não é justo (ele pre-judica mais aos cubanos do que ao seu governo), e ele é con-traproducente (ele fornece aos irmãos Castro um pretexto para a tirania).

Por outro lado, o presidente Lula não enxerga que Cuba também precisa mudar os seus modos. Na sua página na internet, o Departamento de Estado corretamente des-creve Cuba como “um estado totalitário e policial que se vale de métodos repressivos para manter o controle. Esses métodos, que incluem um intenso monitoramento físico e eletrônico dos cubanos, também se aplicam aos viajantes estrangeiros”.

86 Luiz Felipe d’Avila e Oliver Stuenkel

Em vez de simplesmente pressionar o presidente Obama a dar o primeiro passo, Lula também deveria engajar o pre-sidente cubano Raul Castro, e ajudá-lo viabilizar a glasnost e a perestroika cubanas. Lula precisa reunir a coragem para criticamente engajar-se com aqueles na América Latina que usam o anti-americanismo como pretexto para o seu pró-prio autoritarismo

Com relação a Honduras, o Brasil não deveria ter permi-tido que o presidente Zelaya obtivesse refúgio na embaixada brasileira. O Brasil deveria ter atuado como mediador num estágio ulterior, mas foi forçado a tomar partido após Zelaya ter acampado na embaixada.

2.1.2. Recomendações

Nos casos acima, vimos que a política externa regional do Brasil é, às vezes, problemática, e não serve aos interesses brasileiros. Argumentamos que o Brasil precisa seguir uma política baseada nos interesses nacionais, e que o país precisa ajustar os princípios sobre os quais está baseada a sua políti-ca externa.

O Brasil se defronta com alguns desafios difíceis na re-gião. Como a maior potência do continente, o Brasil deve achar um modo de fortalecer a região. Ele deve ser tanto um amigo como um líder que encoraja os outros países a se ali-nharem com ele. Devemos ser benevolentes, mas também precisamos ser uma “força do bem”, defendermos nossos valores e agirmos com determinação quando outras nações quebrarem as regras. Isso requer análises cuidadosas, por-que nossos vizinhos são muito heterogêneos. É necessária uma mistura de exibição de simpatia, de criação de incenti-vos e de manutenção de padrões. Os erros do governo atual

87O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

agravaram os problemas do Brasil porque ele foi leniente de-mais com os violadores de regras no continente.

O próximo governo brasileiro deve adotar uma políti-ca regional visionária, organizada em torno de três pontos chave. Primeiro, o Brasil deve deixar claro que está ine-quivocadamente comprometido com a região por meio de uma política regional proativa. Segundo, ele deve mudar os princípios que norteiam a sua política externa e basear suas decisões não no clima político doméstico ou na política par-tidária, mas numa análise cuidadosa e de longo prazo. Isso significa que o país deve alinhar-se com outros países ba-seado em regras e não baseado em simpatias políticas. Ter-ceiro, precisamos aderir aos nossos valores inegociáveis: o compromisso com a democracia, os direitos humanos e o multilateralismo, reduzindo desse modo o medo dos nossos vizinhos de uma dominação brasileira. Apenas então o Bra-sil terá a chance de exercer a liderança regional e de impedir a América do Sul de se dividir entre dois campos.

Recomendação 1: Fortalecer o compromisso com a região

O Brasil compartilha fronteiras com todos os países sul-americanos exceto o Chile e o Equador. Parcerias fortes e es-táveis com nossos vizinhos na América do Sul são portanto essenciais para o Brasil. Por diversas razões, temos um in-teresse na estabilidade política e no crescimento econômico através do continente. Governos estáveis têm maior proba-bilidade de respeitar acordos de comércio, são fornecedo-res de energia mais confiáveis, e podemos contar com o seu apoio no combate ao tráfico internacional de drogas e ao cri-me. O Brasil só pode liderar uma América do Sul unida e estável.

88 Luiz Felipe d’Avila e Oliver Stuenkel

Os mercados externos, tais como uma China ávida por re-cursos, estão se tornando crescentemente importantes, mas o Brasil não pode negligenciar ou subestimar a contínua impor-tância de seus vizinhos. A China pode ter se tornado um dos maiores parceiros comerciais do Brasil, mas a China compra predominantemente commodities, ao passo que o Brasil ven-de ao mercado sul-americano mais bens de valor agregado.

Todas as outras grandes potências entenderam a impor-tância da política regional. Os Estados Unidos assinaram acordos de livre comércio com o México e com o Canadá. A China está se esforçando para cortejar os seus vizinhos, e a Índia reconhece que a sua incapacidade de se dar bem com seus vizinhos afeta severamente as suas ambições globais. O mesmo é verdadeiro para o Brasil. Uma série de temas regio-nais, tais como a proteção da Amazônia, se torna muito mais difícil numa América do Sul partida e instável.

Tanto Fernando Henrique Cardoso como Lula acerta-ram, portanto, ao sublinhar repetidamente o compromisso do Brasil com o Mercosul e com a cooperação significativa e a integração com nossos vizinhos. Ao mesmo tempo, o Bra-sil não deve ser percebido como excessivamente subjugador e imperialista. Se intervirmos na nossa região com excesso de ímpeto, perderemos a confiança necessária para aprofun-dar a cooperação regional.

O próximo governo deve deixar claro que o Brasil prefere se ver como parte de um bloco sul-americano forte e unifi-cado, em vez de se posicionar como um ator isolado no sis-tema internacional. Uma América do Sul unificada beneficia não apenas ao Brasil, mas também aos seus vizinhos, pois facilita a defesa de seus interesses na arena global. Os inte-resses econômicos brasileiros são uma prioridade e, caso o Mercosul comprometa a capacidade brasileira de negociar

89O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

acordos de comércio, é importante considerar o rebaixa-mento do Mercosul a uma mera área de livre comércio. Mas, mesmo nesse caso, o Brasil deveria continuar a apoiar sim-bolicamente o Mercosul e a integração regional.

Essa adesão ao multilateralismo na região ajudará ain-da mais a dispersar os medos de nossos vizinhos, e faz todo o sentido para o Brasil. A maioria dos problemas urgentes atuais é de natureza global, e nenhum país pode resolvê-los sozinho. O Brasil só pode cuidar da mudança climática, da não-proliferação e do crime internacional como parte de fortes organizações multilaterais.

Com que especificidade o Brasil pode seguir essa retórica e tomar passos significantes para fortalecer a cooperação e o desenvolvimento econômico? Uma boa opção pode ser, por exemplo, apoiar projetos de infraestrutura de transporte ou energia para conectar a região.

Recomendação 2: Mudar os princípios que guiam a política externa

Em vez de permitir que alinhamentos ideológicos tra-dicionais sejam os fatores determinantes da formulação da política externa brasileira, a estratégia do Brasil deve ser cuidadosamente planejada e alinhada com seus interesses nacionais. Ela não pode, sob hipótese alguma, virar presa da politicagem doméstica, como aconteceu nos últimos seis anos. Lula delegou a sua pasta de política externa para uma facção esquerdista do seu ministério, que se sentia alijada de suas políticas econômicas ortodoxas.

Em vários episódios, Lula usou seus discursos de política externa no exterior para dirigir-se a audiências domésticas, sem considerar o impacto que isso teria internacionalmente.

90 Luiz Felipe d’Avila e Oliver Stuenkel

O governo Lula não repreendeu decisivamente o presiden-te Morales por nacionalizar negócios brasileiros na Bolívia. Ao fazer isso, Lula provou ser um tático perspicaz, satisfa-zendo as facções radicais em seu governo, mas ele subestimou grandemente as consequências negativas que essa política mí-ope produziria para o Brasil internacionalmente. Ao amarrar a política externa ao clima doméstico, o Brasil se tornou um ator cada vez mais imprevisível na política internacional. A política externa deve ser desenhada e implementada indepen-dentemente do instável clima político doméstico.

Isso não significa que a política externa não deveria ser parte do discurso público. Numa sociedade democrática, o público pode e deve ser envolvido ativamente na formulação tanto da política doméstica quanto da externa. Mas o pro-cesso de formulação da política externa do governo deveria ter uma orientação de mais longo prazo.

Recomendação 3: Em vez de apoiar a democracia da boca para fora, o governo brasileiro deve defender para valer os princípios democráticos e os direitos humanos, especial-mente na América do Sul

O novo governo deve seguir uma estratégia baseada em outros princípios: os democráticos. O país já seguiu uma es-tratégia assim antes. Em 1996, por exemplo, o Brasil e outros países evitaram com sucesso um golpe militar no Paraguai, fortalecendo uma democracia nascente e frágil.

Um compromisso não-negociável com a democracia e os direitos humanos precisa orientar a política brasileira em relação aos países que lutam para proporcionar as liberda-des essenciais aos seus cidadãos. O Brasil precisa, portanto, tomar uma atitude firme diante das tendências ditatoriais

91O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

na Venezuela. Ele deve fornecer ao presidente Uribe todos os meios possíveis para auxiliar a Colômbia em sua guerra contra o terrorismo. Na mesma linha, ele precisa recordar aos presidentes que flertam com o autoritarismo, como no caso do Equador, que o Brasil não vai apoiar governos não-democráticos na região. Recentemente, o presidente Chávez ameaçou entrar em guerra com a Colômbia, simplesmente porque o país renovou um acordo através do qual ele garan-te aos militares norte-americanos acesso às suas bases milita-res. Seria verdadeiramente um exagero interpretar isso como uma ameaça tanto à Venezuela como à Amazônia brasileira. Mas foi exatamente o que fez o presidente Lula, ao mesmo tempo em que se calou sobre a corrida armamentista da Ve-nezuela, e sobre suas vendas de armas para as Farc.

O Brasil precisa defender as instituições e os princípios democráticos para manter a unidade na América do Sul. Es-tamos testemunhando o aprofundamento da divisão entre uma América do Sul democrática, estável e próspera, e uma segunda América do Sul populista, autoritária e economi-camente estagnada. Os dois campos vão se afastar, os níveis salariais vão divergir, e a imigração se tornará um problema. Se persistirem as tendências atuais, será cada vez mais difí-cil encontrar soluções comuns, e trabalhar em favor de uma melhor inserção da América Latina na economia global.

Além do mais, o Brasil deveria promover com entusias-mo a liberalização comercial, que beneficiou enormemente o Brasil ao longo das duas últimas décadas. O Brasil ainda é um dos mercados relativamente mais isolados, e buscar a liberalização do comércio terá efeitos positivos para o Brasil e para a região.

A Unasul e o Conselho de Defesa Sul-Americano são bons exemplos da deficiência brasileira em tomar decisões

92 Luiz Felipe d’Avila e Oliver Stuenkel

claras. Em vez de defender o fortalecimento do Mercosul baseado na democracia e no compromisso com o livre co-mércio, a Unasul é uma organização insípida que representa muito pouco. É pouco provável que sirva como um veículo para mudanças significativas – no pior cenário, ela poderia até ser mal utilizada pela Venezuela como uma ferramenta contra os Estados Unidos. O Conselho de Defesa Sul-Ame-ricano também corre o mesmo risco. Não há um inimigo aparente, e certamente não são os eua que planejam atacar a América do Sul. A única ameaça verdadeira é o próprio criador do Conselho de Defesa Sul-Americano, o presidente Hugo Chávez.

2.2. A política do Brasil para os Estados Unidos e a União Europeia

2.2.1. As relações do Brasil com eua e ue: o argumento pela parceria estratégica

As relações do Brasil com os Estados Unidos e a Europa mudaram consideravelmente desde que Lula começou a se focar na diplomacia Sul-Sul. O relacionamento não se tor-nou hostil – Lula parece se dar bem tanto com Obama quan-to com diversos chefes de estado europeus – mas há pouco fundamento para uma aliança forte. Principalmente porque o Brasil está transmitindo sinais misturados. Por um lado, há uma economia brasileira crescentemente competitiva, e um interesse cada vez maior em ganhar melhores acessos aos mercados europeu e norte-americano. Também há atributos estratégicos em comum – como o interesse numa América Latina estável e na contenção da Venezuela. Por outro lado,

93O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

as amistosas relações do Brasil com ditadores, e as diatribes de Lula contra o Ocidente tornam difícil uma aliança basea-da na confiança mútua.

Caso 1: Estados Unidos

Alguns dizem que os eua e o Brasil são os países mais similares do mundo. Quando o Barão do Rio Branco alte-rou o foco da política externa brasileira da Europa para os Estados Unidos, isso parecia ser o começo de uma longa amizade. Mas as relações do Brasil com os Estados Unidos frequentemente foram distantes, e a qualidade do alinha-mento brasileiro com os Estados Unidos é frequentemente superestimada. Essas relações estavam abaladas logo antes do golpe militar de 1964, mas as melhoras introduzidas pelo presidente Castelo Branco não foram duradouras, e a amiza-de tornou-se novamente problemática. Em seu curto man-dato como presidente, Collor buscou melhorar as relações fazendo diversas concessões unilaterais. Quando o presi-dente fhc assumiu o poder, ele procurou “deixar para trás os mal-entendidos” e criar uma aliança mais forte. Reco-nhecendo que todo relacionamento entre dois gigantes pode criar tensão nos negócios do dia a dia, ele procurou criar uma agenda mais ampla e mais inclusiva com a qual Brasil e Estados Unidos pudessem concordar – uma fundação de princípios sobre os quais a confiança se ergue. O presiden-te fhc abordou o tema da “democratização da governança global”. Nessa causa, ele acabou conseguindo convencer o presidente Clinton de que as estruturas de governança glo-bal devem ser mudadas para permitir um maior espaço às potências emergentes. A criação de uma aliança mais forte com os Estados Unidos não significava que fhc não podia

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criticar os eua – ele o fazia frequentemente, em especial após o presidente Bush ter assumido o poder – mas ele o fazia de um modo razoável e compreensível para o outro lado.

Aqueles que criticam a proposta de fortalecer o relacio-namento com os Estados Unidos confundem boas relações com um comportamento submisso para com a América. Se o Brasil não é tão poderoso como os Estados Unidos, o Bra-sil é agora forte o suficiente para ter com os eua uma alian-ça que não se reduza à submissão. A relação do Brasil com a América foi marcada pela ambivalência – uma mistura de admiração e ódio, que explica parcialmente as flutuações nesse relacionamento. Agora, porém, o Brasil não tem mais razões para se contentar com uma relação submissa: o Brasil é dinâmico, tem excelentes perspectivas de crescimento, tem instituições políticas estáveis e é cada vez mais competitivo. Como consequência, tanto o presidente Bush como o presi-dente Obama reconheceram o Brasil como o líder da Amé-rica do Sul.

Infelizmente, as diatribes ocasionais de Lula contra a América e uma fórmula mental “anti-imperial” inviabiliza-ram uma plataforma para a construção de confiança. Mas isso não pode esconder o fato de que os Estados Unidos não estão seguros sobre as intenções do Brasil, e de que o Bra-sil desempenha, portanto, um papel muito pequeno para a América hoje. No geral, as relações são amistosas mas per-manecem baseadas em temas, em vez de serem universal-mente profundas. Como consequência, a Casa Branca tem prestado pouca atenção às ocasionais exclamações retóricas anti-imperialistas de Lula.

O próximo governo deve se dar conta de que os perigos internacionais não emanam mais de um Norte imperialista, mas de governos instáveis e do tráfico de drogas na Bolívia,

95O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

no Equador e na Venezuela. O maior desafio atual do Brasil é o de defender a paz e a democracia, e o de perseguir o de-senvolvimento econômico na América Latina.

Nesse meio tempo, as negociações para reviver a Alca estão praticamente descartadas devido às resistências do-mésticas nos dois países. Apesar de algumas facções ra-dicais terem visto o colapso das negociações da Alca em 2005 como um triunfo para o Brasil, o país poderia ter se beneficiado consideravelmente de tal acordo. Os Estados Unidos são um mercado mais importante para nós. Além disso, como resultado da ruptura, os eua estão avançando na América do Sul através da negociação de acordos de co-mércio com o Chile, o Peru e a Colômbia. Eles não conti-nuarão sendo os únicos. Isso compromete cada vez mais a capacidade brasileira de exercer liderança na região. Até mesmo alguns dos membros do Mercosul, especialmente o Uruguai, têm um interesse crescente em um acordo bilateral de comércio com os Estados Unidos. Os eua estão, assim, construindo lentamente uma Alca sem o Mercosul.

Os formuladores de política do Brasil não deveriam ex-cluir categoricamente toda possibilidade de se alcançar acor-dos comerciais com os Estados Unidos. A liberalização do comércio é vista de modo cada vez mais positivo pelos elei-tores brasileiros, e a assinatura de um acordo não significa que o Brasil esteja “se vendendo para a América”.

O etanol pode se tornar um componente chave de uma amizade mais íntima no futuro. O etanol baseado no milho produzido nos Estados Unidos não é tão ambientalmente amigável como o etanol baseado na cana-de-açúcar. Os eua impõem atualmente uma elevada tarifa sobre o etanol brasi-leiro. Será difícil se chegar a um consenso, mas a redução da retórica anti-americana ajudará a tornar mais difuso o medo

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dos americanos de entrar numa relação baseada em energia com o Brasil.

Os Estados Unidos também enxergam o Brasil como um ator importante no contexto da mudança climática. Com alguma probabilidade, os eua estão dispostos a investirem financeiramente na preservação da Amazônia. Em vez de temer pela violação de sua soberania e de rejeitar catego-ricamente qualquer ajuda, o Brasil deve usar seu potencial natural para obter conhecimentos tecnológicos valiosos e investimentos em energia limpa vindos dos Estados Unidos.

Além da mudança climática, o Brasil se tornou mais im-portante para os Estados Unidos por uma outra razão: a Venezuela. Hugo Chávez não apenas criou um ambiente instável na sua vizinhança, como também exportou o seu populismo de esquerda para a Bolívia, o Equador, a Ni-carágua e Honduras. O Mercosul nunca foi uma coalizão robusta, mas não é exagero afirmar que a entrada da Vene-zuela dará um fim ao sonho de um Mercosul forte e unido. A Venezuela tornou a América Latina mais instável poli-ticamente, e os Estados Unidos vêem o Brasil como uma fortaleza de estabilidade no meio da incerteza crescente. Em vez de perceber a relação entre os dois países através da perspectiva “nós contra eles”, o Brasil deveria fortale-cer seus laços com os eua na base de objetivos comuns: o compromisso com a democracia, os direitos humanos, a li-beralização do comércio e o multilateralismo. Laços fortes com a América não deveriam ser equiparados com a perda da independência. Eles significam discordar dos eua quan-do as suas políticas andarem objetivamente em sentido contrário aos interesses brasileiros. O Brasil poderia per-feitamente se opor ao Plano Colômbia, mas isso precisa se basear num raciocínio convincente, e não numa preocupa-

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ção vaga de que o plano desafia a soberania brasileira sobre a Amazônia.

O Brasil só tem a ganhar com laços mais fortes com os eua – seja na forma de mais investimentos externos, de transferência de tecnologia verde, de socorro financeiro para preservar a Amazônia, e de um possível apoiador na demo-cratização da governança global.

Por fim, à medida que crescem as comunidades de imi-grantes brasileiros na União Europeia e nos Estados Uni-dos, o Brasil pode usar esses grupos para fins políticos. Em 2006, o governo indiano mobilizou os 2,5 milhões de in-dianos nos Estados Unidos para reivindicar a aprovação no Congresso do acordo nuclear entre os eua e a Índia – numa considerável demonstração de influência política. Existem atualmente cerca de 1,1 milhão de brasileiros nos Estados Unidos e, quando todos tiverem legalizado a sua situação, eles também poderão defender os interesses brasileiros na política americana.

Caso 2: A União Europeia

O Brasil tem menos preocupações com o seu relaciona-mento com a União Europeia, pois a ue não é vista como uma ameaça. Mas assim como a América, a Europa percebeu a mudança brasileira para a diplomacia Sul-Sul. Isso tornou mais difícil a busca de consensos entre a ue e o Brasil. Por exemplo, o Brasil se alinhou com a China e com a Índia em questões climáticas, um problema com o qual a Europa está muito preocupada.

Um outro exemplo são os temas sociais nos acordos de comércio. O governo brasileiro vê nisso uma manifestação de imperialismo e de arrogância ocidental. É correto que o

98 Luiz Felipe d’Avila e Oliver Stuenkel

Brasil reivindique a aplicação de regras diferentes nos dois casos. Mas a recusa em considerar a sua inclusão não serve aos interesses do Brasil, e não combina com a sua imagem de um país promotor dos direitos humanos. Se o Brasil se im-porta seriamente com os direitos humanos, ele precisa não apenas aderir domesticamente a certos padrões internacio-nais, mas também precisa promovê-los no exterior.

Por fim, o Brasil precisa continuar a apoiar o tnp e a pro-mover ativamente a não-proliferação e o desarmamento. O governo Obama será particularmente favorável a recrutar a parceira brasileira nessa empreitada. O Brasil pode servir como um modelo para regiões em crise, como a Índia e o Pa-quistão, em sua luta pelo desarmamento.

Há quatro áreas através das quais o Brasil pode fortalecer suas relações com a União Europeia: o comércio, a mudança climática, a promoção dos direitos humanos e o multilatera-lismo. O fracasso na obtenção de um acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia causou prejuízos potenciais a todos os participantes, mas o Brasil provavelmente arcou com os maiores de todos. Seja com ou sem o Mercosul, um acordo de comércio com a União Europeia deveria ser colo-cado de volta na mesa para diversificar nossos riscos de ex-portação.

É compreensível algum grau de relutância no lado brasi-leiro, dada a insistência da ue em subsidiar o seu setor agrí-cola. Mas cada vez mais europeus despertam e pedem pelo fim de tal desperdício. Uma política agrícola europeia mais moderada aumentaria as chances de um acordo de comércio com o Brasil, o maior produtor mundial de bens agrícolas.

Mas, à semelhança da Alca, é importante avaliar sem ba-gagens dogmáticas os efeitos de um acordo comercial entre o Brasil e a União Europeia. A ue mostrou um interesse sé-

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rio num acordo de comércio com o Mercosul. Como o Mer-cosul se encontra num estado de desarranjo que inviabiliza qualquer passo desse porte, o Brasil deveria considerar um acordo bilateral de comércio com a Europa, e manter vivas as negociações.

Com relação à mudança climática, à promoção dos direi-tos humanos e ao multilateralismo, os interesses brasileiro e europeu já estão bastante alinhados, e o Brasil deveria usar essas áreas para uma cooperação mais íntima.

Alguns países europeus, como a Noruega e a Alemanha, estão interessados em apoiar o Brasil em seu esforço de re-duzir o desmatamento na Amazônia. O Brasil deveria tra-balhar com esses países e forjar uma aliança mais forte, e que inclua a transferência de tecnologia verde. As nações euro-peias não questionam a soberania brasileira sobre a Ama-zônia, mas elas entendem que a redução do desmatamento é uma das maneiras mais baratas e naturais de reduzir as emissões de carbono. Se bem negociados, o Brasil pode sair como o vencedor desses acordos.

Em relação aos direitos humanos, o Brasil precisa se rea-linhar com a Europa. Se o país se tornar novamente um ro-busto defensor dos direitos humanos pelo mundo, ele pode estar seguro de que teria a União Europeia ao seu lado numa campanha pela democratização da governança global.

2.2.2. Recomendações

Os Estados Unidos são e continuarão sendo cruciais para o Brasil. A China pode ter se tornado o maior parceiro co-mercial brasileiro, mas os eua são, ao lado da Argentina, o principal ponto de referência da política externa brasileira. O guarda-chuva de segurança dos Estados Unidos cobre o

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Brasil e, ainda que o país tenha todo o direito de se opor aos eua em temas selecionados (como a Guerra do Iraque), o Brasil precisa manter laços fortes com os Estados Unidos a fim de seguir com eficácia os seus objetivos de política ex-terna: a promoção da democracia, dos direitos humanos e do multilateralismo.5

O governo deve certamente manter um interesse con-tínuo na África, mas a sua diplomacia deveria deixar de ser Sul-Sul e voltar a ser Norte-Sul. As relações Sul-Sul deve-riam ser mantidas, mas não como uma prioridade.

Um Brasil confiável e previsível – guiado pelos princípios da democracia, dos direitos humanos, da liberalização do comércio e do multilateralismo – tem tudo para ser aceito no Conselho de Segurança da onu ao longo da próxima déca-da. Isso é muito melhor do que envolver-se em politicagens oportunistas, as quais inevitavelmente comprometem nos-sos valores. Políticas coerentes irão inevitavelmente fazer crescer o “pib diplomático” do Brasil.

2.3. A política do Brasil para a Ásia, a África e o Oriente Médio

2.3.1. O elo perdido entre a diplomacia Sul-Sul e o interesse nacional

Os Brics (Brasil, Rússia, Índia e China) estiveram, ao lado da África, no centro da diplomacia Sul-Sul de Lula. Origi-nalmente uma categoria de investimentos criada pelo Gol-dman Sachs, os Brics se tornaram um grupo político das potências emergentes. Eles são muito diferentes entre si. O Brasil e a Rússia são exportadores de commodities, enquan-to que a China e a Índia são importadores de commodities.

101O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

Esses últimos poderão se bater em disputas territoriais na Ásia e em influência sobre o Oceano Índico. A China é fa-vorável à Rodada Doha, a Índia é contrária a ela. O Brasil e a Índia são democracias, e a China e a Rússia são autocracias. A Rússia não é uma potência emergente, e se depara com drástico declínio demográfico. Como podem esses qua-tro países, que discordam em tantas coisas básicas, chegar a qualquer conclusão útil que não seja decretar o fim da era da unipolaridade americana? Uma segunda cúpula dos Brics em Brasília terminou com anúncios grandiosos, mas com poucos resultados tangíveis.

É fato que a recessão global de 2008 e 2009 mostrou que os Brics se “desacoplaram” do Ocidente. Eles foram capazes de se recuperar por conta própria, sem o auxílio das nações ricas, que ainda estão envoltas com a recessão. Isso é algo considerável e, em qualquer caso, a Rússia, a China e a Índia são importantes mercados futuros para o Brasil.

A participação brasileira na cúpula dos Brics é, des-se modo, a coisa certa a ser feita (na medida em que o ró-tulo também nos garantiu um favor publicitário). Mas seria equivocado assumir que os seus membros apoiarão o Brasil quando as coisas esquentarem. A decisão chinesa de vetar as candidaturas brasileira e indiana a assentos permanentes no Conselho de Segurança deveriam servir como um lem-brete sobre o quão distantes os Brics estão uns dos outros. Por outro lado, o Brasil também deveria reconhecer que é o membro mais estável e constante dos Brics. O Brasil é o único desses países que não possui disputas de fronteiras com seus vizinhos, e o único sem uma bomba nuclear. Ele também é, de acordo com o Índice de Liberdade Econômica da Heritage Foundation, o país dos Brics em que as pessoas desfrutam de maior liberdade. Os abusos dos direitos huma-

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nos na China, na Índia e na Rússia são abundantes, já que os três estão passando por violentas sublevações internas. A Índia é uma democracia, mas uma grande parte da popu-lação vive numa pobreza abjeta, e os direitos das mulheres frequentemente estão ausentes. Todos os três têm relações cordiais com estados renegados como o Irã. Eles não são exatamente um grupo do qual o Brasil deveria ter orgulho de fazer parte.

Isso não significa que construir alianças com outros paí-ses dos Brics não faça sentido. Apenas significa que o Brasil não deveria tratar esse clube como um substituto para outras plataformas multilaterais mais estabelecidas.

Caso 1: África

A África e o Brasil possuem importantes laços culturais, pois a cultura e a história brasileiras foram bastante influen-ciadas por africanos forçados a deixar a África e a trabalhar no Brasil como escravos. A decisão de Lula de fortalecer as relações do Brasil com as nações africanas é, portanto, lou-vável. E ele acertou em destacar o intenso e contínuo sofri-mento humano no continente. Nessa jornada, entretanto, Lula cometeu uma série de erros.

Em primeiro lugar, a África é de pouco valor estratégico ou econômico para o Brasil. Lula acertou ao aumentar os la-ços do Brasil com a África, mas ele fez isso às custas das rela-ções brasileiras com outras regiões muito mais importantes, como a União Europeia e os Estados Unidos. Em consequ-ência, sofreram as nossas relações com parceiros tradicionais e importantes.

Em segundo lugar, mesmo que a África fosse importante para o Brasil, as frequentes visitas de Lula criaram poucos

103O desafio de tornar a política externa relevante para o Brasil

resultados tangíveis. A Índia e a China se tornam crescente-mente importantes na África, enquanto o Brasil continua em segundo plano. Na comparação com o Brasil, a China leva a África a sério, extraindo grandes parcelas de recursos na-turais, e investindo pesadamente. A retórica pró-África de Lula ganhou poucos aliados verdadeiros. Quanto o Brasil tentou se tornar um membro permanente do Conselho de Segurança da onu, foram os países africanos que provoca-ram o fracasso da candidatura brasileira no final.

Com que deveria se parecer a política africana do Brasil? Uma aliança com a África não é algo ruim em si mesmo, e essa reaproximação é certamente um dos grandes feitos da política externa de Lula. Mas, dada a reduzida importância da África, ela não pode ocupar, como hoje, um ponto im-portante na estratégia brasileira de política externa.

O Brasil deveria notar também que acordos de comér-cio generosos, combinados com uma atitude leniente com ditadores que abusam dos direitos humanos, não podem comprar amigos. A política externa dos líderes africanos é altamente complexa, e todas as grandes potências têm inte-resses no continente. É uma ilusão acreditar que as visitas de Lula e seus generosos acordos comerciais poderiam conven-cer países como a Nigéria (grandes economias e recebedoras de vastas somas em ajuda dos países desenvolvidos e em in-vestimento da China e da Índia) a se tornarem aliados ínti-mos do Brasil e a votar pelo Brasil na Assembleia Geral das Nações Unidas. Essa é uma troca que não existe. Nem mes-mo a África do Sul, nossa parceira na ibsa, deixaria de apoiar a China caso tivesse que decidir.

O Brasil abriu mão de seus valores algumas vezes, por exemplo quando se absteve de votar contra o regime geno-cida do Sudão numa tentativa grosseira de angariar apoio

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do regime de Cartum. A comunidade internacional ficou compreensivelmente desalentada de testemunhar um Brasil tão flagrantemente oportunista. O comércio com a África representa apenas uma ínfima porcentagem do comércio in-ternacional brasileiro, e as visitas de Lula não mudarão isso. Assim, a África não deveria ser uma alta prioridade para o próximo governo do Brasil.

Caso 2: China

A China desembarcou na América Latina. Com o au-mento do comércio e grandes investimentos em minas e projetos de infraestrutura como portos e ferrovias, a China se tornou o principal parceiro comercial para a maioria dos países sul-americanos. Em decorrência da recessão nos Es-tados Unidos, a China se tornou o maior mercado exporta-dor brasileiro no ano passado. O investimento chinês de us$ 10 bilhões na Petrobras, em troca de até 200 mil barris/dia de petróleo cru extraídos das novas reservas brasileiras na camada pré-sal, comprovam a nova influência da China no Brasil. Não é menos impressionante o envolvimento chinês em outros países como Venezuela, Equador e Argentina.

Apesar de todos os analistas que já enxergam o domínio da China sobre a América Latina, vale observar que os Esta-dos Unidos ainda são, na América do Sul, parceiros comer-ciais e investidores muito maiores do que a China, a Índia e a Rússia combinadas. Além disso, os benefícios econômicos para países como o Brasil são comparativamente menores, pois a China compra mais matérias-primas, mas o Bra-sil exporta a maioria dos seus bens de valor agregado para a Europa e os Estados Unidos. A soja e o minério de ferro respondem por dois terços das exportações brasileiras para

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a China, e o petróleo cru por outros 10%. Uma mudança do foco diplomático dos eua e da ue para a China não pode, portanto, se justificar pelo interesse econômico nacional.

As alegações americanas de que os crescentes laços eco-nômicos latino-americanos com a China (e outros regimes não-democráticos como a Rússia e o Irã) estariam minando a sua democracia são certamente despropositados. De acor-do com o Banco Mundial e outras instituições, o impacto da China sobre o Brasil é altamente positivo. Devido à sua forte demanda, os preços das matérias primas estão aumentando, o que beneficia o Brasil. O reduzido ied no Brasil é atenuado graças à atuação da China. É verdade que algumas indústrias (como brinquedos e calçados) sumiram do Brasil e foram para a China. Mas essas más notícias não mascaram o fato de que foi principalmente a demanda chinesa que manteve o Brasil longe da forte recessão que atingiu o mundo desde 2008.

Mas o Brasil se prejudica ao proclamar que a China é o seu novo melhor amigo. A China não vê o Brasil como um aliado especial. A disputa em torno da soja que eclodiu entre os dois países em 2004, logo após uma aparentemente bem-sucedida visita de Lula a Pequim, simboliza o relacionamento difícil com a China. A esperança de Lula de que uma aliança estratégica com a China poderia substituir em algum grau a aliança com os Estados Unidos é, portanto, equivocada. Tal como a China, os eua perseguem o seu próprio interesse, mas de modo muito mais previsível do que os chineses.

Outra falácia da política externa de Lula se torna óbvia agora. Os generosos acordos de comércio com o Brasil são bem vindos no mundo todo, mas eles não dão ao Brasil in-fluência sobre as suas decisões estratégicas. A China pode assim se beneficiar de um acordo comercial favorável com o Brasil, mas isso jamais faria com que a China se alinhasse ao

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Brasil em delicadas questões estratégicas como a reforma do Conselho de Segurança da onu. Assim, Lula superestimou significantemente o poder da diplomacia Sul-Sul.

O Brasil deve obter da China um compromisso delica-do. Por um lado, ele deve criar um relacionamento amistoso com a China, que permita ao Brasil exportar suas commo-dities para o mercado chinês. A China deu uma das maiores contribuições pra a recente história de crescimento brasi-leira. A demanda chinesa também ajuda o Brasil equilibrar regionalmente as suas exportações, o que o torna menos vulnerável a crises regionais. Por outro lado, o Brasil deve seguir uma política comercial mais resoluta com a China, e se assegurar de que ela não será a única beneficiada, mas também de que o Brasil ganhe acesso privilegiado aos mer-cados chineses. A China se beneficia desproporcionalmente da parceria sino-brasileira, e o Brasil deve encontrar modos de tornar essa relação mais equitativa.

A China pode vir a desenvolver um forte interesse nas commodities brasileiras, mas ela sempre perseguirá bru-talmente o seu próprio interesse, e ela não hesitará em agir contra o Brasil caso seja necessário – assim como os Esta-dos Unidos. Alianças e acordos comerciais com os Estados e com a China não são excludentes. Ambos os países são de importância econômica expressiva pra o Brasil, e deveriam ser tratados desse modo. A ideologia não deveria ter lugar nessas considerações.

Caso 3: Oriente Médio (inclusive o Irã)

Sob o governo Lula, o Brasil começou a forjar laços mais fortes com os países do Oriente Médio. Isso é louvável. O Brasil possui laços históricos importantes com o Oriente

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Médio, em especial com países como o Iraque. À medida que crescem as demandas brasileiras por energia, boas rela-ções com o Oriente Médio são cruciais. Elas deveriam ter maior prioridade do que as relações com a África, que são de pouca importância para o Brasil.

O Brasil pode ainda não ter o peso estratégico para in-fluenciar o processo de paz no Oriente Médio. Em vez de se somar às muitas vozes já envolvidas, o Brasil deveria es-tabelecer relações duráveis de negócios com todos os países do Oriente Médio, destacando seus laços culturais com a re-gião. Há um número significativo de brasileiros de origem libanesa, e o país deveria usar esse grupo para ressaltar os la-ços brasileiros com a região.

O Brasil possui uma antiga relação com alguns países do Oriente Médio, como o Iraque. Na década de oitenta, o co-mércio bilateral entre os dois países era de cerca de us$ 4 bi-lhões anuais. Quando eclodiu a guerra Irã-Iraque em 1980, quase um terço das importações brasileiras de petróleo pro-vinham do Iraque. Em 1981, o Brasil vendeu urânio para o Iraque, e alguns cientistas brasileiros estariam numa usina bombardeada por Israel naquele mesmo ano. O Brasil foi o primeiro país latino-americano a abrir uma embaixada em Bagdá após a Guerra do Golfo em 1991. Como o Iraque está numa fase de pacificação e reconstrução, o Brasil deveria aproveitar a oportunidade para jogar novamente um papel importante no país. O Brasil goza de uma boa reputação no mundo árabe, a qual deveria ser empregada para fortalecer os laços de negócios.

Ao mesmo tempo, o Brasil nunca repreendeu o Irã por seu questionável programa nuclear. Muito ao contrário, o Bra-sil tem sido dócil em relação ao regime autocrático do Irã. Quando Lula saudou o Irã pelas “eleições limpas” de 2009, ele

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provocou consternação no resto do mundo ao discretamente fechar os olhos para o encarceramento de centenas de mani-festantes, e para a restrição sistemática da liberdade de opinião. Isso é ainda mais paradoxal porque o Brasil não depende do Irã para nada de significativo, e não há nenhum alinhamento discernível entre Lula e o regime iraniano – exceto pelo seu desprezo mais ou menos sério em relação ao Ocidente.

O Brasil deve se distanciar de um regime que possui pou-ca consideração pelos temas que o Brasil representa. Os laços próximos com o Irã não atendem aos interesses bra-sileiros, e ainda prejudicam gravemente a sua reputação no resto do mundo. A primeira viagem internacional do presi-dente Ahmadinejad após a sua fraudada vitória eleitoral foi ao Brasil. Pode até haver uma chance reduzida de o Brasil assumir o papel de negociador no Oriente Médio, mas essa é uma estratégia muito arriscada – e a associação com o Irã está deteriorando a reputação do Brasil no exterior.

Caso 4: Japão

O Brasil historicamente mantém fortes relações com o Ja-pão, um país mais alinhado com o Ocidente do que qualquer outro país asiático.

O Japão joga um papel crucial na Ásia. Ele é um dos poucos países com a capacidade de estabilizar a Ásia Oriental enquanto a China cresce. A relação do Brasil com a China não apenas será muito importante, mas tam-bém crescentemente complexa. Um relacionamento forte e estável com a segunda maior potência da Ásia Oriental é, portanto, da maior importância para reduzir a dependência da China.

O Japão tem algumas coisas em comum com o Brasil: é

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uma democracia estável, é uma grande potência não-nuclear, e é fortemente comprometida com o multilateralismo. Em vez de se alinhar com regimes que têm pouco ou nenhum compromisso com esses valores, como a Rússia e o Irã, o Brasil deveria garantir a construção de relações duradouras com regimes democráticos como o Japão.

Por fim, o Brasil possui a maior comunidade japonesa fora do Japão, com 1,4 milhão de pessoas de ascendência ja-ponesa. Isso deveria servir como outro argumento em favor do fortalecimento dos laços.

Caso 5: Índia – Aliança não mais do que superficial

O Brasil e a Índia têm muito em comum. São ambos paí-ses de dimensões continentais com muita diversidade social, governo democráticos, uma sociedade multi-étnica e uma ampla base populacional.

Ambos são considerados ‘potências emergentes’ e ambos acreditam merecer um maior reconhecimento formal inter-nacional pelo seu recém-descoberto poder. Nesse contexto, eles compartilham percepções similares em questões como a democratização da governança global, principalmente com a expansão do Conselho de Segurança da onu.

A ibsa – uma aliança estratégica entre a Índia, o Brasil e a África do Sul – dá expressão ao reconhecimento mútuo dessas similaridades. A ibsa não representa (e nem deveria) o cora-ção da política externa brasileira, mas é um excelente modo de mobilizar outros países que aderem aos interesses e convic-ções do Brasil, como a democracia e os direitos humanos.

Os laços econômicos também se fortaleceram, e o co-mércio bilateral quase triplicou entre 2004 (us$ 1,2 bilhão) e 2007 (us$ 3,12 bilhões).

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Apesar dessas similaridades significantes, a aliança entre Brasil e Índia seguirá superficial. Os indianos usam o rótu-lo Sul-Sul quando ele é conveniente, mas nunca hesitam em perseguir os seus interesses próprios através de uma dura “realpolitik”.

Em diversos episódios, o Brasil foi derrotado pela Índia. Na rodada Doha, por exemplo, a Índia agradecidamente aceitou a liderança brasileira no g-20 mas, no final, a Índia usou o g-20 para seguir o seu próprio interesse, preferindo manter fechada a sua economia.

O próximo governo brasileiro deveria, portanto, continu-ar a fortalecer seus laços com a Índia, mas sem esperar um “relacionamento especial”.

Caso 6: Rússia

As relações entre o Brasil e a Rússia passaram por uma significante evolução nos anos recentes, caracterizadas pe-los crescentes comércio e cooperação nos setores militar e tecnológico. Hoje o Brasil tem uma aliança importante com a Federação Russa, com parcerias em áreas com tecnologia militar e espacial, e telecomunicações.

Historicamente, as relações com a União Soviética ou a Rússia eram de pouca significância até 1997, quando os dois países assinaram um tratado de cooperação, ou 2001, quan-do da formação de uma comissão governamental binacional. Como sempre, Lula convive muito bem com o atual presi-dente Medvedev, assim como já acontecia com o antigo pre-sidente Putin (que deve retornar em breve ao poder). No governo Lula, os laços se intensificaram, e uma aliança es-tratégica foi formada. Além disso, foi assinado um pacto de transferência de tecnologia militar. Esse aumento na colabo-

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ração permitiu que o primeiro astronauta brasileiro, Marcel Pontes, fosse ao espaço a bordo de uma nave russa.

O desenvolvimento mais recente é a crescente importân-cia dos Brics, com a participação de ambos os países. No ano passado, representantes dos quatro chefes de estado (Brasil, Rússia, Índia e China) se encontraram em São Petesburgo para discutir geopolítica. Um segundo encontro aconteceu em abril de 2010.

O presidente Lula está certo em manter relações cordiais com a Rússia. Apesar de ela não ser uma potência emer-gente (encontra-se num estado de declínio demográfico), esses laços podem ajudar o Brasil em diversas frentes – por exemplo, na tecnologia militar e na reforma do Conselho de Segurança da onu. Ao mesmo tempo, Lula precisa es-tar ciente de que laços próximos com a Rússia representam um risco. O país não é uma democracia liberal. A liberda-de de opinião é severamente restringida, e jornalistas que falam o que querem são frequentemente mortos. Os seus vizinhos, como a Ucrânia, são continuamente pressiona-dos para não adotarem uma política externa independente. Desde a democratização posterior ao colapso da União So-viética, a Rússia tem se tornado cada vez mais autocrática e agressiva – como mostrou a guerra na Geórgia em 2008. O Brasil pode ter relações cordiais com a Rússia, mas apenas se for possível ao Brasil discordar abertamente de algumas das políticas russas, como os abusos aos direitos humanos, as eleições não-livres e as incursões armadas no Cáucaso. Buscar uma política externa de princípios requer a defesa cuidadosa de convicções. Isso não quer dizer que o Brasil não possa assinar alianças estratégicas com a Rússia. Po-rém, isso exige que o Brasil se manifeste contra a guerra de agressão russa à Geórgia – assim como Lula se manifestou

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contra a guerra de agressão dos Estados Unidos ao Iraque em 2003.

Se o Brasil começar a colaborar em demasia com a Rús-sia, irá afastar outros aliados, como a União Europeia e os eua. O reconhecimento oficial pela Venezuela das repúbli-cas da Abkázia e da Ossétia do Sul, por exemplo, isolaram ainda mais o presidente Hugo Chávez da comunidade in-ternacional.

Ao mesmo tempo, o Brasil precisa entender que a cúpu-la dos Brics não tem potencial para se tornar uma aliança muito bem urdida. A política externa da Rússia é altamente imprevisível, e a sua natureza não-democrática a torna mais suscetível a guinadas mais agressivas. O Brasil está correto ao continuar e até aprofundar seus laços econômicos com a Rússia, mas ele deve sempre preservar a capacidade de cri-ticar a Rússia por lentamente deixar morrer a sua nascente democracia.

2.3.2. Recomendações

Após seis anos de diplomacia Sul-Sul, é hora de dar um passo atrás e analisar o que o Brasil ganhou ao se alinhar e às vezes liderar o mundo em desenvolvimento. Torna-se evidente que, apesar do tempo e da atenção expressivas que Lula dedicou ao Sul, os benefícios para o Brasil foram pe-quenos. Lula é um convidado sempre bem-vindo por toda a África e Ásia. Mas quando olhamos para os projetos concre-tos, há pouco para se mostrar.

O g-20 e a rodada comercial de Doha são bons exem-plos da deficiência brasileira em estimar apropriadamente as consequências desse alinhamento com o Sul. O Brasil de fato demonstrou liderança e coragem importantes ao reu-

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nir vinte países em desenvolvimento numa única voz con-tra o mundo desenvolvido. O Brasil certamente foi bem sucedido ao reformular o debate e revitalizar a Rodada Doha. Mas, no final, será que o g-20 falou com a voz bra-sileira? E será que o Brasil se beneficiou da estratégia do g-20? No fim das contas, a Índia se impôs frente a um Bra-sil que estava pronto para aceitar o acordo proposto pelas nações desenvolvidas.

Aqui, emerge um padrão comum: o Brasil se compromete entusiasticamente a alinhar-se com o mundo em desenvolvi-mento, uma promessa saudada com aprovação pelos países africanos e asiáticos. Mas os retornos reais para o Brasil des-sa diplomacia Sul-Sul permanecem mínimos. Na “hora do aperto”, os países em desenvolvimento acabam se focando no seu próprio interesse, em vez de se juntarem ao Brasil. Os exemplos são abundantes. Os países africanos, incluindo a África do Sul, decidiram vetar uma reforma do Conselho de Segurança que desse um assento permanente ao Brasil. E a maioria dos candidatos sugeridos pelo Brasil para dirigir as organizações internacionais é bloqueada.

Pior ainda, os países desenvolvidos aparecem cada vez mais isolados nas diatribes – supostamente não tão sérias – de Lula contra o Ocidente. Lula recorre a elas com frequ-ência como prova de sua “identidade pró-Sul”. A influência brasileira no mundo desenvolvido fica assim severamente reduzida, ao mesmo tempo em que não consegue atrair alia-dos sérios no Sul.

Mesmo que o Brasil conseguisse atrair aliados como a África do Sul e Angola para o seu lado, o impacto econômi-co e estratégico ainda seria minúsculo. O mercado africano é de pouca importância, e a África possui um peso diplomáti-co limitado.

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Podemos assim afirmar que fracassou a estratégia de Lula de priorizar o Sul. Já passou da hora de reverter essas polí-ticas e retornar para uma política externa mais equilibrada, baseada em análises cuidadosas.

Isso não quer absolutamente dizer que o Brasil deva ne-gligenciar o Sul de forma alguma. O Brasil pode e deve as-sumir compromissos tanto com a África quanto com a Ásia. Mas isso não pode vir às custas do relacionamento com os Estados Unidos e com a Europa, que se constituem em alia-dos cruciais do Brasil.

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3. CONCLUSÕES

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O Brasil está numa encruzilhada. O novo governo, que assumirá o poder em 2011, pode capitalizar o progresso feito internamente e posicionar o Brasil como um jogador visionário, confiável e poderoso no sistema internacional. Se seguir as recomendações mencionadas nesse texto, o governo pode desfazer os erros feitos no passado. As mu-danças recomendadas não estão vinculadas a nenhum parti-do político específico – elas podem ser implementadas por qualquer candidato. A democracia, os direitos humanos e o multilateralismo não podem ser situadas num contínuo esquerda-direita. Mais do que isso, eles caracterizam a per-sonalidade de uma nação. O próximo presidente deveria tornar a política externa a parte fundamental de suas políti-cas e engajar a população. Como mencionamos, isso às vezes incluirá compromissos dolorosos e medidas impopulares – além de ser um processo lento. Mesmo assim, uma política externa sensata não proporciona apenas benefícios domésti-cos. O Brasil é importante demais para o continente e para o mundo para relegar a sua política externa às margens.

Notas

1 É fato que a Guerra do Iraque teve dimensões globais e, portanto, merece mais atenção. Porém, a invasão russa continua sendo uma guerra ilegal de agressão e que abre um precedente perigoso.

2 http://www.latinobarometro.org/3 Os especialistas se dividem sobre se a Venezuela ainda é uma democracia. A

“cláusula democrática” foi adotada pelo Mercosul em 1988 e requer a plena observância das instituições democráticas como uma “condição essencial” para que qualquer país participe de qualquer dos órgãos do grupo voltados para o desenvolvimento do processo de integração.

4 O país foi altamente dependente das importações do Golfo Pérsico, especialmente da Arábia Saudita e do Iraque, até o final dos anos oitenta. Nos anos noventa, ao contrário, as importações também passaram a vir da Argentina e da Venezuela.

5 A última guerra do Brasil ocorreu há 150 anos contra o Paraguai, e não há ameaça militar iminente contra o país. Alguns analistas, portanto, questionaram a importância do guarda-chuva de segurança dos Estados Unidos. Entretanto, as relações internacionais se tornaram cada vez mais imprevisíveis, e acreditamos

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haver um valor tangível e significativo no conhecimento de que os eua estão prontos para defender militarmente o Brasil no caso de um ataque – mesmo sem a mais remota evidência de qualquer ameaça militar futura.

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Fontes Stempel Garamond e Helvetica Neue / Impressão Esdeva / Junho de 2010