O Demônio Da Teoria (Antoine Compagnon)

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  • tf iM l I lm iN lu ' t r u l l , MJH

    Tliuln orl^lnii! /. Dniuii th In Thihii'lv l.llli'nilinv '/ Sons (.a mm ti ii

    1999 dst tniduAo brsiNllelru I clllom Ul'Mti

    Este livro on parte dele nflo pode ser reproduzido por

    qualquer meio sem autorizao e.scrita do I'd it or

    Compagnon, Antoine

    C736d O demnio da teoria: literatura e senso comum/ Antoine Compagnon; traduo de Cleonice Paes Barreto Mouro. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

    305p. - (Humanitas)

    Traduo de: Le dmon de la thorie: littrature et sens commun

    1. Literatura - Teoria I. Mouro, Cleonice Paes Barreto II. Ttulo III. Srie

    CDD: 801 CDU: 82

    Catalogao na publicao: Diviso de Planejamento

    e Divulgao da Biblioteca Universitria - UFMG

    ISBN: 85-7041-184-7

    EDITORAO DE TEXTO

    Ana Maria de Moraes

    PROJETO GRFICO

    Glria Campos - Mang CAPA

    Paulo Schmidt

    ILUSTRAO DA CAPA

    Jos Alberto Nemer, sem ttulo, aquarela sobre papel, 110x75cm, 1993,

    foto Rui Cezar dos Santos, coleo Helvcio Belizrio

    REVISO DE TEXTO E NORMALIZAO

    Simone de Almeida Gomes

    REVISO DE PROVAS

    Lilian Valderez Felcio

    Maria Stela Souza Reis

    PRODUO GRFICA

    Jonas Rodrigues Fris

    FORMATAO

    Marcelo Belico

    EDITORA UFMG

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    Campus Pampulha - 31270-901 - Belo Horizonte/MG

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    Reitor: Francisco Csar de S Barreto

    Vice-Reitora: Ana Lcia Almeida Gazzola

    CONSELHO EDITORIAL

    Triui-AiuCarlos Antnio Leite Brando, Heitor Capuzzo Filho, lleloisa Maria Murgel Starling, Luiz Otvio

    Fagundes Amaral, Manoel Otvio da Costa Rocha, Maria Helena Damasceno e Silva Megale,

    Romeu Cardoso Guimares, Silvana Maria Leal Cser, Wander Melo Miranda (Presidente)SliPIJNTIW

    Antnio Luiz Pinho Ribeiro, Beatriz Rezende Dantas, Cristiano Machado Gontijo,

    Leonardo Barci Castriota, Maria das Graas Santa Brbara, Maurlio Nunes Vieira, Newton

    Bignotto de Souza, Relnaldo Martiniano Marques

  • A G R A 0 I C I M E N T O S

    I l alguns anos, na Universidade de Colmbia, em Nova

    York, coordenei um seminrio intitulado Some Puzzles for

    Tlieory [Alguns Quebra-Cabeas para a Teoria], Em torno de

    uma mesa, relemos alguns textos fundadores da teoria lite-

    i .1 t ia, textos tidos como definitivos e cuja avaliao j no nos constrange mais. Posteriormente, na Sorbonne, dediquei um

    curso teoria da literatura. Desta vez, diante de um pblico

    numeroso, foi-me necessrio fazer um discurso magistral, sem

    renunciar a uma abordagem aportica. Este livro fruto desse

    ii.ihulho, e agradeo aos estudantes que o tornaram possvel.

    I )esde a publicao de La Troisime Republique des Lettres

    |A Terceira Repblica das Letras] (1983), criticaram-me vrias

    vezos o fato de haver interrompido a pesquisa no momento em

    (|ue ela se tornara interessante: esperavam pelo fim da histria,

    uma Quarta ou uma Quinta Repblica das Letras. Como cles-

    rever o momento em que a histria literria foi substituda pela

    leoria, e como narrar os episdios seguintes, sem que nossa

    prpria histria intelectual neles se integre? Para romper o

    fio doutrinal e pr fim s controvrsias, decidi escrever um

    outro livro, Les Cinq Paradoxes de la Modernit [Os Cinco *

    Paradoxos da Modernidade] (1989), do qual este tambm a

    continuao. Sou grato a Jean-Luc Giriboni, que me estimulou

    .1 escrev-lo, assim como a Marc Escola, a Andr Guyaux, a 1atrizia Lombardo e a Sylvie Thorel-Cailleteau, que o releram.

    I )ois esboos do Captulo II foram publicados com os ttulos

    de Allgorie et Philologie [Alegoria e Filologia], em Anna

    Doll i e Carla Locatelli, Ed., Retrica e Interpretazione, Roma,

    lUilzoni, 199.4, e Quelques Remarques Sur la Mthode des

    1assages Parallles [Algumas Observaes sobre o Mtodo

    das Passagens Paralelas], Studi di Letteratura Francese, n.22,

  • 1997, assim como um:i prlmelia vei.au do < .ipilulo V, "1 liasse/ le Slyle par la Porte, il Rentrera par la 1'enelie" llxpulseni o Estilo pela Porta, ele Voltar pela JanelaI, l.lltrtiluiv, 11.105, maro 1997, e um fragmento do Captulo VII, Sainte-Beuve

    and the Canon [Sainte-Beuve e o Cnone], Modem Language

    Notes, t.CX, 1995.

  • I) M K I O

    INTRODUO

    O Qim Rkstou dk Nossos Amores? 11

    Teoria e senso comum 15

    Teoria e prtica da literatura 19

    ,Al, Teoria, crtica, histria 21

    Teoria ou teorias 23

    Teoria da literatura ou teoria literria 24

    A literatura reduzida a seus elementos 25

    CAPTULO 1 A LITERATURA 29

    A extenso da literatura 31

    Compreenso da literatura: a funo 35

    Compreenso da literatura: a forma do contedo 38

    Compreenso da literatura: a forma da expresso 39

    Literariedade ou preconceito 42

    Literatura literatura 44

    CAPTULO II O AUTOR 47

    A tese da morte do autor 49

    Voluntas e adio ' 53Alegoria e filologia 56

    Filologia e hermenutica 59

    Inteno e conscincia 65

    O mtodo das passagens paralelas 68

    Straight from the horses mouth 71Inteno ou coerncia 75

    Os dois argumentos contra a inteno 79

    Retorno inteno 84

    Sentido no significao 85

    Inteno no premeditao 90

    A presuno de intencionalidade 93

    CAPTULO III o MUNDO 97Contra a mimesis 99A mimesis desnaturalizada 102O realismo: reflexo ou conveno 106

    Iluso referencial e intertextualidade 109

  • ( )N I r i l l l u r t ( III l l lhl l l/lMlII I 1-1

    ( ' i f l l l l l clil (CMC I I I I I l l I I I I IKMlt .1 1 1 5O arbitrrio il.i Ifii^uii I I

    A nilmsis como rcconhticlmcnto 1 20Oh mundos ficcionais 133

    O mundo dos livros 137

    CAPTULO IV r " O LEITOR 139

    A leitura fora do jogo 139

    A resistncia do leitor 143

    Recepo e influncia 146

    O leitor implcito 147

    j A obra aberta 153

    O horizonte de expectativa (fantasma) 156

    O gnero como modelo de leitura 157

    A leitura sem amarras 159

    _ Depois do leitor 163

    CAPTULO V O ESTILO 165

    O estilo e todos os seus humores 166

    Lngua, estilo, escritura 173

    Clamor contra o estilo 176

    Norma, desvio, contexto 180

    O estilo como pensamento 184

    O retorno do estilo 187

    Estilo e exemplificao 189

    Norma ou agregado 192

    CAPTULO VI A HISTRIA 195

    Histria literria e histria da literatura 198

    Histria literria e crtica literria 201

    Histria das jclias, histria social 204

    A evoluo literria 207

    O horizonte de expectativa 209

    A filologia disfarada 214

    Histria ou literatura? 218

    A histria como literatura 222

    CAPTULO VII O VALOR 225

    Na sua maioria, os poemas so ruins,

    mas so poemas 227

    A iluso esttica 231

    D/fL. O que um clssico? 234

    Da tradio nacional em literatura 239

    Salvar o clssico 242

    ltima defesa do objetivismo 247

    Valor e posteridade 250

    Por um relativismo moderado 253

    l

  • i i i Nt I I i s A i

    A A vi i nhhi a ' IVi'ihuia 257

    Tf( In oil llivOo 258

    Teorlu v l)iillnnol

  • K O D U O

    0 QUE RESTOU DE N O S S O S AMORES?

    I.ii.1 o pobre Scrates, s havia o Demnio da proibio; o meu um grande afirmador, o meu um Demnio de ao, um

    Demnio de combate.

    Baudelaire, "Espanquemos os pobres!

    Parodiando uma clebre frase: Os franceses no tm a

    mente terica. Pelo menos at a exploso dos anos sessenta

    e setenta. A teoria literria viveu ento seu momento de glria,

    como se a f do proslito lhe houvesse, de repente, permitido

    resgatar quase um sculo de atraso num timo cle segundo. Os

    estudos literrios franceses no conheceram nada semelhante

    .10 formalismo russo' ao crculo de Praga, ao New Criticism anglo-americano, sem falar da estilstica de Leo Spitzer nem

    da topologia de Ernst Robert Curtius, do antipositivismo de

    lienecletto Croce nem da crtica das variantes de Gianfranco

    Contini, ou ainda da escola de Genebra e da crtica da cons

    cincia, ou mesmo do antiteorismo deliberado de F. R. Leavis e

    de seus discpulos de Cambridge. Para contrabalanar todos

    esses movimentos originais e influentes que ocuparam a pri

    meira metade do sculo XX na Europa e na Amrica do Norte,

    s poderamos citar, na Frana, a Potica de Valry, segundo

    o ttulo da ctedra que ocupou no Colgio de Frana (1936)

    efmera disciplina, cujo progresso foi logo interrompido

    pela guerra, depois pela morte , e talvez as sempre enig

    mticas Fleurs de Tarbes [Flores de Tarbes], de Jean Paulhan

    (1941), tateando confusamente a definio de uma retrica

    geral, no instrumental, da lngua: esse Tudo retrica,

    que a desconstruo deveria reclescobrir em Nietzsche, por

    volta de 1968. O manual de Ren Wellek e Austin Warren,

    Theory o f Literature [Teoria da Literatura], publicado nos

  • I '.mios I liiklfi'. fin l'M'J, rnronti .1 v.i dl.pi mu e| (uns lins dus a iio.h sessenta ), cm espanhol, |.ipnnt\s, ll.ih.inn, .ilem.io,

    coreano, portugus, dinamarqus, servo croata, grego moderno,

    sueco, hebreu, romeno, finlands e gujarati, mas nao cm liancs,

    idioma no qual s Ibi publicado em 1971, com o ttulo de La

    Thorie Littraire [A Teoria Literria], um dos primeiros da

    coleo Potique, nas ditions du Seuil, sem nunca ter feito

    parte da coleo de bolso. Em I960, pouco antes de morrer,

    Spitzer atribua esse atraso e esse isolamento franceses a trs

    fatores: um velho sentimento de superioridade ligado a uma

    tradio literria e intelectual contnua e eminente; o esprito

    geral dos estudos literrios, sempre marcado pelo positivismo

    cientfico do sculo XIX, procura das causas; a predomi

    nncia da prtica escolar de explicao de texto, isto , de uma

    descrio ancilar das formas literrias, impedindo o desen

    volvimento de mtodos formais mais sofisticados. Acrescen

    taria de bom grado, mas isso evidente, a ausncia cle uma

    lingstica e de uma filosofia da linguagem comparveis s

    que invadiram as universidades de lngua alem ou inglesa,

    desde Gottlob Frege, Bertrand Russell, Ludwig Wittgenstein

    e Rudolf Carnap, assim como a fraca incidncia da tradio

    hermenutica transformada, entretanto, na Alemanha, intei

    ramente, por Edmund Husserl e Martin Heidegger.

    Em seguida, as coisas mudaram rapidamente alis, come

    aram a se mover, no momento em que Spitzer fazia aquele

    diagnstico severo , a tal ponto que, por uma muito curiosa

    reverso que leva a refletir, a teoria francesa viu-se, momen

    taneamente, alada vanguarda dos estudos literrios no

    mundo, um pouco como se tivssemos, at ento, recuado

    para saltar melhor, a menos que um tal fosso, subitamente

    transposto, tenha permitido inventar a plvora com uma ino

    cncia e um ardor tais que deram a iluso de um avano,

    durante esses mirficos anos sessenta, que se estenderam, de

    fat, de 1963, fim da guerra da Arglia, at 1973, com o pri

    meiro choque petroleiro. Por volta de 1970, a teoria literria

    estava no auge e exercia um imenso atrativo sobre os jovens

    da minha gerao. Sob vrias denominaes nova crtica,

    potica, estruturalismo, semiologia, narratologia , ela

    brilhava em todo seu esplendor. Quem viveu esses anos fe

    ricos s pode se lembrar deles com nostalgia. Uma corrente

    poderosa arrastava a todos ns. Naquele tempo, a imagem do

    12

  • i l l l d l l I I I . I . l l l l i || ,| I . l l i I . K l . l p d , l (
  • A tc< >t i:i I< )i, i.i l;i .ina, um li >g( m li | i.ill i.i, i i i .11ti.iv. I > < 1111* Barthes formulava cm 1969 "a nova crftli.i drvc lomai st*

    muito rapidamente um novo adubo, para depois lazei outra

    coisa1 parece no ter sido realizada. Os tericos dos anos sessenta e setenta no tiveram sucessores. O prprio Barthes

    foi canonizado, o que no a melhor forma de manter viva e

    ativa uma obra. Outros mudaram e se entregaram a trabalhos

    muito distanciados de seus primeiros amores; alguns, como

    Tzvetan Todorov ou Genette, orientaram-se para a tica ou a

    esttica. Muitos voltaram-se para a velha histria literria pelo

    vis da redescoberta de manuscritos, como revela a moda da

    crtica dita gentica. A revista Potique, que existe ainda,

    publica essencialmente exerccios de epgonos; o mesmo se

    d com Littrature, outra instituio ps-68, sempre ecltica, acolhendo o marxismo, a sociologia e a psicanlise. A teoria

    acomodou-se e no mais o que era: est a assim como

    todos os sculos literrios esto a, como todas as especiali

    dades convivem na universidade, cada uma em seu lugar.

    Encontra-se compartimentada, inofensiva, espera os estudantes

    hora certa, sem outro intercmbio com outras especialidades

    nem com o mundo a no ser por intermdio desses estudantes

    que vagueiam de uma disciplina a outra. No est mais viva

    que as outras disciplinas, na medida em que no mais ela

    que diz por que e como seria necessrio estudar a literatura,

    qual a pertinncia, a provocao atual do estudo literrio.

    Ora, nada a substituiu nesse papel, alis, no mais se estuda

    tanto a literatura.

    A teoria voltar, como tudo, e seus problemas sero redes-

    cobertos no dia em que a ignorncia for to grande que s

    produzir tdio. Philippe Sollers anunciava esse retorno

    desde 1980, ao prefaciar a reedio de Thorie d nsembJe

    [Teoria do Conjunto] ambicioso volume publicado durante

    o outono que se seguiu a maio de 1968 e cujo ttulo foi extrado das matemticas e ao reunir, talvez com uma suspeita de

    terrorismo intelectual como Sollers reconheceu posterior

    mente ,2 as assinaturas de Michel Foucault, Roland Barthes, Jacques Derrida, Julia Krisieva e todo o grupo de Tel Quel, o

    melhor da teoria ento no seu pice. A teoria ia, ento, de

    vento em popa, dava vontade de viver. Desenvolver a teoria-

    para no se atrasar na vida, havia decretado Lnine, e Louis

    Althusser invocava-o para denominar Teoria coleo que

    14

  • dlrlgla ii.i M.r.prio I * le 11 Mii licxy publicou .11, cm 1966, .mo gula i li i nu i\'lmcnl( c.'.ii 11 ( 111.111 t. i, Tour line 'thorie de la l'rodiK lIon Littraire lloi uma Teoria lia Produo Literria],

    i il h . n.i

  • expostos nas vitrinas das livrarias do Quartier Latin , mas

    isso no motivo para fazer dela uma metafsica nem uma

    mstica. No a tratemos como uma religio. A teoria literria

    no teria seno um interesse terico? No, se estou certo ao

    sugerir que ela tambm, talvez essencialmente, crtica, oposi-

    tiva ou polmica.

    Porque no do lado terico ou teolgico, nem do lado

    prtico ou pedaggico, que a teoria me parece principalmente

    interessante e autntica, mas pelo combate feroz e vivificante

    que empreende contra as idias preconcebidas dos estudos

    literrios, e pela resistncia igualmente determinada que as

    idias preconcebidas lhe opem. Esperaramos, talvez, de um

    balano da teoria literria, que depois de ter oferecido sua

    prpria definio de literatura, como definio contestvel

    trata-se, na verdade, do primeiro lugar-comum terico: O

    que a literatura? , depois de ter prestado uma rpida

    homenagem s teorias literrias antigas, medievais e clssicas,

    desde Aristteles at Batteux, sem esquecer uma passagem

    pelas poticas no-ocidentais, arrolasse as diferentes escolas

    que compartilharam a ateno terica no sculo XX: forma

    lismo russo, estruturalismo de Praga, New Criticism americano,

    fenomenologia alem, psicologia genebresa, marxismo interna

    cional, estruturalismo e ps-estruturalismo franceses, herme

    nutica, psicanlise, neomarxismo, feminismo etc. Inmeros

    manuais so assim: ocupam os professores e tranqilizam os

    estudantes. Mas esclarecem um lado muito acessrio da teoria.

    Ou at mesmo a deformam, pervertem-na; porque o que a

    caracteriza, na verdade, justamente o contrrio do ecletismo,

    seu engajamento, sua vis polemica, assim como os impasses

    a que esta ltima a leva sem que ela se d conta. Os tericos

    do a impresso, muitas vezes, de fazer crticas muito sensatas

    contra as posies de seus adversrios, mas visto que estes,

    confortados por sua boa conscincia de sempre, no renunciam

    e continuam a matraquear, os tericos se pem tambm eles

    a falar alto, defendem suas prprias teses, ou antteses, at o

    absurdo, e, assim, anulam-se a si mesmos diante de seus rivais

    encantados de se verem justificados pela extravagncia da

    posio adversria. Basta deixar falar um terico e contentar-se

    em interromp-lo dc vez em quando com um "Ah!" um pouco

    debochado, para ve lo desmoronar diante de nossos olhos!

    I(i

  • Quando entrei no sexto ano do pequeno liceu Condorcet,

    nosso velho professor de latim-francs, que era tambm pre

    feito de sua cidadezinha na Bretanha, perguntava-nos a cada

    texto de nossa antologia: Como vocs compreendem essa

    passagem? O que o autor quis dizer? Onde est a beleza do

    verso ou da prosa? Em que a viso do autor original? Que

    lio podemos tirar da? Acreditamos, durante um tempo, que

    a teoria literria tivesse banido para sempre essas questes

    lancinantes. Mas as respostas passam e as perguntas perma

    necem. Estas so mais ou menos as mesmas. H algumas que

    no cessam de se repetir de gerao em gerao. Colocavam-se

    antes da teoria, j se colocavam antes da histria literria, e

    se colocam ainda depois da teoria, cle maneira quase idntica.

    A tal ponto que nos perguntamos se existe uma histria da

    crtica literria, como existe uma histria da filosofia ou cla

    lingstica, pontuada de criaes de conceitos, como o cogito

    ou o complemento. Na crtica, os paradigmas no morrem

    nunca, juntam-se uns aos outros, coexistem mais ou menos

    pacificamente e jogam indefinidamente com as mesmas noes

    noes que pertencem linguagem popular. Esse um

    dos motivos, talvez o principal motivo, da sensao de repe

    tio que se experimenta, inevitavelmente, diante cle um quadro

    histrico da crtica literria: nada de novo sob o sol. Em teoria,

    passa-se o tempo tentando apagar termos de uso corrente:

    literatura, autor, inteno, sentido, interpretao, representao,

    contedo, fundo, valor, originalidade, histria, influncia,

    perodo, estilo etc. o que se fez tambm, durante muito

    tempo, em lgica: recortava-se na linguagem cotidiana uma

    regio lingstica dotada de verdade. Mas a lgica formali

    zou se depois. A teoria literria no conseguiu desembaraar-se

    da linguagem corrente sobre a literatura, a dos ledores e dos

    amadores. Assim, quando a teoria se afasta, as velhas noes

    ressurgem intocadas. E por serem naturais ou sensatas

    que nunca no escapamos delas realmente? Ou, como pensa

    de Man, porque s desejamos resistir teoria, porque a

    teoria laz mal, contraria nossas iluses sobre a lngua e a

    subjetividade? Poderamos dizer, hoje, que quase ningum

    11)! locado pela teoria, o que talvez seja mais confortvel.

    I n lo , nito restaria mais nada, ou apenas a pequena peda

    gogia que desi levlr1 N.iu Inteiramente. Na fase urea, por volta

    17

  • de 1970, a teoria era um contradiscurso que punha em questo

    as premissas da crtica tradicional. Objetividade, gosto e

    clareza, Barthes assim resumia, cm Critique et Vrit [Crtica

    e Verdade], em 1966, ano mgico, os dogmas do suposto crtico universitrio, o qual ele queria substituir por uma

    cincia da literatura. H teoria quando as premissas do dis

    curso corrente sobre a literatura no so mais aceitas como

    evidentes, quando so questionadas, expostas como cons

    trues histricas, como convenes. Em seu comeo, tam

    bm a histria literria se fundava numa teoria, em nome da

    qual eliminou do ensino literrio a velha retrica, mas essa

    teoria perdeu-se ou edulcorou-se medida que a histria lite

    rria foi se identificando com a instituio escolar e universi

    tria. O apelo teoria , por definio, opositivo, at mesmo

    subversivo e insurrecto, mas a fatalidade da teoria a de ser

    transformada em mtodo pela instituio acadmica, cle ser

    recuperada, como dizamos. Vinte anos depois, o que sur

    preende, talvez mais que o conflito violento entre a histria

    e a teoria literria, a semelhana das perguntas levantadas

    por uma e por outra nos seus primrdios entusiastas, sobre

    tudo esta, sempre a mesma: O que a literatura?

    Permanncia das perguntas, contradio e fragilidade das

    respostas: da resulta que sempre pertinente partir das

    noes populares que a teoria quis anular, as mesmas que

    voltaram quando a teoria se enfraqueceu, a fim de no s

    rever as respostas opositivas que ela props, mas tambm

    tentar compreender por que essas respostas no resolveram

    de uma vez por todas as velhas perguntas. Talvez porque a

    teoria, custa de sua luta contra a Hidra de Lema, tenha

    levado seus argumentos longe demais e eles tenham se vol

    tado contra ela? A cada ano, diante de novos estudantes,

    preciso recomear com as mesmas figuras de bom senso e

    clichs irreprimveis, com o mesmo pequeno nmero de

    enigmas ou de lugares comuns que balizam o discurso cor

    rente sobre a literatura. Examinarei alguns, os mais resis

    tentes, porque em torno deles que se pode construir uma

    apresentao simptica da teoria literria com todo o vigor

    de sua justa clera, da mesma maneira como ela os combateu

    em vo.

    IH

  • TEORIA E PRTICA DA LITERATURA

    Algumas distines preliminares so indispensveis. Primei

    ramente, quem diz teoria e sem que seja preciso ser mar

    xista pressupe uma prtica, ou uma prxis, diante da qual

    a teoria se coloca, ou da qual ela elabora uma teoria. Nas

    ruas de Gnova, algumas salas trazem este letreiro: Sala de

    teoria. No se faz a teoria da literatura, mas ensina-se o

    cdigo de trnsito: a teoria , pois, o cdigo oposto direo

    de veculos, o cdigo da direo. Qual portanto a direo,

    ou a prtica, que a teoria da literatura codifica, isto , organiza

    mais do que regulamenta? No , parece, a prpria literatura

    (ou a atividade literria) a teoria da literatura no ensina

    a escrever romances como a retrica outrora ensinava a falar

    em pblico e instrua na eloqncia , mas so os estudos

    literrios, isto , a histria literria e a crtica literria, ou

    ainda a pesquisa literria.

    No sentido de cdigo, didtica, ou melhor, deontologia da

    prpria pesquisa literria, a teoria da literatura pode parecer

    uma disciplina nova, em todo caso ulterior ao nascimento da

    pesquisa literria no'sculo XIX, quando da reforma das univer

    sidades europias, e posteriormente clas americanas, segundo

    o modelo germnico. Mas se a palavra relativamente nova,

    a coisa, em si mesma, relativamente antiga.

    Pode-se dizer que Plato e Aristteles faziam teoria da lite-

    ratura quando classificavam os gneros literrios na Repblica

    na Potica, e o modelo de teoria da literatura ainda , hoje,

    para ns, a Potica de Aristteles. Plato e Aristteles faziam

    Icoria porque se interessavam pelas categorias gerais, ou mesmo

    universais, pelas constantes literrias contidas nas obras parti

    culares, como, por exemplo, os gneros, as formas, os modos,

    as figuras. Se eles se ocupavam de obras individuais (a Ilada ,

    o iulipo liei), era como ilustraes de categorias gerais. Fazer

    Icoria da literatura era interessar-se pela literatura em geral,

    de um ponto de vista que almejava o universal.

    Mas Plato e Aristteles no faziam teoria da literatura,

    pois .1 prtica que queriam codificar no era o estudo lite- laiio, ou .1 pesquisa literria, mas a literatura em si mesma. 1iocuiavam formular gramticas prescritivas da literatura, to

    uiiiinativa:, que 1latao queria excluir os poetas da Cidade.

    Atualmente, cmboia iialc da retrica e da potica, e revalorize

    i )

  • sua tradio antiga e clssica, a teoria da literatura no , em

    princpio, normativa.

    Descritiva, a teoria da literatura , pois, moderna: supe a

    existncia de estudos literrios, instaurados no sculo XIX, a

    partir do romantismo. Tem uma relao com a filosofia da

    literatura como ramo da esttica que reflete sobre a natureza

    e a funo da arte, a definio de belo e de valor. Mas a

    teoria da literatura no filosofia da literatura, no espe

    culativa nem abstrata, mas analtica ou tpica: seu objeto so

    o/os discursos sobre a literatura, a crtica e a histria literrias,

    que ela questiona, problematiza, e cujas prticas organiza. A

    teoria da literatura no a polcia clas letras, mas de certa

    forma sua epistemologia.

    Nem nesse sentido verdadeiramente nova. Lanson, o

    fundador da histria literria francesa, na virada do sculo

    XIX para o XX, j dizia de Ernest Renan e de mile Faguet, os

    crticos literrios que o precederam embora Faguet fosse

    seu contemporneo na Sorbonne, Lanson o julgava ultrapas

    sado , que no tinham teoria literria.5 Era uma maneira polida de lhes dizer que, a seus olhos, eram impressionistas

    e impostores, no sabiam o que faziam, faltava-lhes rigor,

    esprito cientfico, mtodo. Quanto a Lanson, este pretendia

    ter uma teoria, o que mostra que histria literria e teoria

    no so incompatveis.

    O apelo teoria responde necessariamente a uma inteno

    polmica, ou opositiva (crtica, no sentido etimolgico do

    termo): a teoria contradiz, pe em dvida a prtica de outros.

    til acrescentar aqui um terceiro termo teoria e prtica,

    conforme o uso marxista, mas no apenas marxista, dessas

    noes: o termo ideologia. Entre a prtica e a teoria, estaria

    instalada a ideologia. Uma teoria diria a verdade de uma pr

    tica, enunciaria suas condies de possibilidade, enquanto a

    ideologia no faria seno legitimar essa prtica com uma men

    tira, dissimularia suas condies de possibilidade. Segundo

    Lanson, alis bem recebido pelos marxistas, seus rivais no

    tinham teoria, seno ideologias, isto , idias preconcebidas.

    Assim, a teoria reage s prticas que julga atericas ou anti-

    tericas. Agindo assim, ela as institui como bodes expiatrios.

    Lanson, que pensava possuir, com a filologia e o positivismo

    histrico, uma teoria slida, entregava-se ao humanismo

    tradicional dc seus adversrios (homens de cultura ou de bom

  • gosto, burgueses). A teoria se ope ao senso comum. Mais

    recentemente, depois de uma volta da espiral, a teoria da

    literatura levantou-se ao mesmo tempo contra o positivismo na

    histria literria (representado por Lanson) e contra a simpatia

    na crtica literria (que havia sido representada por Faguet),

    assim como se levantou contra a associao freqente dos

    dois (primeiro o positivismo na histria do texto, depois o

    humanismo na interpretao), como ocorre nos austeros fillo

    gos que, depois de um estudo minucioso das fontes do romance

    de Prvost, passam sem problemas a julgamentos ntimos

    sobre a realidade psicolgica e sobre a verdade humana de

    Manon, como se ela estivesse a nosso lado, uma jovem de

    carne e osso.

    Resumamos: a teoria contrasta com a prtica dos estudos

    literrios, isto , a crtica e a histria literrias, e analisa

    essa prtica, ou melhor, essas prticas, descreve-as, torna

    explcitos seus pressupostos, enfim critica-os (criticar separar,

    discriminar). A teoria seria, pois, numa primeira abordagem,

    a crtica da crtica, ou a metacrtica (colocam-se em oposio

    uma linguagem e a metalinguagem que fala dessa linguagem;

    uma linguagem e a gramtica que descreve seu funciona

    mento). Trata-se de uma conscincia crtica (uma crtica da

    ideologia literria), uma reflexo literria (uma dobra < rillc ii,

    uma self-consciousness, ou uma auto-referencialidadc), trao.,

    esses que se referem, na realidade, modernidade, desde

    Baudelaire e, sobretudo, desde Mallarm.

    Apresentemos logo o exemplo: empreguei uma serie de

    termos que convm definir em si mesmos, ou elaborar melhor,

    para tirar deles conceitos mais consistentes, para alcanar essa

    conscincia crtica que acompanha a teoria: literatura, depois

    crtica literria e histria literria, cuja distino c enunciada

    pela teoria. Deixemos a literatura para o prximo captulo c

    examinemos mais de perto os dois outros termos.

    TEORIA, CRTICA, HISTRIA

    loi < u iica literria compreendo um discurs sobre as obras

    literrias que acentua .1 experincia da leitura, que desi ieve, Interpreta, avalia o sentido e o eleito que as obt.is excium

    \

  • sobre os (bons) leitores, mas sobre leitores no necessaria

    mente cultos nem profissionais. A crtica aprecia, julga; procede

    por simpatia (ou antipatia), por identificao ou projeo: seu

    lugar ideal o salo, do qual a imprensa uma metamorfose,

    no a universidade; sua primeira forma a conversao.

    Por histria literria compreendo, em compensao, um

    discurso que insiste nos fatores exteriores experincia da

    leitura, por exemplo, na concepo ou na transmisso das

    obras, ou em outros elementos que em geral no interessam ao

    no-especialista. A histria literria a disciplina acadmica

    que surgiu ao longo do sculo XIX, mais conhecida, alis, com

    o nome cle filologia, Scholarship, Wissenschaft, ou pesquisa.

    s vezes opem-se crtica e histria literrias como um

    procedimento intrnseco e um procedimento extrnseco: a

    crtica lida com o texto, a histria com o contexto. Lanson

    observava que se faz histria literria a partir do momento

    em que se l o nome do autor na capa do livro, em que se d

    ao texto um mnimo cle contexto. A crtica literria enuncia

    proposies do tipo A mais belo que B, enquanto a histria

    literria afirma: C deriva de D. Aquela visa a avaliar o texto,

    esta a explic-lo.

    A teoria da literatura pede que os pressupostos dessas

    afirmaes sejam explicitados. O que voc chama de literatura?

    Quais so seus critrios de valor?, perguntar ela aos crticos,

    pois tudo vai bem entre leitores que compartilham das mesmas

    normas e que se entendem por meias palavras, mas, se no

    o caso, a crtica (a conversao) transforma-se logo em dilogo

    de surdos. No se trata de reconciliar abordagens diferentes,

    mas de compreender por que elas so diferentes.

    O que voc chama de literatura? Que peso voc atribui a

    suas propriedades especiais ou a seu valor especial?, pergun

    tar a teoria aos historiadores. Uma vez reconhecido que os

    textos literrios possuem traos distintivos, voc os trata como

    documentos histricos, procurando neles suas causas factuais:

    vida do autor, quadro social e cultural, intenes atestadas,

    fontes. O paradoxo salta aos olhos: voc explica pelo contexto

    um objeto que lhe interessa precisamente porque escapa a

    esse contexto e sobrevive a ele.

    A teoria prolcsta sempre contra o implcito: incmoda, ela

    o protorvus (o proiesiante) da velha escolstica. Ela pede

    contas, no adola i opluio de Proust em Le TempsRetrouv

  • [O Tempo Redescoberto], pelo menos naquilo que diz respeito

    aos estudos literrios: Uma obra onde h teoria como um

    objeto no qual se deixa a marca do preo.6 A teoria quer saber o preo. No tem nada de abstrato, faz perguntas, aquelas

    perguntas sobre textos particulares com os quais historia

    dores e crticos se deparam sem cessar, mas cujas respostas

    so dadas de antemo. A teoria lembra que essas perguntas

    so problemticas, que podem ser respondidas cle diversas

    maneiras: ela relativista.

    TEORIA OU TEORIAS

    Empreguei, at aqui, a palavra teoria no singular, como se

    s houvesse uma teoria. Ora, todo mundo j ouviu falar que

    h teorias literrias, a teoria do senhor fulano de tal, a teoria

    da senhora fulana de tal. Ento, a teoria ou as teorias seriam

    um pouco como doutrinas ou dogmas crticos, ou ideologias.

    I l tantas teorias quanto tericos, como nos domnios em que

    a experimentao pouco praticvel. A teoria no como a

    lgebra ou a geometria: o professor de teoria ensina sua teoria,

    o que lhe permite, como a Lanson, pretender que os outros no

    tm nenhuma. Perguntar-me-o: qual a sua teoria? Respon

    derei: nenhuma. E isto que d medo: gostariam de saber

    qual a minha doutrina, a f que preciso abraar ao longo

    deste livro. Estejam tranqilos, ou ainda mais preocupados.

    Eu no tenho f o protervus sem f e sem lei, o eterno

    advogado do diabo, ou o diabo em pessoa: Forse tu non

    pensavi ch'io lico fossil Como Dante lhe faz dizer, Talvez

    no pensasses que eu fosse um lgico (Inferno, canto XXVII,

    v. 122-1 2 3 ) , nenhuma doutrina, seno a da dvida hiperblica diante de todo discurso sobre a literatura. teoria da

    literatura, vejo-a como uma atitude analtica e de aporias, uma

    aprendizagem ctica (crtica), um ponto de vista metacrtico

    visando interrogar, questionar os pressupostos de todas as

    prticas crticas (em sentido amplo), um Que sei eu? perptuo.

    Evidentemente, h teorias particulares, opostas, diver

    gentes, conflitantes o campo, afirmei, polmico , mas

    no vamos aderii a esta ou quela teoria; vamos refletir de

    maneira analtica e retira sobre a literatura, sobre o estudo

  • literrio, ou seja, sobre todo discurso crtico, histrico, terico

    a respeito da literatura. Tentaremos ser menos ingnuos.

    A teoria da literatura uma aprnuli/agem da no-ingenuidade.

    Em matria de crtica literria", escrevia Julien Gracq, todas

    as palavras que conduzem a categorias so armadilhas .7

    TEORIA DA LITERATURA O lJ TEORIA LITERRIA

    Uma outra pequena distino preliminar. Falei, nos ltimos

    pargrafos, de teoria da literatura, no de teoria literria. Seria

    pertinente essa distino? Segundo, por exemplo, o modelo

    da histria da literatura e da histria literria (a sntese versus

    a anlise, o quadro da literatura em oposio disciplina

    filolgica, como o manual de Lanson, Histoire de la Littrature

    Franaise [Histria da Literatura Francesa], de 1895, frente

    Revue d Histoire Littraire de la France, fundada em 1894). A

    teoria da literatura, como no manual de Wellek e Warren que

    traz o ttulo em ingls, Theory of Literature [Teoria da Litera

    tura] (1949), geralmente considerada um ramo da literatura

    geral e comparada: designa a reflexo sobre as condies da

    literatura, da crtica literria e da histria literria; a crtica

    cia crtica, ou a metacrtica.

    A teoria literria mais opositiva e se apresenta mais como

    uma crtica da ideologia, compreendendo a a crtica cla teoria

    da literatura: ela que afirma que temos sempre uma teoria e

    que, se pensamos no t-la, porque dependemos cla teoria

    dominante num dado lugar e num dado momento. A teoria

    literria se identifica tambm com formalismo, desde os forma-

    listas russos do incio do sculo XX, marcados, na verdade,

    pelo marxismo. Como lembrava de Man, a teoria literria passa

    a existir quando a abordagem dos textos literrios no mais

    fundada em consideraes no lingsticas, consideraes, por

    exemplo, histricas ou estticas; quando o objeto de discusso

    no mais o sentido ou o valor, mas modalidades cle produo

    de sentido ou de valor.8 Essas duas descries cla teoria literria (crtica da ideologia, anlise lingstica) se fortalecem

    mutuamente, pois a crtica da ideologia uma denncia da

    iluso lingstica (da idia de que a lngua e a literatura so

    evidentes em si mesmas): a teoria literria expe o cdigo e a

    conveno ali onde a teoria postulava a natureza.

  • Infelizmente, essa distino (teoria da literatura versus

    teoria literria), clara em ingls, por exemplo, foi obliterada

    em francs: o livro de Wellek e Warren, Theory o f Literature,

    foi traduzido tardiamente, como dissemos com o ttulo

    La Thorie Littraire, em 1971, enquanto a antologia dos forma-

    listas russos, de Tzvetan Todorov, foi publicada, alguns anos

    antes, pelo mesmo editor, com o ttulo Thorie de la Littrature

    (1966). preciso examinar esse quiasmo para melhor nos situar.Como j se ter compreendido, utilizo-me das duas tradies.

    Da teoria da literatura: a reflexo sobre as noes gerais, os

    princpios, os critrios; da teoria literria: a crtica ao bom

    senso literrio e a referncia ao formalismo. No se trata,

    pois, de fornecer receitas. A teoria no o mtodo, a tcnica,

    o mexerico. Ao contrrio, o objetivo tornar-se desconfiado

    de todas as receitas, de desfazer-se delas pela reflexo. Minha

    inteno no , portanto, em absoluto, facilitar as coisas, mas

    ser vigilante, suspeitoso, ctico, em poucas palavras: crtico

    ou irnico. A teoria uma escola de ironia.

    A LITERATURA REDUZIDA A SEUS ELEMENTOS

    Sobre que noes exercer, aguar nosso esprito crtico? A

    relao entre a teoria e o senso comum naturalmente confli

    tuosa. , pois, o discurso corrente sobre a literatura, desig

    nando os alvos da teoria, que permite colocar melhor a teoria

    prova. Ora, todo discurso sobre a literatura, todo estudo

    literrio est sujeito, na sua base, a algumas grandes questes,

    isto , a um exame de seus pressupostos relativamente a um

    pequeno nmero de noes fundamentais. Todo discurso

    sobre a literatura assume posio implicitamente o mais das

    vezes, mas algumas vezes explicitamente em relao a estas

    perguntas, cujo conjunto define uma certa idia de literatura:

    O que literatura?

    Qual a relao entre literatura e autor?

    Qual a relao entre literatura e realidade?

    Qual a relao entre literatura e leitor?

    Qual a relao entre literatura e linguagem?

    Quando falo de um livro, eonstruo forosamente hipteses

    ,oli

  • pu i !'. e o eterno combate entre a teoria e o senso comum que d

    i teoria seu sentido. Quem abre um livro tem essas noes

    m mente. Reformulados um pouco mais teoricamente, os

    quatro primeiros ttulos poderiam ser os seguintes: literarie-

    dade, inteno, representao, recepo. Em relao aos trs

    ltimos estilo, histria, valor , parece que no h motivo

    para distinguir a fala dos amadores da dos profissionais: uns

    e outros recorrem s mesmas palavras.

    Para cada pergunta, gostaria de mostrar a variedade de

    respostas possveis, no tanto o conjunto daquelas que foram

    iladas na histria, mas das que se fazem hoje: o projeto no

    i > de uma histria da crtica, nem o de um quadro das doutrinas

    literrias. A teoria da literatura uma lio de relativismo,

    no de pluralismo: em outras palavras, vrias respostas so

    possveis, no compossveis; aceitveis, no compatveis; ao

    invs de se somarem numa viso total e mais completa, elas

    se excluem mutuamente, porque no chamam de literatura,

    no qualificam como literria a mesma coisa; no visam a

    diferentes aspectos do mesmo objeto, mas a diferentes objetos.

    Antigo ou moderno, sincrnico ou diacrnico, intrnseco ou

    extrnseco: no possvel tudo ao mesmo tempo. Na pesquisa

    literria, mais menos, motivo pelo qual devemos escolher.

    Alm disso, se amo a literatura, minha escolha j foi feita.

    Minhas decises literrias dependem de normas extraliter-

    rias ticas, existenciais , que regem outros aspectos da

    minha vida.

    1or outro lado, e.v.as sete questes sobre a literatura no :.;lii Independente:. I tiim.im um sistema. Em outras palavras,

  • a resposta que dou a uma delas restringe as opes que se

    abrem para responder s outras: por exemplo, se acentuo o

    papel do autor, possvel que no d tanta importncia

    lngua; se insisto na literariedade, minimizo o papel do leitor;

    se destaco a determinao da histria, diminuo a contribuio

    do gnio etc. Esse conjunto de escolhas solidrio. por

    isso que qualquer questo permite uma entrada satisfatria

    no sistema, e sugere todas as outras. Uma nica, a inteno,

    por exemplo, talvez seja suficiente, para tratar de todas elas.

    por isso tambm que a ordem de anlise dessas questes

    , no fundo, indiferente: poder-se-ia tirar uma carta ao acaso

    e seguir a pista. Escolhi percorr-las fundamentando-me numa

    hierarquia que corresponde, tambm ela, ao senso comum, o

    qual, em relao literatura, pensa mais no autor do que no

    leitor, na matria mais do que na maneira.

    Todos os lugares da teoria sero assim visitados, salvo,

    talvez, o gnero (trataremos dessa questo brevemente, quando

    falarmos da recepo), porque o gnero no foi uma causa

    clebre da teoria literria dos anos sessenta. O gnero uma

    generalidade, a mediao mais evidente entre a obra indivi

    dual e a literatura. Ora, por um lado, a teoria desconfia das

    evidncias, por outro, visa aos universais.

    Essa lista tem qualquer coisa de provocao, visto que

    nela constam, simplesmente, as ovelhas negras da teoria lite

    rria, moinhos de vento contra os quais ela se esfalfou para

    forjar conceitos salutares. Que no se veja a, entretanto,

    nenhuma malcia! Inventariar os inimigos da teoria parece-me

    o melhor, o nico meio, em todo o caso o mais econmico,

    de examin-los com confiana, de traar seus passos, teste

    munhar sua energia, torn-la viva, assim como ainda indis

    pensvel, depois de mais de um sculo, descrever a arte

    moderna atravs das convenes que a negaram.

    Enfim, talvez sejamos levados a concluir que o campo lite

    rrio, apesar das diferenas de posio e de opinio, s vezes

    exacerbadas, para alm das querelas interminveis que o

    animam, repouse sobre um conjunto de pressupostos e de

    crenas partilhados por todos. Pierre Bourdieu julgava que

    a.s posIAcs assumidas com relailo ) arte e literatura [...]

    organizam m* cm parcN ilc oposl^cs, muitas vezes herdados

  • de um passado polm ico e concebidos como antinomias intransponveis, alternativas absolutas, em termos de tudo ou nada, que estruturam o pensamento, mas tambm o aprisionam numa srie de falsos dilemas.9

    Trata-se de arrombar essas falsas janelas, essas contradies

    traioeiras, esses paradoxos fatais que dilaceram o estudo

    literrio; trata-se de resistir alternativa autoritria entre a

    teoria e o senso comum, entre tudo ou nada, porque a verdade

    est sempre no entrelugar.

    28

  • C A I I T U L O

    A LITERATURA

    Os estudos literrios falam da literatura das mais diferentes

    maneiras. Concordam, entretanto, num ponto: diante de todo

    estudo literrio, qualquer que seja seu objetivo, a primeira

    questo a ser colocada, embora pouco terica, a da definio

    que ele fornece (ou no) de seu objeto: o texto literrio. O

    que torna esse estudo literrio? Ou como ele define as quali

    dades literrias do texto literrio? Numa palavra, o que para

    ele, explcita ou implicitamente, a literatura?

    Certamente, essa primeira questo no independente das

    que se seguiro. Indagaremos sobre seis outros termos ou

    noes, ou, mais exatamente, sobre a relao do texto literrio

    com seis outras noes: a inteno, a realidade, a recepo,

    a lngua, a histria e o valor. Essas seis questes poderiam,

    portanto, ser reformuladas, acrescentando-se a cada uma o

    epteto literrio, o que, infelizmente, as complica mais do que

    as simplifica:

    O que inteno literria?

    O que realidade literria?

    O que recepo literria?

    O que lngua literria?

    O que histria literria?

    O que valor literrio?

    Ora, emprega-se, freqentemente, o adjetivo literrio, assim

    como o substantivo literatura, como se ele no levantasse

    problemas, como se se acreditasse haver um consenso sobre

    o que literrio e o que no o . Aristteles, entretanto,

    j observava, no incio de sua Potica, a inexistncia de um

    termo genrico para designar ao mesmo tempo os dilogos

    socrticos, os textos em prosa e o verso: A arte que usa apenas

    a linguagem em prosa ou versos [...] ainda no recebeu um

    nome at o presente (I447a28-b9). H o nome e a coisa.

  • i > iH mir lllciiiltini c, i cil.imrnW , iiuvt i (i l.il.i li > liifrli> d(> mViiIo

    XIX; anlerlormenle, a literatura, conforme a climologia, ciam

    as inscries, a escritura, a erudio, ou o conhecimento cias

    letras; ainda se diz literatura), mas isso no resolveu o

    enigma, como prova a existncia de numerosos textos intitulados

    Q u Est-ce que l Art?[0 que Arte?] (Tolsto, 1898), QuEst-ce

    que la Posie? [O que Poesia?] (Jakobson, 1933-1934),

    Q u Est-ce que la Littrature? [O que Literatura?] (Charles Du

    Bos, 1938; Jean-Paul Sartre, 1947). A tal ponto que Barthes

    renunciou a uma definio, contentando-se com esta brinca

    deira: A literatura aquilo que se ensina, e ponto final.1 Foi uma bela tautologia. Mas pocle-se dizer outra coisa que

    no Literatura literatura?, ou seja, Literatura o que se

    chama aqui e agora de literatura? O filsofo Nelson Goodman

    (1977) props substituir a pergunta O que arte? (What is

    art?) pela pergunta Quando arte? (When is art?) No seria

    necessrio fazer o mesmo com a literatura? Afinal de contas,

    existem muitas lnguas nas quais o termo literatura intradu

    zvel, ou no existe uma palavra que lhe seja equivalente.

    Qual esse campo? Essa categoria, esse objeto? Qual a

    sua diferena especfica? Qual a sua natureza? Qual a

    sua funo? Qual sua extenso? Qual sua compreenso?

    necessrio definir literatura para definir o estudo literrio,

    mas qualquer definio de literatura no se torna o enunciado

    de uma norma extraliterria? Nas livrarias britnicas encontra-se,

    de um lado, a estante Literatura e, de outro, a estante Fico-,

    de um lado, livros para a escola e, de outro, livros para o

    lazer, como se a Literatura fosse a fico entediante, e a Fico,

    a literatura divertida. Seria possvel ultrapassar essa classifi

    cao comercial e prtica?

    A aporia resulta, sem dvida, da contradio entre dois

    pontos de vista possveis e igualmente legtimos; ponto de

    vista contextuai (histrico, psicolgico, sociolgico, institu

    cional) e ponto de vista textual (lingstico). A literatura, ou

    o estudo literrio, est sempre imprensada entre duas abor

    dagens irredutveis: uma abordagem histrica, no sentido

    amplo (o texto como documento), e uma abordagem lings

    tica (o texto como fato da lngua, a literatura como arte da

    linguagem). Nos anos sessenta, uma nova querela entre antigos

    e modernos despertou a velha guerra de trincheiras entre

    30

  • | >. i i I l i l . l i l( i ' . i l i h u m ( li I I n l i , ,l< i n / r i i / j i | >ii 1 1 l i l ; h l < r . i l> u i n . i

    i li I m i l , . I l i l l l l t l l l l l I la I II I -1.1111 l ' i l , Il 1 -Il .1 Vi I . .1 < ( l t l . 1 ' 1 , I I I . i m i l I I

    l l l l i l l . l t I . i . ( i e n e t l e , q u e 1 1 1 1 > >. l " l o l . i " .1 p e i g u n t . l ' ( ) q u e e l l l i i ,i

    lmai'" - cia c mal colorada , sugeriu, entretanto, dlstinguii

    dois rgimes literrios complementares: mu regime constltiiliro,

    garantido pelas convenes, logo fechado uni sonclo, mu

    romance pertencem de direito literatura, inesmo que ninguem

    os leia , c um regime condicional, logo aberto, dependente

    de uma apreciao revogvel a incluso, na literatura, dos

    Penses [Pensamentos] de Pascal ou de La Sorcire |A hei ti

    ceira] de Michelet depende dos indivduos e das pocas.*

    Descrevamos a literatura sucessivamente: do ponto de vista

    da extenso e da compreenso, depois da Juno e da form a ,

    em seguida, da forma do contedo e da form a da expresso.

    Avancemos dissociando, seguindo o mtodo familiar da dico

    tomia platnica, mas sem demasiadas iluses sobre nossas

    chances de sucesso. Como a questo O que literatura?" c

    insolvel dessa maneira, o primeiro captulo ser o mais curto

    deste livro, mas todos os captulos seguintes continuaro a

    busca de uma definio satisfatria de literatura.

    A EXTENSO DA LITERATURA

    No sentido mais amplo, literatura tudo o que impresso

    (ou mesmo manuscrito), so todos os livros que a bibliotec a

    contm (incluindo-se a o que se chama literatura oral, dora

    vante consignada). Essa acepo corresponde noo clssica

    de belas-letras as quais compreendiam tudo o que a retrica

    e a potica podiam produzir, no somente a fico, mas tambm

    a histria, a filosofia e a cincia, e, ainda, toda a eloqncia.

    Contudo, assim entendida, como equivalente cultura, no

    sentido que essa palavra adquiriu desde o sculo XIX, a lite

    ratura perde sua especificidade: sua qualidade propriamente

    literria lhe negada. Entretanto, a filologia do sculo XIX

    ambicionava ser, na realidade, o estudo de toda uma cultura, da

    qual a literatura, na acepo mais restrita, era o testemunho mais

    acessvel. No conjunto orgnico assim constitudo, segundo

    a filologia, pela lngua, pela literatura e pela cultura, unidade

    identificada a uma nao, ou a uma raa, no sentido filolgico,

    31

  • n.in 11|(>l(>glci> do icimo, .i lliri,iliua reinava absoluta, c o estudo da literatura era a via r-gia para a compreenso de

    uma nao, estudo que os gnios no s perceberam, mas no

    qual tambm forjaram o esprito.

    No sentido restrito, a literatura (fronteira entre o literrio

    e o no literrio) varia consideravelmente segundo as pocas

    e as culturas. Separada ou extrada das belas-letras, a litera

    tura ocidental, na acepo moderna, aparece no sculo XIX,

    com o declnio do tradicional sistema de gneros poticos,

    perpetuado desde Aristteles. Para ele, a arte potica a

    arte dessa coisa sem nome, descrita na Potica compreendia,

    essencialmente, o gnero pico e o gnero dramtico, com

    excluso do gnero lrico, que no era fictcio nem imitativo

    uma vez que, nele, o poeta se expressava na primeira pessoa

    vindo a ser, conseqentemente, e por muito tempo, julgado

    um gnero menor. A epopia e o drama constituam ainda os

    dois grandes gneros da idade clssica, isto , a narrao e a

    representao, ou as duas formas maiores da poesia, enten

    dida como fico ou imitao (Genette, 1979; Combe). At

    ento, a literatura, no sentido restrito (a arte potica), era o verso.

    Mas um deslocamento capital ocorreu ao longo do sculo XIX:

    os dois grandes gneros, a narrao e o drama, abandonavam

    cada vez mais o verso para adotar a prosa. Com o nome de

    poesia, muito em breve no se conheceu seno, ironia da

    histria, o gnero que Aristteles exclua da potica, ou seja,

    a poesia lrica a qual, em revanche, tornou-se sinnimo de

    toda poesia. Desde ento, por literatura compreendeu-se o

    romance, o teatro e a poesia, retomando-se trade ps-'

    aristotlica dos gneros pico, dramtico e lrico, mas, dora

    vante, os dois primeiros seriam identificados com a prosa, e o

    terceiro apenas com o verso, antes que o verso livre e o poema

    em prosa dissolvessem ainda mais o velho sistema de gneros.

    O sentido moderno de literatura (romance, teatro e poesia)

    inseparvel do romantismo, isto , da afirmao da relativi

    dade histrica e geogrfica do bom gosto, em oposio

    doutrina clssica da eternidade e da universalidade do cnone

    esttico. Restrita prosa romanesca e dramtica, e poesia

    lrica, a literatura concebida, alm disso, em suas relaes

    com a nao e com sua histria. A literatura, ou melhor, as

    literaturas so, antes de tudo, nacionais.

    32

  • M u . i .11ii.111ii uh .iiiiil.i lllci.imi.i :,:io os grandes esrrl loi'i ", I ,i1111x-iii
  • Por (nitro hul, o propi i(> c:lnon
  • (;< )MI'KI I NSA( > I )A I I I I KA I I IRA: A I IIN AO

    ( lontlnurmos .1 proceder, imitando Plato, por dicotomia, c distingamos Juno e forma, atravs de duas questes: O

    que a literatura faz? Qual o seu trao distintivo?

    As definies de literatura segundo sua funo parecem

    relativamente estveis, quer essa funo seja compreendida

    co m o individual ou social, privada ou pblica. Aristteles falava de katharsis, de purgao, ou de purificao de emoes

    como o temor e a piedade (1449b 28). uma noo difcil de

    determinar, mas ela diz respeito a uma experincia especial

    das paixes ligada arte potica. Aristteles, alm disso,

    colocava o prazer cle aprender na origem da arte potica

    ( 1448b 13): instruir ou agradar (prodesse aut delectar), ou ainda

    instruir agradando, sero as duas finalidades, ou a dupla fina

    lidade, que tambm Horcio reconhecer na poesia, qualifi

    cada de dulceet utile (Ars Potica [Arte Potica], v.333 e 343).

    Essa a mais corrente definio humanista de literatura,

    enquanto conhecimento especial, diferente do conhecimento

    filosfico ou cientfico. Mas qual esse conhecimento lite

    rrio, esse conhecimento que s a literatura d ao homem?

    Segundo Aristteles, Horcio e toda a tradio clssica, tal

    conhecimento tem por objeto o que geral, provvel ou

    verossmil, a dxa, as sentenas e mximas que permitem

    compreender e regular o comportamento humano e a vida

    social. Segundo a viso romntica, esse conhecimento diz

    respeito sobretudo ao que individual e singular. A continui

    dade permanece, no entanto, profunda: de Paolo e Francesca

    que nA Divina Comdia, descobrem estarem apaixonados

    lendo juntos os romances da Table Ronde a Dom Quixote

    que pe em prtica os romances de cavalaria e Madame

    Bovary intoxicada pelos romances sentimentais que devora.

    Essas obras, claramente pardicas, so prova da funo de

    aprendizagem atribuda literatura. Segundo o modelo huma

    nista, h um conhecimento do mundo e dos homens propiciado

    pela experincia literria (talvez no apenas por ela, mas princi

    palmente por ela), um conhecimento que s (ou quase s) a

    experincia literria nos proporciona. Seramos capazes de

    paixo se nunca tivssemos lido uma histria de amor, se

    35

  • nunca nos houvessem conlado iim.i imlr.i hislrla
  • mi lin.il
  • C( )MI*KI I NSA< ) I >A I I I I KA I l UMA FORMA 1)0 C O N TIlII X )

    Da Antigidade metade do sculo XVIII, a literatura

    sei que a palavra anacrnica, mas suponhamos que ela

    designe o objeto da arte potica foi geralmente definida

    como imitao ou representao (mimsis) de aes humanas

    pela linguagem. como tal que ela constitui uma fbula ou

    uma histria (muthos). Os dois termos (mimsis e muthos)

    aparecem desde a primeira pgina da Potica de Aristteles e

    fazem da literatura uma fico traduo de mimsis s vezes

    adotada, por exemplo, por Kte Hamburger e Genette ou,

    ainda, uma mentira, nem verdadeira nem falsa, mas verossmil:

    um mentir-verdadeiro, como dizia Aragon. O poeta, escrevia

    Aristteles, deve ser poeta de histrias mais que de metros,

    pois que em razo da mimsis que ele poeta, e o que ele

    representa ou imita (mimeisthai) so aes (1451b 27).

    F.ni nome dessa definio de poesia atravs da fico,

    Aristteles exclua da potica no apenas a poesia didtica

    ou satrica, mas tambm a poesia lrica, que pe em cena o

    eu do poeta, e no preservava seno os gneros pico (narra

    tivo) e trgico (dramtico). Genette fala de uma potica

    essencialista ou, ainda, constitutivista na sua verso temtica.

    Segundo essa potica, a maneira mais segura para a poesia

    escapar do risco de dissoluo, no emprego corrente da

    linguagem, e se fazer obra de arte a fico narrativa ou

    dramtica.4 O qualificativo temtico parece-me que deve ser evitado, pois no h temas (contedos) constitutivamente

    literrios: o que Aristteles e Genette visam ao estatuto onto

    lgico, ou pragmtico, constitutivo dos contedos literrios,

    , pois, a fico como conceito ou modelo, no como tema (ou

    como vazio, no como pleno); e Genette, alm disso, prefere

    cham-la ficcionalidade. Referindo-me s distines do lingista

    Louis Hjelmslev entre substncia do contedo (as idias),

    form a do contedo (a organizao dos significados), subs

    tncia da expresso (os sons) e forma da expresso (a organi

    zao dos significantes), direi que, para a potica clssica, a

    literatura caracterizada pela fico enquanto forma do con

    tedo, isto , enquanto conceito ou modelo.

    38

  • M i . h.ii.i
  • Qualquer signo, qualquei llnMiiip.ciii
  • i l . i i |i l u l . i lllri.lil.i i l . l u r .1 lllci.iliii.i, n i . r . .1 l l l e i ariedade, o u seja, o que l . i / ( l i i i i n . i determinada obra uma obra liter

    ria";111 ou, muito tempo depois, cm I960: o que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte." A teoria da literatura, no

    sentido de crtica da crtica, e a teoria literria, no sentido de

    formalismo, parecem se encontrar nesse conceito, que tambm

    r ttico e polmico. Os formalistas tentavam, graas a ele,

    tornar o estudo literrio autnomo sobretudo em relao

    ao historicismo e ao psicologismo vulgares aplicados litera

    tura atravs da definio da especificidade de seu objeto.

    I les se opunham abertamente definio de literatura como

    documento, ou sua definio atravs da funo de repre

    sentao (do real) ou de expresso (do autor) e acentuavam

    os aspectos da obra literria considerados especificamente

    literrios e distinguiam, assim, a linguagem literria da lin

    guagem no literria ou cotidiana. A linguagem literria

    motivada (e no arbitrria), autotlica (e no linear), auto-

    referencial (e no utilitria).

    Qual , entretanto, essa propriedade essa essncia que

    torna literrios certos textos? Os formalistas, segundo Viktor

    Chklovski, em LArt comme Procd [A Arte como Procedi

    mento] (1917), tomavam como critrio de literanedade a desfa-

    miliarizao, ou estranhamento (ostrannie): a literatura, ou

    a arte em geral, renova a sensibilidade lingstica dos leitores

    atravs de procedimentos que desarranjam as formas habi

    tuais e automticas da sua percepo. Jakobson explicar, em

    seguida, que o efeito de desfamiliarizao resulta do domnio

    de certos procedimentos (Jakobson, 1935) que, tomados do

    conjunto das invariveis formais ou traos lingsticos, carac

    terizam a literatura como experimentao dos possveis da

    linguagem, segundo expresso de Valry. Mas certos proce

    dimentos, ou o domnio de procedimentos, tornam-se tambm

    eles familiares: o formalismo desemboca (ver Captulo VI)

    numa histria da literariedade como renovao do estranha

    mento por meio da redistribuio dos procedimentos literrios.

    A essncia da literatura estaria, assim, fundamentada em

    invariantes formais passveis de anlise. O formalismo, apoiado

    pela lingstica e revigorado pelo estruturalismo, libera o

    estudo literrio dos pontos de vista estranhos condio

    verbal do texto. Quais so os invariantes que ele explora? Os

    41

  • gneros, os lipos, as figuras () pic v.upi >M< >
  • li - In, ui.r. iiili.i icdc iiic-i.il >i ic.i iii.ir. i ei i.kI.i , ,i (|ii;il relegaria

    .1 segundo plano ;is outras funes lingsticas. As formas lllci.lrlas nao sao diferentes das formas lingsticas, mas sua

    organizado as toma (pelo menos algumas delas) mais visveis.

    I nfim, a literariedade no questo de presena ou de au

    sncia, de tudo ou nada, mas de mais e de menos (mais tropos,

    por exemplo): a dosagem que produz o interesse do leitor.

    Infelizmente, mesmo esse critrio flexvel e moderado de

    literariedade refutvel. Mostrar contra-exemplos fcil. Por

    um lado, certos textos literrios no se afastam da linguagem

    cotidiana (como a escritura branca, ou behaviorista, a de

    I Icmingway, a de Camus). Sem dvida, possvel reintegr-los,

    acrescentando que a ausncia de marca , ela mesma, uma

    marca, que o cmulo da desfamiliarizao a familiaridade

    absoluta (ou o cmulo da obscuridade, a insignificncia), mas

    a definio de literariedade no sentido restrito, como traos

    especficos ou flexveis, como organizao especfica, no

    menos contraditria. Por outro lado, no somente os traos

    considerados mais literrios se encontram tambm na lingua

    gem no literria, mas ainda, s vezes, so nela mais visveis,

    mais densos que na linguagem literria, como o caso da

    publicidade. A publicidade seria ento o mximo da literatura,

    o que no , entretanto, satisfatrio. Seria, pois, toda a lite

    ratura o que a literariedade dos formalistas caracterizou, ou

    somente um certo tipo de literatura; a literatura por excelncia,

    de seu ponto de vista, isto , a poesia, e ainda no toda

    poesia, mas somente a poesia moderna, de vanguarda, obs

    cura, difcil, desfamiliarizante? A literariedade definiu o que se

    chamava outrora licena potica, no a literatura. A menos que

    Jakobson, quando descreveu a funo potica como nfase na

    mensagem, tenha pensado no somente na forma da mensagem,

    como de um modo geral compreendemos, mas tambm no seu

    contedo. O texto de Jakobson sobre A Dominante deixava

    bastante claro, entretanto, que a idia da desfamiliarizao

    era sria, que suas implicaes eram tambm ticas e polticas.

    Sem isso, a literariedade parece gratuita, decorativa, ldica.

    A literariedade, como toda definio de literatura, compro

    mete-se, na realidade, com uma preferncia extraliterria.

    Uma avaliao (um valor, uma norma) est inevitavelmente

    includa em toda definio de literatura e, conseqentemente,

    em todo estudo literrio. Os formalistas russos preferiam,

    43

  • evidentemente, os textos ;ios qual-. mellioi se adequava sua

    noo de literariedade, pois essa noo resultava de um

    raciocnio indutivo: eles estavam ligados vanguarda da

    poesia futurista. Uma definio de literatura sempre uma

    preferncia (um preconceito) erigido em universal (por exemplo,

    a desfamiliarizao). Mais tarde, o estruturalismo em geral,

    a potica e a narratologia, inspirados no formalismo, deviam

    valorizar do mesmo modo o desvio e a autoconscincia

    literria, em oposio conveno e ao realismo. A distino

    proposta por Barthes, em S/Z, entre o legvel (realista) e o

    escriptvel (desfamiliarizante), tambm abertamente valo-

    rativa, mas toda teoria repousa num sistema de preferncias,

    consciente ou no.

    Mesmo Genette devia finalmente reconhecer que a litera

    riedade, segundo a acepo de Jakobson, no recobria seno

    uma parte da literatura, seu regime constitutivo, no seu regime

    condicional, e, alm disso, do lado da literatura dita consti

    tutiva, somente a dico (a poesia), no a fico (narrativa

    ou dramtica). Da inferia, renunciando s pretenses do

    formalismo e do estruturalismo, que a literariedade, sendo

    um fato plural, exige uma teoria pluralista .13 literatura constitutiva ela prpria heterognea e justaposta poesia

    (em nome de um critrio relativo forma da expresso), fico

    (em nome de um critrio relativo forma do contedo) ,

    acrescenta-se ainda, desde o sculo XIX, o domnio vasto e

    impreciso da prosa no ficcional, condicionalmente literria

    (autobiografia, memrias, ensaios, histria, at o Cdigo

    Civil), anexada ou no literatura, ao sabor dos gostos indi

    viduais e das modas coletivas. O mais prudente, conclua

    Genette, , pois, aparente e provisoriamente, atribuir a cada

    um sua parte de verdade, isto , uma poro do campo lite

    rrio .14 Ora, esse provisrio tem tudo para durar, porque no h essncia da literatura, ela uma realidade complexa,

    heterognea, mutvel.

    LITERATURA LITERATURA

    Ao procurar um critrio de literariedade, camos numa aporia

    a que a filosofia da linguagem nos habituou. A definio de

    um termo como literatura no oferecer mais que o conjunto

    44

  • (I r. i iii 1111-.1.1 n< 1.1 riu
  • entre a norma e desvio, on da loima e do contedo, ou

    seja, ainda dicotomias (|uc visam a destruir (desacreditar,

    eliminar) mais o adversrio do que os conceitos. As variaes

    estilsticas no so descritveis seno como diferenas de

    significao: sua pertinncia lingstica, no propriamente

    literria. Nenhuma diferena de natureza entre um slogan publi

    citrio e um soneto de Shakespeare, a no ser a complexidade.

    Retenhamos disso tudo o seguinte: a literatura uma inevi

    tvel petio de princpio. Literatura literatura, aquilo que

    as autoridades (os professores, os editores) incluem na litera

    tura. Seus limites, s vezes se alteram, lentamente, modera

    damente (ver Captulo VII sobre o valor), mas impossvel

    passar de sua extenso sua compreenso, do cnone

    essncia. No digamos, entretanto, que no progredimos,

    porque o prazer da caa, como lembrava Montaigne, no

    a captura, e o modelo de leitor, como vimos, o caador.

    46

  • 0 AUTOR

    > I >1 min in.iis controvertido dos estudos literrios o lugar |Hi i 11>< .ui autor. O debate to agitado, to veemente, que............lis penoso de ser abordado (ser tambm o captulo

    mi ii longo), Sob o nome de inteno em geral, o papel do

    nii'ii que nos interessa, a relao entre o texto e seu autor, a

    I"iir.abilidade do autor pelo sentido e pela significao

    I" ii lo Podemos partir de duas idias correntes, a antiga e

    i moderna, para op-las e elimin-las, ou conservar ambas,

    in iv .mienle procura de uma concluso aportica. A antiga

    iili i,i corrente identificava o sentido da obra inteno do

    mii ii, circulava habitualmente no tempo da filologia, do posi-

    11v r.mo, do historicismo. A idia corrente moderna (e ademais miillo nova) denuncia a pertinncia da inteno do autor para

    ili i' i minar ou descrever a significao da obra; o formalismo

    nr.'.o, os New Critics americanos, o estruturalismo francs . Ii \ iilgaram-na. Os New Critics falavam de intentional fallacy,

    "ii de iluso intencional, de erro intencional: o recurso

    uin .lo de inteno lhes parecia no apenas intil, mas prejudicial aos estudos literrios. O conflito se aplica ainda aos

    I i.i11idrios da explicao literria como procura da inteno lo autor (deve-se procurar no texto o que o autor quis dizer),

    los adeptos da interpretao literria como descrio das '.ignificaes da obra (deve-se procurar no texto o que ele

    ili/, independentemente das intenes de seu autor). Para

    '.capar dessa alternativa conflituosa e reconciliar os irmos

    Inimigos, uma terceira via, hoje muitas vezes privilegiada,

    .i ponta o leitor como critrio da significao literria: uma

    Ideia corrente contempornea a que voltarei no Captulo IV, mas

    lenlarei tanto quanto possvel deix-la de lado no momento.

    Uma introduo teoria da literatura pode limitar-se a

    explorar um pequeno nmero de noes em torno das quais a

  • teoria literria (os formall.sUts e m i l< Mrudenlcs) polemizou

    o autor foi, claramente, o bodr expiatrio principal das

    diversas novas crticas, no somente porque simbolizava o

    humanismo e o individualismo que a teoria literria queria

    eliminar dos estudos literrios, mas tambm porque sua proble

    mtica arrastava consigo todos os outros anticonceitos da

    teoria literria. Assim, a importncia atribuda s qualidades

    especiais do texto literrio (a literariedade) inversamente

    proporcional ao atribuda inteno do autor. Os proce

    dimentos que insistem nessas qualidades especiais conferem

    um papel contingente ao autor, como os formalistas russos e

    os New Critics americanos, que eliminaram o autor para asse

    gurar a independncia dos estudos literrios em relao

    histria e psicologia. Inversamente, para as abordagens que

    fazem do autor um ponto de referncia central, mesmo que

    variem o grau de conscincia intencional (de premeditao)

    que governa o texto, e a maneira de explicitar essa conscincia

    (alienada) individual para os freudianos, coletiva para os

    marxistas , o texto no mais que um veculo para chegar-se

    ao autor. Falar da inteno do autor e da controvrsia da

    qual nunca deixou de ser o objeto antecipar em muito as

    outras noes que sero examinadas em seguida.

    No vejo melhor iniciao a esse delicado debate do que

    apresentar alguns textos guias. Citarei trs. O prlogo bem

    conhecido de Gargntua, no qual Rabelais parece primeiro

    nos encorajar a procurar o sentido oculto (o mais alto sen

    tido, altior sensus) de seu livro, segundo a antiga doutrina

    da alegoria, depois zombar dos que acreditam nesse mtodo

    medieval que permitiu decifrar sentidos cristos em Homero,

    Virglio e Ovdio a menos que Rabelais remeta o leitor

    sua prpria responsabilidade por suas interpretaes, even

    tualmente subversivas, do livro que tem em mos. Nem sempre

    houve acordo sobre a inteno desse texto capital sobre a

    inteno, prova de que a questo sem sada. Em seguida,

    o Contre Sainte-Beuve [Contra Sainte-Beuve], de Proust, porque

    esse ttulo deu seu nome moderno ao problema da inteno

    na Frana: nele Proust defende a tese, contra Sainte-Beuve,

    que a biografia, o retrato literrio, no explica a obra, que

    o produto de um outro eu que no o eu social, de um eu

    profundo irredutvel a uma inteno consciente. Veremos, no

    Captulo IV, sobre o leitor, que as teses de Proust abalariam

    48

  • I .1 mm ui, t|iir li ii levado ;i niodei ai Mia doutrina da explicao ili irxio l.iilim, o aplogo de Uorges, "Pierre Mnard, Auteur

    ilti (.hilcliotte" iPierre Mnard, Autor do Quixote], uma dentre as

    1.11 >111.i-. tericas de IHcciones [Fices]: o mesmo texto foi es-i rito por dois autores distintos, h vrios sculos de distncia;

    lo, pois, dois textos diferentes, cujos sentidos podem mesmo

    ,c opor, pois os Contextos e as intenes no so as mesmas.

    A teoria que denunciava o lugar excessivo conferido ao

    autor nos estudos literrios tradicionais tinha uma ampla

    aprovao. Mas ao afirmar que o autor indiferente no que

    se refere significao do texto, a teoria no teria levado

    longe demais a lgica, e sacrificado a razo pelo prazer de

    uma bela anttese? E, sobretudo, no teria ela se enganado

    de alvo? Na realidade, interpretar um texto no sempre fazer

    conjeturas sobre uma inteno humana em ato?

    A TESE DA MORTE DO AUTOR

    Partamos de duas teses em presena. A tese intencionalista

    conhecida. A inteno do autor o critrio pedaggico ou

    acadmico tradicional para estabelecer-se o sentido literrio.

    Seu resgate , ou foi por muito tempo, o fim principal, ou

    mesmo exclusivo, da explicao de texto. Segundo o precon

    ceito corrente, o sentido de um texto o que o autor desse

    texto quis dizer. Um preconceito no necessariamente despro

    vido de verdade, mas a vantagem principal da identificao

    do sentido inteno a de resolver o problema da interpre

    tao literria: se sabemos o que o autor quis dizer, ou se

    podemos sab-lo fazendo um esforo e se no o sabemos

    porque no fizemos esforo suficiente , no preciso

    interpretar o texto. A explicao pela inteno torna, pois, a

    crtica literria intil (era o sonho da histria literria). Alm

    disso, a prpria teoria torna-se suprflua: se o sentido inten

    cional, objetivo, histrico, no h mais necessidade nem da

    crtica, nem tampouco da crtica da crtica para separar os

    crticos. Basta trabalhar mais um pouco e ter-se- a soluo.

    A inteno, e mais ainda o prprio autor, ponto de partida

    habitual da explicao literria desde o sculo XIX, consti

    turam o lugar por excelncia do conflito entre os antigos (a

    49

  • histria literria) e os modcimr. (.1 nova crtica) nos anos sessenta. Foucault pronunciou uma c
  • I ).i('lngli', ui.r. d m t J e 11 o da enunciai, ao que no preexiste a aia enum laao mas se produz com ela, aqui e agora. Donde

    segui*, ainda, que a escritura no pode representar, pintar

    absolutamente nada anterior sua enunciao, e que ela,

    tanto quanto a linguagem, no tm origem. Sem origem, o

    texto e um tecido de citaes: a noo de intertextualidade

    '.e inlere, tambm ela, da morte do autor. Quanto explicao,

    ela desaparece com o autor, pois que no h sentido nico,

    original, no princpio, no fundo do texto. Enfim, ltimo elo

    do novo sistema que se deduz inteiramente da morte do autor:

    o leitor, e no o autor, o lugar onde a unidade do texto se

    produz, no seu destino, no na sua origem; mas esse leitor

    no mais pessoal que o autor recentemente demolido, e ele

    se identifica tambm a uma funo: ele esse algum que

    mantm reunidos, num nico campo, todos os traos de que

    constituda a escrita.5Como se v, tudo se mantm: o conjunto da teoria literria

    pode ligar-se premissa da morte do autor, como a qualquer

    outro de seus itens; mas a morte do autor o primeiro, porque

    ele mesmo se ope ao primeiro princpio da histria lite

    rria. Quanto a Barthes, ele lhe confere ao mesmo tempo

    uma tonalidade dogmtica: Sabemos agora que um texto..., e

    poltica: Agora no somos mais vtimas de.... Como previsto,

    a teoria coincide com uma crtica da ideologia: a escritura ou

    o texto libera uma atividade que poderamos chamar de

    contrateolgica, propriamente revolucionria, pois recusar

    deter o sentido , finalmente, recusar Deus e suas hipstases,

    a razo, a cincia, a lei.6 Estamos em 1968: a queda do autor, que assinala a passagem do estruturalismo sistemtico ao

    ps-estruturalismo desconstrutor, acompanha a rebelio anti-

    autoritria da primavera. Com a finalidade de, e antes de exe

    cutar o autor, foi necessrio, no entanto, identific-lo ao indi

    vduo burgus, pessoa psicolgica, e assim reduzir a questo

    do autor da explicao do texto pela vida e pela biografia,

    restrio que a histria literria sugeria, sem dvida, mas que

    no recobre certamente todo o problema da inteno, e no

    o resolve em absoluto.

    Em O que um Autor?, o argumento de Foucault parece

    depender, tambm ele, da confrontao conjuntural entre a

    histria literria e o positivismo, donde lhe vieram crticas

    51

  • sobre a maneira como tratava os muni . prprios e os nomes

    de autor em Lcs Mots et les Cboses |As Palavras e as Coisasl,

    identificando ali formaes discursivas" bem mais vastas e

    vagas que a obra de fulano ou beltrano (Darwin, Marx, Freud).

    Assim, apoiando-se na literatura moderna, que teria visto

    pouco a pouco o desaparecimento, o enfraquecimento do autor,

    de Mallarm admitido que o volume no traz nenhum

    signatrio7 a Beckett e a Maurice Blanchot, ele define a funo autor como uma construo histrica e ideolgica,

    como a projeo, em termos mais ou menos psicologizantes,

    do tratamento que se d ao texto. certo que a morte do

    autor traz, como conseqncia, a polissemia do texto, a pro

    moo do leitor, e uma liberdade de comentrio at ento

    desconhecida, mas, por falta de uma verdadeira reflexo sobre

    a natureza das relaes de inteno e de interpretao, no

    do leitor como substituto do autor de que se estaria falando?

    H sempre um autor: se no Cervantes, Pierre Mnard.

    Para que a ps-teoria no seja um retorno pr-teoria,

    preciso tambm sair da especularidade da nova crtica e da

    histria literria que marcaram essa controvrsia, e permi

    tiram reduzir o autor a um princpio de causalidade e a um

    testa-cle-ferro, antes de elimin-lo. Liberado desse confronto

    mgico e um pouco ilusrio, parece mais difcil guardar o

    autor numa loja de accessrios. Do outro lado da inteno

    do autor h, na verdade, a inteno. Se possvel que o

    autor seja um personagem moderno, no sentido sociolgico,

    o problema cla inteno do autor no data do racionalismo,

    do empirismo e do capitalismo. Ele muito antigo, sempre

    esteve presente, e no facilmente solucionvel. No topos

    da morte do autor, confunde-se o autor biogrfico ou socio

    lgico, significando um lugar no cnone histrico, com o

    autor, no sentido hermenutico de sua inteno, ou intencio

    nalidade, como critrio da interpretao: a funo do autor

    de Foucault simboliza com perfeio essa reduo.

    Depois de termos lembrado como a retrica tratava a inten

    o, veremos que essa questo foi profundamente renovada

    pela fenomenologia e pela hermenutica. Se h uma tal conso

    nncia na crtica dos anos sessenta sobre o tema da morte do

    autor, ela no seria o resultado da transposio do problema

    hermenutico da inteno e do sentido, nos termos muito

    simplificados e mais facilmente negociveis, cla histria literria?

    52

  • m /7w v:- i.v r u r n o

    () debale sobre* a inteno do autor sobre o autor

    i'ii

  • ambigidades eram In ie ipn l.u fr . r u m o Indfelo.s de lima voluntas distinta do scriptum. () autor enquanto inteno e o

    autor enquanto estilo eram multas vezes confundidos, e uma

    distino jurdica voluntas e script um foi ocultada por

    uma distino estilstica sentido prprio e sentido figurado.

    Mas sua coincidncia na prtica no deve nos deixar ignorar

    que se trata de dois princpios diferentes em teoria.

    Santo Agostinho repetir essa diferena de tipo jurdico

    entre o que querem dizer as palavras que um autor utiliza

    para exprimir uma inteno, isto , a significao semntica,

    e o que o autor quer dizer utilizando essas palavras, isto , a

    inteno dianotica. Na distino entre o aspecto lingstico e

    o aspecto psicolgico da comunicao, sua preferncia recai,

    conforme todos os tratados de retrica da Antigidade, na

    inteno, privilegiando assim a voluntas de um autor, por

    oposio ao scriptum do texto. Em A Doutrina Crist (I, XIII,

    12) Agostinho aponta o erro interpretativo que consiste em

    preferir o scriptum voluntas, sendo sua relao anloga

    da alma {animus'), ou do esprito (spiritus), e do corpo do

    qual so prisioneiros. A deciso de fazer depender herme-

    neuticamente o sentido da inteno no , pois, em Santo

    Agostinho, seno um caso particular de uma tica subordi

    nando o corpo e a carne ao esprito ou alma (se o corpo

    cristo deve ser respeitado e amado, no por ele mesmo).

    Agostinho toma o partido da leitura espiritual do texto, contra

    a leitura carnal ou corporal, e identifica o corpo com a letra

    do texto, a leitura carnal com a da letra. Entretanto, assim

    como o corpo merece respeito, a letra do texto deve ser preser

    vada, no por si mesma, mas como ponto de partida da inter

    pretao espiritual.

    A distino entre a interpretao segundo a carne e a inter

    pretao segundo o esprito no prpria de Agostinho, que

    assumiu o binmio paulino da letra e do esprito a letra

    mata, mas o esprito vivifica , que de origem e de natureza

    no estilsticas, mas jurdicas, como na tradio retrica. So

    Paulo no faz seno substituir o par retrico grego rheton e

    dianoia, equivalente do par latino scriptum e voluntas, pelo

    par gramma e pneuma, ou letra e esprito, mais familiar aos

    judeus aos quais se dirige.9 Mas a distino entre a letra e o esprito, em So Paulo, ou ainda entre a interpretao corporal

    e a interpretao espiritual, em Santo Agostinho, que tendemos

    54

  • i ii iiH ici i c-iilli:.ik'.i, tl, c*m principio, .1 transpo.slo crista i|i 11111.1 111 . 1 In.ii' (IU( respeito :i retrica judiciria, a da .11. .ui c .1 da inteno. Sua finalidade, no cristianismo primitivo,I permanecer sempre igual, pois que se trata de justificar a l.el nova contra a Lei mosaica.

    A dificuldade est, entretanto, no fato de que Agostinho,

    como os outros retricos, no hesitou em aplicar o mtodo

    i NlIlstico para extrair a inteno da letra, procedimento que

    levou muitos de seus sucessores e comentadores, at ns, a

    ((infundir interpretao espiritual, de tipo jurdico, procurando

    II esprito sob a letra, e interpretao figurativa, de tipo estilstico, procurando o sentido figurado ao lado cio sentido

    prprio. Entretanto, mesmo se empiricamente o cruzamento

    da interpretao espiritual e da interpretao figurativa

    muitas vezes realizado em Agostinho, teoricamente, e contr

    rio a ns, ele no reduz um tipo de interpretao ao outro,

    no identifica nunca a interpretao espiritual com a inter-

    I iretao figurativa; no confunde a distino jurdica entre a

    letra e o esprito adaptao crist de scriptum e voluntas, ou

    ticlio e intentio com a distino estilstica entre o sentido

    literal (significatioprpria) e o sentido figurado {significatio

    translat). Somos ns que, utilizando a expresso sentido

    literal de maneira ambgua, ao mesmo tempo para designar o

    sentido corporal oposto ao sentido espiritual, e o sentido prprio

    oposto ao sentido figurado, confundimos uma distino jur

    dica (hermenutica) e uma distino estilstica (semntica).

    Agostinho, como Ccero, mantm pois uma firme separao

    entre a distino legal do esprito e da letra (ou carne), e a

    distino estilstica do sentido figurado e do sentido literal

    (ou prprio), mesmo que sua prpria prtica hermenutica

    misture com freqncia os dois princpios de interpretao.

    A tradio retrica situa as duas principais dificuldades da

    interpretao dos textos, por um lado, na distncia entre o

    texto e a inteno do autor, por outro, na ambigidade ou

    obscuridade da expresso, seja ela intencional ou no. Pode

    ramos ainda dizer que o problema da inteno psicolgica

    (letra versus esprito) refere-se mais particularmente primeira

    parte da retrica, a invetttio, enquanto que o problema da

    obscuridade semntica (sentido literal versus sentido figurado)

    refere-se mais particularmente terceira parte da retrica, a

    elocutio.

    55

  • ALKGOIUA I' l'l l,() 1.()(;IA

    Tendo perdido de vista as nuanas da antiga retrica,

    tendemos, na interpretao das dificuldades dos textos, a reduzir

    o problema da inteno ao do estilo. Ora, essa confuso no

    o que chamamos tradicionalmente de alegoria? A interpre

    tao alegrica procura compreender a inteno oculta de um

    texto pelo deciframento de suas figuras. Os tratados de ret

    rica, de Ccero a Quintiliano, no sabiam nunca onde colocar

    a alegoria. Ao mesmo tempo figura de pensamento e tropo,

    mas tropo em muitas palavras (metfora prolongada segundo

    a definio habitual), ela equvoca, como se flutuasse entre

    a primeira parte da retrica, a inventio, remetendo a uma

    questo de inteno, e a terceira parte, a elocutio, remetendo

    a um problema de estilo. A alegoria, por intermdio da qual

    toda a Idade Mdia pensou a questo cla inteno, repousa,

    na realidade, na superposio de dois pares (e de dois prin

    cpios de interpretao) teoricamente distintos, um jurdico e

    outro estilstico.

    A alegoria, no sentido hermenutico tradicional, um

    mtodo de interpretao dos textos, a maneira de continuar a

    explicar um texto, uma vez que est separado de seu contexto

    original e que a inteno do seu autor no mais reconhecvel,

    se que ela j o foi.10 Entre os gregos, a alegoria tinha por nome hyponoia, considerada como o sentido oculto ou subter

    rneo, percebido em Homero, a partir do sculo VI, para dar

    uma significao aceitvel quilo que se tornara estranho, e

    para desculpar o comportamento dos deuses, que parecia

    doravante escandaloso. A alegoria inventa um outro sentido,

    cosmolgico, psicomntico, aceitvel sob a letra do texto: ela

    sobrepe uma distino estilstica a uma distino jurdica.

    Trata-se de um modelo exegtico que serve para atualizar

    um texto do qual estamos distanciados pelo tempo ou pelos

    costumes (de qualquer forma, pela cultura). Ns nos reapro-

    priamos dele, emprestando-lhe um outro sentido, um sentido

    oculto, espiritual, figurativo, um sentido que nos convm

    atualmente. A norma da interpretao alegrica, que permite

    separar boas e ms interpretaes, no a inteno original,

    o decorum, a convenincia atual.

    A alegoria uma interpretao anacrnica do passado,

    uma leitura do antigo, segundo o modelo do novo, um ato

    56

  • lieiiiirnriiik'() tli .ipmpiia;)o .1 111111 k-i antiga fia suhsliluiI 11
  • responsabilidade, negar sua Inteno, Kabelais desfaz .1 confuso habitual e reencontra a antiga distino retrica entre

    o jurdico e o estilstico. Aqueles que decifrarem alegorias

    em Gargntua respondero por si mesmos. Nessa mesma

    direo, Montaigne evocar logo depois o leitor suficiente",

    que encontra nos Ensaios mais sentido do que o escritor quis

    ali deixar. Alis, relendo-se, ele acaba descobrindo sentidos

    que ele mesmo desconhecia.

    Mas se Rabelais e Montaigne, como os antigos retricos,

    entre eles Ccero e Agostinho, desejavam, ainda que cum grano

    salis, que a inteno fosse distinguida cla alegoria, esta ainda

    viveria belos dias, at o momento em que Spinoza, o pai da

    filologia, pedisse, no Tratado Teolgico-Poltico (1670) que

    a Bblia fosse lida como um documento histrico, isto , que

    o sentido do texto fosse determinado exclusivamente pela

    relao com o contexto de sua redao. A compreenso em

    termos de inteno, como j era o caso quando Agostinho

    alertava contra a interpretao sistemtica pela figura, funda

    mentalmente contextuai, ou histrica. A questo cla inteno

    e a do contexto se confundem, desde ento, em boa parte. A

    vitria sobre os modos de interpretao crist e medieval no

    sculo XVIII, com as Luzes, representa assim uma volta ao

    pragmatismo jurdico da retrica antiga. O alegorismo ana

    crnico parece inteiramente eliminado. Do ponto de vista

    racional, uma vez que Homero e Ovdio no eram cristos,

    seus textos no podiam ser legitimamente considerados como

    alegorias crists.11 A p