O Defunto

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O Defunto ra madrugada, eu tremia atrás do volante do carro. A cidade estava tomada de um silêncio sepulcral e coberta por uma nuvem negra que deixava o aspecto anda mais aterrorizante. O carro ia devagar, eu não conseguia dirigir nem me concentrar. Os postes eram como relâmpagos, iluminando em rajadas amareladas e assombradas o interior do carro e a rua. As árvores ao meu lado pareciam ter rostos e eram aterrorizantes. Não havia música, não havia risos, não havia vozes, apenas a solidão cantando sua cantilena de silêncio. Aquela noite havia sido longa, os meus dedos estavam sujos de terra e minha alma suja de medo. Eu tremia, eu chorava, eu temia. Vejo algo à frente ao lado da estrada, não posso identificar de imediato o que seja, fixo meus olhos ébrios naquela forma enquanto o carro vai se aproximando, temia até minha própria sombra naquele dia. A imagem vai se E

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Conto a respeito das loucuras que fazem os homens por amor.

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O Defunto

ra madrugada, eu tremia atrás do volante

do carro. A cidade estava tomada de um

silêncio sepulcral e coberta por uma

nuvem negra que deixava o aspecto anda mais

aterrorizante. O carro ia devagar, eu não

conseguia dirigir nem me concentrar. Os postes

eram como relâmpagos, iluminando em rajadas

amareladas e assombradas o interior do carro e a

rua. As árvores ao meu lado pareciam ter rostos e

eram aterrorizantes. Não havia música, não havia

risos, não havia vozes, apenas a solidão cantando

sua cantilena de silêncio. Aquela noite havia sido

longa, os meus dedos estavam sujos de terra e

minha alma suja de medo. Eu tremia, eu chorava,

eu temia. Vejo algo à frente ao lado da estrada,

não posso identificar de imediato o que seja, fixo

meus olhos ébrios naquela forma enquanto o

carro vai se aproximando, temia até minha

própria sombra naquele dia. A imagem vai se

E

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aproximando, parecia uma pessoa deitada de

forma estranha no chão. Não, não era deitada de

uma forma estranha, estava retorcida no chão.

Meu coração bate tão forte que sinto minha

cabeça balançando junto com as batidas. Aquela

noite parecia não ter fim; tudo o que eu queria

era acordar daquele pesadelo, que nada daquilo

tivesse sido realidade. Mas era. Tento acelerar

mais o carro para passar despercebido por seja lá

o que for aquilo. Tento acelerar o carro junto com

meu coração, mas o medo parece um fantasma

que nos aterroriza. Por mais que eu tenha

acelerado, por mais que eu quisesse fugir daquilo

e dos meus pavores, quando passei ao lado do

corpo tudo pareceu estar em câmera lenta.

Maldição, era eu mesmo defunto jogado na

estrada. Estava pálido, os olhos vermelhos e uma

cara de dor. Era eu mesmo falecido no asfalto! Eu

mesmo!

No início daquele dia eu havia tido um plano

que causaria todo aquele pavor. Queria beijar uma

última vez o rosto da minha bela esposa que

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havia falecido a sete dias. Sim, o que mais pode

querer um coração que sangra? Ela havia falecido

mas não o meu amor. Foram sete dias sem dormir

e sem comer, sete dias sem me levantar da minha

cama, chorando, clamando de volta o meu amor.

Eu amava aquela mulher e não poderia ter

aceitado sua morte. Ainda tínhamos tantos

sonhos para viver juntos, tantos amores, tantos

beijos! Eu não suportava mais a dor daquela

paixão e resolvi desenterrar minha bela esposa e

lhe dar ao menos um último beijo de amor. Na

ocasião de sua morte eu havia viajado a negócios

e não pude nem ao menos despedir-me, tem idéia

da dor que senti caro leitor? Eu não pude

despedir-me do amor da minha vida, a minha

amada, a mulher com quem eu havia casado a

poucos meses e ainda estava na flor da mocidade.

Não, eu não tinha outra escolha, ou lhe dava um

último beijo ou abria um buraco para mim ao lado

dela. Fui, destemido e sem nada a perder,

desenterrar minha dama para beijar-lhe a face.

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Era fim de tarde, eu estava amarrotado,

despenteado e sujo. Úmido por todo o pranto que

havia derramado, flácido por toda a dor que havia

me sufocado, quase desfalecido pela decepção

que eu havia tido. Peguei o carro daquele jeito

mesmo e coloquei-me a dirigir para o cemitério.

Era domingo a cidade era pacata e as ruas

estavam quase vazias. Cheguei ao cemitério e já

era final de tarde, os portões estavam fechados e

aquela melancolia fúnebre assolava aquele céu

que escurecia-se. Mas em meu coração batia

alguma forma de alívio, eu iria novamente beijar

os lábios da minha amada! Depois de um último

beijo eu poderia morrer realizado, depois de um

último beijo eu não temeria nada mais neste

mundo. Pulei o muro perto do local onde ela

estava enterrada, o túmulo era branco e simples,

todo ornamentado por rosas quase murchas das

pessoas que a amavam. Minha amada! Levanta-te

deste leito e vem me amar como sempre o

fizemos! Não adiantava, ela estava morta e eu

vivo. No epitáfio havia um verso simples que não

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era capaz de demonstrar tudo o que eu sinto:

"Aqui descansa um anjo de perfeição

A mais bela rosa dos dois mundos

A flor única do meu pobre coração;

No vale torvo e sombrio do submundo.

Espera-me donzela, me juntarei a ti".

Peguei uma pá que achei ali perto, na cova

de um defunto recente, e comecei o meu insano

ofício de desenterrar a minha princesa cadáver.

Apesar da fraqueza do meu corpo quase

desfalecido, usei-me da força do medo que eu

sentia para cavar aquele túmulo. Enquanto cavava

eu umedecia a terra com meu pranto, minha

amada morta, enterrada, sozinha naquele

cemitério, longe dos meus cuidados, longe dos

meus amores! Ah! Que dor infernal que me

consumia naquele instante. Cavei com

vigorosidade, como um pai que quer salvar o filho

de algo terrível, até encontrar o que eu

procurava, o caixão onde desancava o meu amor,

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o leito da minha dama defunta! Levantei-o com

alguma dificuldade, ajoelhei-me ante ele

chorando, levantei as mãos para o céu e gritei

com toda a força dos meus pulmões "eu te amo,

porque me abandonaste?"; uma fria congelava os

meus ossos e uma chuva fina começava a cair

mas não me detinha nem sufocava o meu

objetivo, agora só faltava abrir o caixão e amar os

lábios da minha querida. Assim o fiz, depois de

gritar levantei-me sujo, abatido e molhado e

comecei a abrir o caixão. Meu coração parecia

querer explodir, a noite já pintava o céu de escuro

e o silêncio deixava apenas a chuva entoar sua

canção.

Depois de abrir a última trava, abri a tampa

do caixão de uma vez. A minha amada fora

enterrada com um vestido branco e um véu, como

se fosse um vestido simples de noiva, ela havia se

casado agora com a morte e eu queria que ela

desancasse bonita como sempre fora. Tal foi a

minha surpresa quando abri a tampa do caixão e

tive uma visão horrorosa do inferno. Minha amada

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estava branca, esverdeada. A pele estava flácida,

a boca aberta e escura, com um aspecto de

podridão. As órbitas dos seus olhos haviam

estourado e haviam alguns vermes saindo. Oh!

Mundo injusto! Aquela que tanto amei, a flor mais

bela deste mundo, era apenas um defunto em

estado de decomposição! A chuva molhava-a

devagar tornando a visão ainda mais horripilante.

Não suportei, aquela visão havia se fixado na

minha mente e eu entrei em desespero. Fechei a

tampa do caixão num golpe, como se tivesse

aberto o túmulo de uma desconhecida. Aquela

não era a mulher pelo qual eu havia me

apaixonado! Corri do jeito que pude e entrei no

carro. Eu queria sumir, eu queria morrer, eu

queria deixar de sofrer. A minha princesa, tão

vaidosa, tão bela e tão perfeita, sendo alimento

de vermes!

Era madrugada, eu tremia atrás do volante

do carro. Eu chorava enquanto dirigia. O mundo

não tinha mais sentido, aquela dor era cruel

demais para ser suportada! Parecia uma chama

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que me queimava vivo, partindo de dentro. A

agonia do que senti não pode ser descrita aqui.

Andava sem rumo, sem saber o que fazer quando

vi ao longe um corpo desfalecido. A história vocês

já conhecem, era eu mesmo defunto jogado na

estrada. Estava pálido, os olhos vermelhos e uma

cara de dor. Vi-me defunto, retorcido no asfalto!

Acelerei o mais que pude mas as visões

horripilantes pareciam me perseguir, via-me

defunto no banco do passageiro, via minha

princesa cadáver olhar-me à frente do carro.

Fiquei louco, perdi o controle do carro, para cada

canto que eu olhava via-me defunto e via minha

princesa também defunta. Bati contra uma árvore

em alta velocidade, consegui abrir os olhos com

dificuldade e pude ver a árvore - que parecia ter

rosto e dentes - engolindo o carro. Morri pelo

amor que vivi, atormentado pela mesma visão

que sempre me inebriou: a minha princesa havia

se transformado em alimento de vermes e agora

eu também iria sê-lo. A vida assim mostrou-me

seu valor, o pavor mostrou-me sua força e o amor

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consumiu minhas entranhas até levar-me à

morte.