O Defunto
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O Defunto
ra madrugada, eu tremia atrás do volante
do carro. A cidade estava tomada de um
silêncio sepulcral e coberta por uma
nuvem negra que deixava o aspecto anda mais
aterrorizante. O carro ia devagar, eu não
conseguia dirigir nem me concentrar. Os postes
eram como relâmpagos, iluminando em rajadas
amareladas e assombradas o interior do carro e a
rua. As árvores ao meu lado pareciam ter rostos e
eram aterrorizantes. Não havia música, não havia
risos, não havia vozes, apenas a solidão cantando
sua cantilena de silêncio. Aquela noite havia sido
longa, os meus dedos estavam sujos de terra e
minha alma suja de medo. Eu tremia, eu chorava,
eu temia. Vejo algo à frente ao lado da estrada,
não posso identificar de imediato o que seja, fixo
meus olhos ébrios naquela forma enquanto o
carro vai se aproximando, temia até minha
própria sombra naquele dia. A imagem vai se
E
aproximando, parecia uma pessoa deitada de
forma estranha no chão. Não, não era deitada de
uma forma estranha, estava retorcida no chão.
Meu coração bate tão forte que sinto minha
cabeça balançando junto com as batidas. Aquela
noite parecia não ter fim; tudo o que eu queria
era acordar daquele pesadelo, que nada daquilo
tivesse sido realidade. Mas era. Tento acelerar
mais o carro para passar despercebido por seja lá
o que for aquilo. Tento acelerar o carro junto com
meu coração, mas o medo parece um fantasma
que nos aterroriza. Por mais que eu tenha
acelerado, por mais que eu quisesse fugir daquilo
e dos meus pavores, quando passei ao lado do
corpo tudo pareceu estar em câmera lenta.
Maldição, era eu mesmo defunto jogado na
estrada. Estava pálido, os olhos vermelhos e uma
cara de dor. Era eu mesmo falecido no asfalto! Eu
mesmo!
No início daquele dia eu havia tido um plano
que causaria todo aquele pavor. Queria beijar uma
última vez o rosto da minha bela esposa que
havia falecido a sete dias. Sim, o que mais pode
querer um coração que sangra? Ela havia falecido
mas não o meu amor. Foram sete dias sem dormir
e sem comer, sete dias sem me levantar da minha
cama, chorando, clamando de volta o meu amor.
Eu amava aquela mulher e não poderia ter
aceitado sua morte. Ainda tínhamos tantos
sonhos para viver juntos, tantos amores, tantos
beijos! Eu não suportava mais a dor daquela
paixão e resolvi desenterrar minha bela esposa e
lhe dar ao menos um último beijo de amor. Na
ocasião de sua morte eu havia viajado a negócios
e não pude nem ao menos despedir-me, tem idéia
da dor que senti caro leitor? Eu não pude
despedir-me do amor da minha vida, a minha
amada, a mulher com quem eu havia casado a
poucos meses e ainda estava na flor da mocidade.
Não, eu não tinha outra escolha, ou lhe dava um
último beijo ou abria um buraco para mim ao lado
dela. Fui, destemido e sem nada a perder,
desenterrar minha dama para beijar-lhe a face.
Era fim de tarde, eu estava amarrotado,
despenteado e sujo. Úmido por todo o pranto que
havia derramado, flácido por toda a dor que havia
me sufocado, quase desfalecido pela decepção
que eu havia tido. Peguei o carro daquele jeito
mesmo e coloquei-me a dirigir para o cemitério.
Era domingo a cidade era pacata e as ruas
estavam quase vazias. Cheguei ao cemitério e já
era final de tarde, os portões estavam fechados e
aquela melancolia fúnebre assolava aquele céu
que escurecia-se. Mas em meu coração batia
alguma forma de alívio, eu iria novamente beijar
os lábios da minha amada! Depois de um último
beijo eu poderia morrer realizado, depois de um
último beijo eu não temeria nada mais neste
mundo. Pulei o muro perto do local onde ela
estava enterrada, o túmulo era branco e simples,
todo ornamentado por rosas quase murchas das
pessoas que a amavam. Minha amada! Levanta-te
deste leito e vem me amar como sempre o
fizemos! Não adiantava, ela estava morta e eu
vivo. No epitáfio havia um verso simples que não
era capaz de demonstrar tudo o que eu sinto:
"Aqui descansa um anjo de perfeição
A mais bela rosa dos dois mundos
A flor única do meu pobre coração;
No vale torvo e sombrio do submundo.
Espera-me donzela, me juntarei a ti".
Peguei uma pá que achei ali perto, na cova
de um defunto recente, e comecei o meu insano
ofício de desenterrar a minha princesa cadáver.
Apesar da fraqueza do meu corpo quase
desfalecido, usei-me da força do medo que eu
sentia para cavar aquele túmulo. Enquanto cavava
eu umedecia a terra com meu pranto, minha
amada morta, enterrada, sozinha naquele
cemitério, longe dos meus cuidados, longe dos
meus amores! Ah! Que dor infernal que me
consumia naquele instante. Cavei com
vigorosidade, como um pai que quer salvar o filho
de algo terrível, até encontrar o que eu
procurava, o caixão onde desancava o meu amor,
o leito da minha dama defunta! Levantei-o com
alguma dificuldade, ajoelhei-me ante ele
chorando, levantei as mãos para o céu e gritei
com toda a força dos meus pulmões "eu te amo,
porque me abandonaste?"; uma fria congelava os
meus ossos e uma chuva fina começava a cair
mas não me detinha nem sufocava o meu
objetivo, agora só faltava abrir o caixão e amar os
lábios da minha querida. Assim o fiz, depois de
gritar levantei-me sujo, abatido e molhado e
comecei a abrir o caixão. Meu coração parecia
querer explodir, a noite já pintava o céu de escuro
e o silêncio deixava apenas a chuva entoar sua
canção.
Depois de abrir a última trava, abri a tampa
do caixão de uma vez. A minha amada fora
enterrada com um vestido branco e um véu, como
se fosse um vestido simples de noiva, ela havia se
casado agora com a morte e eu queria que ela
desancasse bonita como sempre fora. Tal foi a
minha surpresa quando abri a tampa do caixão e
tive uma visão horrorosa do inferno. Minha amada
estava branca, esverdeada. A pele estava flácida,
a boca aberta e escura, com um aspecto de
podridão. As órbitas dos seus olhos haviam
estourado e haviam alguns vermes saindo. Oh!
Mundo injusto! Aquela que tanto amei, a flor mais
bela deste mundo, era apenas um defunto em
estado de decomposição! A chuva molhava-a
devagar tornando a visão ainda mais horripilante.
Não suportei, aquela visão havia se fixado na
minha mente e eu entrei em desespero. Fechei a
tampa do caixão num golpe, como se tivesse
aberto o túmulo de uma desconhecida. Aquela
não era a mulher pelo qual eu havia me
apaixonado! Corri do jeito que pude e entrei no
carro. Eu queria sumir, eu queria morrer, eu
queria deixar de sofrer. A minha princesa, tão
vaidosa, tão bela e tão perfeita, sendo alimento
de vermes!
Era madrugada, eu tremia atrás do volante
do carro. Eu chorava enquanto dirigia. O mundo
não tinha mais sentido, aquela dor era cruel
demais para ser suportada! Parecia uma chama
que me queimava vivo, partindo de dentro. A
agonia do que senti não pode ser descrita aqui.
Andava sem rumo, sem saber o que fazer quando
vi ao longe um corpo desfalecido. A história vocês
já conhecem, era eu mesmo defunto jogado na
estrada. Estava pálido, os olhos vermelhos e uma
cara de dor. Vi-me defunto, retorcido no asfalto!
Acelerei o mais que pude mas as visões
horripilantes pareciam me perseguir, via-me
defunto no banco do passageiro, via minha
princesa cadáver olhar-me à frente do carro.
Fiquei louco, perdi o controle do carro, para cada
canto que eu olhava via-me defunto e via minha
princesa também defunta. Bati contra uma árvore
em alta velocidade, consegui abrir os olhos com
dificuldade e pude ver a árvore - que parecia ter
rosto e dentes - engolindo o carro. Morri pelo
amor que vivi, atormentado pela mesma visão
que sempre me inebriou: a minha princesa havia
se transformado em alimento de vermes e agora
eu também iria sê-lo. A vida assim mostrou-me
seu valor, o pavor mostrou-me sua força e o amor
consumiu minhas entranhas até levar-me à
morte.