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CHASQUI Boletim Cultural do Ministério de Relações Exteriores Ano 15, número 31 2017 A BOHEMIA DE TRUJILLO / O PRIMEIRO JORNAL DE LIMA / A ESCULTURA DE BACA ROSSI / O INDIGENISMO EXPRESSIONISTA DE MANUEL ALZAMORA / ELIAS DEL ÁGUILA: RETRATO AO NATURAL / A CONTRIBUIÇÃO DO PREÁ / 150 ANOS DE FOTOGRAFIA NA AMAZÔNIA PERUANA O CORREIO DO PERU Marinera de Manuel Alzamora . Óleo sobre tela. 67 × 78,5 cm, aprox. 1930.

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CHASQUIBoletim Cultural do Ministério de Relações ExterioresAno 15, número 31 2017

A BOHEMIA DE TRUJILLO / O PRIMEIRO JORNAL DE LIMA /A ESCULTURA DE BACA ROSSI / O INDIGENISMO

EXPRESSIONISTA DE MANUEL ALZAMORA / ELIAS DEL ÁGUILA:RETRATO AO NATURAL / A CONTRIBUIÇÃO DO PREÁ /

150 ANOS DE FOTOGRAFIA NA AMAZÔNIA PERUANA

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A BOHEMIA DE TRUJILLO:VANGUARDA DO NORTE

O Centro Cultural Inca Garcilaso do Ministério de Relações Exteriores presta homenagem ao grupo literário mais famoso do Peru, a Bohemia de Trujillo, e ao seu mais célebre representante: César Vallejo. A homenagem consta de uma série de documentos e imagens, selecionados por Carlos Fernández e Valentino Gianuzzi, que nos aproximam desse mundo e manifestam o alcance do grupo de jovens que reuniu várias figuras determinantes da vida cultural e

política do Peru.

César Vallejo fez da Bohemia de Trujillo o grupo literá-rio mais célebre do Peru.

Entretanto, sua grandeza literária ofuscou a obra inicial e as ativida-des dos outros membros do grupo, que além de poemas, produziram notáveis trabalhos jornalísticos, prosas poéticas, contos, novelas curtas, peças de teatro, ensaios e discursos políticos. Por sua vez, o fato da Bohemia ser extensamente considerada como o berço intelec-tual do Partido Aprista dificultou o estudo dos inícios do grupo como uma realidade literária in-dependente.

A amostra tenta oferecer uma visão nova da Bohemia através de documentos que revelam aspectos inéditos ou pouco conhecidos e destaca alguns eventos chaves de sua trajetória: suas leituras, algu-mas polêmicas em que participa-ram, sua relação com outras artes e outros detalhes significativos sobre o contexto cultural em que se desenvolveram. Finalmente, apre-senta questões ainda não resolvidas sobre a biografia intelectual de seus membros, de modo a estimular no-vas investigações de arquivo sobre os aspectos menos conhecidos da Bohemia.

As fotografias, livros e outras peças da amostra correspondem principalmente ao período compre-endido entre a aparição da revista Iris, em maio de 1914, e a publica-ção do jornal El Norte, em fevereiro de 1923. Isso porque, embora existam algumas lacunas, trata-se da etapa mais bem conhecida das atividades do grupo, bem como a de sua crescente atividade política.

Com a amostra, o Centro Cultural Inca Garcilaso do Minis-tério de Relações Exteriores presta homenagem a um dos grupos fundamentais da tradição literária peruana, prestes a completar cem anos desde o momento em que a Bohemia de Trujillo foi dada a conhecer em Lima por Juan Parra del Riego.

Trujillo e sua universidadeSegundo a lenda, o Colégio San Carlos y San Marcelo foi a institui-ção educativa em que a Bohemia foi gerada; entretanto, é mais acertado apontar a Universidade de Trujillo como o espaço em que o grupo foi definitivamente formalizado.

Embora nem todos fossem nascidos em Trujillo, a maioria dos membros da Bohemia eram do

Norte. Porém, todos eles, tirando Vallejo, formaram-se nas aulas de San Carlos y San Marcelo ou vi-

nham de outro prestigioso colégio, o San Juan. Muitos trabalhavam enquanto estudavam.

Apesar de serem muito críticos com a universidade e essa sua rebeldia contra a instituição ser um traço marcante do grupo, cabe destacar que, nas universidades de Trujillo, muitos dos boêmios chegaram a ter cargos diretivos e impulsaram energicamente a ex-tensão universitária, em particular a Universidade Popular.

JornalismoQuase todos os membros da Bohe-mia trabalharam na redação de alguma publicação periódica, e essa não foi apenas uma forma de aprendizado literário ou de ganha--pão; o acesso à imprensa garantiu também seu acesso à vida cultural de Trujillo e permitiu que sua obra fosse lida em outras cidades e meios do país.

Além de ser uma via de difusão da própria obra, o jornal foi um espaço de discussão que abrangia a política nacional e internacional, as notícias de sociedade e outras atividades de lazer e culturais dos

Antenor Orrego, aprox. 1918. Vallejo frente al Pacífico, aprox. 1920.

Valdelomar com outros integrantes da Bohemia nas ruínas de Chan Chan, maio de 1918. Arquivo Juan Espejo Asturriaga.

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universitários. A tarefa jornalística era sustentada pela bonança econô-mica de Trujillo, porque tanto La Industria como La Reforma tinham nascido como meios de avanço comercial e político das principais famílias da cidade.

Por outro lado, as revistas culturais deram para o grupo um maior prestígio e a ampliaram suas redes artísticas para uma escala nacional. Todavia, a difusão destas publicações foi bem mais restrita e seu impacto mais limitado que o dos jornais.

PoesiaA maioria dos integrantes da Bohe-mia praticou e exerceu publicamen-te a poesia. Todos eles, mesmo os prosadores, demonstraram um pro-fundo e sincero interesse por ela. Filhos do século XIX, pertenceram a uma geração de artistas que consi-derava a lírica como a mais elevada forma de expressão. Não é de se surpreender então que, através de breves comentários ou resenhas e em resposta aos ataques rivais, os boêmios se ocupassem da poesia nas páginas das publicações perió-dicas em que eram colaboradores. A poesia de Vallejo teve em Ante-nor Orrego um de seus primeiros e mais importantes defensores, enquanto José Eulogio Garrido defendia sua prosa. Em diversas publicações foi promovida a poesia de Alcides Spelucín, Eloy Espino-sa, Francisco Sandoval, Juan José Lora e outros —Óscar Imaña, Juan Espejo Asturrizaga e Felipe Alva—, que infelizmente não chegaram a compilar sua obra lírica em forma de livro durante sua vida.

Outras artesSe bem a palavra escrita foi o meio padrão de criação da Bohemia, o grupo teve contato próximo com cultores de outras artes; alguns deles, como Macedonio de la Torre, Camilo Blas ou Carlos Val-derrama, tornaram-se figuras de renome. Na linha do simbolismo francês, alguns escritos da Bohemia estabeleceram um diálogo com a música, a dança, o teatro e as artes plásticas. Além disso, essas artes dividiam o cenário com a literatu-ra em muitos eventos, enquanto espaços artísticos.

Por outro lado, o desenvolvi-mento arqueológico no início do século XX acrescentou a fascinação que os integrantes da Bohemia sen-tiam pelo mundo pré-colombiano.

Os líderes do grupo promove-ram a recuperação e valorização do patrimônio arqueológico da região e dedicaram a elas um número sig-nificativo de artigos jornalísticos.

MemóriaO último espaço destaca o fato de a história da Bohemia de Trujillo ser um processo inconcluso, como toda tarefa de recuperação do pas-sado, e pretende levar o espectador para uma reflexão sobre os limites da historiografia literária e sobre a necessidade de futuras pesquisas.

«No tempo em que o poeta começa a expressar seus primeiros ritmos, numa escura cidade da América, Trujillo, aldeia agrária de universitárias presunções, de vida sossegada e mansa como seus verdes e estáticos canaviais, nasce a acendrada fraternidade, que nunca declinaria, en-tre quem escreve e o mágico criador de Trilce. Era ele um humilde estudante da serra, com modestas aspirações a se fazer doutor, como tantos pobres índios engo-lidos impiedosamente pela Universidade. Lembro-me daquele dia, ainda vívido e florido no meu coração, em que o acaso trouxe às minhas mãos ‘Aldeana’, peque-no poema rural, de deleitoso ambiente rústico e camponês. Foi o ‘abre-te sésamo’ que franqueou a abismática riqueza do artista para mim. Minha admiração e meu amor se ajoelharam diante do índio maravilhoso. Começava a se forjar, na cordial bigorna e sob as marteladas da vida, Los heraldos negros.

Ao redor da mesa de um café ou restaurante, após um ansiosa busca quase sempre inútil nos nossos magros bolsos de estudantes para juntar o dinheiro com que pagaríamos o as passagens e o vinho, reuníamos José Eulogio Garrido, aristofanesco e bastante incisivo; Macedo-nio de la Torre, de múltiplas e superiores

faculdades artísticas, perpetuamente dis-traído e pueril; Alcides Spelucín, hostil e sério como um padre; César A. Vallejo, de enxuta, bronzeada e enérgica aparência, com seus ditados e feitos de inverossímil puerilidade; Juan Espejo, menino gague-jante e tímido ainda; Oscar Imaña, cheio de bondade cordial e extremamente suscetível à zombaria e às alfinetadas; Federico Esquerre, bonachão, manso, irônico, com a risada nos lábios; Eloy Espinosa, chamado ‘el Benjamín’ por nós, com sua desorbitada e barulhenta alegria de viver; Leoncio Muñoz, de generoso e férvido sentido admirativo; Víctor Raul Haya da Torre, quem já se demonstrava excepcionais faculdades oratórias; e dois ou três anos depois, Juan Sotero, de criou-la e aguda perspicácia irônica; Francisco Sandoval, dono de pávidos e enfeitiçados poderes mediúnicos; Alfonso Sánchez Urteaga, pintor de grande força, tão jovem que ainda parecia ter nos lábios a doçura do seio materno, e alguns outros garotos de fresco coração e acesa fantasia. Esse foi —e é— o lar espiritual do poeta.

Outro dia, a ágape fraternal costuma-va ser consumada com cabrito e chicha, diante da paisagem sedante de Mansiche, na humilde moradia de algum índio. Frescas moças de olhos ingênuos e de

formas elásticas traziam os pratos crioulos. Chamavam-se Huamanchumo, Piminchu-mo, Anhuaman, Ñique. Éramos servidos por autênticas princesas da mais clara e legítima estirpe chimu, descendentes di-retas dos poderosos e magníficos curacas de Chan Chan.

A praia de Huamán solitária e solene, de ondas vorazes e traidoras, também costumava ser o cenário destas líricas e férvidas reuniões juvenis. Lá recitávamos Darío, Nervo, Walt Whitman, Verlaine, Paul Fort, Samain, Maeterlinck e tantos outros que enchiam de aladas e melódicas palavras a sonoridade inarticulada do mar, que abria seus ‘inúmeros caminhos’ para nossa fantasia viajante.

Rondas noturnas, pensativas e de acesa cordialidade umas; barulhentas e alvoroçadas outras. Mais de uma vez a tropa juvenil perturbou o sono tranquilo da velha cidade provinciana. Frequente-mente éramos surpreendidos pelos ama-nheceres nessas práticas, que tinham um adocicado sabor romântico, apagando como de um assopro, a feérica fogueira dos nossos sonhos».

Em: César Vallejo, Trilce [1922]. Edição fac-similar publicada pela Academia Peruana de la Lengua. Lima, 2016.

DEPOIMENTO DE PARTEO filósofo Antenor Orrego lembra as aventuras juvenis do poeta César Vallejo e os boêmios de Trujillo,

em seu visionário prólogo de Trilce (1922).

Uma das mais memoráveis noites artísticas do grupo aconteceu em 10 de junho de 1917. Aqui vemos Antenor Orrego, José Agustín Haya de la Torre, César Vallejo, Macedonio da Torre, entre outros.

Banquete oferecido por Cecilia Cox aos estudantes da Universidade Menor de La Libertad, em 4 de abril de 1915, no balneário de Buenos Aires, Trujillo.

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O PRIMEIRO JORNAL DE LIMARESGATE BIBLIOGRÁFICO

Elio Vélez Marquina*É editado o primeiro de dois volumes do jornal mais antigo das Américas, impresso no início do século XVIII em

Lima, então capital do Vice-reino do Peru .1

O estudo introdutório do livro do qual tratamos a seguir começa dizendo:

«Na Cidade dos Réis, na gráfica real de Joseph de Contreras y Al-varado, foi impressa entre 1700 e 1711 uma série de jornais, notícias e relações de cunho oficial que posteriormente foi compilada num só volume, para o qual foi criada uma portada factícia, que não possui data, sob o título “Diários e memórias dos sucessos principais e notícias mais destacadas na cidade de Lima, corte do Peru [...], recebidas por cartas e gazetas da Europa... O volume contém entre 112 e 116 im-pressos independentes ordenados cronologicamente»2. Esse volume da conta da vida em Lima e de sua vinculação com o orbe hispânico. O jornal muito provavelmente é o primeiro das Américas e, depen-dendo do estudo ainda a se fazer dele, a história do jornalismo neste continente poderia ser reescrita.

O primeiro volume correspon-de ao período entre 1700 e 1705, da coleção conservada na New York Public Library. Já o segundo, a ser lançado em 2018, abrangerá até o ano de 1711.

O material incluído, que per-maneceu praticamente desconhe-cido para os pesquisadores, oferece um acervo de informação sobre os acontecimentos em Lima no início do século XVIII e sobre aqueles que sacudiram a Europa nessa mesma época.

O desgaste das máquinas da gráfica de Contreras fez com que a leitura dos exemplares do jornal conservados não seja clara. Portan-to, a edição preparada por Firbas y Rodríguez Garrido representa uma verdadeira contribuição que não só fixa o texto, mas também faz anotações para o contextualizar. Além disso, a edição está disponí-vel através de acesso livre à página web do Proyecto Estudios Indianos, de forma que a informação poderá ser consultada por historiadores, economistas, linguistas e outros pesquisadores interessados na América do período colonial.

O império peruano da informação no Diário de LimaNa segunda metade do século XVII, Lima era não apenas a capital do Vi-ce-reino do Peru, sede dos palácios do vice-rei e do arcebispado, mas o centro geopolítico mais importante do domínio hispânico na América

do Sul. Agora sabemos que era de Lima de onde saíam, além dos car-regamentos dos barcos ancorados em seus portos, as notícias da vida política, eclesiástica, econômica e cultural, da mesma forma que acontecia com as notícias das prin-cipais Cortes europeias. Isto é, a base do poder, ou seja, do império do Vice-reino do Peru, ia além do comércio e a distribuição de bens. Ele era sustentado, sobre tudo, pela manipulação da informação e a capacidade de fazer com que ela chegasse impressa aos recantos mais afastados de seu centro.

As crônicas da cidade, suas festas religiosas e comemorações imperiais, seus tremores e altera-ções naturais, a distribuição de ofícios ou a execução da justiça, a circulação de naus nas costas americanas, tudo isso é entreteci-do no papel com a tensão política e as batalhas europeias durante a Guerra de Sucessão espanhola.

Diante da guerra europeia, a imprensa de Lima desempenhou um papel político fundamental para consolidar no continente americano a lealdade à dinastia borbónica; mas além dessa eviden-te intervenção oficial na política, o jornal tem abundante informa-ção sobre a cultura e a economia americanas e revela a impressio-nante circulação de gente, papéis e mercadorias na extensa rede da monarquia hispânica.

Grandes centros urbanos ou produtivos como Panamá, Portobe-lo, Cartagena, Santa Fé, Quito, Guayaquil, Piura, Huancavelica, Potosí, Buenos Aires, Santiago e Valparaíso são algumas das cidades mencionadas no jornal diário devido à sua dependência da cidade-corte. De Lima chegavam as notícias sobre as alianças matri-moniais da nobreza, a relação de suas festas imperiais, as nomeações e cátedras da Real Universidade de San Marcos, bem como copiosa in-formação sobre as ordens religiosas e suas igrejas que justificaram o apelido de “santa” para a capital o vice-reino. Agora se conhecem detalhes sobre a reconstrução da ci-dade depois do terremoto de 1687.

Sobre os editoresPaul Firbas é professor associado no Departamento de Línguas e Literatura Hispânica na Universi-dade de Stony Brook. Ele editou o poema Armas antárticas (2006), de

Agora sabemos que era de Lima de onde saíam, além dos carregamentos dos barcos ancorados em seus portos,

as notícias da vida política, eclesiástica, econômica e cultural, da mesma forma

que acontecia com as notícias das principais Cortes europeias. Isto é, a base

do poder, ou seja, do império do Vice-reino do Peru, ia além do comércio e a

distribuição de bens. Ele era sustentado, sobre tudo, pela manipulação da

informação e a capacidade de fazer com que ela chegasse impressa aos recantos

mais afastados de seu centro.

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19 de fevereiro de 1701Mandaram avisar da vila de Guancavelica do estado de seu governador, senhor dom Matias de Lagunes, ouvidor desta Real Audiência, doente de gravidade e sem esperança de vida. Ontem à noite perto das nove foi sentido um forte tremor, e depois, às duas da manhã, começou um forte temporal que alarmou muitos e os fez sair das camas. São trombas d´agua que desabaram da serra. O rio de Lima veio mais caudaloso e crescido que em outros anos; levou os pontos de abastecimento para regar os vales de Surco, Ma-ranga e o do Molino da Alameda.

20 de maio de 1701Chegou notícia da perda da fragata chamada San Jorge, do capitão Juan de Vechis, que vindo de Coquimbo para o porto de Arica, recolheu al-guns passageiros e porção de prata, e virou para o porto de Pisco, onde varou e se fez pedaços. As pessoas se salvaram por milagre, perdeu-se a barca em Aguata; a prata e porção de cobre foi retirada; perdeu-se o vaso e o trigo que trazia.

25 de mayo de 1701Chegou um extraordinário de Potosí com cartas de Buenos Aires avisando da morte do rei N.S. de dom Carlos II, que está em glória, dada a notícia pelo governador da nova colônia de Sacramento, que é de portugueses de San Gabriel. Essa noite (véspera do dia Corpus), que costuma ser de muita alegria e assistência na praça maior pela queima de fogos de artifício, de vá-ria invenção e engenho, foi escura e sem luzimento, vestida do negro véu dos corações, anoitecidos pela morte de seu rei e senhor; evitou-se a folia dos fogos, por julgar-se não serem tão do culto do Senhor; mas no dia seguinte saiu a procissão com a solenidade e o luzimento de sempre, enfeitadas preciosamente as ruas, entre várias danças e bone-cos gigantes e outras circunstâncias, que fazem festivo e jubiloso o dia; assistiu Sua Excelência, com os senhores da Real Audiência, tri-bunais e município da cidade, mas com o luto que exigia a recente dor pela morte do Rei nosso senhor, por não ter sido ainda celebradas suas honras fúnebres.

20 de fevereiro de 1702 Foi avistado um novo sinal no céu, que parecia ter deslocamento Leste-Oeste; sua cor mostrava-se de suave prata; sua forma e figura, embora vistas durante várias noi-tes pelos olhos, variam as avalia-ções; para alguns pareceu palma, e logo a admitiram como sendo prognóstico de boas novas; outros a descreveram como a lâmina de uma espada sem guarnição; mas nunca indicou sangue. Os astró-logos não fizeram avaliação, por não terem reconhecido estrela alguma em seus rastros. Queira Deus que se for cometa seja para bem; que as novidades no céu costumam ser línguas mudas que anunciam novidades estranhas na terra.

8 de abril de 1703Reconhecido Joseph de Con-treras y Alvarado, impressor real de Lima, por despacho de Sua Majestade, em que lhe dá título e privilégios e franquezas de impressor real, quis celebrar a honra colocando na porta de sua casa e escritório um escudo

das armas reais primorosamente esculpido, e levá-lo para a igreja de Santo Agustino, onde foi cantada uma missa solene pela saúde de Sua Majestade e de onde em companhia dos cavalei-ros da Ordem de Santiago, que assistiram por ser dia de regra, as trouxe para a colocar em sua casa, comemorando aquela noite com peças várias de fogos de artifício e murmulho de instru-mentos musicais à saúde e vida de Sua Majestade, e finalizando a função com tourada.

31 de dezembro de 1704Entrou e fundeou no porto de Callao o navio francês chamado San Carlos, que encostara em Pis-co, em que vieram dois padres da França da Companhia de Jesus, que seguem missão à China, para onde vão destinados por seu ge-neralíssimo e aviados por seu rei; foi dada permissão ao capitão para poder vender algumas bagatelas (como Sua Majestade mandou) para se apetrechar e continuar via-gem até a China sem lhes permitir outro comércio.

Notícias de Lima e do Império

Juan de Miramontes Zuázola, e o volume Épica y colonia: ensayos sobre el género épico en Iberoamérica (2008), e publicou numerosos artigos sobre a cultura colonial, especialmente da área andina. É diretor da linha de pesquisa sobre épica americana no Projeto Estudos Indianos (www.estudiosindianos.org).

José A. Rodríguez Garrido é professor principal do Depar-tamento de Humanidades na Pontifícia Universidade Católica do Peru. É coeditor dos volumes Edición y anotación de textos coloniales hispanoamericanos (Madri, 1999) e El teatro en la Hispanoamérica colonial (Madri, 2008), e autor do livro Carta Atenagórica de Sor Jua-na: textos inéditos de una polémica (México, 2004). É diretor da linha de pesquisa Filologia Indiana no Projeto Estudos Indianos.

Sobre o Projeto Estudos IndianosÉ um laboratório de ideias, codiri-gido pela Universidade do Pacífico e a Universidade de Navarra, para pesquisar, gerir e preservar o patri-mônio histórico e documental do barroco peruano e hispano-ameri-cano. Também é uma ferramenta eficaz para gerir de forma responsá-vel o patrimônio histórico e docu-mental, base do desenvolvimento cultural e social das diversas nações hispano-americanas. A importân-cia do documento é resgatada pelo estudo filológico, e dada a conheci-mento através das ferramentas das Humanidades digitais.

Após ter já dez livros impressos, foi publicado o primeiro volume

do Diario de noticias sobresalientes en Lima (que inclui Noticias de Euro-pa). Conta com sócios acadêmicos em 11 países (América e Europa) e até o momento mantém 12 li-nhas de pesquisa, que conjugam linhas clássicas de pesquisa com outras mais recentes como ciência

e tecnologia ou agroindústrias do vice-reino.

Desde sua criação, publicou dez volumes, incluído o Diario de noticias sobresalientes en Lima, cujas edições digitais estão disponíveis na página web. Entre este ano e o início de 2018 será publicada

uma segunda dezena de estudos e edições filológicas.

* Coordenador do Projeto Estudos Indianos.1 Diario de noticias sobresalientes en Lima y noti-

cias de Europa (1701-1711). Edição e pesquisa de Paul Firbas e José Antonio Rodríguez Garrido, Nova York, IDEA, 2017, coleção Estudios Indianos, número 10, 377 páginas.

2 Firbas e Rodríguez, p. 9.

Vista de Lima dos arredores da Praça de Touros. Gravura de Fernando Brambila, século XVIII.

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A MAGIA ESCULTÓRICADE MIGUEL BACA ROSSI

Guillermo Niño de Guzmán

Mostra antológica do escultor Miguel Baca Rossi no Centro Cultural Inca Garcilaso do Ministério de Relações Exteriores.

Miguel Baca Rossi faleceu prestes a completar seu centenário, comemora-

do em 2017. Aos 99 anos de idade, o artista de Lambayeque partiu com a mesma discrição com que empreendeu seu duro trabalho de escultor, dedicado em grande parte a honrar a memória de per-sonagens ilustres. Talvez seu nome não soe familiar entre as novas ge-rações, embora, paradoxalmente, possamos apreciar sua obra com maior frequência e constância que a de outros artistas. Isso se deve a um fato singular, o mesmo que o diferencia de seus colegas de ofício: sua trajetória está à vista de todos, nas ruas, edifícios e praças de Lima, bem como em outras cidades do país e do exterior. Baca Rossi op-tou pela escultura monumental e nessa linha, foi um dos nossos mais notáveis artistas.

Como acontece com a arquite-tura, a escultura monumental se insere na paisagem urbana e con-sequentemente é assimilada por nosso olhar cotidiano. Portanto, permite uma aproximação singular e extraordinária à obra: o especta-dor não precisa ir expressamente até um museu ou galeria para admi-rar uma peça e ter uma experiência estética. Bustos, estátuas, frisos ou relevos enfeitam os espaços públi-cos, o que explica por que frequen-temente cumprem uma função cívica, quando não religiosa. Daí a profusão de representações de próceres, heróis, líderes e figuras da cultura. Ao mesmo tempo em que se pretende realçar seu legado, procura-se enaltecer aqueles valores que contribuem à criação de uma identidade nacional. As esculturas presidem muitos dos lugares de reunião e recreio dos habitantes da cidade, que podem até reconhecer as personagens representadas, mas geralmente ignoram os nomes dos criadores das efígies.

No Peru, o desenvolvimento da escultura foi muito mais lento que o da pintura. Daí que a maioria de peças que enfeitam os monumen-tos que se construíram em Lima no século XIX fossem encarrega-

das a artistas europeus. No século seguinte, a situação mudou com a chegada dos espanhóis Manuel Piqueras Cotolí (responsável pelo

desenho da fachada da Escola Na-cional de Belas Artes) e Victorio Macho (autor do monumento a Miguel Grau), que procurou

refúgio entre nós após a derrota da República na guerra civil. Eles abriram o caminho para a escultura contemporânea que seria percor-rido por Baca Rossi, estudante de Belas Artes nos anos quarenta após um impulso falido de estudar Medicina na Universidade de San Marcos.

Certamente, seu talento plásti-co despontou desde menino. Nas-cido no porto de Pimentel, com certeza descobriu sua habilidade para modelar figuras no contato com a areia e o mar. Mais tarde praticou essa inclinação na oficina de fundição de seu pai, criando formas e volumes com gesso. Aos 18 anos, foi a Lima para estudar Medicina. Sem dúvida, suas in-quietações artísticas se mantiveram intactas, mas nessa época pensar em seguir a profissão de escultor no Peru era uma quimera. Não existiam salas de exposição nem uma crítica especializada. Apesar disso, em pouco tempo Baca Rossi descobriu que não estava disposto a renunciar a sua vocação original e decidiu correr o risco. Abandonou San Marcos e se matriculou na Escola Nacional de Belas Artes, onde se formou em 1943.

Daí para frente, alternou o exer-cício de sua arte com a docência.

Miguel Baca Rossi (1917-2016).

El encierro. Fibra de vidro. 23 × 48 × 43 cm. 1975.

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Ensinou no Colégio San Carlos e, mais tarde, na Universidade Nacional de Engenharia e na Uni-versidade Católica. Também mi-nistrou aulas em Belas Artes, onde chegou a ser diretor entre 1983 e 1985. No início da década de cin-quenta, seu entusiasmo inicial pela anatomia topográfica foi propício para fabricar modelos de órgãos e partes do corpo humano, feitos

com plástico —material inovador na época—, que seriam empregados com fins pedagógicos em colégios e universidades do Peru, Colômbia e Venezuela. Enquanto isso, ele se preocupava por apurar seu tra-

balho escultórico. Diante da falta de galerias, ele arranjou mercado ao executar duas obras em grande escala em Chiclayo. A primeira foi um mausoléu de granito para o co-ronel José Leonardo Ortiz (1944), de 5 metros de altura. A segunda foi um monumento de granito à Virgem Imaculada (1946), de 4,5 metros de altura, que fabricou para doar à catedral dessa cidade.

Baca Rossi se dedicou a ex-plorar duas linhas criativas com ótimos resultados. A mais notável é a vertente monumental da qual fizemos menção, que lhe deu boa reputação profissional. A ela

correspondem obras como a es-tátua de César Vallejo, erigida na praça do teatro Segura, outra em homenagem a José Carlos Mariá-tegui, que se encontra em frente ao Lawn Tennis, o monumento ao libertador Simón Bolívar, no local da Comunidade Andina, e o monumento a Santa Rosa de Lima, no cemitério da Polícia Nacional em Chorrillos.

A outra vertente é constituída por esculturas menores em tama-nho, mas não em importância. Baca Rossi foi um artista muito requisitado para realizar obras destinadas a espaços públicos, o que implicava adotar certos parâmetros formais e se adequar às exigências urbanísticas. Entre-tanto, enquanto realizava esses projetos por encomenda, empe-nhava-se em cultivar uma parcela mais íntima, em que podia deixar que a magia que de suas mãos fizesse aquilo que tinha vontade. Nesse sentido, poderíamos dizer que Baca Rossi era um escultor versátil, destro no uso do granito, mármore ou o bronze, capaz de esculpir bustos e até peças mais reduzidas com uma sutileza e sensibilidade inegáveis (assim por exemplo suas destacadas compo-sições de meninos e meninas, entre as quais está a cena titulada «Primeiro amor»). Seu interesse figurativo também se estendeu aos animais, como demonstram

seu monumento a Santorín, o puro-sangue campeão, e peças de menor dimensão que representam cavalos de passo, burros ou touros (passagens de touradas como o ex-cepcional conjunto denominado El encierro).

O escultor foi, antes de mais nada, um retratista virtuoso, que impôs a suas criações um olhar expressionista. Dessa forma, sem deixar de ser fiel a seus mode-los, permitiu-se certas liberdades acentuando determinados traços, pois sabia que o desafio último se encontrava além da suficiência técnica. Tratava-se de expressar o carácter, a vibração de um tem-peramento. Por isso, estampou em suas personagens uma força que não dependia da exatidão na reprodução das feições, mas da intuição e profundidade do artista para captar o mistério e a razão da existência. Essa atitude destaca em suas interpretações escultóricas —afinal são isso— do Inca Garcilaso, Vallejo ou Dom Quixote, bem como em suas esplêndidas «notas do natural», entre elas La Tomasa, uma negra alta e forte que viu fugazmente no ponto de ônibus. Segundo revelou a sua família, ela tinha um semblante orgulhoso tão impactante que ele só conseguiu se acalmar quando «refez» a mulher com argila em seu ateliê. Isto é, quando deu um sopro de vida a sua criação.

Micaela Bastidas. Fibra de vidro. 72,3 × 59 × 42 cm. 1979.

La Tomasa. Gesso. 41 × 32 × 23,4 cm. 1981.

O escultor foi, antes de mais nada, um retratista virtuoso, que impôs a suas criações um olhar expressionista. Dessa forma, sem

deixar de ser fiel a seus modelos, permitiu-se certas liberdades acentuando determinados

traços, pois sabia que o desafio último se encontrava além da suficiência técnica.

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MANUEL ALZAMORA EO EXPRESSIONISMO E EXPRESSIONISMO INDIGENISTA

O Centro Cultural Inca Garcilaso do Ministério de Relações Exteriores exibe uma amostra antológica de Manuel Manuel Alzamora (1900-1975), um dos artistas mais originais e menos conhecidos da vanguarda indigenista.

O caráter da obra de Manuel Al-zamora reflete a dignidade que ele confere à atividade artística.

Muito além de representar e expressar os problemas sociais de sua época, seus quadros têm a virtude de manifestar que a realidade possui uma essência livre de toda especulação. A superfície de seus quadros jamais oferece uma sensação de fugacidade, o que é claramente inerente à natureza poética de suas imagens, sua

ligação com os mais diretos fatos da vida que o impactam e o comovem, conduzin-do até um ponto além da pura e simples categoria cultural a que costumam ser aplicadas se certas correntes. Para ele, a arte nasce da terra e das pessoas, da soli-dão e da violência, da dor e do desespero.

O artista se caracteriza por uma pintu-ra estilisticamente unitária e uma pupila ricamente dotada para a captação cromá-tica da paisagem andina com seu ar trans-parente de esplendor solar. O pintor não se deixou seduzir pelas soluções fáceis de uma pintura de costumes nem pelo pitoresco, mas abordou o tema social da

exploração do camponês, demostrando sempre um domínio do oficio caracteri-zado por jogos delicados de cinzas, azuis e pardos, como luminosidades andinas que fazem da pintura de Alzamora o re-presentante mais bem logrado da ima-gem social dos tipos e costumes da serra.

Nascido em 1900 na cidade de Sicua-ni, perto de Cuzco, Carlos Alzamora mi-grou com a família para Arequipa quando tinha apenas seis meses de vida. O artista morou a maior parte de sua infância e ju-ventude nessa cidade, e foi também para ali que voltou para se estabelecer na matu-ridade. Realizou estudos secundários no Colégio Mercedário, onde compartilhava a carteira com o poeta vanguardista Al-berto Hidalgo. Posteriormente ingressou à Universidade Nacional de San Agustín, onde estudou por dois anos na faculdade de Letras, que abandonou para se dedi-car a sua vocação artística e ao ativismo militante. Viajou para o Chile a fim de se dedicar à pintura, embora não se tenha dados sobre estudos formais em alguma academia ou escola de arte desse país. Po-deria se tratar, portanto, de um autêntico autodidata.

Em Arequipa, o pintor mede as ver-des distâncias, o ar transparente e tem a certeza que sob esse céu anilado, entre essas paredes de rocha vulcânica e árvo-res beirando os canais, encontrou o lugar que procurava. Pega o pincel e sente que a tela vazia vai se encher dessa terra de verdes, violetas e dourados que se esten-de diante de seus olhos, onde a luz e a cor se fundem para ir gerando divisas, pare-des, trilhas, árvores, um mundo idílico.

Em 1971, Manuel Alzamora, o com-bativo artista, deixou os pincéis e as co-res. Com o organismo abatido por uma grave doença, faleceu em 24 de julho de 1975 dentro de casa, na rua Mercaderes 328. Tinha 74 anos de idade e uma abun-dante e valiosa obra artística, agora em mãos de seus herdeiros.

Teatro callejero. Óleo sobre tela. Aprox. 1930.La feria. Óleo sobre tela. Aprox. 1932.

Autorretrato.

CHASQUI 9

MANUEL ALZAMORA EO EXPRESSIONISMO E EXPRESSIONISMO INDIGENISTA

O Centro Cultural Inca Garcilaso do Ministério de Relações Exteriores exibe uma amostra antológica de Manuel Manuel Alzamora (1900-1975), um dos artistas mais originais e menos conhecidos da vanguarda indigenista.

Esquerda. Mercado de Sicuani. Óleo sobre tela. Aprox. 1930.

El bautizo. Óleo sobre tela. 91 × 64,5 cm. 1930.

Venta de pescado. Óleo sobre tela. 36,5 × 44 cm, aprox. 1930.

Amanecer lacustre. Óleo sobre tela. 49 × 40 cm, aprox. 1930.

El castillo, Cayma. Óleo sobre tela. 49 × 59 cm, aprox. 1928.

CHASQUI 10

ELÍAS DEL ÁGUILA: O RETRATO AO NATURAL

Carlo Trivelli*Uma vasta exposição em Lima permite apreciar a obra de um dos mais destacados fotógrafos peruanos

do início do século XX.

De 20 de abril a 4 de junho de 2017, foi apresentada a exposição «Redescobrindo

Elias del Águila no Centro da Imagem. Retrato fotográfico e classe média em Lima depois de 1900», na galeria Germán Krüger Espantoso do Instituto Cultural Peruano Norteamericano.

Composta por cerca de 300 imagens —juntado cópias de época e impressões contemporâneas—, a amostra foi a primeira aproximação contemporânea ao trabalho de um fotógrafo até hoje praticamente desconhecido. Uma breve entrada no anexo documental do catálogo de La recuperación de la memoria. 1842-1942, el primer siglo de la fotografía en el Perú (MALi, 2001) era tudo quanto se conhecia de Elias del Águila até alguns meses atrás. Porém, a equipe do Arquivo Histórico do Centro da Imagem, dirigido por Jorge Villacorta e Ce-cilia Salgado, descobriu que o vasto acervo de quase 24.000 negativos em placa de vidro que tinham sob custódia —fechado entre 1896 e 1934 aproximadamente— era de autoria deste esquecido fotógrafo nascido em Tarapoto no final do século XIX.

O lote de negativos —comprado em 2011 por Juan Mulder e arma-zenado desde então no Centro da Imagem— tinha sido atribuído durante muitos anos à etapa tardia do famoso estúdio Fotografía Cen-tral, fundado em Lima pelos irmãos franceses Aquiles e Eugenio Cour-ret em 1863. Esse estúdio foi sem dúvida o mais prestigioso de Lima, inclusive depois de ser vendido por Eugenio Courret antes de sua volta para a França no início do século XX, e de passar para as mãos de Alfons Dubreuil e mais tarde, do filho René. Em 1935, quando o negócio fechou as portas, Dubreuil indenizou seus operários repar-tindo entre eles mais de 150.000 placas de vidro, que constituíam o arquivo do estúdio. Desse total, uns 54.000 negativos permanecem desde o final da década de 1980 na Biblioteca Nacional do Peru, graças à iniciativa de seu então diretor Juan Mejía Baca. Do resto, não se sabia nada ao certo, e muitos achavam que o lote adquirido por Mulder devia corresponder à por-ção faltante desse acervo.

História de uma descobertaQuando Villacorta e Salgado começaram a estudar as placas —das quais, aproximadamente um milhar foi submetido em 2014 a um processo de conservação e

estabilização com fundos propor-cionados pelo Centro de Estudos Latino-americanos David Rockefel-ler da Universidade de Harvard—, não encontraram correspondências com as mantidas na Biblioteca Nacional: nem a numeração, nem as marcas do caixilho, nem os ce-nários, nem os adereços do acervo do estúdio. Nada correspondia com o encontrado nos negativos do Estúdio Courret. Em vez disso, em algumas fotografias do acervo, foi possível identificar o fotógrafo português Manuel Moral e a alguns membros de sua família.

Estabelecido no Peru desde 1883, Moral abrira um estúdio fotográfico no porto de Callao e mais tarde mudou o negócio para a rua das Mantas (hoje primeiro quarteirão de Jirón Callao), no centro de Lima. No início do século XX, o prestígio de seu nome e ofício permitiu que deixasse esse local e

se mudasse outro melhor e mais fastuoso, no antigo local do Café Americano, na rua dos Mercaderes (hoje quadra 4 de Jirón de la Uni-ón), bem em frente do famoso Estú-dio Courret. Moral publicaria um anúncio no jornal El Comercio em 4 de abril de 1903 em que explicava que aquele que até então tinha sido seu estúdio ficava desde esse dia «a cargo do senhor Elias del Águila, seu discípulo durante quinze anos». Como essa, outras pistas que apon-tavam Elias del Águila começaram a aparecer durante as pesquisas, até que finalmente foram encontradas provas conclusivas que permitiram determinar a autoria do acervo. Uma análise comparativa entre os negativos em estúdio e uma série de cópias da época com o carimbo de Elias del Águila —pertencentes à coleção de Herman Schwarz— permitiu identificar os mesmos cenários e adereços de em ambos

conjuntos e até encontrar algumas correspondências exatas entre posi-tivos assinados da época e negativos do acervo em estúdio. Não havia mais dúvida: as placas compradas por Juan Mulder eram o arquivo de Elias del Águila. Mas quem era esse fotógrafo?

O fotógrafo da classe médiaApenas uma referência bibliográ-fica dava pistas concretas sobre o trabalho de Elias del Águila: num artigo publicado na revista Varie-dades em 1914, o pintor, fotógrafo e crítico de arte Teófilo Castillo fazia uma rápida avaliação da produção fotográfica na capital e, após explicar que a época dourada do retrato, encarnada por Courret, Garreaud e Moral, havia chegado ao fim, anunciava esperançoso: «Ainda bem [que] parece se iniciar um despertar com Gáldos [sic] e, particularmente, del Águila, de

Sarita Ledgard. Aprox. 1927.

Lorenzo Lama. Aprox. 1904.

Óscar Fernández. Aprox. 1916.

CHASQUI 11

quem é justo elogiar algumas pro-duções recentes […] uma verdadeira novidade, alegria para as retinas algo fatigadas com a opacidade [sic] que vemos por aí…». Mas a pesar de ter encontrado esses elogios, con-tinuávamos a nos perguntar quem era efetivamente Elias del Águila e o que caracterizava a sua fotografia.

A publicidade da época deu uma interessante pista. Em várias páginas de anúncios de Ilustración Peruana de 1911, foi possível cons-tatar que, enquanto del Águila anunciava que em seu estúdio se fazia «todo trabalho bom e barato», Moral apontava para um público seleto dizendo: «Se você não faz questão do preço, faça seu retrato na Fotografía Moral». Mais ainda, em vários números da revista Figuri-tas de 1912 é possível ler: «Fotogra-fia E. del Águila e Cía. A melhor e mais barata das fotografias de segunda ordem». Certamente, o discípulo e seu mestre apontavam para segmentos diferentes do mer-cado de retratos na Lima de inícios do século XX.

Outra pista importante foram algumas das pessoas retratadas por del Águila: muitas eram destacados profissionais, como os arquitetos Ricardo Malachowski —que de-senhou o Palácio de Governo, a fachada do Palácio Arcebispal e o Clube Nacional, entre outros importantes edifícios de Lima— e Augusto Benavides Diez Canseco —conhecido por ter desenvolvido o estilo andino ou serrano, em parti-cular na urbanização Los Cóndores de Chaclacayo, e por ter sido prefei-to de Lima entre 1946 e 1947—; o agrônomo José Antonio de Lavalle, cujo amor aos cavalos de passo

inspiraria o vals «José Antonio» de Chabuca Granda; o menino Fer-nando Belaunde Terry, retratado por del Águila aos 3 e aos 11 anos, época em que provavelmente nem sonhava em ser duas vezes presiden-te do Peru; ou a jornalista e ativista de origem alemã Dora Mayer —que fundara junto com Pedro Zulen a Associação Pró Indígena em 1909—, entre outros. Essas pessoas ajudaram a delinear, pelo menos parcialmente, o perfil da freguesia de Elias del Águila, constituída pela classe média a ascendente integrada por profissionais, empresários e comerciantes —muitos deles imi-grantes estrangeiros—, bem como funcionários públicos da segunda metade da República Aristocrática (período que vai de 1895 a 1919) e do Oncenio de Leguía (1919-1930), época em que esse grupo social experimentou um considerável crescimento.

Juntando todos os indícios, a figura de Elias del Águila aparece como um profissional que cabe

designar como o retratista da emer-gente classe média limenha de iní-cios do século XX. Acrescentando a essa caracterização o importante número de placas do acervo cus-todiado no Centro da Imagem, estamos sem dúvida diante de um arquivo de inegável valor histórico.

Um novo estilo para uma nova classe socialSe bem as pesquisas ainda estão em fase inicial, já é possível estabelecer algumas características do trabalho fotográfico de Elias del Águila. A primeira delas é a delicada mani-pulação da luz, evidenciada por exemplo no retrato de noiva de Maria de Abril, em que o fotógrafo utiliza os meios com precisão para delinear com luz o perfil da modelo e ressaltar dessa forma sua beleza. Porém, a longo prazo seria mais importante para a fotografia de del Águila o talento do fotógrafo para lograr a naturalidade na pose de seus modelos. Isso fica patente pelo grande repertório de poses do

qual ele se valia para dispor seus clientes diante da câmera e, talvez principalmente, sua habilidade para o retrato infantil, aparente-mente uma de suas especialidades.

Em conjunto, a fotografia de del Águila poderia ser caracterizada pela cultura do retrato fotográfico de um modo que recusa a soleni-dade e profundidade —a diferença daquilo que a tradição tinha esta-belecido— e, em lugar disso, aposta pela criação de uma imagem casual e distendida para seus retratados. Isso é produto não apenas do pre-ciso manejo da linguagem corporal que del Águila dominava total-mente, mas do distanciamento da estética pictórica como referência estética para os retratos. Del Águi-la é, nesse sentido, cultor de uma linguagem propriamente fotográfica, em concordância com os tempos de modernização e progresso que vi-veu e que mudariam para sempre a imagem de Lima e seus habitantes.

* Editor, curador e jornalista.

Filhos de Eduardo Fano. Aprox. 1912.

María E. de Abril. Aprox. 1903.

Elías del Águila. Autorretrato, aprox. 1916.

Elias del Águila Pérez nasceu em Tarapoto entre julho e agosto de 1875, filho de Ignacio del Águila e Andrea Pérez. Foi discípulo, colaborador, amigo próximo de Manuel Moral e padrinho de uma de suas filhas, Rosa Amelia; por sua vez, o fotógrafo português foi testemunha do casamento civil de del Águila com Tomasa

Ana Maria Gaviño em 1901. Ao longo de sua vida, del Águila morou na rua Cotabamba 37, em Jirón Callao 152, na praça Dos de Mayo e em Jirón Bailones 148 de Breña. Teve três filhas: Exilda, Gloria e Mene. Colaborou com diversas revistas como Prisma (1906-1907), Ilustração Peruana (1910), Lulú (1915) e Figuritas,

entre outras, e suas fotografias ilustraram o livro de Centurión Herrera El Perú y las colonias extranjeras. Foi sócio fundador e presidente da Sociedade de Fotógrafos do Peru. Morreu em Lima em 27 de setembro de 1953. Seus restos descansam no Cemitério Presbítero Maestro, San Rosendo D 26.

PERFIL DO FOTÓGRAFO

CHASQUI 12

Ricardo Bedoya*

DESAFIOS E TAREFASDO CINEMA PERUANO

Aproximação à crescente produção cinematográfica no Peru.

Os números de 2016 são significativos. 47 longas--metragens peruanas fo-

ram exibidas em diversas regiões do Peru. Só 25 chegaram a ser projetadas nas cadeias de cinemas comerciais; 9 delas foram vistas por mais de 10.000 espectadores (Rojas, 2016).

Desde a estreia de ¡Asu mare! (2013), Tondero é a empresa pro-dutora que consegue convocar o maior número de espectadores nas salas públicas de cinema.

Em 2016, com títulos como Locos de amor, Guerrero e Siete se-millas, repete a fórmula de eficácia comprovada: a ficção é sustentada pelos repertórios de comédia ou do relato de êxito pessoal como gênero preferido dos espectadores; seus protagonistas são figuras me-diáticas e reconhecidas (rostos da tevê, um emblemático jogador de futebol) e o lançamento público é precedido por uma campanha de marketing que incorpora a partici-pação ativa de marcas comerciais. Dessa forma, é estabelecida uma di-nâmica singular: o filme se constrói como um pacote concertado entre produtores, empresas distribuido-ras, a «famosa estrela» da vez, e as marcas patrocinadoras.

Comparando a atividade fílmi-ca de Tondero em 2016 com a do resto de filmes peruanos estreantes, Rodrigo Chávez aponta: «A produ-tora levou 46,1% de espectadores (2,5 milhões de um total de 5,6 milhões) graças a suas quatro estreias do ano, três das quais se encontram no Top 5 de filmes com mais espectadores de 2016» (Chávez, 2017)1.

Os números permitem observar que uma apenas empresa concen-tra o interesse do público massivo, deixando para trás outros em-preendimentos, seja de produções autogeridas realizadas em Lima ou em outras regiões, seja de filmes promovidos com a subvenção de recursos estatais e fundos interna-cionais. Os dois títulos mais inte-ressantes e originais de 2016, Solos, de Joanna Lombardi (produzida por Tondero), e Videofilia (y outros síndromes virales), de Luis Daniel Molero, viram sua difusão entor-pecida pelas cadeias de cinema que as retiraram de cartaz apenas

alguns dias após ter começado a ser projetadas.

São justamente os filmes de produção frágil e perfil baixo os que encontram maiores dificul-dades para sua exibição pública, por quanto devem procurar for-mas alternativas de difusão. Esse é o caso do chamado «cinema regional». Um livro de publicação recente, Las miradas múltiples. El cine regional peruano, produto de uma pesquisa realizada na Uni-versidade de Lima por Emilio Bustamante e Jaime Luna Victo-ria, da conta do dinamismo da produção realizada fora da capital. Desde 1996 foram filmadas mais de 200 longas-metragens, dirigidas por uma centena de realizadores e produzidos em Ayacucho, Puno, Cajamarca, Iquitos, Huancavelica, entre outras regiões. Em 2016, só três filmes regionais chegaram às salas comerciais: Sebastián, de Carlos Ciurlizza, realizado em Chiclayo; Tras la oscuridad, de Miguel Vargas Rosas, feito em Huánuco; e Venganza justa, de Ronald A. Terrones, produzido e exibido em Cajamarca. Já através de canais de difusão alternativa, foi possível assistir a filmes de Arequipa, Cajamarca, Ayacucho, Junín, entre outros nacionais. Os multiplex só oferecem turnos de programação para os filmes que correspondem às expectativas do gosto massivo, ignorando os ou-tros. O título mais surpreendente e notável de 2017, Wiñaypacha, de Óscar Catacora, filmado em Puno e em língua aimará, espera para ser estreado. Tomara que consiga.

Paralelamente, cresce o volume da produção documental e de curtas-metragens. São filmes feitos por gente mais jovem. Eles esperam passo para a realização de longas--metragens. Nos concursos de pro-jetos convocados pelo Ministério de Cultura, é patente o aumento das expectativas: são cada vez mais os postulantes.

Mesmo com toda essa ativida-de, ainda não se podemos falar da existência de uma indústria cine-matográfica peruana. Nem sequer estão assentadas as bases. Cada empreendimento fílmico tem um perfil próprio e a legislação promo-cional data de épocas pré-digitais. Baseado num sistema de concursos de projetos e iniciativas, o regime legal vigente desde 1994 inviabi-liza a previsão de investimentos e estimação de riscos, cálculos fundamentais para qualquer ativi-dade econômica: os concursos, por natureza, dependem do acaso e im-pedem o investimento planificado.

Apesar dessas incertezas, os recursos que oferece o Ministério de Cultura por disposição legal são cruciais para os filmes que têm pro-postas estilísticas diferenciadas ou maiores ambições expressivas. Os filmes mais logrados dos primeiros meses de 2017 —[wi:k], de Rodrigo Moreno del Valle; La última tarde, de Joel Calero; e Rosa Chumbe, de Jonatan Relayze— receberam esses recursos para avançar em alguma etapa de sua produção. Mas isso não garantiu a chegada dos filmes às salas. Eles foram estreados após passar por muitos obstáculos nas cadeias de multiplex e só a de

Calero se manteve mais de duas semanas em cartaz graças a um excelente boca-a-boca.

Para muitos filmes nacionais, a concentração na exibição e a falta de visibilidade são os princi-pais empecilhos a ser resolvidos. Mas tem outros. Durante 2017 é perceptível uma declinação do número de espectadores para o cinema peruano: nenhuma estreia conseguiu convocar um milhão de espectadores. Sem dúvida, as águas parecem estar voltando ao nível enquanto vai se esvaecendo a ilu-são de replicar cada ano o sucesso de ¡Asu mare! e ¡Asu mare 2! (2015), que foram vistas por três milhões de espectadores. Esses fenômenos são de difícil recorrência.

Nos últimos meses tem sido debatido um novo projeto de lei de cinema. A mudança é indis-pensável e as novas políticas cine-matográficas devem ter foco em cinco aspectos centrais: estimular a produção de longas e curtas-metra-gens (essenciais para a formação e o domínio do ofício); canalizar uma percentagem fixa das subvenções públicas para os projetos dos mais jovens e de cineastas de diversas regiões; promover a pluralidade de assuntos, estilos e formas de representação cinematográficas; procurar a visibilidade dos filmes, garantindo sua exibição nas salas comerciais com todas as facilidades dadas aos filmes hollywoodianos; empreender um trabalho de for-mação de públicos e realizadores. Um projeto central a ser traçado: a presença do cinema peruano nas pla-taformas digitais que estão mudando as formas de consumir as imagens e os sons do cinema de hoje.

Refefências:Rojas, Laslo (2016). «Estas son las

47 películas que se estrenaron el 2016». Recuperado de www.cinencuentro.com/2016/12/28/estas-son-las-47-peliculas-perua-nas-que-se-estrenaron-el-2016.

Chávez, Rodrigo (2017). «Taquilla 2016 (I) – Los reyes del cine pe-ruano». Recuperado de https://cajadeskinner.blog/2017/06/09/taquilla-2016-i-los-reyes-del-cine-peruano.

* Crítico de cinema e docente da Universida-de de Lima.

1 Até setembro de 2017 estrearam 12 títulos. Não é possível determinar ainda o número dos que tiveram unicamente difusão alter-nativa.

La última tarde (2017), de Joel Calero.

CHASQUI 13

SONS DO PERU

HATUN CHARANGO,MESTIGEM SONORA

Abraham Padilla Benavides*

Simbolizar o som, fazer com que ganhe contornos próprios, transmutar a matéria para

expressar o mundo interior, é isso que acontece cada vez que o ser hu-mano inventa, modifica ou emprega um instrumento musical. Nessa caminhada ancestral desde explo-ração das sonoridades da pedra, o osso ou a madeira, nosso povo foi refinando, ao longo da sua história, suas habilidades e tecnologia para fabricar instrumentos que pudessem traduzir a complexidade e riqueza de nossa sociedade, diversa, mestiça e pluricultural.

Muitos instrumentos originários da nossa terra são ainda amplamen-te utilizados, como as antaras, tinyas (tambores), pinkullos (instrumentos de vento) e outros. A eles se junta-ram os que foram trazidos; primei-ro, com a conquista espanhola, e depois, com a incorporação dos povos africanos a nossa sociedade. Produto disso, em todo o território peruano, contamos com múltiplas variantes de instrumentos, de diferente morfologia e afinação, que junto com a preferência por timbres baixos e heterogêneos, pro-picia uma ideia de música peruana tradicional cheia de cores únicos e matizes expressivos particulares. Nesse sentido, os músicos peruanos transformaram a forma, as técnicas de execução e características sono-ras dos instrumentos trazidos da Europa para serem utilizados com parâmetros próprios da música local. As harpas, violinos, violões, tambores, etc., foram massivamente adaptados à subjetividade popular. É que os instrumentos são isso,

ferramentas pessoais e sociais de expressão própria.

Por isso, por exemplo, a música tradicional andina aproveita as ca-racterísticas do violino para incluir microtons em seus temas, algo es-sencial para sua linguagem musical. Além disso, existem diferentes tipos de harpas em diversas localidades do Peru, com diferente número, mate-riais e sistemas de cordas. O violão ayacuchano, embora seja basica-mente igual aos outros, é executado com técnicas próprias, segundo às necessidades expressivas da música

da região. Isso tudo é clara expressão da mestiçagem sonora peruana.

Descendente das violas de mão, alaúdes e violões, vários tipos de cha-rango, um pequeno «violãozinho» agudo americano, foram aparecendo e se estabelecendo na América.

Nos atuais territórios do Peru, Argentina, Bolívia, Chile e Equador, constatamos numerosas variedades. Esses charangos tiveram historica-mente diferentes características mor-fológicas e sonoras, com diferente número de cordas e afinações. Par-tindo dessa grande diversidade, os

charanguistas foram estabelecendo paulatinamente características cada vez mais padronizadas. No Peru, o charango ayacuchano típico parece um violão pequeno, de cinco cordas (uma delas dupla), com tampos pa-ralelos e braço fino. Usualmente se toca com com rasqueado, tremolos e melodias agudas, aportando brilho e textura à música. Geralmente é acompanhamento rítmico e har-mônico, com algumas intervenções melódicas, dentro de um conjunto.

A cultura musical peruana se encontra viva e em permanente transformação. Não chama a aten-ção, portanto, que na continuidade dessa busca, vão surgindo de quando em quando novas formas e usos para os instrumentos populares. O hatun charango (hatun significa ‘grande’ em quíchua, idioma originário peruano) é um instrumento muito parecido com o charango comum, mas de maiores proporções, com um braço mais largo e seis ou sete ordens de cordas, o que permite alcançar um registro mais grave e, portanto, mais amplo, que faz possível a interpreta-ção de novos repertórios e dar novas funções musicais ao instrumento, mais parecidas às do violão, mas com o timbre distintivo.

Diversos músicos e construtores de instrumentos deram contribui-ções no processo. Recentemente, o destacado charanguista peruano Federico Tarazona se dedicou à di-fusão do instrumento, realizando, também, importantes contribuições para modernizar seu desenho, junto com o luthier Fernando Luna.

* Musicólogo, compositor e diretor de orquestra.

OBRAS PARA FAGOTE DE COMPOSITORES PERUANOS.Toma Mihaylov e os Solistas de Sofia. 2017.

Toma Mihaylov, fagotista búlgaro residen-te no Peru faz mais de vinte anos, acabuo de editar um disco que inclui obras de compositores peruanos para fagote. O professor Mihaylov desenvolveu muitas atividades para promover o estudo e a composição de obras para esse instru-mento. Produto do esforço é um impe-cável disco gravado na Bulgária, com os excelentes e famosos músicos Solistas de Sofia dirigidos pelo importante diretor

Plamen Djouroff, interpretando obras de Alejandro Núñez Allauca, Armando Gue-vara Ochoa, Edgar Valcárcel, José Sosaya e Hugo Marchand. As obras incluídas no disco vão desde composições para due-tos com piano, trios com oboé e piano, quarteto de fagotes, até música para fago-te e orquestra de cordas. Todas as obras escolhidas têm raízes musicais peruanas reconhecíveis. A continuidade da estéti-ca musical peruana nessas formações de música acadêmica e sua projeção para o futuro são também parte deste infinito processo de mestiçagem sonora que expe-rimentamos todos os dias no Peru.

MÚSICA E CANTOS TRADICIONAIS DE CAÑARIS. Ministério de Cultura do Peru. 2015.

Como parte da coleção titulada Chapaq Ñam, nome da rede de caminhos incas que sulcam o território peruano, o Mi-nistério de Cultura do Peru editou uma publicação dedicada ao resgate das tra-dições musicais do povoado de Cañaris, localizado na serra do departamento de Lambayeque, nas alturas dos Andes. Os habitantes de Cañaris são em sua maioria falantes de uma variedade regional do quí-chua. Como em muitas comunidades an-tigas do Peru, eles mantêm tradições mu-sicais muito fortes e associadas a diversas

épocas e eventos sociais, que usualmente são acompanhadas de danças e festas. Em consequência da modernidade, algumas tradições musicais e sociais se transfor-mam, mudam ou se adaptam para sobre-viver no novo contexto. Por isso, uma das tarefas da pesquisa musicológica no Peru é consignar em documentos sonoros, grá-ficos e literários as tradições que, em dife-rentes momentos, vão conformando um novo corpus de identidade social. A pu-blicação que aqui resenhamos consta de dois discos compactos de áudio, um disco de vídeo digital e um livrinho com uma explicação detalhada do contexto históri-co, cultural e geográfico da comunidade

de Cañaris. Ela recolhe numa primeira parte temas musicais que formam parte da vida familiar e comunitária local, e numa segunda, os instrumentos tradicio-nais empregados. Todas as interpretações foram executadas por habitantes do lugar. O livrinho inclui também a transcrição a texto em quíchua de todos os temas e sua tradução ao espanhol.

O charanguista peruano Federico Tarazona.

CHASQUIBoletim Cultural

MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES

Direção Geral para Assuntos CulturaisJr. Ucayali 337, Lima 1, Peru

Telefone: (511) 204 263

E mail: [email protected]: www.rree.gob.pe/politicaexterior

Os artigos são responsabilidade de seus autores.Este boletim é distribuído gratuitamente pelas

missões do Peru no exterior.

Tradução:Angela Peltier Maldonado

Impressão:Tarea Asociación Gráfica Educativa

CHASQUI 14

A CONTRIBUIÇÃO DO PREÁTeresina Muñoz-Nájar*

Por milênios, o nobre roedor andino —também chamado cobaia, porquinho-da-índia ou guinea pig—, de carne magra e altamente protéica, tem alimentado os peruanos. É, também, fonte de sustento de centenas de famílias andinas e

frito, refogado ou com molho picante, é prato festivo e muito apreciado.

A carne do preá é mágica: tênue, branca, morna, sedosa, sutil e delicada, entranha um prodígio culinário; para arre-

matar, ela vem dentro de uma pele grossa, consistente e gelatinosa que oferece sensações adicionais. Essa pele, pouco prometedora e à primei-ra vista sem encanto algum, quando preparada revela todo seu esplendor à brasa, refogada ou simplesmente chactada —frita segundo o preparo tradicional nas cozinhas andinas—». A cita é do crítico gastronômico es-panhol Ignacio Medina, e inicia sua coluna «A magia do preá», publicada no jornal El País em 15 de janeiro de 2016. É que, como acontece com a quinoa —outro tesouro dos Andes— o preá vai conquistando corações e mercados dia após dia.

Sua história, como a da quinoa, começa há milhares de anos atrás. Hans Horkheimer, arqueólogo e pesquisador do passado peruano, aponte em seu livro pioneiro Ali-mentación y obtención de alimentos en el Perú prehispánico (Instituto Nacional de Cultura, 2004. Segunda edição), que o porquinho-da índia (Cavia porcellus;Cavia tschudi) é originário do Peru. «Seu nome em quíchua —escreve ele— é quwe ou akash, em aimará, wanko e em akaro (antigo idioma próximo do aimará, dos abo-rígenes dos arredores de Lima e das províncias de Yauyos e Huarochorí) é kiucho ou uywa». E continua: «Como os espanhóis não conheciam o roe-dor antes da conquista, o chamaram de rato ou porquinho de Índias, e mais frequentemente coelhinho de Índias. Foi essa a última denomina-ção que entrou no léxico espanhol, mas no Peru predomina o nome de cuy. O preá em estado silvestre foi domesticado aos milhares na serra, e alguns exemplares foram inclusive encontrados dentro das casas de gente comum em algumas regiões. Esse desalinho é ainda bastante fre-quente. Na região da costa, a criação foi menos massiva e dentre as muitas representações de animais nos obje-tos pré-hispânicos das terras baixas, o preá aparece pouco. Entretanto, há dele muitos restos nos túmulos e nos lixões antigos».

Horckheimer dirigiu a Missão Arqueológica Chancay na década de 1960 e achou no lugar um grande número de esqueletos de preás. «O mesmo aconteceu durante a restau-ração das ruínas de Puruchuco com Arturo Jiménez Borja, quem identi-ficou um pátio que certamente foi utilizado para criar esses roedores», diz. «Entre os milhares de vasos decorados estudados em Chiclín, em Lima —acrescenta o pesquisa-dor— não se encontra nenhum que inequivocamente represente preás. Mas isso sim acontece com as cerâ-micas chimu e mochica».

Por sua vez, os arqueólogos Guil-lermo Cock e Elena Goycochea, no

livro que reúne as conferências do seminário Historia de la cocina peru-ana, realizado entre 4 e 20 de abril de 2005 no Centro Cultural da Es-panha (compiladora Maritza Villavi-cencio, coedição do Centro Cultural da Espanha e da Universidade San Martín de Porres, 2007), apontam que num dos dois cemitérios incas de Puruchuco que escavaram entre 1999 e 2001, onde encontraram um fardo de cabeça falsa que depois se tornou famoso com o nome de «O Rei do Algodão», acharam como oferendas um saco com vagens de feijão preto, uma pele de preá, vasi-lhas de diferentes sedimentos e dois sacos de rede com sabugos de milho roxo. Cock e Goycochea estudaram as oferendas nos restos encontra-dos (através da análise dos tecidos conservados) e afirmam que em 5% dos contextos funerários, o preá constitui uma fonte de proteínas. «No que foi retirado da escavação em 2004 —afirmam os cientistas— o que varia sobre tudo é a proporção das proteínas de animais terrestres. Com o preá, ela passa de 5% para aproxi-madamente 25%». Nesse ponto é preciso indicar que o preá também foi importante oferenda na cultura mochica (na Plataforma Uhle da Huaca de la Luna, por exemplo).

Muitos especialistas afirmam, por outro lado, que a carne de preá foi mais importante na dieta dos antigos peruanos que a da lhama ou alpaca. No boletim nº 3 de Arqueo-logía y Antropología de la Universidad de San Marcos (2000), o arqueólogo Lidio M. Valdez menciona que em diversas escavações foram encontra-dos poucos ossos de preá por eles terem sido devorados por cachorros

ou terem se deteriorado ao longo do tempo. «A fim de verificar a represen-tatividade dos ossos de preá —explica ele—, uma cozinha abandonada no vale de Huanta, em Ayacucho, foi parcialmente escavada. Ali foram criados preás da forma tradicional por quarenta anos aproximadamente até o recinto ser abandonado no início da década de 1980 devido às ações de Sendero Luminoso e à mili-tarização da região. Os resultados in-dicam que é impossível comprovar os tipos de preá criados e consumidos nessas quatro décadas; foi recupera-do apenas um osso de preá, junto com outros de animais maiores». «Essa observação etnoarqueológica evidencia a necessidade de estudos experimentais para compreender melhor o significado do preá no antigo Peru e avaliar as coleções zooarqueológicas; só assim teremos melhores condições para ponderar o papel do preá em tempos antigos», conclui o especialista.

Também pergunta: «Por que foi domesticado entre 5000 e 3700 a.C.?». Segundo ele, devemos con-siderar que, com um mínimo de cuidado, o preá se multiplica com uma rapidez que poucos animais superam; eles começam a se repro-duzir a os três meses e seu período de gestação dura entre 63 e 74 dias; o número de filhotes varia geralmente entre três e quatro; imediatamente depois do parto, o preá fêmea entra no cio, e pode ficar prenha enquanto os recém nascidos ainda têm necessidade da proteção e do leite materno; desta forma, a fêmea adulta pode gerar cinco ninhadas por ano. Valdez finaliza: «Melhoran-do nossas técnicas de recuperação

das amostras arqueológicas (por exemplo, o emprego de peneiras milimétricas), poderemos avaliar melhor o papel do preá no antigo Peru, e enquanto isso não acontecer, toda observação será apenas uma simples especulação».

A conquista do preáUma das primeiras descrições que do preá é de José de Acosta em sua Historia natural y moral de las Indias. Ele aponta que os índios o conside-ravam «comida muito boa» e que em seus sacrifícios ofereciam preás «fre-quentíssimamente». Por sua parte, Garcilaso (1605) menciona o preá da seguinte forma: «Há coelhos caseiros e campestres, diferentes uns dos outros em cor e sabor. Chamam-no coy […]. Os índios, como gente pobre de carne, têm-no em quantidade e o comem em grandes festas». Mas é o padre Cobo quem pinta uma figura muito mais detalhada desse pequeno roedor, contando como ele era preparado: «O preá é o menor dos animais mansos e domésticos que tinham os naturais destas Índias e era criado dentro de suas casas, dentro dos aposentos, como ainda fazem nos dias de hoje. Comem os índios este bicho com o couro, ape-nas esfolado como se fosse leitão, e é para eles comida muito apreciada; costumam fazer dele inteiro um refogado com muito aji e, no lugar das vísceras, pedras do rio, chamados calapurca, que em língua aimará sig-nifica ‘pedras do ventre’, justamente por colocá-las dentro do ventre do preá no preparo desse prato, o qual os índios apreciam mais que outro qualquer dos delicados manjares que os espanhóis fazem».

O «chiri ucho», prato típico de Cusco elaborado com preá e outros ingredientes no Corpus Christi.

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Há também quem perde o sono tentando descobrir o porquê do animal ser chamado de guinea pig, como o doutor Fernando Cabieses em Cien siglos del pan: «A cobaia chegou ao Caribe como animal doméstico, levado do Peru pelos espanhóis, pouco tempo após a conquista. De lá foi levado para a Espanha como bicho de estimação. Nessa condição chegou logo à Holanda e à Ingla-terra, onde nunca foi aceito como alimento. Para chegar até a Inglater-ra, deve ter sido transportado pelo tráfico escravagista e ter feito escala em Guiné, razão pela qual recebeu o apelido de guinea pig».

Porém, afirmar que «nunca foi aceito como alimento» não parece muito exato. O próprio Cabieses con-ta que num livro de cozinha escrito em 1570 por Scappi, o cozinheiro do papa Pio V, há instruções para seu preparo e se diz que «não só em Roma mas em outras cidades da Itália era considerado um prato agradável».

Mesmo sem conseguir grande êxito culinário nos outros países europeus, ninguém pode contestar a certeira afirmação de Cabieses: «É incalculável o bem que este bi-chinho fez à humanidade, utilizado como ‘cobaia’ nas mais importantes experimentações da bacteriologia, farmacologia, toxicologia, infectolo-gia e genética». «A saúde da espécie humana —afirma o médico— deve isso tudo ao antigo habitante do Peru que domesticou o animal nos inícios de sua história».

Cabe destacar também o papel do roedor andino na medicina tra-dicional peruana. Passar o preá pelo

corpo e fazer uma limpa é um proce-dimento ancestral para diagnóstico e cura de doenças, bem como para absorver as más impressões (um susto, por exemplo) e as energias negativas dos pacientes.

O preá do século XXIO último Censo Nacional Agropecu-ario, realizado em 2012, revelou que no Peru há mais de 12 milhões de preás e que sua criação se concentra nas regiões de Cajamarca, Arequipa, Áncash, Cuzco, Junín e Ayacucho, enquanto na costa destacam Lima e Lambayeque, e na selva, Amazonas e Loreto.

Com o censo também foi possí-vel saber que a gestão tecnificada da

criação de preás permitiu gerar mi-cro e pequenas empresas e que elas foram crescendo nos últimos anos graças à disponibilidade de recursos forrageiros. Segundo o INEI, é na serra peruana «onde se concentra o maior número de produtores de preá, que têm nessa espécie sustento econômico e alimentar e cuja ativida-de contribui à segurança alimentar, ao empoderamento da mulher cam-ponesa e al surgimento empresarial de muitas famílias».

Não é à toa que a Universidade Nacional Agraria organizou entre 11 e 15 de outubro o Congresso Mundial do Preá, que teve entre seus palestrantes o engenheiro equatoriano Roberto Moncayo,

dono da maior fazenda de preá do mundo.

O preá e a gastronomiaA melhor forma de comer o preá é a tradicional. Frito, chactado —que costuma ser apresentado com cabeça e patas, mas não necessa-riamente—, refogado (picante) ou assado. Deve ser tenro para fritar ou assar, e jovem para refogar. Sempre deve repousar pelo menos por quatro horas. Aqui cabe men-cionar um prato emblemático da cozinha cusquenha: o «chiri ucho» (aji frio), contundente e servido principalmente na festa do Corpus Christi. Tem uma longa lista de componentes: galinha cozida, carne seca, panquecas de farinha de trigo, milho torrado, queijo, morcela, ochayuyo (algas), linguiça, cau cau (ovas de peixe), rocoto e, no lugar de honra, o saboroso preá assado. Mas como aponta Ignacio Medina, com cujas palavras iniciamos o presente artigo, «não tem melhor preá que o chactado», que ele comeu um no restaurante La Glorieta, em Tacna, e cuja receita ele deu depois: «Esquentar uma boa quantidade de óleo até que sair fumaça, passar pa-ra recipiente metálico e nele fritar o preá submerso, coberto com uma pedra, aberto e com a pele para cima, até o óleo esfriar, o bastante para cozinhar a carne. A seguir, sal-picar na pele milho seco triturado e tornar a fritar em óleo bem quente. O melhor pedaço é a cabeça; só temos que vencer o preconceito».

* Jornalista e pesquisadora gastronômica.

RECEITASPREÁ PANADO

IngredIentes3 preás grandes1 xícara de farinha de rosca2 colheradas de pasta de aji panca2 ajis verdes, sem veias nem sementes, lavados, em tirinhas finas4 dentes de alho2 cebolas roxas, grandes, cortadas em juliana grossa2 galhos de orégano6 batatas médias, cozidas e sem cascamolho llatanvinagre tinto de vinhoóleo ou azeite docesal

PreParoLavar os preás e deixar arejar por uma hora. Cortar em quatro pedaços cada e deixar em salmoura por 15 minutos. Escorrer, pôr um pouco de sal, passar na farinha de rosca e dourar em bastante óleo até ficarem crocantes. Enquanto isso, dourar numa panela e pouco óleo a pasta de aji e o alho socado; acrescentar o aji verde e a cebola, até ficarem bem fritos; pôr sal, orégano e três colheradas de vinagre de vinho. Misturar e reservar quente.Ao mesmo tempo, dourar as batatas cozidas em um pouco de óleo, opcionalmente cobertas com uma colherada adicional de pasta de aji vermelho. Servir cada porção com dois pedaços de preá, uma batata partida ao meio, o molho de cebola quente cobrindo por cima e um pouco de molho llatan ao lado.

PREÁ CHACTADO

IngredIentes6 preás tenros200 gramas de chochoca (milho seco, moído)1 litro de óleo vegetal puro, sal6 batatas médias cozidas e sem casca molho llatan¼ quilo de favas cozidas

PreParoLavar o preá com água e sal e arejar por uma hora. Por um pouco de sal e passar no milho moído. Fritar numa frigideira grande em abundante óleo bem quente, sob uma pedra oval (de canto rodado ou chaquena, que atualmente costumam ter uma alça de arame). Virar quando estiverem crocantes, retirar e servir com as batatas, o molho de llatan e uma porção de favas cozidas.

PREÁ ASSADO

IngredIentes6 preás tenros3 colherada de aji panca½ garrafa de vinho branco2 colheradas de vinagre de vinho branco6 dentes de alho moídosal e cominho3 pimentas de cheiroazeite doce1 galhinho de hortelã1 xícara de molho llatan6 batatas médias, sem casca½ quilo de favas cozidas1 prato de salada de vagem e cenoura

PreParoLavar os preás, arejar e deixar de molho na véspera com o aji, o alho, o vinho, o vinagre, a hortelã picada, sal, pimenta e cominho. Numa uma assadeira untada com óleo, colocar os preás e as batatas, regar com a salmoura restante, um pouco de azeite e assar em 180ºC por trinta minutos ou até ficarem bem cozidos, sempre regando com o líquido que for escorrendo. Servir com salada, batata, favas cozidas e molho llatan.

PICANTE DE PREÁ (versão ancashina)

IngredIentes2 preás6 batatas cozidas150 gramas de alho moído200 gramas de aji panca moídosal, óleo

PreParoCortar as batatas cozidas pela metade ou em rodelas e reservar.Cortar o preá em dois ou quatro pedaços cada, dependendo do tamanho, e tem-perar com alho e sal. Fritar as os pedaços por ambos os lados em óleo bem quente. Depois, na mesma frigideira, e dourar as batatas cozidas, o aji panca com o alho moído. Refogar junto por 5 ou 6 minutos. Servir com o molho de cebola e uma porção de arroz branco.

Receita tirada de livroderecetas.comReceita de Paolo Caffelli

Cuy. Anônimo. Paris. 1890.

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NO PAÍSDAS AMAZONASManuel Cornejo y Christian Bendayán*

Uma ampla exposição passa revista a 150 anos de registro fotográfico na Amazônia peruana.

A Amazônia sempre foi vista como um território femi-nino, não só pela lenda

das amazonas indomáveis, trazida do mundo mítico europeu, mas também por ser percebida como terra de conquista e sonhos, fértil e misteriosa; um lugar que exigia novas palavras que pudessem dar nome àquelas imagens inéditas que seduziam e aterrorizavam os conquistadores. Essa exotização atravessou vários séculos e se ins-talou na nova República.

No século XIX, quando a práti-ca fotográfica começou a se desen-volver na Amazônia, aumentaram suas possibilidades, tanto para cumprir uma função documen-tal quanto para sublimar aquele imaginário exotizado e sedutor da selva vindo de nossa herança colonial. As fotografias mais anti-gas correspondem às comissões de exploração da região amazônica promovidas pelo Estado no final da década de 1860. Elas retratam indígenas, e foram realizadas até em estúdios fotográficos da capi-tal e outras cidades do país. Des-de então, é possível encontrar extraordinários retratos familia-res de estúdio até fotomontagens que serviram —décadas mais tar-de— para a denúncia e defesa dos abusos cometidos pelos borrachei-ros no final do século XIX e no início do XX, fenômeno qualifi-cado por Jean Pierre Chaumeil como uma «guerra de imagens». Na atualidade, a fotografia tem cumprido possivelmente o papel mais importante na geração de uma «memória amazônica», pois

não apenas compreende o que consideramos real: a fundação de povos, as oníricas paisagens, a co-tidianidade do habitante da selva, a violência dos dias, mas também certa construção do imaginário, o delírio, a aventura, a tentativa cap-turar o futuro e a eterna e silvestre ficção.

A exposição «No país das ama-zonas» reúne essa travessia de 150 anos de prática fotográfica na sel-va peruana, uma exploração docu-mental e artística tão vasta como a própria região, complexa como sua história, e diversa como sua natureza e cultura.

* Pesquisadores e curadores da exposição «No país das amazonas».

Acima à esquerda. Frank Gaudlitz. Naturaleza muerta con congompes. 2013.

Acima à direita. Anônimo. Pampa Camona, Chanchamayo. Postal tricolor editado por Eduardo Polack Schneider. Ca. 1901-1919. Coleção Richard Bodmer.

À direita. Carlos Meyer. Balsa de naturales, Perené. Postal editado por Luis Sablich. 1890. Fonte: Biblioteca Municipalidad Metropolitana de Lima.

Embaixo à direita. Nicolás Janowski. Da série Serpiente Líquida.