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139 O CORPO FEMININO PLUS SIZE: UMA VISÃO ATRAVÉS DA ANÁLISE DO DISCURSO* Bárbara Pavei Souza RESUMO: Como linguagem socioculturalmente construída, o corpo enuncia e presentifica valores. Ele é o suporte da identidade do indivíduo, sua personificação no mundo, e é a estrutura básica que estabelece as primeiras relações do ser com outras esferas. Então, pode-se entendê-lo como meio de interação com o contexto sociocultural. Corpo e discurso andam próximos no campo teórico da análise do discurso. O corpo é tanto uma linguagem, como uma forma de subjetivação e possuí uma relação estreita com o discurso. Para a AD o corpo surge estreitamente relacionado a novas formas de assujeitamento e, portanto, associado à noção de ideologia. Mais do que objeto teórico, o corpo comparece como dispositivo de visualização, como modo de ver o sujeito, suas circunstâncias, sua historicidade e a cultura que o constituem. Trata-se do corpo que olha e que se expõe ao olhar do outro. O corpo intangível é o corpo que se deixa manipular. O corpo como lugar do visível e do invisível e ao mesmo tempo opaco. É importante considerar que o corpo funciona como materialidade simbólica de significação, e que pertencemos sempre a diferentes posições- sujeito, dependendo da formação discursiva na qual estamos inseridos naquele determinado momento. Assim, o corpo da mulher, aqui mais especificado pelo da mulher plus size, vai sendo marcado por diferentes posições-sujeitos à medida que os discursos vão interpelando e constituindo essas posições-sujeitos das mulheres que foram adensando papéis sociais importantes. Este corpo feminino sempre provisório é produzido pelo efeito que os discursos midiáticos causam nos sujeitos mulheres. A mulher vive desta maneira, e acaba sendo prisioneira de um padrão hegemônico de beleza feminina. Na sociedade contemporânea, baseada no consumo, qualquer pessoa pode ser transformada em um produto. PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso. Corpo Feminino Plus Size. Posição-sujeito. Discurso. 1. Introdução Nossa sociedade tem um discurso de extrema importância quando se trata de beleza feminina. Ao longo da história, é possível perceber que o discurso do culto ao corpo e a beleza vem sendo transformado e modificado em seus sentidos, segundo a cultura, os hábitos e os costumes de cada período, expressando assim, valores e práticas discursivas e não discursivas, conforme os padrões estabelecidos por cada sociedade dominante. Segundo Ferreira (2015, p. 15), para a Análise de Discurso, o corpo é resultado de um processo de construção que se dá pelo discurso e no discurso, portanto, esse corpo significante é um corpo discursivizado. Entende-se então que o corpo é uma construção cultural, que varia conforme cada sociedade e cada época. Braga (2005, p.19), afirma que “desde que o homem é homem, ele sempre vem privilegiando um determinado padrão de beleza que se torna ideal por um período de tempo ou para uma cultura”. O corpo feminino ao longo da história assumiu diferenciados comportamentos, formas e valores, conforme o tempo e o espaço, afinal, a história das mulheres passa pela história de seus corpos. Texto completo de trabalho apresentado na Sessão Análise do Discurso e Corpo II do Eixo Temático Estudos de Análise do Discurso do 4º. Encontro da Rede Sul Letras, promovido pelo Programa de Pós- graduação em Ciências da Linguagem no Campus da Grande Florianópolis da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em Palhoça (SC). Estudante de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Graduada em Design de Moda pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). [email protected].

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O CORPO FEMININO PLUS SIZE: UMA VISÃO ATRAVÉS DA ANÁLISE DO DISCURSO*

Bárbara Pavei Souza

RESUMO: Como linguagem socioculturalmente construída, o corpo enuncia e presentifica valores. Ele é o suporte da identidade do indivíduo, sua personificação no mundo, e é a estrutura básica que estabelece as primeiras relações do ser com outras esferas. Então, pode-se entendê-lo como meio de interação com o contexto sociocultural. Corpo e discurso andam próximos no campo teórico da análise do discurso. O corpo é tanto uma linguagem, como uma forma de subjetivação e possuí uma relação estreita com o discurso. Para a AD o corpo surge estreitamente relacionado a novas formas de assujeitamento e, portanto, associado à noção de ideologia. Mais do que objeto teórico, o corpo comparece como dispositivo de visualização, como modo de ver o sujeito, suas circunstâncias, sua historicidade e a cultura que o constituem. Trata-se do corpo que olha e que se expõe ao olhar do outro. O corpo intangível é o corpo que se deixa manipular. O corpo como lugar do visível e do invisível e ao mesmo tempo opaco. É importante considerar que o corpo funciona como materialidade simbólica de significação, e que pertencemos sempre a diferentes posições- sujeito, dependendo da formação discursiva na qual estamos inseridos naquele determinado momento. Assim, o corpo da mulher, aqui mais especificado pelo da mulher plus size, vai sendo marcado por diferentes posições-sujeitos à medida que os discursos vão interpelando e constituindo essas posições-sujeitos das mulheres que foram adensando papéis sociais importantes. Este corpo feminino sempre provisório é produzido pelo efeito que os discursos midiáticos causam nos sujeitos mulheres. A mulher vive desta maneira, e acaba sendo prisioneira de um padrão hegemônico de beleza feminina. Na sociedade contemporânea, baseada no consumo, qualquer pessoa pode ser transformada em um produto.

PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso. Corpo Feminino Plus Size. Posição-sujeito. Discurso.

1. Introdução

Nossa sociedade tem um discurso de extrema importância quando se trata de beleza feminina. Ao longo da história, é possível perceber que o discurso do culto ao corpo e a beleza vem sendo transformado e modificado em seus sentidos, segundo a cultura, os hábitos e os costumes de cada período, expressando assim, valores e práticas discursivas e não discursivas, conforme os padrões estabelecidos por cada sociedade dominante.

Segundo Ferreira (2015, p. 15), para a Análise de Discurso, o corpo é resultado de um processo de construção que se dá pelo discurso e no discurso, portanto, esse corpo significante é um corpo discursivizado.

Entende-se então que o corpo é uma construção cultural, que varia conforme cada sociedade e cada época. Braga (2005, p.19), afirma que “desde que o homem é homem, ele sempre vem privilegiando um determinado padrão de beleza que se torna ideal por um período de tempo ou para uma cultura”.

O corpo feminino ao longo da história assumiu diferenciados comportamentos, formas e valores, conforme o tempo e o espaço, afinal, a história das mulheres passa pela história de seus corpos.

Texto completo de trabalho apresentado na Sessão Análise do Discurso e Corpo II do Eixo Temático Estudos de Análise do Discurso do 4º. Encontro da Rede Sul Letras, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem no Campus da Grande Florianópolis da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em Palhoça (SC). Estudante de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Graduada em Design de Moda pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). [email protected].

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Em contrapartida ao corpo magro e esbelto vangloriado no início do século XXI, surgem os corpos opulentos, hoje conhecido no mundo da moda como corpos plus size.

Flúvia Lacerda - Modelo brasileira Plus Size.

Fonte: https://fluvialacerdablog.wordpress.com/ Acesso em 10 de maio de 2016.

A sociedade contemporânea vive o fenômeno de culto ao corpo, vivendo prisioneira de um padrão hegemônico de beleza feminina. Ser magra e malhada na contemporaneidade representa poder e status. Para Baumann (2008, p. 74), “na sociedade contemporânea, baseada no consumo, qualquer pessoa pode ser transformada em um produto”. Por isso, o sujeito que “se molda” a este padrão, vira um objeto de consumo.

A mídia encontrou no “corpo perfeito” o discurso ideal para a difusão dos produtos e dos serviços de beleza, como os cosméticos, os moderadores de apetite, as cirurgias plásticas, as clínicas de estéticas e academias esportivas, entre outros. Ela adquiriu um imenso poder de influência sobre os indivíduos, massificou a paixão pela moda e tornou a aparência uma dimensão essencial na sociedade (GARRINI, 2007 apud SCARIOTT, 2014, p.38).

Essa sociedade busca adequar os corpos aos padrões estéticos estabelecidos, não mais pela coerção e sim pela verdadeira ditadura da beleza. O controle sobre o corpo exercido pela sociedade “vai ao encontro” dos interesses do mercado e da indústria. A mídia tornou-se uma importante forma de divulgação e capitalização do chamado “culto ao corpo”.

__________________________________ Plus Size é uma expressão em língua inglesa dada pelos norte-americanos para modelos de roupas acima do padrão convencional usado nas lojas e que significa, em tradução literal, plus = mais; size = tamanho, ou melhor, “tamanho maior”. Sendo assim, no universo da moda, este termo, que é utilizado para roupas femininas e masculinas, e abrange do manequim 44 ao 52.

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O movimento Plus Size

Ao lado de corpos belos, que têm seu lugar garantido na mídia e na publicidade, encontram-se os corpos diferentes. Uma variedade de estéticas corporais traz a tona novos segmentos de mercado identificados em decorrência de mudanças promovidas pelo marketing.

A segmentação dos públicos promove a aparição das representações de corpos anteriormente não contemplados na publicidade mundial. Neckel (2014, p. 207) afirma: O corpo feminino, o corpo louco, o corpo belo, partilham do mesmo espaço na discursividade artística: o corpo que se doa ao olhar. Um corpo que se constitui do sempre já-lá, do pré-construido, um corpo que se constitui pelo olhar do outro.

É nessa entrada do “diferente” no mercado capitalista, que surge o movimento plus size. É muito difícil relatar exatamente quando foi à primeira aparição deste movimento no mundo, mas acredita-se que foi nos Estados Unidos, em meados do século XX. Acredita-se que tal movimento tenha surgido antes, mas apenas nas décadas de 80 e 90, com a divulgação em revistas internacionais, ele ficou conhecido.

No ano de 1989 lançou-se a primeira revista americana de moda e estilo para esse público, a “Big Beautiful Woman” (BBW Magazine).

Big Beautiful Woman Magazine - February 1989

Fonte: http://awfullibrarybooks.net/big-beautiful-woman/Acesso em 10 de maio de 2016.

Com uma demanda cada vez maior, o mercado percebeu uma grande oportunidade de

ampliar os lucros, visualizando pela primeira vez a mulher acima do peso corporal médio, como uma consumidora de moda. Com o aumento da população com sobrepeso nos EUA, nos anos 90, em especial a população feminina, a indústria da moda voltada para o público plus size se tornava cada vez mais popular.

No entanto, foi no ano de 2008 que a moda plus size teve seu grande marco, a partir do concurso: Americanas next top model (programa de horário nobre e um dos grandes sucessos da TV americana, uma espécie de reality show competitivo).

Desde então, essa moda tem ganhado proporção no mundo, muitas modelos que são consideradas plus size tornaram-se famosas, e os discursos sobre seus corpos perpetuaram na mídia. É notório também um maior aparecimento destes corpos em destaque nas capas de renomadas revistas internacionais.

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Elle francesa (Mar. 2012) Vogue italiana (Jun. 2011) Elle Francesa (Mai.2015)

Fonte: http://www.brasilpost.com.br/ Acesso em 10 de junho de 2016

Segundo Del Priore (2000, p. 90), em uma sociedade que cultua silhuetas delgadas, induzindo a uma busca incessante pela magreza feminina, em que a publicidade exibe incessantemente imagens de modelos dentro desse padrão, qualquer imagem que não se enquadre nessas medidas estabelecidas desencadeia um movimento de questionamentos, inquietudes e inconformidades com tais padrões.

Essa inquietude foi uma forma de resposta das mulheres acima do peso, americanas a princípio, que se identificaram com esse movimento plus size, fazendo disseminar, assim, a ideia da valorização de uma beleza do corpo natural. Conforme afirma Sant’Anna (2000, p. 64), “o corpo é o palco no qual o sujeito feminino interpreta sua inquietação diante da vicissitude da beleza”.

A presença de corpos diferentes é uma tendência da criação publicitária e responde ao momento de ampliação do mercado. No século XXI, o mundo da moda apresenta-se como um “mercado aberto”, que necessita chegar a toda população, até mesmo naqueles grupos que até pouco tempo não eram percebidos pelo mercado.

Um olhar sobre o corpo através da Análise do Discurso

Olhar o corpo na perspectiva discursiva é tomar o discurso como lugar de inscrição, é compreender que as condições de produção do discurso determinam a materialidade física/discursiva do corpo ao longo da história.

O conceito da construção do sentido do corpo da mulher surge desde a civilização grega, no entanto, o corpo vai se constituir enquanto “objeto” a partir da “modernidade” e verificar a importância desse culto que implica em analisar as próprias relações sociais, incluindo as relações de poder, a afirmação de identidade, a singularização de gênero e as implicações de sentido, em especial na vida das mulheres plus size, que se encontram à margem da sociedade por estarem fora do discurso padrão de beleza vigente.

O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política (FOUCAULT, 1979 apud FERREIRA, 2015, p. 21).

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É inegável a importância que nossa sociedade constitui quanto ao discurso sobre beleza feminina. Historicamente, vimos que o discurso do culto ao corpo e a beleza vem sendo transformado e modificado em seus sentidos, segundo a cultura, hábitos e costumes, desejadas de acordo com a sociedade dominante.

É uma total submissão do corpo feminino na busca desenfreada por um padrão de beleza ideal, inatingível. O mais chocante é a passividade da mulher submetida aos caprichos, vontades e quimeras, como um corpo destituído de subjetivação, como um corpo ausente de sentidos e de sujeito. Um corpo- objeto à mercê do olhar e do querer do outro (FERREIRA, 2015, p. 20).

Sendo assim, o corpo não é indiferente aos sentidos produzidos pela sociedade. Pelo contrário, “o corpo do sujeito está atado ao corpo social, e isto é parte do seu processo de significação” (ORLANDI, 2012, p.95).

O corpo é uma forma de manifestação dos discursos, construído como objeto simbólico sobre o qual atuam as injunções da cultura e da história. Nós, sujeitos de/a linguagem somos sempre atravessados por uma formação discursiva dominante, neste caso a dos padrões estéticos de beleza, e elas organizam os espaços de forma política, por isso corpos diferentes são acolhidos ou excluídos, dependendo da posição- sujeito. O sujeito constrói uma imagem de si como constrói uma imagem do outro, pois ele é sempre submetido então, às circunstâncias que o moldam.

Dessa forma, não há corpo que não seja impregnado de sentidos constituídos por práticas históricas sociais: “O sujeito relaciona-se com seu corpo já atravessado, por uma memória, pelo discurso social que o significa e se desloca na sociedade e na história: corpos segregados, corpos legítimos, corpos tatuados, corpos excluídos” (ORLANDI, 2012, p.87). E é nesse contexto que os corpos plus size aparece, afinal, mesmo dentro do contexto mercadológico, eles ainda possuem suas exclusões, pois ser gordo ainda é viver as margens da sociedade.

Nessa busca pela constituição dos sentidos da mulher plus size, percebe-se a importância desse segmento da moda relativamente novo no Brasil, mas que veio com o intuito de fortalecer e dispor a essas mulheres uma nova forma de “viver”, pelo menos quanto a uma melhor aceitação de seus corpos vestidos, determinando sua forma de estar no mundo.

Os corpos “diferentes”, até então, ausentes da criação publicitária, apresentam uma sociedade de modo plural. As “escolhas” a respeito das afirmações, das rejeições e das ausências- revelam alterações na perspectiva da política desse tipo de produção cultural da mídia e da moda. Entretanto, a representação de diferentes etnias e estéticas corporais de forma positiva na publicidade constitui uma falsa metáfora de inclusão, evidenciando uma percepção congelada da diferença e uma apropriação indevida de sua identidade.

O corpo constitui em si mesmo, uma prática discursiva que demarca posições nas relações sociais. Portanto, é o espaço próprio de enunciação das identidades, seja na marcação dos discursos comuns, seja na delimitação das diferentes. “Ler” o corpo e suas mutações (no sentido Pecheutiano de práticas discursivas) implica “ler” as transformações que ocorrem nas relações sociais.

Pode-se afirmar que não há imaginário cultural ideal sobre o corpo, o imaginário se manifesta conforme o contexto sócio- histórico no qual o corpo está inserido. O corpo é o suporte da transformação do sujeito desejante, nele são depositadas as expectativas de transformação do sujeito em sua relação com o mundo, buscando visibilidade por meio das transformações corporais, adicionando, extraindo ou modificando o que pode e o que não pode/deve ser visto/dito.

A mídia participa da construção social do corpo. Seria ingênuo presumir uma neutralidade no discurso midiático, até porque, como afirma Orlandi (2008, p.32), sujeito, sentidos e discursos não são transparentes ou neutros. Nesse sentido, considera-se que é preciso compreender o

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funcionamento do discurso midiático, pois a relação sujeito/corpo é atravessada e constituída por tais funcionamentos.

Movimentos de Análise

Vivemos em uma sociedade na qual a busca por definições de padrões no que diz respeito ao corpo transforma-se numa corrida rumo ao consumo. Tornou-se comum querer ter um corpo “da moda”. Como já vimos na seção anterior, à beleza tornou-se objeto de comércio a partir do século XX e foi através disso que a mídia e a publicidade passaram a ditar os padrões de beleza, influenciando sempre na vida e nos corpos das mulheres.

Sabe-se que o padrão de beleza é progressivo e evolui década após década. Cada momento influi no estereótipo de acordo com seus aspectos, sendo eles culturais, sociais, políticos ou religiosos. A mídia, a moda, a música também tem forte influência nos padrões de beleza impostos; fica claro que a mídia tem um lugar privilegiado de constituição, formulação e circulação dos sentidos, afinal, ela enquanto uma instituição determina o que pode e o que não pode ser dito em seus diferentes espaços, em cada instância de circulação.

Mesmo tomando posse do controle do seu corpo, mesmo regulando o momento de conceber, a mulher não está fazendo mais do que repetir grandes modelos tradicionais. Ela continua submissa. Submissa não mais às múltiplas gestações, mas à tríade de “perfeição física”. A associação entre juventude, beleza e saúde, modelo das sociedades ocidentais, aliada às práticas de aperfeiçoamento do corpo, intensificou-se brutalmente, consolidando um mercado florescente que comporta indústrias, jogadas de marketing e espaços na mídia. [...] Mais do que nunca, a mulher sofre prescrições. Agora, não mais do marido, do padre ou do médico, mas do discurso jornalístico e publicitário que a cerca. No início do século XXI, somos todas obrigadas a nos colocar a serviço de nossos próprios corpos. Isso é, sem dúvida, uma outra forma de subordinação. Subordinação, diga-se, pior do que a que se sofria antes, pois diferentemente do passado, quando quem mandava era o marido, hoje o algoz não tem rosto. É a mídia. São os cartazes de rua. O bombardeio de imagens da televisão. (DEL PRIORE, 2000, p. 15).

Hoje percebemos que o nosso corpo, que até então acreditávamos ser nosso, individual, na verdade é invadido e modelado desde o início de nossas vidas pela sociedade na qual vivemos, pelos aparelhos ideológicos (Família, Escola, Igreja, Estado e a Mídia) que regem a nossa sociedade.

Não há corpo que não esteja investido de sentidos, e que não seja o corpo de um sujeito que se constitui por processos nos quais as instituições e suas práticas são fundamentais para a forma com que ele se individualiza, assim como o modo pelo qual, ideologicamente, somos interpelados em sujeito, enquanto forma sujeito histórica (capitalista) (ORLANDI, 2012, p. 93).

Pode-se afirmar que o corpo se situa no centro desse processo de individuação apontado por Orlandi, o corpo então seria o cerne das inquietações contemporâneas, que por sua vez, se materializam no próprio corpo, ou do modo como o textualizamos, ou seja, ao nos submetermos aos padrões insanos de perfeição e normatização impostos.

Meu recorte trata-se da imagem da capa da revista Moda Moldes tamanhos grandes, do mês de setembro de 2014, estampada pela Preta Gil.

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Revista Moda Moldes tamanhos grandes - setembro de 2014.

Fonte: Página da rede social Facebook da própria cantora. Acesso em 10 de junho de 2016

Em sua página na rede social Facebook, no dia 10 de setembro de 2014, a cantora Preta Gil posta em seu perfil às seguintes fotos e declara: “Em estado de choque! Não tem como não me indignar, pois fiz essas fotos para capa dessa revista e a mesma foi publicada sem minha aprovação e do fotógrafo. O Photoshop foi feito por conta própria. Aí está o resultado!!! A foto original está linda, nem precisava de grandes ajustes. Pra que isso? Que vergonha!!! O trabalho de todos os profissionais envolvidos foi comprometido. Infelizmente essa que está na capa da Revista não sou eu!!!”

Através dessas imagens vimos perfeitamente o poder que a mídia possui sobre os nossos corpos. Sabemos que corpo é sempre provisório, pois ele é produzido pelo efeito que os discursos produzem sobre ele e também pela ideologia dominante, que ainda é a masculina (homem, branco, classe média- alta, magro, heterossexual) que busca sempre moldar a “carne feminina”.

É notório como a experiência do corpo é sempre modificada pela experiência da cultura, onde o corpo aparece como a beleza concebida pelos cânones estabelecidos pela sociedade do capitalismo. No caso da imagem da Preta Gil, mesmo se tratando de uma figura conhecida midiaticamente, o peso do corpo normativo e padrão estético pesou na decisão dos editores em não respeitar a foto realizada no estúdio. Alterando um corpo negro e plus size, para um irreal branco enquadrado nos “padrões estéticos vigentes”. Tal modificação chega ao ponto, do próprio sujeito fotografado não se reconhecer na imagem.

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Nada adianta negar essa necessidade de aparência de um “corpo semanticamente normal”. Ao final das contas, o sujeito que se julga livre para fazer do seu corpo o que lhe aprouver e o que a tecnologia lhe oferecer acaba sendo vítima dessa mesma ilusão, transformada em um mundo logicamente estabilizado. Esse controle tanto é feito pelo Estado e seus Aparelhos, como pela cultura e seus padrões estabelecidos a cada época por uma conjuntura politicamente conveniente (FERREIRA, 2015, p.22).

Preta estampa uma capa de revista de tamanhos grandes e com as transformações feitas nas fotos até isso foi transformado em seu corpo; suas curvas passam a ser mais suave, seu corpo muda de forma, se contradizendo assim com a proposta deste próprio meio midiático.

Os corpos da publicidade, da fotografia, colocam uma distância entre o real e o imaginário, afinal o que as fotografias propõem são corpos idealizados, abstratos, inatingíveis devido a todas as correções que estes corpos passam através das tecnologias para depois chegar até a grande mídia.

Vivemos em uma sociedade na qual a busca por definições de padrões no que diz respeito ao corpo transforma-se numa corrida rumo ao consumo. Tornou-se comum querer ter um corpo “da moda”. Baseado em diferentes tipos e cores, esses corpos são tão produtos de consumo quanto às roupas que os vestem. O corpo é uma das maiores regulações sociais, por isso sabe-se que os indivíduos que não se enquadram nesses padrões pré-construídos são excluídos.

O corpo da mulher foi submetido a um ritmo acelerado- e padronizado- de mudanças, seja nos padrões, nas medidas, nos estilos, nas épocas históricas. O corpo é o efeito dos discursos que dão consistência simbólica à vida social. Ele é, na verdade, um material “inacabado”, sempre em mudança, sempre em mutação. É possível afirmar que, enquanto houver história, e capitalismo o corpo estará em mutação, em processo de modificação. O corpo virou o capital da mulher no século XXI (GOLDENBERG, 2007, p.84).

A busca por um “corpo perfeito” estará sempre sendo uma busca referida a um ideal inatingível, uma vez que as imagens veiculadas na mídia nada têm de humano e a promessa de felicidade absoluta, plenitude e atemporalidade aí contida, empurram as mulheres para a impossibilidade de adequar-se aos novos padrões estéticos. A publicidade embute, em relação a essas que não se encaixam nos padrões, uma ideologia de fracasso frente ao próprio corpo.

A “beleza” é um sistema monetário semelhante ao padrão ouro. Como qualquer sistema, ele é determinado pela política e, na era moderna no mundo ocidental, consiste no último e melhor conjunto de crenças a manter intacto o domínio masculino. Ao atribuir valor às mulheres numa hierarquia vertical, de acordo com o padrão físico imposto culturalmente, ele expressa relações de poder segundo as quais as mulheres precisam competir de forma antinatural por recursos quais os homens se apropriam (WOLF, 1992, p.15).

A valorização do corpo como imagem de valor simbólico é um dos elementos mais importantes na constituição da identidade do sujeito moderno. Segundo Santaella (2004, p.29), o sujeito não é constante, ele é uma variável em contínua modificação, afinal a mídia faz uma remodelação dos corpos sem os sujeitos se darem conta disso. “Ela supostamente permite forjar uma nova imagem corporal na qual alguém pode se sentir confortável consigo mesmo. Isso pode ser entendido como uma padronização, que seria o resultado de uma remodelação do corpo pela mídia” (SALECL, 2005, p.12 e 13).

Na modernidade parece haver uma incerteza sobre o conceito de corpo. Não insatisfação constante dos sujeitos com as formas corporais, mas o corpo é encarado como um projeto, que está então, passível a sofrer alterações. Atualmente, vive-se uma época em que o corpo e seu significado sócio- cultural tomaram dimensões inusitadas; afinal, já se fixou a ideia de que ter um

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corpo perfeito é sinônimo de uma vida perfeita. Conforme afirma Salecl (2005, p.46), o sujeito contemporâneo é assim não apenas seu próprio criador, mas também seu próprio opressor.

Considerações finais

Ao longo deste artigo pode se perceber que o mundo capitalista é um sistema que possui regras e coerções agindo diretamente sobre os sujeitos contemporâneos. A partir do pensamento de Foucault (2006) que discute o poder através de “relações de poder”, é possível aceitar que a moda enquadra-se nessa relação, pois condiciona os sujeitos em seu modo de vestir, se portar e comportar, dando conselhos sobre o “certo” e o “errado”.

Portanto, a moda e a mídia atuam na construção das identidades contemporâneas, pois ao mesmo tempo em que criam conceitos sobre o que pode ou não ser dito, consequentemente o sujeito elabora uma, dentre outras, identidades que fará parte da sua condição de existência. No encontro desses dois elementos paradoxais se processam as identidades: os sujeitos se resistem à visão da moda e passam a produzir suas identidades. Ao mesmo tempo a publicidade vai ao contra-ataque transformando estas identidades em estilo.

O corpo se tornou uma valiosa imagem para ser exibida na sociedade do espetáculo, em que a nova superficialidade, a crise da historicidade e a produção de imagens traduzem-se na padronização e na comercialização do corpo como um objeto rentável. Neste contexto, o indivíduo tem uma ilusão de liberdade, de que pode intervir no próprio corpo, reinventando-o a partir de escolhas individuais, sem se dar conta de que suas escolhas são geralmente impostas pela mídia. Conforme afirma Kehl (2009, p.84) “ele leva a uma submissão total à ordem das coisas que existem”, ou seja, o sujeito se acha dono de seu corpo e de tudo o que produz sobre ele, mas na verdade é apenas produto das ordens impostas pelo capitalismo.

Após finalizar esse movimento análise ainda preliminar, foi possível a compreensão de que a representação e a identificação do corpo feminino na moda plus size é caracterizada por um discurso que ora se manifesta como a construção e veiculação de uma imagem positiva e emancipatória quanto à quebra de preconceitos, ora se mostra condizente com uma estética padrão, precursora de ideologias e estereótipos enfatizados por uma ótica mercadológica do corpo magro. É possível então perguntar: essa imagem “positiva” seria um efeito? Atualmente o corpo é mais capital do mercado do que do Estado?

A mulher que vive desta maneira acaba sendo prisioneira de um padrão hegemônico de beleza feminina. Na sociedade contemporânea, baseada no consumo, conclui-se que qualquer pessoa pode ser transformada em um produto de consumo.

Referências

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DEL PRIORE, M. Corpo a corpo com a mulher: pequena história das transformações do corpo feminino no Brasil. São Paulo: Editora Senac, 2000.

FERREIRA, M.C.L. Discurso: conceitos em movimento. IN: Oficinas de Análise do Discurso: conceitos em movimento/ Maria Cristina Leandro Ferreira (Org). Campinas, SP: Pontes Editores, 2015. p.11-23.

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GOLDENBERG, M. O corpo como capital. Rio de Janeiro: Mimeo, 2007.

KEHL, M. R. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.

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ORLANDI, Eni. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. 3. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2008.

_____________. Discurso em Análise. Sujeito, sentido, ideologia. 2. Ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012.

SALECL, Renata. Sobre a felicidade: ansiedade e consumo na era do hipercapitalismo/ Renata Salecl [ Tradução Marcelo Rezende]. São Paulo: Alameda, 2005.

SANTAELLA, L. Corpo e Comunicação: sintoma da cultura. São Paulo: Paulus, 2004.

SANT’ANNA, D. B. As infinitas descobertas do corpo. In: Cadernos Pagu (14) Corporificando gênero. São Paulo: USP, 2000.

SCARIOTT, J. O imaginário do corpo feminino na publicidade de moda plus size. 2014. 140 f. Monografia (Curso de Comunicação Social, Habilitação em Publicidade e Propaganda) Universidade de Caxias do Sul. Caxias do Sul- RS, 2014. Disponível em: <http://docplayer.com.br/4066568-O-imaginario-do-corpo-feminino-na-publicidade-da-moda-plus-size.html>. Acesso em: 03 de junho de 2016.

WOLF, N. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres/ Naomi Wolf; tradução de Waldéa Barcellos.- Rio de Janeiro: Rocco, 1992.