O Corpo Em Movimento Na Capoeira

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    ESCOLA DE EDUCAO FSICA E ESPORTE

    FLVIO SOARES ALVES

    O CORPO EM MOVIMENTO NA CAPOEIRA

    SO PAULO

    2011

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    FLVIO SOARES ALVES

    O CORPO EM MOVIMENTO NA CAPOEIRA

    Tese apresentada Escola de Educao Fsica eEsporte da Universidade de So Paulo, comorequisito parcial para obteno do ttulo deDoutor em Educao Fsica.

    rea de Concentrao: Pedagogia doMovimento Humano.

    Orientadora: Profa. Dra. Yara Maria de

    Carvalho.

    SO PAULO

    2011

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    Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por

    qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e

    pesquisa, desde que citada a fonte.

    Catalogao da Publicao

    Servio de documentao

    Escola de Educao Fsica e Esporte da Universidade de So Paulo

    Alves, Flvio SoaresO corpo em movimento na capoeira / Flvio Soares Alves.So Paulo :

    [s.n.], 2011.

    ix, 185p.

    Tese (Doutorado) - Escola de Educao Fsica e Esporteda Universidade de So Paulo.

    Orientador: Prof. Dr. Yara Maria de Carvalho.

    1. Educao Fsica 2. Capoeira 3. Aprendizagem 4. Esttica da Existncia 5.Movimento 6. Filosofia da Diferena 7. Cartografia I. Ttulo.

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    DEDICATRIA

    memria de minha av

    LOURDES MARTINS SOARES

    Que me ensinou a linguagem do afeto...

    Teu toque me acalma a alma.

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    AGRADECIMENTOS

    Dra. Yara Maria de Carvalho, minha orientadora, com quem aprendi a ler nas

    entrelinhas da cincia com o olhar da sensibilidade. Trilhar o caminho do doutorado a seu lado

    contribuiu sobremaneira para meu crescimento pessoal e cientfico.

    Unifac Faculdades Integradas de Botucatu na pessoa do Dr. Leone Antonio

    Simonetticoordenador do curso de Educao Fsicapelo apoio durante todo o percurso do

    doutorado.

    Flvia Fzzio e Oficina da Dana pela bela parceria que travamos nas danas tantasda vida.

    Ao grupo de pesquisa Educao Fsica, Sade Coletiva e Filosofia, pelos bons

    encontros que me proporcionou. Valria e Fabiana, pela irmandade que nos uniu ao redor

    de nossa orientadora e de nossos propsitos comuns.

    Andrezza Moretti: nossos debates, almoos no bandejo e estudos na biblioteca me

    deram foras para continuar caminhando.

    Ao Dr. Walter Omar Kohan, pelas crticas amistosas ao trabalho e ao Dr. Romualdo

    Dias, com quem iniciei nos caminhos da cincia e da vida.

    minha famlia: me (Mariza), irmo (Wilson), sobrinha (Nathlia), av (Lourdes) e

    av (Jse). Durante o doutorado perdi minha av, mas, por outro lado, reforei meus laos

    eternos com estes entes queridos. A morte no nos separar, pois estaro sempre comigo,

    estejam onde estiverem!

    Neste momento, no posso deixar de lembrar, saudoso, de meu cachorro: Musky...

    Enfim, um agradecimento especial aos capoeiristas que ajudaram a compor a escrita

    desta tese. Aos mestres: Marcial, Gladson, Zequinha, Plnio, Braslia e Ananias; ao

    contramestre Buda; aos professores: Minhoca e Vincius; e a todos os capoeiristas com quem

    convivi, meu muito obrigado! Vocs moveram este trabalho. A vida fez de vocs doutores da

    arte de viver: me orgulho de ter aprendido com vocs.

    I, Viva meu Deus, camarada!

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    RESUMO

    ALVES, Flvio Soares O Corpo em Movimento na Capoeira. 2011. 194 f. Tese

    (Doutorado)Escola de Educao Fsica e Esportes, Universidade de So Paulo, So Paulo,

    2011.

    Propomos investigar o corpo em movimento na capoeira, atentos s prticas deconstituio/inveno do capoeirista. Acompanhamos grupos de capoeira Angola e Regionalnas cidades de So Paulo, Piracicaba, Botucatu e Ja. O princpio da cartografia (DELEUZE;GUATTARI, 1995a) mobilizou a investigao, permitindo lanar a proposio de partida deum modo implicado, em que pesquisador e sujeitos, intenes e devires se envolveram junto capoeira. A partir deste envolvimento, os relatrios foram sendo forjados (dirios e entrevistasgravadas), dando testemunho e visibilidade aos movimentos feitos entre pesquisador esujeitos. A escritura da pesquisa mergulhou nas relaes e nas singularidades descobertas nosrelatrios produzidos, fazendo emergir ideias e multiplicidades. Observamos que no sealcana a capoeira como prtica da existncia se o capoeirista no dedica seus esforos e suas

    potencialidades na experincia de movimento com a capoeira, o que reclama por umadisposio e cultivo desta prtica. O cultivo cresce com o auscultar de uma vontade deaprender, que chama a ateno do sujeito para ocupar-se consigo junto prtica que o instiga.Deste referencial irredutvelo corpo que se ocupa consigoo sujeito se lana relao como mestre e com o grupo, e assim, coletivamente, a capoeira surge como movimento e,enquanto tal, coloca o capoeirista face aos desafios que atravessam os relacionamentos,alertando-o sobre a necessidade de se virar.Nas fases iniciais de aprendizagem, o aprendiztem dificuldades para lidar com esta necessidade. A preparao fsica e tcnica tentamcontrol-la, mas os relacionamentos exigem certa disposio ao imprevisvel, a qual s o corporeceptivo suporta. A ginga desperta a atuao do corpo receptivo; o ritmo e a msicaintensificam-na, expondo o movimento frente ao porvir dos relacionamentos. A vadiao e a

    aprendizagem da malcia e da dissimulao se alimentam desta exposio; a roda as introduzdentro de um ritual. Ao se ocupar com o corpo receptivo, o capoeirista lapida seus modos deser, inventando a graa de seu viver junto prtica que escolheu tomar para si. O corporeceptivo o agente furtivo desta inveno, pois movimenta as potncias que correm sob ashabilidades treinadas e automatizadas, deslocando-as indefinidamente.

    Palavras-chave:capoeira. experincia de movimento. corpo. esttica da existncia.

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    ABSTRACT

    ALVES, Flvio Soares The Body in movement on Capoeira. 2011. 194 f. Thesis

    (Doctorate)Escola de Educao Fsica e Esportes, Universidade de So Paulo, So Paulo,

    2011.

    Through this research we propose to investigate the body in movement on capoeira,

    highlighting the practices of constitution/invention of the capoeirista (the capoeira player). Wehave researched groups of capoeira Angola and Regional, in the cities of So Paulo,Piracicaba, Botucatu and Ja. The principles of cartography (DELEUZE;GUATTARI, 1995a)have mobilized this investigation, making possible the start of the initial proposal within animplication field, in which researcher and individual plus intention and to becoming havegotten involved with capoeira. From this involvement the reports have been forged (daily andrecorded interviews), witnessing an implicated visibility between researcher and individuals.The research writing have gotten deep in the relations and singularities discovered in thereporting that have been produced, making possible the emerging of ideas and multiplicities.We have observed that the capoeira can not be reached as a practice of existence if thecapoeirista do not dedicate his efforts and potentialities in the movement experience with thecapoeira, what asks for a disposition and cultivation of this practice. The cultivation growswith a listening of a learning will, what gets the individual attention to worry about self alongwith the practice that encourages him. From this irreducible reference - the body that worriesabout self - the individual projects himself into a relation with the master and the group.Therefore, collectively the capoeira pops up as movement while makes the capoeirista face thechallenges that cross the relationships, alerting him about the necessity of coping with theunexpected. During the initial levels, the learner shows difficulties to deal with this necessity.The body fitness and technical skills try to control it, but the relationships demand a certaindisposition to face the unexpected, which only a receptive body can handle. The swing (ginga)rouses the receptive body performance; the rhythm and music intensifies it, exposing the

    movement against the relationships coming. The vagrancy, the malice and dissimulationlearning feed themselves in this exposition; the circle introduces it in a ritual field. When thecapoeirista is worrying about the receptive body he lapidates himself, inventing the grace ofhis living along with the practice he has chosen for his life. The receptive body is the furtiveagent of this invention for it moves the power that runs under the trained and automatizedabilities, dislocating them indefinitely.

    Key Words:capoeira. movement experience. body. aesthetics of existence.

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    SUMRIO

    IPROPOSIES DE PARTIDA ...............................................................................01

    1. O percursoum mergulho na experincia de pesquisa 01

    2. Medidas procedimentais (potenciais dispositivos de anlise) 02

    IIA INVENO NA ORDEM DO MTODO ................................................................03

    1. A capoeira no plano de consistncia 04

    2. Suspenso das pretensas intenes: por um olhar flutuante 08

    3. Cartografia: anlise de processos 09

    4. Resumo dos captulos 11

    IIIJUSTIFICATIVA SOBRE A IMPORTNCIA DO TEMA ......................................13

    CAPTULO I

    PRELDIO EXPERINCIA INVESTIGATIVA

    IPISTAS PARA UM PLANO TICO ..............................................................................17

    1. A capoeira pelo olhar do cuidado de si 18

    1.1. Foucault e o cuidado de si mesmo 18

    1.2. Momento cartesiano 20

    1.3. Momento do cuidado de si 22

    1.4. A dura elaborao de siAsksis 24

    1.5. O cuidado de si na relao mestre-aprendizros 27

    1.6. Fazer da vida uma obra de arte 31

    1.7. O cuidado de si contra a renncia de si 32

    1.8. Por uma esttica da existncia 33

    2. A vontade como fora de afirmao da vida 34

    2.1. A fora do silenciamento: uma potncia contra a vida 35

    2.2. A vontade de poder como vida 36

    IIA IMERSO DA TEORIA NA EXPERINCIA DE MOVIMENTO .......................37

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    CAPTULO II

    A PESQUISA PELO OLHAR DO CARTGRAFO

    IA INVESTIGAO EM PAUTA ....................................................................................39

    1. Por um pesquisar com 42

    2. O convite vadiao 44

    3. O convite roda de capoeira 46

    4. A roda de capoeira e a escritacampos de implicao 47

    5. A dissoluo do ponto de vista do observador 50

    6. O jogo e a conversa: a capoeira na inscrita furtiva do instante 52

    7. A conversa em meio dissoluo do roteiro de entrevista 58

    IIMAPEAMENTO DA INVESTIGAO .......................................................................63

    1. A escrita dos dirios de pesquisa 63

    2. As entrevistas e as transcries 66

    3. Introduzindo a ruptura no exerccio do pensamento 67

    4. O entender nas profundezas do intensivo 68

    5.

    Antes da escrita em cena: o que se passou? 70

    CAPTULO III

    O CORPO EM MOVIMENTO NA CAPOEIRA

    IMOVIMENTOS DO PENSAMENTO ............................................................................71

    1. Para alm das diferenas nominais 73

    2.

    A tradio em movimento 80IIPRTICAS DE CULTIVO .............................................................................................83

    1. O tempo da Vadiao 84

    1.1. O olhar que espreita na humildade 85

    1.2. O corpo receptivo na capoeira 87

    1.3. A ginga como potncia emersa na vulnerabilidade 88

    1.4. Do treino fsico constituio do ethos: uma questo de escolha 91

    1.5. O cerco ao imprevisvel na capoeira Regional 971.6. O encontro com o imprevisvel na capoeira Angola: a dana da morte 101

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    1.7. A repetio como fora desvianteo flertar com o imprevisvel 104

    2. A aprendizagem da malcia e da dissimulao 107

    2.1. O desafio da escuta do outro no jogo da capoeira 110

    2.2. Movimentao espirala malcia na linguagem do esforo 111

    2.3. Potncias geradas sob as habilidades treinadas 114

    2.4. As intenes dissimuladaso jogo como dramatizao 123

    2.5. O corpo em cena na dissimulao 128

    3. A roda de capoeiraexperincia ritual e performativa 129

    3.1. Instalando um campo ritual na capoeira 133

    3.2. O jogo com o outro no embalo rtmico da roda 141

    3.3. O centro da rodazona do sagrado por excelncia 146

    3.4. O jogo corporal no centro da rodamovimentos de resoluo 148

    3.5. Para alm da pequena roda: a grande roda da vida 151

    CAPTULO IV

    A CAPOEIRA E A ARTE DO VIVER

    IO SUJEITO TICO NA CAPOERA ............................................................................153

    1. A capoeira como assinatura expressivaarte/tcnica do viver 153

    2. O encontro com a capoeira e o despontar do cuidado 155

    3. O cuidado nas palavras de um grande mestre de capoeira 159

    4. Os cuidados do mestre 162

    5. Mestre-aprendiz: uma relao amorosa 167

    6.

    Lapidao de si: a trilha forjada pelo capoeirista 169IIO MOVIMENTO AO INVS DA CONCLUSO .....................................................172

    1. O disfarce como movimento da existncia 173

    2. A irredutibilidade do processo na sntese final 174

    REFERNCIAS ....................................................................................................................177

    ANEXOS ................................................................................................................................183

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    IPROPOSIES DE PARTIDA

    Nestas breves linhas de introduo, gostaria, tal como Foucault em sua obra A Ordem

    do Discurso, de ser levado bem alm de todo comeo possvel(1996, p. 05), no tanto para

    se esquivar dos desassossegos que certamente acossam, mas para lanar as proposies de

    partida, em meio s intensidades emersas na investigao.

    Assim, como se no houvesse outro comeo possvel, seno pelo meio, demarcamos as

    intenes planificadas: o objetivo desta pesquisa investigar como o sujeito faz uso de suas

    potencialidades e vontades ao tomar para si a capoeira e fazer desta apropriao uma prtica

    de inveno de si mesmo. Para tanto, o olhar investigativo est atento expresso e ao estilo

    dos capoeiristas.1

    A pesquisa busca captar as reinvenes do movimento corporal na capoeira, ou seja, os

    indcios de criao que chamam a ateno para as prticas atravs das quais o capoeirista se

    constitui enquanto tal. A investigao busca por pistas que ajudem a olhar para a prtica da

    capoeira como uma prtica existencial.2

    1.

    O percursoum mergulho na experincia de pesquisa

    O primeiro passo da pesquisa foi assumir um processo de rastreamento de grupos de

    capoeira Angola e capoeira Regional no estado de So Paulo. A busca por grupos de capoeira

    nos aproximou dos seguintes grupos: Grupo Capoeira Brasil, formado pelo contramestre Buda

    na cidade de Botucatu; GrupoAmukengu,do mestre Marcial na cidade de Ja; GrupoProjete

    Liberdade, de mestre Gladson e professor Vincius, no Centro de Prticas Esportivas da USP,

    em So Paulo; Escola de Capoeira Raiz de Angola, de mestre Zequinha, da cidade dePiracicaba; Centro de Capoeira AngolaAngoleiro Sim Sinh, de mestre Plnio, no bairro de

    Perdizes, na cidade de So Paulo; Associao de Capoeira Angola Senhor do Bonfim, de

    1Capoeirista o praticante da capoeira. Segundo Falco (2004), o termo capoeira pontua justamente, no mbitoda cultura, o agente da capoeira, enquanto o termo capoeirista sugere uma interveno mais especfica tpicado especialista. Os grupos de capoeira estudados utilizam tanto o termo capoeira, quanto capoeirista. Os

    termos se revezam com freqncia. Para facilitar a regncia do texto e evitar possveis confuses na compreensoda escrita, optamos por assumir o termo capoeirista.2A realizao desta pesquisa foi devidamente aprovada pelo Comit de tica em Pesquisa (CEP) da Escola de

    Educao Fsica e Esporte da Universidade de So Paulo. Para efeito de comprovao, segue em anexo, no finaldeste trabalho, o ofcio emitido pelo CEP/EEFE-USP aprovando o protocolo da pesquisa que, na ocasio doprojeto, foi intitulada: Corpo em movimento na roda de capoeira: uma cartografia da ginga.

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    mestre Ananias, no bairro Bela Vista, na cidade de So Paulo; Grupo Capoeira Ginga-

    Braslia, de mestre Braslia, na Vila Madalena.

    A proximidade e o envolvimento com estes grupos foram decisivos no processo de

    investigao assumido.

    2. Medidas procedimentais (potenciais dispositivos de anlise)

    Os estudos realizados nas disciplinas de ps-graduao trouxeram cena os

    procedimentos metodolgicos definidos no campo da pesquisa qualitativa, que foram

    considerados na investigao. Entretanto, desde a formulao do projeto estivemos atentos s

    demandas imprevisveis que tecem o exerccio porvir da pesquisa. Frente a estas demandas,

    uma questo insistiu: como fazer funcionar a observao participante, as entrevistas e os

    dirios de pesquisa sem abrir mo de um exerccio investigativo que no se aplica, mas se

    constri na relao tramada junto ao sujeito? Os rumos da pesquisa (do jogo entre pesquisador

    e sujeitos) se constituram a partir desta questo.3

    Entrevistas individuais foram direcionadas aos mestres e professores de capoeira dos

    grupos identificados. E por que a escolha pelos mestres e professores?

    Estivemos atentos figura do mestre de capoeira, como sujeito privilegiado para se

    visualizar os movimentos de um modo capoeira de ser. O privilgio a ele atribudo justifica-

    se pelo tempo de sua vivncia com a capoeira: um tempo incontvel, que o faz confundir a

    capoeira com a prpria vida. Tal impresso, detectada junto esses sujeitos, foi registrada nos

    dirios da pesquisa:

    O exerccio de olhar para a prpria histria de vida e detectar as marcas, ascicatrizes e as trilhas de um processo de apropriao parece ser mais intensonos mestres de capoeira, afinal so eles os agentes construtores etransmissores desta tradio frente s novas geraes. Atravs destes

    preceptores outros tambm adentram, so iniciados neste territrioexistencial e atualizam a histria da capoeira, atravs da constituio de

    suas prprias histrias com a capoeira. (Dirio n. 10).

    Assim, a investigao deu preferncia aos mestres nas entrevistas individuais. O

    professor de capoeira, como a figura mais prxima do mestre na hierarquia do grupo, tambm

    foi considerado nas entrevistas individuais.

    3Para ver mais sobre os rumos desencadeados a partir desta questo ler a seo II do segundo captulo, ondemapeamos os procedimentos observados na realizao das entrevistas e dos dirios de pesquisa (pp. 63-67).

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    Na entrevista em grupo, buscamos realizar um debate aberto e acessvel a todos. Tal

    preocupao promoveu uma interao do grupo e, como efeito, o dilogo foi sendo constitudo

    tal como uma conversa informal entre amigos: cheio de humor, espontaneidade e intuies

    criativas. A partir desta abertura na interao, a entrevista ofereceu um espao profcuo de

    troca de ideias e experincias.

    A observao participante permitiu uma aproximao junto capoeira. Tal

    aproximao ousou romper a relao de oposio entre pesquisador e pesquisado ao se deixar

    levar pelo exerccio da implicao que envolvia as partes num mesmo plano de composio da

    realidade estudada: o plano da experincia, tal como apresentaremos no prximo item.

    Os dirios de pesquisa permitiram a produo de registros escritos sobre as

    experincias vividas junto aos capoeiristas. A descrio de movimentos e de episdios

    envolvendo a capoeira mapeou a relao do pesquisador junto capoeira, permitindo a leitura

    posterior deste processo de implicao.

    Os dirios de pesquisa, a observao participante e as entrevistas realizadas

    constituiram um itinerrio de investigao forjado no exerccio de implicao do pesquisador

    junto aos sujeitos. Assim, a investigao se constituiu no plano da experincia.

    IIA INVENO NA ORDEM DO MTODO

    A investigao imersa no plano da experincia move-se no jogo entre pesquisador e

    sujeitos, reclamando pelas falas e impresses registradas neste exerccio de implicao para

    mobilizar e tambm deslocar as teorias estudadas.

    Tomamos de emprstimo as palavras do contramestre Buda para entender melhor do

    que se trata este exerccio de implicao: como se voc se tornasse um s com o que est acontecendo, tanto comaquele que t jogando com voc, como com a msica, como com aqueles queesto tocando, aqueles que esto cantando e com aqueles que esto

    participando desta roda, ento uma energia muito gostosa de se sentir. [...]como se fosse entrar num transe. [...] algo diferente [...] uma energia quetoma conta de voc que faz com que voc movimente seu corpo de uma formadiferente, de uma forma mais harmoniosa com aquilo que est acontecendodentro da roda. [...] quando a gente deixa este algo vir pra fora, interessante que a outra pessoa tambm percebe porque o jogo mudacompletamente n... um algo que explode assim do nada [...]. algo que t

    l dentro e na hora que sai at a pessoa que t jogando com voc percebe e

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    ela comea a entrar no seu ritmo, comea a interagir com voc e a onegcio fica bom. (Entrevista realizada em 31/10/2008).

    A fala acima registra as impresses de um capoeirista sobre a interao que acontece

    na roda de capoeira. Observa-se que o entrevistado no consegue nomear aquilo que lhe

    acossa: algolhe atravessa e extravasa em tal intensidade que atinge o oponente e tambm a

    todos aqueles que compem a roda. Neste atravessamento como se voc se tornasse um s

    com o que est acontecendo....

    Quando o pesquisador se lana no plano concreto da experincia acontece algo

    parecido: deixa-se afetar por algoinstalado na relao com o outro e aceita aventurar-se na

    propagao a forjada. Esta propagao constitui, segundo Lourau (1993), um campo

    implicacional, em que o jogo de foras instalado na dinmica relacionalaqui nomeado como

    algointensifica-se, contagiando as partes ao mov-las, provisoriamente, da condio dual

    que as localiza na oposio entre pesquisador e pesquisado.

    Essa implicao, portanto, dissolve a oposio entre pesquisador e pesquisado e com

    isto a produo do conhecimento passa a ser um exerccio de criao que se constitui no

    caminho da pesquisa. Para tanto, preciso realizar uma imerso no plano da experincia.4

    1. A capoeira no plano de consistncia

    Quando se visualizam na capoeira no s as habilidades treinadas, mas os improvisos e

    toda a negociao que o capoeirista traa em meio ao dilogo corporal que tece com ele

    prprio e com o outro, observa-se a capoeira a partir do plano de consistncia.

    Aquilo que se passa sob os domnios do plano de consistncia no pode ser explicado,

    mas apenas sentido no exerccio transcendente do pensamento portanto, longe da

    4Os estudos de Lourau (1993; 1996; 1998) apontam para uma possibilidade de anlise das implicaes fazendoum mergulho no plano impessoal onde o ponto de vista do proprietrio (aquele que reclama por uma identidadeindividualizada) dissolvido em meio ao plano coletivo. J na leitura de Deleuze: Para alm do eue do Eu noh o impessoal, mas o indivduo e seus fatores, a individuao e seus campos, a individualidade e suas

    singularidades (2006, p. 361). Deste modo, pensar a implicao em Deleuze exige um certo mergulho naindividualidade, onde s existem singularidades pr-individuais repartidas na ideia (2006, p. 346). Talindividualidade no o carter do Eu, mas, ao contrrio, forma e nutre o sistema do Eu dissolvido (2006, p.356). A implicao se instala neste centro de dissoluo, onde a identidade e a semelhana do Eu soultrapassados. Todavia, pontua Deleuze, neste ultrapassamento no h um mergulho no impessoal, nem no

    Universal abstrato. O ultrapassamento aponta para o mundo fluente de Dionsio, onde vigoram aindividualidade e suas singularidades (2006, p. 361). No decorrer da escrita deste trabalho iremos considerar aanlise das implicaes a partir destes estudos aqui citados.

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    acomodao do senso comum5 (DELEUZE, 2006, p. 207) de modo que, se h uma

    explicao, esta s pode ser tecida nos domnios de um sentir implicado e que, justamente por

    estar implicado, s pode ser pensado l no momento mesmo em que se d como evento: na

    hora do jogo.

    a forma de voc sentir o que ta acontecendo na hora do jogo [...] diferente, algo que no tem como se explicar... algo que... algo que voc sente ena hora que voc sente aquilo, voc comea... o seu corpo reage de umamaneira que voc at se assusta... ento voc fala assim: puxa, mas eu no

    sabia fazer isso, como que eu fiz dentro do jogo da capoeira?(Entrevistacom contramestre Buda, realizada em 31/10/2008).

    A fala titubeante registra impresses de um sujeito que estranha a si mesmo em meio

    roda, fazendo-o indagar: puxa, mas eu no sabia fazer isso, como que eu fiz dentro do jogo

    da capoeira?

    Ancorado nos domnios deste estranhamento de si algo inominvel acossa e insiste

    em substituir aquilo que no tem como se explicar. As pausas constantesexpressas pelas

    reticncias indicam a tentativa do interlocutor em expressar verbalmente uma intensidade

    por ele sentida. Tal expresso, segundo Deleuze (2006), s figura como uma explicao em

    relao intensidade que se desenvolve, deixando mostra o curso de um pensamento queno existe fora da expresso desta intensidade inexplicvel, por estar nela, definitivamente

    implicado.6

    Professor Vincius assim explicou suas impresses inexplicveis sobre o jogo:

    a capoeira isto... por isto que ela legal, por isto que a gente gosta dacapoeira, porque ela um laboratrio de sentimentos, so muitas coisas quevoc sente, e at coisas inexplicveis, tipo quando voc sente um arrepio nocorpo e voc no sabe bem o porqu, n [risos]. Ento aquilo, esta coisaintangvel que acontece na capoeira tambm um dos mistrios da capoeira.

    (Entrevista realizada em 19/10/2008).

    5 O senso comum a norma de identidade e se orienta sob a forma do mesmo no modelo da recognio. Arecognio, por sua vez, se define pelo exerccio concordante de todas as faculdades sobre um objeto supostocomo sendo o mesmo (DELEUZE, 2006, p. 194). Ao se orientar no modelo da recognio, o senso comumopera as imagens dogmticas como valores conceituais no entendimento que pressupe o exerccio do

    pensamento submetendo-o a estas imagens que prejulgam tudo que por elas passa (2006, p. 192).6Segundo Deleuze sempre a partir de uma intensidade primeira que o pensamento se designa conduzindo-oviolentamente do limite dos sentidos ao limite do pensamento, daquilo que s pode ser sentido quilo que s

    pode ser pensado(2006, p. 342). A intensidade se explica na expresso que desenvolve, mas no sem deixar asmarcas dissimtricas de sua prpria origem. Assim, imerso na intensidade, a explicao mantm seu traoinexplicvel e se desenvolve como extenso de um sentido implicado: movimento do prprio pensamento.

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    Em seu esforo de recuperar, pela memria, as coisasque se passam na capoeira, o

    professor Vincius lana-se a um novo mergulho naquilo que consistia, l no momento mesmo

    em que a coisase deu como ato. Tal mergulho arrebata a lgica inteligvel do dizer, dando

    testemunho de uma consistncia l, na experincia, emersa.

    A investigao que aqui se desdobra quer se ocupar, portanto, destes elementos que

    consistem no ato, ancorando-se no momento em que a capoeira se d no corpo enquanto

    movimento. Ao ajustar o olhar investigativo nestes domnios, a pesquisa extrapola o plano das

    formas7 onde a lgica inteligvel do dizer instala seus domnios e se encharca com as

    foras que consistem em meio aos acontecimentos.

    O plano de consistncia coloca o capoeirista em contato direto com aquilo que consiste

    na capoeira. Mas, afinal, o que consiste na capoeira? A fala de mestre Marcial ajuda-nos a

    pensar esta questo para alm da objetividade nela prpria implcita:

    s vezes o capoeira treina muito [risos]... e esquece de sentar e conversar. Oque falta pro capoeira sentar e conversar sobre capoeira, conversar sobrea vida... pro capoeira falta viver este lado humano... Estamos vendo os caras

    se tornando rob... treinam, treinam, jogam, jogam... Pro capoeira melhorarfalta sentar e conversar, porque capoeira no s na roda que acontece.Quando voc no est falando de capoeira, capoeira tambm. Como o

    mestre Pastinha disse: capoeira tudo que a boca come. Tudo que vocfala, tudo envolve a capoeira: a vida! O ar que a gente usa pra capoeira omesmo ar que a gente respira aqui, ento tudo capoeira. O que falta so as

    pessoas sentarem mais, pois elas no sentam nada! No conversam nada!No se conhecem! Acham que se conhecem, mas no! Acham que seconhecem s porque jogou com fulano e cicrano? Jogou e pronto. Acabou.

    No! Ento o que falta muito dilogo, no s o dilogo do momento daroda. Fora aquele momento ali, o dilogo to importante quanto otreinamento... ento esto fazendo capoeira s pela metade... falta muito!(Entrevista realizada em 01/11/2008).

    Aquilo que consiste na capoeira atravessa a existncia do capoeirista. A fala de mestrePastinha, suscitada pela boca de mestre Marcial, j diz tudo: A capoeira tudo que a boca

    come. Assim, tudo aquilo que nela consiste se faz presente no discurso dizvel, inscrito no

    curso da fala, no discurso visvel, inscrito nas atitudes, nas decises e nas prticas que

    7Segundo Deleuze e Parnet o plano das formas corresponde ao plano de organizao da realidade. As formasconstituem-se naquilo que o pensamento representativo reconhece como objetos do conhecimento, que seriam, nocaso aqui, as habilidades treinadas. Por outro lado, ascender dimenso movente da realidade esta constitudano plano de consistncia implica em afetar as condies de gnese dos objetos. Isto significa um desvio do

    pensamento representativo que domina o plano das formas. S possvel alcanar e acompanhar o plano de

    consistncia atravs da desestabilizao das formas. Convm salientar, no entanto, que o plano das formas e oplano das foras no se opem, mas constroem entre si recprocas relaes que asseguram mltiplos cruzamentos(2004, pp. 114-116).

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    atravessam a linguagem corporal, mas tambm na infinidade das sensaes mobilizadas nos

    outros sentidos humanos.8Tais marcas de expresso so efeitos de uma vivncia que s pode

    ser captada quando se observa a capoeira a partir do plano de consistncia, onde o corpo em

    movimento conversa, encontro, jogo e vida.

    Para Deleuze e Guattari, tudo o que consiste real(1995a, p. 87). Nestes termos, o

    plano da consistncia o domnio onde as coisas so arrancadas de seus estratos (os cdigos

    que se colocam como representantes destas coisas) no momento em que so agenciadas no

    real.9

    Na consistncia do real, as coisas danam soltas de seus estratos, mas ainda assim so

    vigiadas por eles, e se entrecruzam num plano de composio. O plano de consistncia o

    espao-tempo onde se registram acontecimentos enquanto devires ou processos (DELEUZE e

    PARNET, 2004, p. 115).

    Segundo Foucault (1996, p. 57), o acontecimento se efetiva no mbito da materialidade

    e encontra seu lugar e consistncia na relao. O plano da consistncia, portanto, o espao

    real onde as coisas aconteceme onde se inscreve, portanto, o acontecimento.

    Entender a experincia enquanto acontecimento, a partir da leitura de Nietzsche (2008,

    pp. 288-294), implica em pensar a intensidade das experincias, na potncia de vida que

    carregam. Ora, se tal potncia de vida o que se verifica no foco deste olhar, a visualizao do

    corpo em movimento, enquanto acontecimento, deixa mostra sua potncia de criao e

    inveno no ato em que irrompe no real do viver.

    Pensando a capoeira deste ponto: como olhar o gesto produzido na prtica da capoeira

    e ver no s seus parmetros sistmicos que o enquadram na configurao geral de certa

    8Segundo Foucault (1979, p. 244) os discursos dizveis so aqueles que dizem o mundo atravs da expressooral. J os discursos visveis referem-se s aes mudas do corpo. Os discursos visveis so tambm chamados

    prticas no discursivas, criam modalidades de ver. Todavia, ousamos perguntar: a realidade resultante somentedestas modalidades? O ver e o sentir do conta do real? A experincia junto capoeira se permitiu ser levadatambm ao sabor das texturas, no exalar dos odores, no roar dos corpos em movimento. Assim, buscamosampliar a construo da realidade estudada atentos s modalidades que escapam aos registros do discurso.9 Sob as camadas do estrato, formam-se matrias, aprisionam-se intensidades ou fixam-se singularidades emsistemas de ressonncia e redundncia. A estratificaosistema de produo de estratoscaptura a matria e seesfora para reter tudo o que passa ao seu alcance (DELEUZE e GUATTARI, 1995a, p. 54). Todavia, amatria, a pura matria do plano de consistncia est fora dos estratos (p. 60). O que o estrato no reconhece que um cdigo indissocivel de um processo de descodificao a ele inerente (p. 68). Um cdigo comporta

    uma margem essencial de descodificao: todo cdigo possui suplementos capazes de variar livremente(p. 68).A este fenmeno, Deleuze chama de mais-valia de cdigo. As formas no permanecem imveis e paralisadasnos estratos graas ordem de uma multiplicidade instalada pelas mais-valias (p. 69).

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    habilidade especfica mas tambm os movimentos de criao e inveno do capoeirista? A

    ateno a esta questo sustentou o deslocamento analtico proposto neste trabalho.

    O olhar que visualiza a capoeira e insiste em transitar neste espao do real, em que a

    capoeira se d como acontecimento, verifica que as sequncias de ataque e defesa e os

    esquemas previamente treinados so postos prova na imprevisibilidade dos acontecimentos.

    Tal imprevisibilidade jogaas habilidades treinadas contra a parede, como que testando seus

    limites, na busca de sua reinveno.

    Em meio brevidade das relaes em ato o corpo em movimento na capoeira visto na

    densidade de sua consistncia. Deste ponto, quase que catico, acompanhamos o corpo em

    movimento na capoeira atento s prticas de constituio/inveno do capoeirista.

    2. Suspenso das pretensas intenes: por um olhar flutuante

    No plano de consistncia, portanto, o olhar investigativo foi traando seus rumos.

    Todavia, uma dificuldade insistiu: como estar atento aquilo que se passa no plano de

    consistncia, sabendo de sua natureza furtiva?

    Segundo Kastrup a seleo dos elementos que atingem os sentidos e o pensamento do

    pesquisador deve encontrar-se inicialmente suspensa. Nesta medida, a ateno aberta, sem

    foco ateno flutuante. Ao dar vazo ateno flutuante, o pesquisador opera uma

    suspenso da conscincia, entendida como domnio de intencionalidade.10 Esta suspenso

    viabiliza uma atitude que prepara para o acolhimento do inesperado. Desta forma, a ateno

    torna-se aberta ao encontro, ela simplesmente deixa vir, sem buscar algo definido (PASSOS et

    al., 2009; KASTRUP, 2004; 2005).

    Esta pesquisa, portanto, apostou na vigncia flutuante da ateno. Para tanto,suspendemos as pretensas intenes, abandonando-se num processo investigativo porvir,

    aberto ao encontro, aventura junto capoeira.11

    10 Para Kastrup a conscincia opera a ateno seletiva, assim, garante a manuteno do domnio deintencionalidade. O nvel atencional seletivo um grande obstculo descoberta, pois o pesquisador que se lanaao exerccio investigativo, sintonizado neste canal atencional, movido pelas certezas que leva consigo, portantos v aquilo que supostamente j se pretendia ver antes mesmo de investigar (PASSOS et al.,2009, p. 35-36).11O pesquisador que entende o exerccio da pesquisa como um convite aventura sabe e este o nico saber

    prvio com que pode contarque mover-se num territrio novo, diferente do seu, implica em um encontro com o

    que no conhece, com o que no procura e com o que no sabe bem o que . Esta ateno ao desconhecido, comodemarcam Alvarez e Passos, no pode ser vista como um salto no escuro da ignorncia(PASSOS et al., 2009,p. 138), afinal, o ignorante passivo, enquanto o receptivo curioso e se lana ao cultivo de uma experincia.

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    Interessante pensar no deslocamento atencional mencionado, mas como oper-lo de

    fato? Receiando que no haja uma resposta objetiva interrogativa que acossa, resta, portanto,

    deixar vir o exerccio da pesquisa, esgueirando-se na explorao da capoeira, atravs de uma

    sensibilidade aos odores, aos gostos, ao ritmo, atravs de olhares, de escutas, enfim, atravs de

    uma abertura dos sentidos no encontro com a capoeira.

    Desta forma, a escritura da pesquisa se constituiu acompanhando a emergncia deste

    exerccio de explorao afinado com a sensibilidade. Assim, vulnervel aos elementos que

    consistem no territrio estudado, deixamo-nos afetar, suspendendo a pretenso de uma

    inteno suposta, alheia ao plano de experincia, para fazer pesquisa na levada dos afetos. Para

    dar conta deste desafio, buscamos pistas no princpio da cartografia.

    3. Cartografia: anlise de processos

    No volume primeiro da obra Mil Plats (1995a), Gilles Deleuze e Flix Guattari

    apresentam o princpio da cartografia. Segundo estes autores, a cartografia surge como um

    princpio inteiramente voltado para uma experimentao ancorada no real(p.22).

    luz deste princpio lanamos o desafio de pesquisar a capoeira ancorado no plano

    dos acontecimentos, onde a capoeira se d como evento no corpo e no jogo.

    Ora, se foi a partir deste ponto que a investigao traou seus caminhos, a pesquisa no

    se acomodou nem l, no mbito dos conhecimentos que representam a capoeira, nem c, na

    contingncia sempre eventual dos acontecimentos. A pesquisa caminhou entre o conhecer e o

    fazer, entre a teoria e a prtica, entre o sujeito e o objeto, entre o prprio exerccio de pesquisar

    e o movimento de intervir junto ao espao da pesquisa (PASSOS et al., 2009).

    O espao entre no qual a pesquisa se direcionou deu-lhe um carter rizomtico.Segundo Deleuze (1995a, pp. 31-32) o pensamento do tipo rizoma diferente do pensamento

    do tipo raiz: enquanto este feito de unidades as representaesaquele feito de direes

    movedias.

    O rizoma no tem comeo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e

    transborda(DELEUZE e GUATTARI, 1995a, p. 32).Este meio

    no uma mdia; ao contrrio, o lugar onde as coisas adquirem velocidade.Entre as coisas no designa uma correlao localizvel que vai de uma para

    a outra e reciprocamente, mas uma direo perpendicular, um movimentotransversal que as carrega uma e outra, riacho sem incio nem fim, que ri

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    suas duas margens e adquire velocidade no meio(DELEUZE e GUATTARI,1995a, p. 37).

    A raiz, por outro lado, abre caminho para um pensamento que cresce como uma rvore

    modelo arborescente. Sob esta perspectiva o pensamento vai do geral para o particular, do

    princpio consequncia, na busca por uma fundamentao que ancore este pensamento num

    solo de verdade (DELEUZE e GUATTARI, 1995a).

    O pensamento do tipo rizoma, prprio da cartografia, confirma o primado da

    experimentao sobre a ordem prvia da aplicao do mtodo. Assim argumentam Passos &

    Barros (2009) sobre a cartografia:

    O desafio o de realizar uma reverso do sentido tradicional de mtodonomais caminhar para alcanar metas pr-fixadas (met-hdos), mas oprimado do caminhar que traa, no percurso, suas metas (PASSOS et al.,2009, p. 17).

    O pensamento cartogrfico remete, portanto, experimentao. Decidir-se por este

    exerccio de pesquisa implica em assumir pelo menos trs consequncias: 1) pensar no

    representar, portanto, a pesquisa no busca uma adequao a uma suposta realidade objetiva;

    2) no h comeo real seno no meio, portanto, no se busca a origem, mas se mapeiam osmovimentos do devir12; 3) todo encontro possvel, desde que se amenizem as pretenses por

    uma verdade a descobrir e se d acesso a um tateamento cego e sem apoio, que no tenha

    outras prerrogativas seno aquelas ancoradas no cerne da experimentao

    (ZOURABICHVILI, 2009, p. 53).

    Segundo Kastrup, a cartografia assume uma perspectiva construtivista do

    conhecimento, evitando tanto o objetivismo quanto o subjetivismo (PASSOS et al., 2009, p.

    49). Assim, o conhecimento produzido no se enquadra como representao, tampouco efeito de um ponto de vista subjetivo e relativista: o conhecimento surge como composio.

    A cartografia, portanto, s encontra um campo de investigao no passo entre

    objetividade e subjetividade. No caso da pesquisa em questo este campo se constituiu no

    passo entre o pesquisador, o sujeito (o capoeirista) e a capoeira.

    12Na obra Dilogos, Deleuze reflete sobre devir nos seguintes termos: Devir nunca imitar, nem fazer como,nem se conformar a um modelo, seja de justia ou de verdade. No h um termo do qual se parta, nem um ao

    qual se chegue ou ao qual se deva chegar. Tampouco dois termos intercambiantes. [...] Os devires no sofenmenos de imitao, nem de assimilao, mas de dupla captura, de evoluo no paralela, de npcias entredois reinos(DELEUZE e PARNET, 2004, p. 12).

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    4. Resumo dos captulos

    No primeiro captulo ocupamo-nos em situar a pesquisa dentro de um plano tico. Ao

    assumir uma investigao do corpo em movimento na capoeira, abrimos um campo de

    discusso sobre o cuidado de si.

    A noo de cuidado de si aponta para a necessidade de olhar o sujeito que se modifica

    e que se constri atravs das prticas que toma para si. Neste sentido, o primeiro captulo

    busca ajustar o olhar investigativo, movendo-o verificao das invenes de uma

    subjetividade em elaborao, enquanto arte do viver.

    Para mobilizar a noo de cuidado de si, buscamos respaldo nas obras de Foucault:

    Histria da SexualidadeI, II e III (1985, 1984, 2002), AHermenutica do sujeito(2006a) e

    textos da coleoDitos e Escritos, volumes II, IV e V (2006bcd).

    Junto a esta ideiade um sujeito que se ocupa consigo para lapidar a arte de seu viver

    aproximamos os estudos de Nietzsche, especialmente as obras Vontade de Poder (2008),

    Ecce Homo (2003), Assim Falou Zaratusta (2007) e Genealogia da Moral (1998), para no

    perder de vista o corpo em movimento no exerccio de inveno de si. O dilogo entre estas

    leituras movidas num plano tico funcionou como exerccio preliminar investigao.

    No segundo captulo mapeamos o exerccio de aproximao e implicao junto

    capoeira. Tal mapeamento exps as relaes e singularidades descobertas em campo,

    compondo o percurso metodolgico.

    Observamos a necessidade de uma disposio junto prtica da capoeira, o que

    reclamou por um exerccio de cultivo que lanou a pesquisa-interveno no tempo da

    vadiao. Em meio instalao do tempo da vadiao, surgiu a possibilidade de registrar osrelatrios da pesquisa (dirios e entrevistas), como exerccios de uma visibilidade implicada na

    relao entre pesquisador e sujeitos. Atravs desta visibilidade implicada, mobilizamos os

    estudos realizados sobre pesquisa cartogrfica, dissoluo do humano na escrita, campo

    implicacional e escrita co-autoral, bem como questes metodolgicas, como a questo da

    induo na conduo das entrevistas e a suposta neutralidade do pesquisador frente

    investigao que, supostamente, conduz. A capoeira ofereceu elementos para a mobilizao

    destes estudos, permitindo desloc-los segundo a ordem dos relacionamentos entrepesquisador e sujeitos.

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    A partir do mapeamento constitudo no segundo captulo, vimo-nos s voltas com as

    intensidades emersas na experincia investigativa trilhada. Frente a tais intensidades,

    buscamos respaldo nos estudos de Deleuze, especialmente na obra Diferena e Repetio

    (2006). Assim, assumimos uma verificao da capoeira pautada pela prpria materialidade

    constituda, entendendo-a como campo problemtico, movimentado pelas ideias e

    multiplicidades forjadas na investigao.

    No terceiro captulo ocupamo-nos com estas ideias e multiplicidades descobertas

    compondo-as em trs campos de problematizao: o tempo da vadiao, a aprendizagem da

    malcia e da dissimulao e a experincia ritual da roda. Estes campos de problematizao

    dispararam constituio da anlise, permitindo observar as prticas atravs das quais os

    capoeiristas se constituem.

    Estivemos atentos aos movimentos que atravessam estas prticas, deslocando-as. A

    ateno ao tempo da vadiao colocou a investigao face prtica movida pelo gosto e frente

    construo inslita do corpo receptivo, abrindo condies para experimentar a potncia de

    disfarce da ginga, a humildade como atitude emersa na vulnerabilidade e a dissoluo do

    treino fsico no espao da convivncia. A ateno aprendizagem da malcia e da

    dissimulao permitiu acompanhar as potncias emersas sob as habilidades treinadas, a

    movimentao espiral, a malcia contra a farsa do aprender, o desafio da escuta no jogo com o

    outro e o corpo em cena na dissimulao. O convite roda de capoeira colocou-nos face

    instalao ritual, abrindo a possibilidade de pensar a experincia de intensificao dos

    sentidos, o ritmo como potncia de dissoluo, o centro da roda como zona do sagrado e as

    relaes cambiantes entre a roda de capoeira e a grande roda da vida.

    No quarto e ltimo captulo, servimo-nos das prticas observadas no captulo anterior

    para situar o sujeito tico na capoeira. Estivemos atentos s possibilidades de aproximaoentre o plano da experincia e os estudos realizados no primeiro captulo sobre a noo de

    cuidado de si e vontade de poder. Deste ponto referencial observamos como o capoeirista faz

    sua experincia de si e articula, deste ponto, no perdendo si mesmo de vista, sua relao com

    o mestre, com o outro e com a tradio da capoeira, constituindo assim, em movimento, a arte

    de seu viver.

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    IIIJUSTIFICATIVA SOBRE A IMPORTNCIA DO TEMA

    A capoeira tem despertado o interesse de muitos pesquisadores nas Cincias Humanas

    e Sociais, na Educao e na Educao Fsica13. Das senzalas s academias de ginstica, da

    vadiagem ilcita ao status de uma expresso cultural, da excluso scio-econmica

    manipulao mercadolgica na atualidade, dos discursos de afirmao do legado afro-

    brasileiro afinidade multicultural, das ruas s escolas, a capoeira se oferece por diversos

    ngulos a quem a ela se dispe olhar. A viso projetada sobre a capoeira traa um discurso que

    acomoda esta manifestao a uma ordem instalada no cenrio social.

    Sob este enquadramento a capoeira resumida: a um produto de mercado, a uma

    modalidade competitiva (marcial, cultural, ou artstica), a uma expresso tnica, a um campo

    educativo, enfim, a habilidade analtica contorna uma verdade sobre esta manifestao, sempre

    vigilante capacidade de interpretao deste objeto na ordem possvel de verificao sob os

    termos do conhecimento.

    O que possvel saber sobre a capoeira? Quando se trata de fundar um discurso que a

    represente tudo possvel, desde que a experincia do sujeito e do pesquisador com a capoeira

    seja resumida nesta ordem objetiva de verificao. Ora, no seria possvel ter a dizer sobre a

    capoeira sem resumir a experincia investigativa que ata, num mesmo plano a experincia

    com a capoeirapesquisador e capoeirista?

    Primeiramente seria pertinente esclarecer que resumo este que afirmo ser operado.

    Seria negligente prosseguir sem, ao menos, pontuar a crtica tecida subliminarmente nestas

    breves linhas. S para instigar uma discusso que ir perpassar toda pesquisa, digamos, por

    enquanto, que o resumo se instala no enquadramento do olhar analtico, como exigncia

    objetiva na busca de uma evidncia, ou melhor, de uma exatido sobre o objeto verificado.Esta prerrogativa da anlise tem diversas formas de expresso no mbito das cincias e est

    13A pesquisa bibliogrfica dedicou-se a um denso rastreamento dos estudos sobre capoeira. Verificou-se umasrie de pesquisas cientficas e uma infinidade de livros a respeito. Muito deste material no tem ampladivulgao, por ser um material impresso por editoras e/ou rgos de alcance Regional. Como selecionar todoeste material? Esta questo preocupou-nos, pois o campo de estudos sobre a capoeira muito amplo. Os critriosutilizados na seleo destes estudos foram: a atualidade do material; sua relevncia no campo cientfico; suainsero no campo das Cincias Humanas, na Educao e na Educao Fsica. A partir deste material analisado as

    preocupaes de pesquisa foram situadas, o que permitiu a reiterao do mpeto, a partir do qual a investigao

    em pauta foi mobilizada: por que revisitar a capoeira no campo da pesquisa, sabendo da infinidade deinvestigaes j existentes na literatura? Nesta ltima seo de introduo, dedicamo-nos a uma resposta a estaquesto.

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    to fortemente fixada nos modos de pensar que muitas vezes difcil escapar dela. Em funo

    desta perspectiva imperativa, que de to corrente tornou-se quase natural, o foco do olhar

    constitudo mediante uma realidade forjada na objetividade, a partir da qual se constitui a

    iluso de que o esforo de todo sujeito centraliza-se prioritariamente na busca de sua

    acomodao neste quadro objetivo e sistmico posto.

    Antes de assumir uma postura crtica declarada sobre esta tica, atrevo-me a evoc-la

    mesmo que numa brevidade inconseqentepara ilustrar certa forma de ver diferente daquela

    assumida nesta pesquisa. A investigao em pauta ousa assumir um deslocamento na forma do

    olhar.

    Geralmente hesitamos quando o assunto abrir mo do lugar de observao. Ter que se

    submeter desagradvel injuno de desinstalar um olhar devido para dar acesso a outra

    dimenso de entendimento passa pela necessidade de um despojamento, sem o qual o

    deslocamento proposto no procede.

    Visto desta forma, no h o que resumir, quando o resumo prerrogativa anlise, no

    h espao para se instalar um questionamento quando este no atende s condies institudas

    sobre as quais se assenta uma trilha objetiva de conhecimento.

    justamente para garantir uma liberdade maior na expresso dos desassossegos que

    esta pesquisa denuncia o resumo arbitrrio operado sobre o sujeito no caso aqui, nos

    discursos sobre a capoeira para apostar numa outra disposio de entendimento que resgate

    pesquisador e capoeirista num mesmo plano de investigao: a experincia com a capoeira.14

    Mais do que um cenrio marcado pela excluso, pela especulao mercadolgica, pela

    tendncia competitiva, pela afirmao tnica ou pela afinidade multicultural, a capoeira

    apresenta um discurso bem mais primordial: aquele que faz referncia ao sujeito na

    constituio (inveno) de seus modos de ser. Este discurso est inscrito nos msculos destesatuantes e so expressos nas potencialidades corporais, na ousadia de experimentar, na

    coragem de errar, nas interaes do sujeito com o outro, no prazer e na dor de enfrentar a

    imprevisibilidade da roda, enfim, nas possibilidades de problematizao da capoeira enquanto

    experincia: enquanto prtica de inveno de si.

    14

    Neste quadro diferencial situamos as obras de Alvarez - O aprendizado da capoeira angola como cultivo da ena tradio (2007); Silva - O corpo na capoeira (2008) e Baro - A performance ritual da roda de capoeira(1999). Durante todo este trabalho, manteremos um dilogo especialmente com estas obras.

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    Neste ponto, a pesquisa que aqui se engendra no busca uma representao da

    capoeira, portanto, distancia-se da inteno de contornar um conhecimento terico (mathsis)

    que desterra indefinidamente uma verdade sobre o sujeito que busca esta prtica. Como efeito,

    a investigao no pousa seu olhar sobre o sujeito do conhecimento. Trata-se de uma

    investigao atenta ao sujeito tico que problematiza seus modos de ser ao escolher e elaborar

    para si um saber prtico (skesis) que move a inveno de si.

    A fala de mestre Marcial d pistas que ajudam a deslocar o olhar na direo do sujeito

    tico em detrimento do sujeito do conhecimento. Quando indagado sobre o significado da

    capoeira na sua vida, o mestre assim se expressou:

    Capoeira [...]a gente no pra muito pra pensar o significado dela... acabasendo uma coisa natural do dia-a-dia, natural da vida da gente n, e acabano parando at pra analisar, vamos dizer... pra ver tudo que ela [...]Notem... [risos]no tem muita explicao... mas capoeira pra mim ...[pausa]

    filosofia de vida, o jeito de viver, atravs da capoeira que eu construminha famlia... minha esposa eu encontrei dentro da capoeira e hoje meus

    filhos tambm so todos da capoeira. [...] todo dia pensando e vivendo erespirando a capoeira, sabe... sem ter muita explicao, [...] o meu modode viver, o meu jeito de viver e o meu meio de viver, meu meio de vidatambm. (Entrevista realizada em 01/11/2008).

    A seu modo, mestre Marcial ginga com a pergunta a ele direcionada evitando uma

    resposta cabal que defina o significado da capoeira sob os termos do conhecimento terico. Ao

    dizer: a gente no pra muito pra pensar o significado dela e, logo depois demarcar: todo

    dia pensando e vivendo e respirando a capoeira , o mestre despoja o significado em ato,

    denunciando a pretenso de um suposto saber sobre a capoeira, para liberar acesso capoeira

    como modo de viver, isto , como saber prtico que constitui e elabora uma tica no trao

    de uma esttica: a vida junto capoeira.

    A resposta forjada pelo mestre ajusta a proposio implcita na questo de partida,

    mobilizando-se na direo das prticas atravs das quais o capoeirista se constituiu enquanto

    tal. A sensibilidade a este deslocamento a este ajuste tornou possvel a mediao de uma

    atitude crtica, moda foucaultiana, na qual se procura mapear os efeitos de subjetivao a

    partir da prpria existncia de discursos que pretendem dizer uma verdade para o sujeito

    (CANDIOTTO, 2010, p. 125).

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    esta capoeira que interessa investigar. Todavia, como observ-la sem que o ponto de

    vista da objetividade cientfica que regulamenta a definio do conhecimento terico a

    perca de vista? Apostando na experimentao do pensamento.

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    CAPTULO I

    PRELDIO EXPERINCIA INVESTIGATIVA

    IPISTAS PARA UM PLANO TICO

    Antes da investigao, permitam-me levar a escrita a um passo atrs da experincia,

    no para demarcar seus fundamentos, mas para alertar sobre a eminncia do sem fundo,1que

    reclama pela inexorvel dissoluo das intenes supostas (as pretenses de uma verdade a

    saber) frente s relaes porvir junto aos sujeitos (o plano da experincia).

    A questo de partida desta pesquisa j nos coloca s voltas com o sem fundo. Assim

    indagamos: como o sujeito faz uso de suas potencialidades e vontades para tomar para si a

    capoeira e fazer desta apropriao uma prtica de constituio (inveno) de si mesmo? Ao

    voltarmos os olhos sobre esta questo, propomos pensar as prticas atravs das quais o

    capoeirista se constitui enquanto tal, assim nos desviando da tarefa de representar uma

    pretensa concepo sobre a capoeira (fundando-a), para se ocupar com uma capoeira que se

    cria e se recria no exerccio do capoeirista ao colocar-se em movimento nessa prtica. Eis a,

    neste desvio, as voltas do pensamento ao redor do sem fundo.

    Para ajudar na composio do pensamento ao redor deste sem fundo, apostamos numa

    leitura sobre a noo de cuidado de si mesmo em Foucault. A noo de vontade de poder em

    Nietzsche tambm ajuda nesta composio, movendo-nos a algumas aproximaes tericas

    que sero mobilizadas na anlise da experincia investigativa.

    Para no arriscar, de modo precipitado, uma aproximao conceitual indevida, optamos

    pela escrita deste captulo introdutrio. A discusso que aqui se engendra no pretende esgotar

    a verificao do cuidado de si e da vontade de poder, tampouco sustentar uma aproximaolinear entre estes conceitos, como se o desdobrar de uma reclamasse necessariamente pela

    emergncia da outra. No se trata, portanto, de pontuar, mas dispersar; compor ao invs de

    sistematizar, na busca por pistas que ajudem na manuteno de uma atitude de abertura face ao

    que h de vir na investigao. Assim, ousamos experimentar, de partida, um olhar do cuidado

    de si, atravs do qual sentimos o despontar de uma vontade: a potncia de inveno de si.

    1 Segundo Deleuze, o fundamento age no mago da representao para determin-la. Assim, o fundamento

    determina as possibilidades de investigao, luz da representao. O sem-fundo, por outro lado, foge aoenquadre da representao, forando o pensamento a pensar ao redor deste ponto de a-fundamento (2006, pp.377-382).

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    1. A capoeira pelo olhar do cuidado de si

    Por cuidado de si mesmo entendo a atitude que mobiliza o sujeito posse de uma

    tcnica (arte) de viver. O cuidado de si mesmo o imperativo que desencadeia os movimentos

    de apropriao do sujeito: o que o mobiliza a ocupar-se consigo.

    Ora, o sujeito s se apropria seja do que for quando mobilizado por um poder nele

    prprio emerso, que o habilita a inventar a si mesmo, segundo seu modo de conduzir a prpria

    vida. Nesta inveno, o sujeito lapida a si mesmo, como uma obra de arte. Deste modo, o

    cuidado de si tambm a prticao conjunto de ocupaesque faz do sujeito um arteso da

    beleza de seu viver.

    Tomemos o capoeirista, como exemplo: este sujeito faz uso de suas capacidades e

    potencialidade para inscrever a tcnica da capoeira em seu modo ser. Esta inscrio se faz

    atravs de um labor, em que se observa certa preparao que leva o capoeirista a se constituir

    enquanto tal. O curso desta preparao o movimento do cuidado de si mesmo.

    Antes de acompanhar o curso desta idia no exerccio investigativo, reservamos um

    breve momento de reflexo sobre as referncias que inspiram a compreenso da noo de

    cuidado de si mesmo nestes termos.

    1.1. Foucault e o cuidado de si mesmo

    No curso proferido em 1982, no Collge de France: A Hermenutica do sujeito

    (2006a), Foucault d especial ateno noo de cuidado de si mesmo. Do dilogo socrtico

    Alcebades I2, aos pensadores da cultura helenstica e romana do sculo I e II, Foucault

    2Alcebades I um dilogo de Plato, no qual Scrates trava uma conversa com Alcebades. O dilogo trata demostrar que Alcebades devia ocupar-se consigo mesmo a fim de poder governar como convinha. Alm disto, odilogo de Alcebades traz cena uma necessidade: ser preciso ocupar-se consigo em qualquer situao

    porque toda e qualquer pedagogia incapaz de n-lo assegurar. Ser preciso ocupar-se consigo durante toda avida... (p.95). Todavia, como assinala Foucault, Alcebades ver no conhecimento e no nas prticas de si omovimento, atravs do qual, o individuo deve se preocupar consigo (p. 96). O que caracteriza o cuidado de si natradio platnica e neoplatnica que o cuidado de si encontra sua forma e sua realizao no conhecimento desi. Este conhecimento, enquanto expresso maior e soberana do cuidado de si o que d acesso verdade e verdade em geral(p. 96). O dilogo do Alcebades, como mostra Foucault, efetua o que se poderia chamar

    de recobrimento propriamente platnico, recobrimento do [...] cuidado de si pelo conhecimento de si. (p.508). O modelo platnico e o modelo cristo se opem ao modelo helenstico. Diferentemente do modeloplatnico, o modelo helenstico no identifica cuidado de si e conhecimento de si nem absorve o cuidado de si

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    (2006a) visualiza as prticas, atravs das quais os sujeitos foram convocados a deslocar o olhar

    sobre si mesmosprticas de si.3

    Para Foucault, a noo de cuidado de si mesmo amplificou-se no curso da histria, de

    modo que suas significaes foram multiplicadas e deslocadas tambm. O cuidado de si

    extravasou de seu quadro de origem, se desligando de suas significaes filosficas

    primeiras para adquirir, progressivamente, as dimenses e as formas de uma verdadeira

    cultura de si4(FOUCAULT, 2002, p. 50).

    Assim, nos domnios de uma cultura de si, pode-se considerar de modo bem geral que

    o cuidado de si: uma atitude geral, um certo modo de encarar as coisas, de estar no mundo,

    de praticar aes, de ter relaes com o outro. O cuidado de si mesmo uma atitude para

    consigo, para com os outros, para com o mundo(FOUCAULT, 2006a, p. 14).

    Tem-se cuidado consigo quando se converte o olhar do exterior, dos outros, do mundo,

    para si mesmo. Todavia esta converso do olhar no to simples assim. A vigilncia

    necessria sobre si mesmo nada opera se no promover um movimento global da existncia

    (FOUCAULT, 2006a).

    O deslocamento do sujeito em direo a ele mesmo desenha uma trajetria que envolve

    riscos para o sujeito. Para tanto, o sujeito deve estar preparado para enfrentar este caminho,

    investindo todas as suas potencialidades e toda a sua ateno neste processo. Assim, a

    trajetria, isto , a converso de si, implica em um saber, sem o qual, o sujeito no consegue

    pilotar sua prpria conduo de si (FOUCAULT, 2006a).

    A esta pilotagem, os gregos e romanos tentavam estabelecer uma tkhne, ou seja,

    uma arte, um sistema refletido de prticas relacionado a princpios gerais, a noes e a

    conceitos(FOUCAULT, 2006a, p. 303).

    Segundo Fimiani, a noo de cuidado de si mesmo constitui o conceito central da ideiafoucaultiana da conduo de si (2004, p. 111). O sujeito conduz a si mesmo quando dobra sua

    ateno e seus esforos no exerccio de prticas, a partir das quais o sujeito se implica para se

    no conhecimento de si. Ao contrrio, tende a acentuar e privilegiar o cuidado de si, a preservar-lhe pelo menos aautonomia em relao ao conhecimento de si, cujo lugar [...] afinal limitado e restrito (p. 313): eis a oengodo que chama a ateno de Foucault e que o faz recorrer verificao das prticas de si nos gregos eromanos do sculo I e II, para, deste ponto, observar as expresses do cuidado.3Por prticas de si possvel entender, segundo a leitura de Foucault, as atividades que so exercidas sobre si,isto , as atividades que encontram sua completude e satisfao somente no eu (FOUCAULT, 2006a).4

    Segundo Foucault, a cultura de si se encontra dominada pelo princpio do cuidado de si: esse princpio docuidado de si que fundamenta a sua necessidade, comanda o seu desenvolvimento e organiza a sua prtica (FOUCAULT, 2002, p. 49).

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    constituir enquanto tal. Deste modo, o sujeito constitui a si mesmo, medida que volta o olhar

    na direo das prticas de si.5

    H algo de perturbador no cuidado de si que impede de enquadr-lo sob os termos do

    conhecimento.6 Mediante esta injuno, pensar o princpio do cuidado de si implica,

    necessariamente, a observao de uma forma de pensamento diferenciada daquela circunscrita

    pelo pensamento cartesiano. No curso deste deslocamento Foucault situa a noo de

    espiritualidade como modalidade que daria acesso ao cuidado de si.

    1.2. Momento cartesiano

    No momento em que se admitiu que o que d acesso verdade o conhecimento e to

    somente o conhecimento a Idade Moderna se inicia.7No reconhecimento deste deslocamento o

    momento cartesiano encontra seu lugar e seu sentido (FOUCAULT, 2006a).

    A Idade Moderna inaugura outra era da histria das relaes entre subjetividade e

    verdade. Uma era em que o sujeito busca a verdade esgueirando-se nas possibilidades de

    tratamento desta verdade sob os limites impostos pelo conhecimento. Neste ponto o

    pensamento moderno estrutura sua pergunta fundadora: o que possvel saber? Este

    questionamento interroga no certamente sobre o que verdadeiro e sobre o que falso,

    mas sobre o que faz com que haja e possa haver verdadeiro e falso, sobre o que nos torna

    possvel ou no separar o verdadeiro do falso(FOUCAULT, 2006a, p. 19).

    5Segundo Foucault, em sua leitura do cuidado de si na antiguidade clssica, prticas de si so aes exercidasde si para consigo mesmo, [...].Da uma srie de prticas que so, na sua maioria, exerccios (2006a. p. 14-15).6Na obraA Hermenutica do Sujeito(2006a), Foucault evidencia as armadilhas de se colocar a frmula conhece-

    te a ti mesmo, como regra geral atravs da qual se assegura o cuidado de si mesmo. A aplicao concreta, precisae particular deste cuidado de si, traz, por consequncia, uma espcie de subordinao deste preceito, como se aexpresso do cuidado s fosse legtima aos olhos deste conhecer implcito na frmula conhece-te a ti mesmo. Sobeste olhar, o cuidado s se efetiva se evidenciar uma expresso de si na referncia a uma expresso devida. Nesteenquadramento, antes da inscrio autoral do cuidado, firma-se um compromisso com uma autoridade de direito,anterior ao autor de fatoao sujeito enquanto tal. Segundo Foucault o que est prescrito na frmula conhece-te ati mesmo no o conhecimento de si, antes esta prescrio sugere imperativos gerais de prudncia (2006a).7Quando precisamente este deslocamento foi operado? Foucault muito cuidadoso ao pontuar historicamente osacontecimentos. As rupturas e os deslocamentos das formas de pensamento no so to claramente demarcadosno linear da histria. Ao pontuar com preciso a figura de Descartes como marco, a partir do qual o pensamentomoderno se edificou, se assume uma catalogao da histria. Como efeito, a reflexo sobre a histria torna-seuma tarefa secundria. Para evitar esta reduo Foucault prefere lidar com a expresso momento cartesiano, atmesmo para resgatar a noo de temporalidade, como espao de acomodao e ajuste que diz respeito no s a

    um esquadrinhamento cronolgico, mas disperso deste enquadre que escapa ao registro cabal da histriaoficial. A noo de momento cria um meio propcio reflexo dos processos e das transformaes a

    constitudas (FOUCAULT, 2006; 2009).

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    A noo de saber assentada no conhecimento baseia-se em uma estrutura lgica e

    racional que permite ao sujeito do saber certo domnio sobre o objeto (o elemento sobre o qual

    o pesquisador se dobra na investigao). Sob estes termos, o saber engendra-se por um

    conhecimento do objeto. A verdade que a se produz s, e somente s se sustenta enquanto tal

    nos domnios deste conhecimento.8

    Sendo assim, o pensamento moderno deixa de considerar as prticas de si. Assim

    salienta Foucault:

    O conhecimento se abrir simplesmente para a dimenso indefinida de umprogresso cujo fim no se conhece e cujo benefcio s ser convertido, nocurso da histria, em acmulo institudo de conhecimentos ou em benefciospsicolgicos ou sociais que, no fim das contas, tudo o que se consegue daverdade, quando foi to difcil busc-la(FOUCAULT, 2006a, p. 24).

    Convm demarcar, como pontua Foucault, que durante a Antiguidade, o tema da

    filosofia (como ter acesso verdade?) e a questo da espiritualidade (quais as transformaes

    necessrias no ser mesmo do sujeito para se ter acesso verdade?) jamais estiveram separados.

    S muitos sculos depois que esta ciso entre filosofia e espiritualidade ser uma marca de

    definio sobre a perspectiva do pensamento (FOUCAULT, 2006a).

    Importante salientar, no entanto, quais so os termos desta ciso. Descartes como a

    grande figura do pensamento filosfico moderno no nega a espiritualidade. Na obra

    Meditaes (1962) Descartes parte justamente desta espiritualidade para constituir seu

    fundamento de cientificidade: ser sem dar margem dvida.

    O preo a ser pago por esta fundamentao a constituio de um saber que se limita a

    conhecer. Descartes sabe que no compreende isto que da ordem da espiritualidade o

    infinito e Deusmas, mesmo que ele no compreenda, nem talvez alcance pelo pensamento,

    ainda assim pode conhec-lo. Para tanto:basta que eu conceba bem isto, e que julgue que todas as coisas que conceboclaramente, e nas quais sei que h alguma perfeio, e talvez tambm umainfinidade de outras que ignoro, esto em Deus formal ou eminentemente,para que a ideia que dele tenho seja a mais verdadeira, a mais clara e a mais

    8Para alcanar a verdade a partir do conhecimento do objeto, diz Foucault sobre o pensamento cartesiano: bastaraciocinar com sanidade, de maneira correta e, mantendo constantemente a linha da evidncia sem jamaisafroux-la, e seremos capazes de verdade (2006a, p. 234). Sobre esta trilha o saber do conhecimentooperacionaliza sua lgica. Mais adiante no curso da histria, Kant suplementa esta perspectiva ao considerar que

    na prpria estrutura do conhecimento se constituem os limites do conhecer, de modo que parece quimrico eparadoxal pensar num saber que no pode ser reduzido sob os termos do conhecimento (FOUCAULT, 2006, p.235).

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    distinta dentre todas as que se acham em meu esprito(DESCARTES, 1962,p. 151).

    Como desdobramento, contorna-se o mbito de um possvel saberque sabe que no

    compreende uma infinidade de coisas, mas que ainda assim pode conhec-las. Descartes no

    s reconhece esta inabilidade de compreenso do conhecimento, mas tambm forja seu

    fundamento de cientificidade a partir desta inabilidade:

    No s posso conhecer o infinito sem o compreender, mas o conhecimentodesta incompreensibilidade me concebe um conhecimento verdadeiro einteiro do infinito, embora eu tenha apenas um conhecimento parcial do queele contm(DESCARTES, 1962, p. 151, nota 83).

    Ao definir desta forma o modo atravs do qual se abre acesso ao saber, percebe-se que

    esse modo inteiramente definido pelo conhecimento.

    Segundo Foucault, a filosofia define seu ponto de vista a partir desta concepo de

    saber e com isto, o pensamento filosfico sobrepe as funes da espiritualidade ao ideal de

    um fundamento da cientificidade (2006d, pp. 279-280).

    Ao forjar um acesso verdade atravs do conhecimento, a Idade Moderna firma a

    verificao de toda experincia luz da evidncia do elemento que possibilita adeterminao do saber. Desta forma, o campo da conscincia invade o espao do saber e barra

    a possibilidade da dvida, permitindo a definio do procedimento filosfico-cientfico.

    Sob o domnio da conscincia, portanto, a produo do conhecimento se engendra na

    Idade Moderna. A forma como este conhecimento forjado define a existncia prpria do

    sujeito enquanto ser, permitindo, nesta dimenso do possvel saber, o acesso do sujeito

    verdade. Aquilo que escapa a esta ordem de apreenso no produz conhecimento, pois a

    conscincia, enquanto faculdade do entendimento e de definio do sujeito enquanto ser, noalcana aquilo que a ela no se mostra evidente. Nesta inabilidade da conscincia transita o

    cuidado de si mesmo em sua irredutibilidade.

    1.3. Momento do cuidado de si

    Ora, se a conscincia s alcana o cuidado de si em sua forma especular, enquanto

    prescrio, no exatamente nesta forma de conhecimento que o acesso ao cuidado de si

    liberado.

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    Na histria do ocidente, o cuidado de si alcanou espaos de expresso atravs da

    espiritualidade, no entanto, cabe perguntar: que espiritualidade esta que d acesso ao cuidado

    de si? No se trata aqui de uma espiritualidade crist que dilui o sujeito num horizonte de

    abnegao, sacrifcio e renncia de si. Trata-se muito mais de uma espiritualidade elaborada

    pela filosofia antiga, na qual se inscreve um conjunto de prticas, sem as quais no se

    conquistam as condies necessrias elaborao dos modos de vida.9

    Foucault chama de espiritualidade o conjunto de buscas, prticas e experincias [...]

    que constituem, no para o conhecimento, mas para o sujeito, [...]o preo a pagar para ter

    acesso verdade (2006a, p. 19). Tal conjunto constitui uma tecnologia de si (prticas de si),

    pela qual o sujeito que dela se apropria toma para si certa arte/tcnica de viver.10

    Sob os domnios da espiritualidade o acesso ao cuidado de si s possvel atravs de

    uma tkhne to bou (uma arte/tcnica de viver).11Ao se acomodar sob os termos de uma

    tcnica, o cuidado de si suporta certa articulao racional e prescritiva, no entanto, esta

    prescrio aponta para a necessidade de uma atuao, uma atitude, que mobiliza o sujeito

    prtica de certa arte de viver. este apontamento, portanto, que mobiliza a prescrio,

    forando-a a um despojamento que a converte em prtica e nesta prtica que a

    espiritualidade ganha visibilidade.

    A espiritualidade, pelo menos como aparece no ocidente, tem trs caractersticas.

    Primeiramente postula que um simples ato de conhecimento no d pleno direito verdade

    9Foi na filosofia antiga que o tema da elaborao de modos de vida ganhou especial ateno, portanto, falar emcuidado de si implica em revisitar este perodo peculiar da filosofia, onde se constituram esquemas de existncia

    atentos ao cuidado de si atravs da proposta de exerccios espirituais. Uma dificuldade, no entanto se instala:

    o modelo cristo utilizou e repatriou as expresses do cuidado constitudas no modelo helenstico, aclimatando-ase elaborando-as para fazer delas alguma coisa que hoje equivocadamente chamamos de moral crist(FOUCAULT, 2006a, p. 314). Tal injuno impede que olhe-se para a cultura helenstica sem se contaminar coma viso que a tradio crist to firmemente assentou na modernidade.10Foucault toma por referncia, pelo menos em parte, os estudos de P. Hadot para compreender a espiritualidadena filosofia antiga e, deste ponto, insiste na observao do sujeito tico aquele suposto pelas artes da existnciana prtica dos exerccios espirituais em detrimento de um sujeito ideal de conhecimento. Segundo Gros, o queinteressa para Foucault, em sua leitura de P. Hadot a compreenso da filosofia antiga como elaborao demodos de vida, de esquemas de existncia atravs da proposta de exerccios espirituais, arte de viver (2008, p.128-129).11Segundo Foucault, assistimos na poca do alto imprio romano uma reverso entre tcnica de vida e cuidado desi. A partir desta reverso, se quisermos efetivamente definir como convm uma boa tcnica de vida, no pelocuidado de si que devemos comear. Doravante, parece-me que no somente o cuidado de si atravessa,

    comanda, sustenta de ponta a ponta toda a arte de viverpara saber existir no basta saber cuidar-se, mas atkhn to bou (a tcnica da vida) que se inscreve por inteiro no quadro doravante autonomizado em relao aocuidado de si(2006a, pp. 543-544).

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    para o sujeito, pois a verdade no simplesmente o que dado ao sujeito a fim de preencher

    sua vontade por conhecimento.

    A vontade por conhecimento na espiritualidade mais do que uma contingncia, uma

    prtica, portanto, para se ter acesso verdade preciso e isto nos leva segunda

    caracterstica da espiritualidadeque osujeito se modifique [...]torne-se, em certa medida e

    at certo ponto, outro que no ele mesmo, para ter direito ao acesso verdade. A verdade s

    dada ao sujeito a um preo que pe em jogo o ser mesmo do sujeito (FOUCAULT, 2006a,

    p. 20).

    A este movimento de se colocar em jogo Foucault chama de ros.12Este movimento

    arranca o sujeito de seu status e de sua condio atual, enquanto sujeito cognoscente13,

    colocando-o em relao.

    Todavia, tal processo no gratuito e isto nos leva terceira caracterstica da

    espiritualidade: um esforo progressivo necessrio para que este colocar-se em jogotenha

    intensidade. O sujeito o prprio responsvel por um longo labor concentrado na escuta de si

    mesmo que, progressivamente transforma-o em seu ser em si. Esse trabalho o processo que

    constitui a elaborao de si sob o auscultar de um cuidado anterior ao movimento do

    conhecimento. Trata-se da skesisascese.

    rose skesis: eis as duas grandes formas atravs das quais a espiritualidade ocidental

    concebeu a possibilidade de transformao do sujeito. O preo a ser pago para que o sujeito

    tenha acesso verdade no ocidente passa necessariamente peloros(a relao com o outro

    mestre e aprendiz), e pela skesis(a elaborao de si).

    1.4. A dura elaborao de siskesis

    Quando se fala em ascese trata-se de um saber prtico que prepara o indivduo para os

    acontecimentos da vida. A ascese, portanto, requer uma preparao (paraskeu).

    A partir de um texto de Demtrius, Foucault verifica o exerccio de preparao do

    atleta e observa que o bom atleta aquele que se mantm sempre alerta e domina a prtica que

    12O movimento dorosse coloca na relao entre o sujeito e o mestre. Nesta relao se inscreve a necessidadede uma tica que dirige a conduo da conscincia (FOUCAULT, 2006a, pp. 202).13 Ao se reconhecer como sujeito cognoscente, o sujeito se acomoda num status que garante a este sujeito a

    possibilidade de acesso verdade de seu ser. Tal acesso no se faz, neste caso, seno pela conscincia, ondevigora a faculdade do entendimento. O sujeito s se reconhece enquanto cognoscente quando contorna seu status luz da conscincia (FOUCAULT, 2006a, p. 20-23; ver nota p. 35).

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    tomou para si. Para tanto, a prtica precisa estar nele arraigada e implantada de modo a

    incrust-la no esprito, atravs da repetio.

    Sem esta inscrio da prtica no corpo, o atleta no tem o domnio do lgos. Este logos

    o equipamento material do atleta, sua armadura, e como tal, uma proposio que prescreve

    o que preciso fazer. O lgosprecisa estar sempre ao alcance da mo.

    preciso t-lo mo, isto , t-lo, de certo modo, quase que nos msculos. preciso t-lo de tal maneira que se possa reatualiz-lo imediatamente eprontamente, de forma automtica. preciso que seja realmente umamemria de atividade (FOUCAULT, 2006a, p. 393).

    Tal materialidade (esta armadura, este lgos), para que possa se constituir enquantouma preparao de que se tem necessidade, precisa ser no somente adquirida, mas tambm

    dotada de uma presena permanente, ao mesmo tempo virtual e eficaz, que permita que [a

    ela] se recorra sempre que necessrio (FOUCAULT, 2006a, p. 391). Firma-se nesta

    presena permanente, segundo Demtrius citado por Foucault (2006a) a relao

    indissocivel entre preparao e modos de ser.

    Para que esta presena permanente seja possvel, a repetio uma prtica primordial.

    Demtrius citado por Foucault argumenta que atravs das repeties, ou seja, dosexerccios de rememorao, o lgospode integrar-se no indivduo, fazer parte de certo modo

    de seus msculos e de seus nervos(2006a, p. 394). Para tanto preciso seguir um regime de

    abstinncias.

    Tal regime, em Platocitado por Foucault (2006a, p. 516)tem por objetivo formar

    a coragem fsica do indivduo para que ele possa suportar os acontecimentos exteriores sem

    sucumbir a elese formar sua moderaoo seu domnio de si.

    J no perodo imperial, a preparao atltica desaparece por completo.14Em Musonius

    Rufus, pensador do perodo imperialcitado por Foucaulta preparao vir a partir de um

    regime de resistncia em relao fome, ao frio, ao calor, ao sono: est em jogo, portanto, um

    corpo de abstinncias.

    Alm do regime de abstinncias h outro conjunto de prticas ascticas: a prtica das

    provas. Segundo Foucault, em sua leitura sobre a prtica das provas na poca imperial, a

    prova comporta sempre uma certa interrogao: interrogao de si sobre si. Em uma prova

    14

    Sneca citado por Foucault chega a zombar das pessoas que passam o tempo a exercitar os braos, amodelar os msculos, a avolumar o pescoo, a fortalecer o dorso. A preparao para Sneca deve abrircondies para a atividade intelectual, a leitura, a escrita, etc(2006a, p. 519).

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    trata-se de medir o ponto de progresso em que se est, e de saber no fundo o que se

    (2006a, p. 521). A prova , portanto, um exerccio formador, e como tal, se aproxima do

    prprio exerccio do viver. Assim salienta: a vida deve ser reconhecida, pensada, vivida,

    praticada como uma perptua prova(p. 531).

    1.4.1. O labor da ascese: a apropriao do dizer verdadeiro

    A preparao que advm da prtica asctica se incrusta nos msculos do indivduo,

    constituindo seus modos de ser: eis a, neste esforo de implicao das prticas no corpo, o

    labor da ascese.

    No bojo desta constituio se inscreve o processo de subjetivao do discurso

    verdadeiro. Segundo Sneca citado por Foucaulto indivduo s alcana este processo de

    subjetivao quando se ocupa com a escuta. O ato de ouvir planta sementes na alma daquele

    que se abre escuta, portanto uma atividade que requer ateno.

    Citando Epicteto, diz Foucault que na escuta, comeamos a ter contato com a

    verdade(2006a, p. 409), portanto, a escuta requer certa habilidade para se acolher o que

    dito. A prtica assdua ajuda a desenvolver esta habilidade de escuta, mas a escuta s pode ser

    purificada atravs do silncio.

    Para Plutarco, como assinala Foucault, a aprendizagem do silncio um dos elementos

    essenciais da boa educao. Assim, a vida precisa ser pautada por uma espcie de economia

    estrita da palavra. preciso calar-se tanto quanto possvel [...]no se deve falar quando um

    outro fala. preciso cercar a escuta com o silncio e no reconverter de imediato aquilo

    que se ouviu em discurso(2006a, p. 410-411).

    Todavia, o silncio no suficiente, como demarca Foucault (2006a), a partir da leiturade Plutarco. preciso tambm certa atitude ativa que recruta o fsico durante a escuta, como

    recurso para fazer brotar no corpo aquilo que foi plantado pela escuta. preciso tambm ter

    ateno, sem a qual no se apreende o que dito.

    No pitagorismo, Foucault encontra as regras do silncio pedaggicoo silncio em

    relao palavra do mestre. A palavra s permitida aos alunos mais avanados e ao prprio

    mestre. O silncio como um exerccio de memria mantm o ouvinte na escuta e no registro da

    palavra dita pelo mestre. Todos os exerccios de aprendizagem partem deste exerccio

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    primeiro, onde se aprende as duas coisas mais difceis entre todas: calar-se e escutar

    (2006a, p. 502).

    1.4.2. A prtica asctica na modernidade: o caso da capoeira

    A verificao das prticas ascticas na poca imperial possibilitou entender como este

    perodo histrico organizou certas prticas e elaborou suas tecnologias de si.

    Como desdobramento, possvel entender: ao tomar para si uma tecnologia, o

    indivduo investe num labor que faz implicar esta tecnologia em seus msculos. Como efeito

    desta implicao, o indivduo conquista acesso a um dizer verdadeiro por ele prprio tecido.

    E o que este dizer verdadeiro? o discurso que se d como efeito de um labor, no

    qual o indivduo investe seu tempo, sua fora e sua vontade para tomar para si certa tcnica de

    viver e desloc-la ao sabor de seus afetos. O dizer verdadeiro se d sempre conquista, no

    curso de um labor. O trabalho duro de um olhar que se volta sobre si abre esta possibilidade de

    conquista.

    Inscreve-se neste labor, a atitude asctica, ou seja, uma atitude corajosa de modificao

    que mobiliza a constituiosempre em deslocamentodo sujeito (CANDIOTTO, 2010, pp.

    133-141).

    O homem na modernidade se apropriou de algum modo da atitude asctica? Desta

    questo, interessa-nos um recorte: como o capoeirista toma para si esta atitude ao

    problematizar a capoeira em meio elaborao que cria (e recria) de si mesmo?

    A investigao colocar a pesquisa diante destas questes.

    1.5.

    O cuidado de si na relao mestre-aprendiz - ros

    Outra caracterstica importante na noo de cuidado de si que este cuidado no um

    exerccio solitrio. O olhar do cuidado de si mesmo s se efetua na relao que este si

    mesmoestabelece com o outro.

    Assim demarca Foucault:

    O outro ou outrem indispensvel na prtica de si a fim de que a forma quedefine esta prtica atinja efetivamente seu objeto, isto , o eu, e seja por ele

    efetivamente preechida. Para que a prtica de si alcance o eu por ela visado, ooutro indispensvel (FOUCAULT, 2006a, p. 158).

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    Nesta relao com o outro encontra-se a figura do mestre: o mediador na relao do

    indivduo com sua constituio de sujeito; o diretor da constituio do sujeito enquanto tal.

    Em Platocitado por Foucaulta relao de direo se inscreve na relao amorosa.

    Nesta medida,

    o mestre aquele que cuida do cuidado que o sujeito tem de si mesmo e que,no amor que tem pelo discpulo, encontra a possibilidade de cuidar docuidado que o discpulo tem de si prprio. Amando o rapaz de formadesinteressada, ele assim o princpio e o modelo do cuidado que o rapazdeve ter de si enquanto sujeito (2006a, p. 73-74).

    J nos autores da poca imperial, particularmente em Sneca, a relao de direo

    inscreve-se no interior da amizade, da estima, de relaes sociais j bem estabelecidas.

    (FOUCAULT, 2006a, p. 483).

    O mestre, como aquele que no s transmite um saber, mas que intervm sobre o

    sujeito, estendendo-lhe a mo para ajud-lo a se apropriar de um modo de ser, precisa pautar

    sua interveno luz de uma tica. Surge desta necessidade a noo de parrhesa15observada

    pelos epicuristas.

    A parrhesa, diz respeito preparao que o mestre deve passar para dirigir seu

    aprendiz como convm. A franqueza abre o pensamento, permitindo que o mestre utilize o

    conhecimento para a transformao, a modificao, a melhoria do sujeito (FOUCAULT,

    2006a).

    Para Epictetocitado por Foucaults possvel utilizar o lgos(o conhecimento) no

    trao de uma lexis, ou seja, uma maneira de dizer as coisas, e tal maneira no deve ser outra

    seno a parrhesa. O aprendiz s toma um discurso para si quando o que lhe dito no

    artificial e fingido, mas franco, liberto, portanto, da ordem da parrhesa (FOUCAULT,

    2006a).

    As regras daparrhesaso definidas pela ocasio, ou seja, no ato, na relao que se

    estabelece com o outro que a forma do discurso verdadeiro modalizada (FOUCAULT,

    2006a).

    Uma relao mediada luz da parrhesa no recusa os conhecimentos. Aquele que

    pratica aparrhesaousa