O Conto Do Naufrago

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  • Telo Ferreira Canho

    O COntO dO nufragOum Olhar sObre O ImprIO mdIO egpCIO

    anlIse hIstrICO fIlOlgICa

    lisboaCentro de histria da Faculdade de letras da Universidade de lisboa

    2012

  • FiCha TCniCa

    ttulOo Conto do nufragoUm olhar sobre o imprio Mdio egpcio. anlise histrico filolgica

    autOrTelo Ferreira Canho email: [email protected]

    COpyrIghtCentro de histria da Faculdade de letras da Universidade de lisboa e autor do texto

    Capasersilito Maia

    fOtOgrafIa da Capaprdosol em assuo, 2000 Telo Ferreira Canho

    VersO Inglesaeduardo Marques da Costa

    data de edIOJunho de 2012

    ImpressOsersilito Maia

    depsItO legal345596/12

    Isbn9789898068101

    tIragem500 exemplares

    edItOrCentro de histriaFaculdade de letras da Universidade de lisboaalameda da Universidade 1600214 liSBoa PorTUGalTel.:+ 351 217 920 000 Fax: 351 217 960 063email: [email protected]: http://www.fl.ul.pt/unidades/centros/c_historia/index. html

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    fInanCIamentOPrograma operacional Cincia e inovao 2010 do iii Quadro Comunitrio de apoio (QCa iii)

    UNIO EUROPEIA

    FUNDOS ESTRUTURAIS

    UNIO EUROPEIA

    FUNDOS ESTRUTURAIS GOVERNO DA REPBLICA PORTUGUESA

  • O COntO dO nufragOum Olhar sObre O ImprIO mdIO egpCIO

    anlIse hIstrICO fIlOlgICa

  • PreFCio

    O Doutor Telo Canho investigador no Centro de Histria da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; faz parte do Grupo de investigao Mundo Antigo e Memria Global, na linha especfica de projectos em Egiptologia e tem, desde h vrios anos, percorrido caminhos de grande produtividade e mrito no mbito da literatura egpcia do Imprio Mdio. Aos estudos sobre o Conto do Campons Eloquente e a uma elaboradssima tese de doutoramento sobre aquela mesma poca literria vem agora acrescentar uma preciosa anlise sobre uma outra prola representativa do mesmo contexto histrico e cultural, em torno do qual o Egipto tem concentradas as expresses mais clssicas da sua identidade.

    O trabalho sobre o Conto do Nufrago, que agora nos apresenta, , por con-seguinte, merecedor da nossa melhor ateno. Com esta nova contribuio, o Autor continua a investir num gnero literrio que aparentemente podia parecer dos menos ambiciosos, o conto, porque poderia ser considerado um produto de sabor e marca nitidamente populares. Porm, o estudo aqui apresentado demonstra, com todas as cores e matizes, que o texto em anlise est marcado por uma grande intensidade e subtileza, foi entretecido de forma bastante elabo-rada e caracterizado por grande elevao temtica e eficcia hermenutica. Esta pode mesmo chegar a suscitar-nos momentos de alguma hesitao, perante as ambies que parecem desenhar-se. A tarefa do nosso egiptlogo consiste em conduzir o leitor, facultando-lhe acesso a estas descobertas.

    Como nos tem habituado ao longo de outros trabalhos seus, T. C. comea por nos apresentar uma traduo sua para todo o texto. Alm da utilidade que uma tal deciso significa, mormente para o contexto portugus, esta traduo tem um significado especial, pela articulao que mantm com o conjunto das interpretaes propostas ao longo de todo o livro. Com a cumplicidade que mantm entre a sua traduo e os comentrios subsequentes, comea a facultar ao leitor a percepo directa dos matizes de sentido que a simples leitura atenta desde logo vai sugerindo.

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    O Autor no descura a paciente anlise de muitos aspectos de erudio, abordando, de forma criteriosa e com meticulosa segurana historiogrfica, os dados da histria material e biblioteconmica do documento, discutindo porme-nores, como se de uma edio crtica se estivesse a tratar. Interessa-lhe o sentido de todos os pormenores, sejam os elementos concretos da narrativa, sejam os pressupostos e coordenadas em que a sua lgica e dinmica se fundamentam. Desenvolvendo assim este rosrio de termos e conceitos, apresenta-nos o dicion-rio das semnticas egpcias implicadas em pormenores, que, mesmo aparecendo de forma tangencial, podem ser de profundo enraizamento na textura narrativa. Como se assumisse o ritmo de itinerncia da prpria fenomenologia do conto, o tradutor empreende uma viagem hermenutica sequencial e fluida, que parte dos elementos mais imediatos e se prolonga at mais subtil, mas sempre concreta, definio de intencionalidades que, segundo a sua leitura, podero ter presidido criao egpcia deste texto excepcional.

    particularmente interessante acompanhar o estudo que o Autor faz sobre os dados geogrficos e histricos assumidos na construo desta histria e sobre os aspectos que lhe garantem verosimilhana. As referncias e coordenadas essen-ciais da narrativa, a incidncia dos seus pontos fortes na topografia histrica do antigo Egipto, a imagtica geogrfica de enquadramento do naufrgio e a sua plausibilidade histrica. As motivaes e as modulaes especficas para o tipo de viagens, tal como so sugeridas pela narrativa, de uma forma discreta mas pertinente, so objecto de arguta inquirio. Tudo parece ocorrer numa viagem de regresso desde a Nbia para casa, no Egipto, aparentemente descendo o Nilo em direco ao norte. no refluxo que se encontra o espao epistemolgico da sntese, como no Stimo Selo de Ingmar Bergman. Seja realmente a sntese ou seja ainda uma questo. No interior das referncias implcitas existem movimen-taes que mantm direccionamentos mltiplos, o que parece natural, onde a relao com o espao se libertou em nome de valncias simblicas mltiplas. Estas dimenses da geografia e da histria, sem deixarem de garantir a realidade egpcia de cariz insofismvel, situam-se claramente entre o real e o mtico.

    O Autor investiu de uma forma muito especial, bastante elaborada e original, na definio do conceito de Grande Verde, que representa o enquadramento nuclear de geografia egpcia mtica; o quadro que exprime, em espao mais aberto, os temas e ressonncias que a histria vai sugerindo, de forma mais ou menos explcita, ao longo da narrativa. A resoluo desta frmula no constitui somente uma questo de erudio histrica, mas essencial para o sentido do

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    conto, segundo a hermenutica que aqui aplicada. A possibilidade de identificar o conceito de Grande Verde com a interioridade geogrfica e imagtica do vale do Nilo define com particular intensidade a rede de ressonncia dos sentidos que vo eclodindo por toda a narrativa. Estamos na eficaz transio do apuramento de erudio para as subtilezas da leitura hermenutica. Se a estratgia narrativa do conto contribui para definir o contedo essencial da fico, a prpria defini-o da geografia de referncia serve como mais um processo de sntese para os sentidos que ali se encontram em jogo.

    Uma aproximao incisiva ao domnio dos significados hermenuticos est focada, como seria de esperar, na interpretao das personagens, de tal maneira este aspecto visvel, intenso e sugestivo no prprio conto. A anlise hermenu-tica concentrou-se de forma mais detida na figura da serpente; e com toda a razo que empreendeu faz-lo. Pois precisamente com essa personagem e com a sua colocao num lugar central que parece estar relacionado o contedo que a leitura hermenutica pode definir com mais probabilidade e maior interesse.

    Na retina do leitor, no entanto, ficou especialmente marcada a personagem principal do nufrago humano da narrativa, com a sua intensidade prpria e com a dose de verdade existencial apropriada, se bem que com menos pitoresco. Esta referncia parece oferecer legitimidade suficiente para que a designao de conto do nufrago seja consensualmente assumida por muitos autores, entre os quais se encontra o prprio tradutor do original egpcio, como sendo a formulao mais adequada de um ttulo para esta histria. Foi, com efeito, na memria deste viajante vivencialmente principal que as experincias acumuladas pela aventurosa viagem foram sendo recolhidas e a sua voz que, em texto, as coloca no circuito de comunicao com que se refaz e se relana a histria.

    Na verdade, parece at que as trs personagens, dois viajantes do Grande Verde e um viajante divino do tempo mtico profundo, so analogamente marca-das por uma espcie de condio comum de naufragabilidade. A maneira como se associam com tanta naturalidade as respectivas histrias de cada personagem assim o traduz. Se a hermenutica da serpente assentar numa interpretao de personagem divina, como todos os indcios da narrativa parecem levar-nos a pen-sar, esta leitura, sobre uma semntica de naufrgio comum s trs, pode ganhar ainda mais pertinncia. A catstrofe que a serpente-deus relata e de que declara ter sido ela prpria a vtima de referncia equivale a um naufrgio csmico, ou metafsico, que atingiu a multido dos seus familiares.

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    Esta convergncia de experincias trgicas sublinha, mais uma vez, alguma cumplicidade entre o humano e o divino, tal como os intrpretes no se cansam de apontar neste texto. Isto d ulterior significado s tonalidades de ternura e afecto com que o conto descreve a relao entre o humano e o divino.

    Por outro lado, o naufrgio mtico que atingiu a serpente-deus parece tradu-zir um movimento de eroso e degradao com que o tempo histrico, matria pertinente ao espao dos humanos, se vai encaminhando para a frmula final de recaotizao universal, atingindo igualmente os deuses, imanentes, partcipes e solidrios no estado do cosmos. Esse pode ser um contributo especfico do Conto do Nufrago para os vectores de teor apocalptico que presidem viso global da Histria. A antiguidade deste texto em nada obsta a esta perspectiva. A apocalptica uma marca de primordialidade na viso das histrias dos humanos e do seu universo.

    Se bem que a serpente surja com as tonalidades evidentes de uma espcie de teofania, o nufrago humano principal, o da solido na ilha, um elemento importante da trama narrativa; ele o sujeito receptor dessa revelao contex-tualizada na dita teofania. Ora, a revelao consiste precisamente na densidade que o momento ou estado de recepo encerra. A prpria estrutura narrativa se transforma, desta maneira, numa frmula explcita de desenvolvimento herme-nutico. Talvez se possa mesmo dizer que o naufrgio se apresenta como o espao e vector comum da revelao e da transparenciao, com modalidades natural-mente diferenciadas para cada um dos trs modelos de personagem enunciados. Ganham assim mais consistncia as razes para se valorizar a ideia de naufrgio, expondo-a no ttulo do prprio conto.

    No entanto, o principal nufrago da narrativa parece realmente ser aquele que sobreviveu solitrio numa ilha deserta. E, se este sujeito da viagem e da alocuo narrativa importante, porque a biografia que apresenta lhe atribui destaque e relevncia, a serpente apresenta-se igualmente a si mesma como uma entidade dotada de biografia, com memria e com a disposio de aloquialidade capaz de fazer dela mais uma personagem com histria. Alis, a biografia personalizante que compe esta personagem exibe uma particular intensidade no processo de definio da sua prpria identidade. Com efeito, um dos pontos mais sugestivos da exposio de T. C. est na longa procura de uma divindade egpcia, cujas caractersticas se mostrem mais plausveis para representar convenientemente os contedos que a definio biogrfica desta serpente exibe. O Autor pensa que a divindade que a biografia simblica da serpente descreve ou sugere de

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    forma mais pertinente o deus R em composio com o matiz de Atum, o Sol no seu circuito integrado. Esta personagem , alis, apresentada na histria com pormenores biogrficos bastante ntimos e sensveis, como seja a imagem intensa da perda de todos os seus familiares, com especial destaque para uma filha pequena e, com toda a evidncia, enternecida, que ele no consegue deixar annima e apagada na memria do colectivo divino.

    A hermenutica desta histria, tal como o nosso egiptlogo a desenvolve, vai assim passando pela busca interminvel de todos os matizes e figuras com que se preenche o quadro cultural e histrico das metaforicidades de Deus. E, neste sentido, o Autor est a processar um tratamento do tema, que no somente pertinente para o caso da cultura egpcia, mas que se mostra igualmente vlido e produtivo para o convvio universal das hermenuticas nesta matria.

    Seguir este fio contnuo da interpretao conduziu o tradutor ao encontro das dimenses estruturais do conto. a, com efeito, que o sentido se demonstra com carcter de interioridade. Esta tematizao da interioridade d-lhe por momentos a sensao de estar a laborar em espaos de ressonncia esotrica, pelo tema e pelo seu contexto de hermetismo, no sentido egipciamente literal. Podemos, na verdade, considerar que aqui se mostra uma maneira sadia e at cientfica de tratar o que esotrico; a surpresa do esotrico com toda a sua naturalidade. O estilo de abordagem e de escrita que T. C. ps em prtica facilitou em muito esta sadia naturalidade.

    No subttulo, dividido ainda em duas camadas informativas, define-se a inteno deste trabalho como sendo a de projectar um olhar sobre o Imprio Mdio, submetendo a uma anlise histrico-filolgica o texto do conto e seus contedos. evidente que os valores descobertos numa obra como esta revertem em prol da imagem desta poca que conseguiu no somente uma restaurao da civilizao e da sociedade no Egipto, mas delineou o quadro culturalmente mais representativo de toda a sua histria. Depois da leitura desta obra, no entanto, o que se conserva mais na retina a interpretao da figura da serpente. Esta interpretao arguta e estimulante em muitas perspectivas que se articulam necessariamente com o tema. Este horizonte justificaria plenamente que o segundo subttulo devesse ser acrescentado com mais uma valncia e definir a aproxima-o aqui elaborada como sendo: anlise histrico-filolgica e hermenutica. Na verdade, a leitura interpretativa avulta de maneira bastante meritria, como anteriormente deixmos sublinhado.

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    Acresce a este interesse dos assuntos que foram abordados o facto de o Autor o fazer com uma escrita eficaz, leve e agradvel, em deslizar ligeiro como os barcos nilticos na estao de Akhet. E isto facilita e beneficia enormemente o itinerrio de leitura, valorizando os contedos transmitidos.

    Por dentro de um simples naufrgio, Telo Canho oferece-nos uma viagem completa para alm e por dentro de todas as geografias humanas. Feliz naufrgio, que to empolgante relato nos legou!

    Jos Augusto RamosDirector do Centro de Histria da

    Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

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    aPreSenTao

    Este volume apresenta uma famosa obra literria do Imprio Mdio (c. 2040-1750 a. C.), uma das pocas ureas da milenar civilizao egpcia, o Conto do Nufrago, fazendo uma anlise histrico-filosfica e sedimentando o seu estudo com os trabalhos de consagrados egiptlogos que ao tema dedicaram a sua ateno: desde os autores franceses ou francfonos que releram o Naufrag (Claude Vandersleyen, Gustave Lefebvre, Pierre Grandet, Patrice Le Guilloux, Michel Lapidus), os ingleses e americanos que tentaram reanimar o seu Shipwre-cked Sailor (John Baines, Aylward Blackman, John Foster, Miriam Lichtheim, Richard B. Parkinson, William K. Simpson), aos alemes que fizeram emergir o seu Shiffbrchiger (Dieter Kurth, Hans Goedicke), entre outros, com relevo para o primeiro tradutor do Papiro So Petersburgo 1115, Wladimir Golnischeff, que assim divulgou comunidade cientfica e depois ao grande pblico este maravilhoso conto egpcio.

    A verso portuguesa do Conto do Nufrago (pp. 13-20) aparece na sua forma de organizao em verso, destacando em negrito as palavras que no original egpcio surgem a vermelho. Segue-se a anlise histrico-filolgica (pp. 21-75), que procura situar o leitor na poca em que o texto foi produzido (a fase final da XII dinastia, algures nos reinados de Senuseret III ou de seu filho Amenemhat III). No final oferecida uma til bibliografia (pp. 76-80) que serviu de base ao estudo mas que inclui tambm obras que podem servir para os que pretendem saber mais em detalhe acerca do contexto da obra. Vem depois a verso inglesa, com a sua designao tradicional (pp. 81-152) e a bibliografia (pp. 153-157).

  • Prembulo

    Ento o excelente companheiro disse:Sossega o teu corao, comandante!V, ns chegmos a casa.O mao est empunhado, o cabeo de amarrao cravado,a amarra da proa posta em terra.Faamos uma orao. Louvemos deus!Cada um abraa o seu companheiro.A nossa equipagem regressou s e salva,sem perdas na nossa expedio.Atingimos os confins de Uauat e passmos Senmut.Olha ns voltmos em paz,ns alcanmos a nossa (prpria) terra.

    Escuta me () comandante,porque eu no exagero.Lava -te! Verte gua sobre os teus dedose poders responder quando se dirigirem a ti.Fala ao rei com toda a franquezae responde sem balbuciar.A boca de um homem pode salv -lo,o seu discurso pode fazer com que o perdoem.Age segundo o teu desejo. cansativo falar contigo!

    Incio do conto

    Eu vou contar -te uma coisa idnticaque me aconteceu a mim,quando me dirigia para a regio mineira do soberano.Eu descia pelo Grande Verdenum barco de cento e vinte cvados de comprimentopor quarenta cvados de largura,com cento e vinte marinheiros a bordo, dos melhores do Egipto.Vigiassem o cu ou a terra,o seu corao era mais bravo (do que) o dos lees.

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    A tempestade e o naufrgio

    Eles podiam prever um vendaval antes da sua chegadae uma tempestade antes da sua formao.Um vendaval eclodiu quando estvamos no Grande Verde,antes que consegussemos alcanar terra.O vento levantou -se, ele bramia,e as vagas atingiam os oito cvados.O mastro partiu -se arrastando -me com elee depois o barco afundou -se.Dos que estavam a bordo, nenhum sobreviveu.Ento fui depositado numa ilhapor uma vaga do Grande Verde.Passei trs dias sozinho,(s com) o meu corao por companheiro.Estendido inerte no interior de (um abrigo de) madeiraeu recolhi -me sombra.Depois estendi as pernas procura de comida.

    Encontrei ali figos e uvas,todo o tipo de excelentes legumes,figos de sicmoro maduros e verdes,e pepinos como se tivessem sido cultivados;a havia (tambm) peixes e aves.Tudo existia a!Ento, saciei -me e pus no cho o que era difcil levar nos braos.Agarrei num pau para fazer lume,acendi uma fogueira e fiz um sacrifcio aos deuses.

    Aparecimento da serpente

    Foi ento que ouvi um barulho de trovoe imaginei que fosse uma vaga do Grande Verde.As rvores estalavame a terra tremia.

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    Destapei a cara e vi que era uma serpente que se aproximava.Ela media trinta cvadose a sua barba passava os dois cvados.O seu corpo estava coberto de ouro,e as suas sobrancelhas eram de verdadeiro lpis -lazli.Ela inclinou -se para diante.

    Ento abriu a boca para mimenquanto eu permanecia sobre o meu ventre diante dela,e disse -me: Quem te trouxe?Quem te trouxe, homenzinho?Quem te trouxe?Se demoras a dizer -mequem te trouxe para esta ilha,eu farei com que tu te lembres reduzindo -te a cinzase tornando -te invisvel!Tu falas -me e eu no escuto (nada) do que dizes!Estou aqui diante de ti, mas no me reconheo!Ento ela pegou -me com a bocae levou -me para a sua toca(onde) me deps sem me fazer mal,de boa sade e intacto.

    Ela abriu a boca para mimenquanto eu permanecia sobre o meu ventre diante dela,e ento disse -me: Quem te trouxe?Quem te trouxe, homenzinho?Quem te trouxe para esta ilha do Grande Verde,que tem os seus dois lados na gua?

    A histria do nufrago

    A isto, respondi -lhe(com) os braos cados diante dela,dizendo -lhe: Eu, eu descia para as minas

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    com uma mensagem do soberano,num barco de cento e vinte cvados de comprimentopor quarenta cvados de largura.Estavam a bordo cento e vinte marinheiros, dos melhores do Egipto.Vigiassem o cu ou vigiassem a terra,o seu corao era mais bravo (do que) o dos lees.

    Eles podiam prever um vendaval antes da sua chegadae uma tempestade antes da sua formao.Cada um era mais valentee forte do que o seu companheiro!No havia nenhum incompetente entre eles.Um vendaval eclodiu quando estvamos no Grande Verde,antes que consegussemos alcanar terra:o vento levantou -se, ele bramiae as vagas atingiam os oito cvados.O mastro partiu -se arrastando -me com elee depois o barco afundou -se.Dos que estavam a bordo, nenhum sobreviveu,excepto eu que estou aqui na tua presena.

    A resposta da serpente

    Ento, eu fui depositado nesta ilhapor uma vaga do Grande Verde.Ento ela disse -me: No tenhas medo,no tenhas medo, homenzinho!No empalideas! Tu estavas -me reservado!V, o deus fez com que tu vivessese conduziu -te ilha do Ka, no interior da qual no h nada que no se encontre.Ela est cheia de tudo o que bom.Olha! Tu passars ms aps msat completares quatro meses de permanncia nesta ilha.Ento, um barco vir do (teu) pas,

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    com marinheiros teus conhecidos.Tu partirs com eles para o (teu) pase morrers na tua cidade.

    Como feliz aquele que pode contar aquilo por que passou,(depois de) ultrapassados os maus momentos!Eu vou contar -te uma coisa parecidaque aconteceu nesta ilha.Eu estava aqui com os meus irmos, entre os quais havia crianas.Na totalidade ramos 75 serpentes,juntando as minhas crianas com os meus companheiros.E no me esquecerei de te mencionar uma filhitaque obtive por meio de preces!

    Ento, uma estrela caiue eles arderam por sua causa.Isto aconteceu quando eu no estava,e eles arderam sem que eu estivesse entre eles.Ento eu (fiquei como) morto por causa deles,(quando) os encontrei numa nica pilha de cadveres.Se s forte, controla -te!Abraars os teus filhos,beijars a tua mulher, vers a tua casa.E estas coisas sero o melhor de tudo!Alcanars o pas onde viviasno meio dos teus irmose existirs de novo!Estendido sobre o meu ventre,toquei no cho diante dela.

    Resposta do homem e reaco da serpente

    Deixa me ento dizer te:falarei do teu poder ao soberano, farei com que ele seja informado da tua grandeza.

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    Farei com que te tragam ludano (?), hekenu, iudeneb, canela (?)e incenso dos templos para agradar a cada deus.Contarei ento o que me aconteceu,Quando vi os seus poderes.Oraremos a deus por ti na cidade,perante os notveis do pas inteiro.

    Matarei para ti touros em imolao,sacrificarei para ti aves,farei com que te tragam barcoscarregados de todas as riquezas do Egipto,como devemos fazer por um deus que ama os homens,num pas longnquo que os homens no conhecem.

    Ento ela riu de mim, daquilo que eu tinha ditode insensato segundo ela.Ela disse -me: (Ento) a mirra no importante para ti?Tornaste -te possuidor de incenso?Na verdade, eu sou o governador do Punt:a mirra pertence -me!Aquele hekenu que tu disseste que me trariam, a coisa mais importante desta ilha!Chegar, na verdade, (o momento) em que deixars este lugare jamais voltars a ver esta ilha que submergir.

    O regresso a casa

    Ento esse barco veio,como ela tinha predito anteriormente.Eu fui, subi a uma rvore altae reconheci aqueles que estavam no seu interior.Ento fui para contar isto ( serpente),mas encontrei -a (j) sabedora do assunto.Ento ela disse -me: Adeus!Adeus, homenzinho!

  • 18 Telo Ferreira Canho o ConTo Do nUFraGo 19

    Para casa ver os teus filhos!Faz com que o meu nome seja bom na tua cidade!Olha, (tudo) o que peo que faas por mim!

    Ento eu pus me sobre o ventre,(com) os braos estendidos diante dela,e eis que ela me deu um carregamento de mirra,hekenu, iudeneb, canela (?),ticheps, chaasekh, galena,caudas de girafa,resina de terebintina,um grande pedao de incenso,dentes de marfim, ces de caa, macacos, babunose todo o tipo de riquezas de qualidade.

    Depois carreguei isto no barco.Ela chegou e eu pus -me sobre o meu ventre para lhe agradecer.Ela disse -me ento: Olha! Chegars a casa em dois meses,abraars os teus filhose rejuvenescers no interior da tua sepultura.Ento desci at margem, para junto do barco,e chamei a tripulao que estava no barco.Dei graas, sobre a margem ao senhor da ilhae aqueles que estavam a bordo fizeram o mesmo.

    (Depois) navegmos para norte,para a residncia real.Chegmos residncia em dois meses,tal como ela tinha dito.Fui ento levado presena do soberanoe ofereci -lhe os presentesque tinha trazido da ilha.Ele agradeceu -mena presena dos notveis de todo o pase eu fui feito companheiroe dotado de duzentos servidores.

  • 20 Telo Ferreira Canho

    Concluso

    Olha para mim depois que eu toquei terra,depois do que vi, do que experimentei! Ouve -me, portanto!V, bom escutar as pessoas!Ento ele disse -me:No faas de excelente, meu amigo!Quem dar gua ave pela alvoradapara ela ser abatida pela manh?

    E acabou, do princpio ao fim,como o que se encontrou na escritura,na escrita do escriba de dedos hbeis,Amena, filho de Ameni.Possa ele viver, prosperar e ter sade!1

    1 Traduo prpria directamente do egpcio hieroglfico, com consultas diversas ao manuscrito hiertico. As palavras a negrito esto escritas a tinta encarnada no manuscrito (T. F. Canho, A literatura egpcia do Imprio Mdio: espelho de uma civilizao, II, pp. 133-158).

  • 20 Telo Ferreira Canho

    O Conto do Nufrago surge num nico manuscrito, o Papiro So Petersburgo 1115, tambm designado por Papiro Leninegrado 1115, ou, at, por Papiro Ermi-trio 11152, com ou sem H, que esteve durante tempo indeterminado no Museu Imperial de So Petersburgo e que actualmente se encontra no Museu Pushkin de Moscovo3. A quase total ausncia de eco sobre a existncia deste conto no seu tempo, impede -nos de avaliar o impacto obtido junto dos seus contemporneos4. Cremos que pelo menos o arqutipo seja um papiro da XII dinastia, uma vez que surge no seu clofon uma situao especfica criada no Imprio Mdio a partir da XII dinastia, que o aparecimento na escrita hiertica do mtodo invertido para expressar filiao, com recurso contraco de G. G39 ( ) e substituio por G. H8 ( ), o determinativo de ovo. Contudo, preciso no esquecer que para Gardiner esta substituio s ocorreria na XIX dinastia, no aparecendo mais

    2 Veja-se, por exemplo, o ttulo da obra de P. Le GuiLLoux, Le Conte du Naufrag (Papyrus Ermitage1115), que inclumos na bibliografia. assim designado tambm por Vikentiev (V. VikentieV, Voyage vers lIle Lointaine, p. IX).

    3 Optamos pela primeira designao por ter sido em So Petersburgo que Golnischeff encontrou o papiro em 1881, quando Lenine tinha apenas nove anos de idade, sendo assim que referido na sua primeira publicao de 1913 (W. GoLnisCheff, Les papyrus hiratiques, ns 1115, 1116 et 1116A de lErmitage imprial Saint-Ptersbourg, pp. 1-2). A segunda designao implicaria andar ao sabor dos vrios nomes que a cidade fundada em 1703 por Pedro, o Grande, teve ao longo da sua curta histria. O nome que o czar deu nova capital russa deveu-se, antes do mais, sua devoo pelo apstolo Pedro. Depois, em 1914, o seu nome mudou para Petrogrado quando, estando em guerra contra a Alemanha, os russos se aperceberam que burgo era um termo de ascendncia alem. Feita a revoluo em 1917, com a morte de Lenine em 1924 voltou a mudar de nome e passou a designar-se Leninegrado. Finalmente, com a queda do regime sovitico em 1991, os prprios habitantes da cidade aprovaram o regresso do seu nome s origens. Por seu lado, o Museu Pushkin, fundado em 1896, comeou a construir o seu acervo desde a fundao custa de vrias coleces, sobretudo do Museu Imperial de So Petersburgo, adquirindo logo no incio a coleco do egiptlogo Golnischeff. Em 1918, e entre 1924 e 1930, foram incorporadas neste museu milhares de peas do Museu Imperial de So Petersburgo. Estas so as datas mais provveis para o papiro ter transitado para Moscovo. Como no se sabe quando entrou no Museu Imperial de So Petersburgo, desconhece-se quanto tempo a esteve.

    4 Conhece-se apenas uma referncia a este conto num straco ramsssida e nem sequer uma citao exacta; T. F. Canho, Datao e temtica do Conto do Campons Eloquente, p. 170.

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    cedo seno em situaes convencionais, pormenor que num papiro do sculo XII a.C. parece impossvel5.

    Independentemente da datao literria, Golnischeff comparando -o com os papiros do Conto do Campons Eloquente, dA Histria de Sinuhe e do Dilogo de um Desesperado com o seu Ba, acredita que todos so coevos do quarto rei da XII dinastia, Senuseret II, ou posteriores, tendo sido escritos na mesma poca6. A este respeito, comeamos por integr -lo na justificao que j apresentmos defendendo a convico de que o mentor ou autor do Conto do Campons Elo-quente possa ter sido o seu filho Senuseret III7. Em relao ao Conto do Nufrago, estendemos essa convico ao filho deste, Amenemhat III. Neste caso tendo em conta a excepcional explorao de minas, sobretudo de cobre e turquesa no Sinai e no deserto oriental, e a forma como este fara ter enfrentado a eternidade ao mandar construir duas pirmides, a Pirmide Negra em Dahchur, abandonada por apresentar deficincias na construo, e outra em Hauara, junto da qual foi erguido o templo funerrio que, graas complexidade da sua planta, que apresenta mais de mil salas, foi chamado de Labirinto na poca Greco -Romana8. Podem ter sido motivos inspiradores.

    Com um comprimento de 3,80 metros e cerca de 12 cm de largura, o papiro encontra -se em perfeito estado de conservao apresentando 189 linhas intactas, 136 verticais e 53 horizontais, numa escrita egpcia hiertica muito bem desenhada e de bonito efeito. Desconhecendo -se a sua provenincia, foi encontrado em 1881 num armrio do primeiro dos museus referidos, ano em que Golnischeff o apresentou no V Congresso de Orientalistas, em Berlim. Cinco anos antes tinham sido encontrados no mesmo local outros dois papiros em muito pior estado de conservao e sem se saber como qualquer deles ter chegado Rssia (Papiro So Petersburgo 1116A e Papiro So Petersburgo 1116B). Os trs papiros foram alvo de uma publicao fac -similada com transcrio para egpcio hieroglfico por parte de Golnischeff em 1913, tendo sido feita outra transcrio do egpcio hiertico para o egpcio hieroglfico do Conto do

    5 Cfr. T. F. Canho, O Conto do Campons Eloquente, pp. 30-31, nt. 27.6 W. GoLnisCheff, Les papyrus hiratiques, ns 1115, 1116 et 1116A de lErmitage imprial Saint-

    Ptersbourg, p. 2. Simpson vacila entre a XI e a XII dinastia, afirmando num lado ser da XI dinastia e noutro da XI ou do incio da XII dinastia; W. K. simpson, The Literature of Ancient Egypt, p. 51, e W. K. simpson, Schiffbrchiger, col. 619.

    7 T. F. Canho, Datao e temtica do Conto do Campons Eloquente, pp. 169-170.8 M. J. seGuro, Amenemhat III, em Dicionrio do Antigo Egipto, pp. 55-56; L. M. arajo, Os Grandes

    Faras do Antigo Egito, pp. 113-115.

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    Nufrago em 1972, por Blackman9. O Papiro So Petersburgo 1115 apresenta -se com folha relativamente espessa, tendo sido escrito apenas no verso10, onde as tiras de papiro so verticais, com tinta negra e, a espaos, com tinta encarnada no incio da maioria das estrofes e no clofon. A existncia deste ltimo indica--nos que uma cpia da qual se desconhece ainda o arqutipo; uma boa cpia mas no uma cpia perfeita, pois apresenta alguns erros. Curiosamente uma cpia assinada, mas, infelizmente, desconhece -se a histria do autor, ou do seu pai, tambm referido. Deduzimos apenas que eram pessoas de condio social elevada e, obviamente, de equivalente formao intelectual.

    A designao de Conto do Nufrago, a quem j chamaram tambm de Conto da Serpente ou A Ilha Encantada, uma designao moderna que deriva do con-texto da narrativa, uma vez que os Egpcios antigos no criavam ttulos para os seus contos. No incio apresenta a forma narrativa sDm.in.f, uma forma verbal que num conto introduz, normalmente, um novo episdio e que tem dado corpo dvida deste conto poder estar incompleto, pois um comeo to repentino, sem deixar de ser coerente, sugere a hiptese de poder faltar um prembulo qualquer. Uma vez que estamos perante uma cpia, esse hipottico prembulo poderia sim-plesmente no ter sido copiado, mas isso contradiria o clofon! Por outro lado, o corte vertical do incio do papiro no se apresenta regular de cima a baixo e est muito prximo da primeira coluna de caracteres, no apresentando a habitual margem inicial mais larga para proteger o texto quando ele era enrolado11, aparentando deste modo poder ter sido, de facto, mais comprido.

    Com uma linguagem simples e clara muito prxima da lngua falada, apresenta na narrativa a pouco habitual primeira pessoa em lugar da terceira pessoa12, mais

    9 A. M. BLaCkman, The Story of the Shipwrecked Sailor, pp. 41-48.10 Normalmente os escribas iniciavam a utilizao de um papiro no recto, onde as fibras se dispunham

    horizontalmente e que era a face interna do rolo (R. parkinson e S. Quirke, Papyrus, p. 38; cfr. J. C ern, Paper and Books in Ancient Egypt, p. 17).

    11 R. parkinson e S. Quirke, Papyrus, p. 38. Estas margens, tanto no incio como no fim do papiro, deveriam ser suficientemente largas para evitar que se deteriorasse a parte escrita ao manusear o rolo, podendo atingir at 10 centmetros de largura. Por vezes as margens j existentes eram reforadas com novos acrscimos de papiro com 5 a 9 centmetros de largura, porque as anteriores se estragaram ou foram originalmente executadas muito estreitas. Tambm eram deixadas pequenas margens superiores e inferiores aos textos, normalmente no excedendo os dois centmetros, para prevenir eventuais dete-rioraes do texto nesses locais.

    12 Por exemplo: ento eu fui depositado, aHa.n ini.kwi (109); deixa-me ento dizer-te, Dd.i r.f n.k (138); ento eu pus-me, aHa.n rdi.n.i wi (161), por oposio a Smsw sA-nht Dd.f o companheiro Sinuhe ele diz (A Aventura de Sinuhe, R, 2), ou Dd.in sxty pn Este campons disse (Conto do Campons Eloquente, B1, 33) ou, ainda, aHa pw iri.n bAw.f-ra r mdt Dd.f Ento, Bauefr levantou-se para falar

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    comum em histrias populares ou mitolgicas. Aparenta por isso uma origem na tradio popular oral reescrita em verso por um literato experimentado13, mas integrando em algumas passagens uma componente humanista prpria do ambiente posterior ao Primeiro Perodo Intermedirio acreditando -se, portanto, que possa ser um trabalho do Imprio Mdio. Ao organizar os contos em seis grupos mitolgicos, anedticos, filosficos, psicolgicos, maravilhosos e contos -moldura aos quais, contrapondo narrativa de acontecimentos fictcios a narrativa de fundo histrico, acrescentou o grupo dos romances onde incluiu textos cujos autores se basearam em factos reais, Lefebvre integrou o Conto do Nufrago nos contos maravilhosos14.

    Nada temos contra a integrao que Lefebvre fez deste texto entre os contos maravilhosos, contos onde a magia assume papel de destaque criando ambientes em que o maravilhoso a pedra de toque que prende a ateno dos leitores e dos ouvintes. Alis, o maravilhoso praticamente inseparvel de todos os contos egp-cios! Neste somos transportados para um mundo maravilhoso, onde pensamos ver reflectida a concepo mgico -funerria egpcia cujas aces se desenvolviam atravs de prticas mgicas. E como j afirmmos para outros contos, tambm este se estende por vrios caminhos de possveis catalogaes, pois tem igual-

    e disse (Khufu e os Magos, 92-93). No concordamos com Baines e Parkinson quando pensam que o incio do texto, Dd.in, deve ser traduzido por discurso, ficando a primeira frase Discurso do excelente companheiro, preferimos o que l est mesmo: Ento o excelente companheiro disse. Recordamos que nem sabemos se este era o incio original! (T. F. Canho, A literatura egpcia do Imprio Mdio: espelho de uma civilizao, II, pp. 38, 89, 145, 147, 149 e 175; J. Baines, Interpreting the Story of the Shipwrecked Sailor, p. 58; R. B. parkinson, Poetry and Culture in Middle Kingdom Egypt, p. 229).

    13 J. padr, Historia del Egipto Faranico, p. 202. Sobre a escrita do mdio egpcio em verso ver T. F. Canho, A literatura egpcia do Imprio Mdio: espelho de uma civilizao, I, pp. 23-38.

    14 Os textos que Lefebvre considera histrias romanceadas so A Aventura de Sinuhe e as Desventuras de Unamon. Nos contos mitolgicos inclui a Lenda do Deus do Mar (Astart) e as Aventuras de Hrus e de Set, em que as personagens principais so deuses e se envolvem em aventuras e peripcias impossveis de realizar pelos mortais; nos contos anedticos faz constar a Luta de Apopi e de Sekenenr, A Tomada de Joppe e a Princesa de Bakhtan por se basearem no em acontecimentos histricos mas em pequenos acontecimentos anedticos verificados em determinadas pocas; nos contos filosficos aparece Verdade e Mentira, uma alegoria em que o bem, a Verdade, triunfa sobre o mal, a Mentira; nos contos psicolgicos temos a primeira parte do Conto dos Dois Irmos em que, na presena do marido, uma mulher calunia um jovem por quem est apaixonada; nos contos maravilhosos inclui a segunda parte do referido conto, e ainda o Conto do Nufrago, os contos do Papiro Westcar, O Prncipe Predestinado e O Pastor que viu uma Deusa, contos onde a magia assume papel de destaque, criando ambientes em que o maravilhoso a pedra de toque que prende a ateno dos leitores e dos ouvintes. Com excepo dos contos-moldura (onde, alm do Conto do Campons Eloquente, ainda integra o Conto Proftico, para o qual preferimos o ttulo de As Profecias de Neferti), de uma forma ou de outra, mais ou menos vincadamente, todos os outros contos dos diferentes gneros tm a sua quota de maravilhoso (G. LefeBVre, Romans et Contes gyptiens de lpoque Pharaonique, pp. VII-IX).

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    mente uma componente mitolgica a interaco com uma divindade , outra sapiencial e filosfica apontam -se preceitos a ter em conta e induzem -se certas formas comportamentais , e outra, ainda, religiosa apresenta -se uma crena fulcral do pensamento teolgico do Egipto faranico e explora -se a teodiceia.

    Como procuraremos demonstrar, embora longe de ser um texto religioso, a ltima daquelas componentes, que parece ter vindo a escapar maioria dos que se tm debruado sobre este conto, parece -nos, de facto, a mais importante. No a todos, pois Parkinson afirma que o aparentemente simples Conto do Nufrago um sombrio questionar da teodiceia, como j tinham alcanado Baines e Loprieno15.

    Ainda que possam surgir afirmaes do tipo isto um conto de fadas, uma histria de marinheiros: o mundo imaginrio, os lugares so em qualquer stio, e a atitude do desconhecido autor em relao histria despreocupada. uma terra do nunca16, a verdade que no faz grande sentido que naquela poca no Egipto antigo se concebessem e escrevessem histrias com uma mera finalidade ldica. Tal como a arte estava intrinsecamente ligada ao poder poltico ou religio, tambm a literatura cumpria o seu papel na sociedade, podendo -se afirmar que o primeiro objectivo da literatura egpcia era a formao. A ideia de uma literatura para distrair, para quebrar o tdio no existia, a no ser como forma literria para lanar as ideias que, como se depreende da leitura dos textos do Imprio Mdio, eram todas de grande impacto na sociedade egpcia. Alm desta componente pedaggica, tinham ainda uma componente didctica, sendo tambm utilizados como materiais de formao de escribas, no s do ponto de vista caligrfico, gramatical e vocabular, mas tambm do ponto de vista da formao pessoal atravs da abordagem dos temas17.

    No texto aqui apresentado, o comandante de um barco acaba de chegar ao Egipto18, provavelmente a Elefantina, vindo de uma viagem Nbia. A expedio

    15 R. B. parkinson, Poetry and Culture in Middle Kingdom Egypt, p. 129; cfr. J. Baines, Interpreting the Story of the Shipwrecked Sailor, pp. 55-72; cfr. A. Loprieno, The Sign of Literature in the Shipwre-cked Sailor, pp. 209-217.

    16 J. foster e L. P. BroCk, The Shipwrecked Sailor. A Tale from Ancient Egypt, p. 8.17 Cfr. T. F. Canho, A literatura egpcia do Imprio Mdio: espelho de uma civilizao, pp. 161-178.18 A palavra khenu (Xnw) significa literalmente interior, sendo frequentemente utilizada em contextos

    onde significa palcio real. Contudo, pode tambm significar casa com o sentido de lar, ou at mesmo ser traduzida por este ltimo significado, o que neste contexto quer dizer pas de origem, ptria ou reino. Em todo o caso evitaremos a palavra lar que tem uma origem latina bem vincada que no singular (lar, la ris) significava sobretudo domiclio ou lareira e no plural (lares, lar um) dizia respeito principalmente ao(s) esprito(s) tutelar(es) considerado(s) a(s) alma(s) do(s) morto(s) a quem incumbia proteger a casa, as ruas, a cidade, etc. Tal como evitaremos tambm domiclio cujo timo

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    no ter corrido da melhor forma, pois teme enfrentar o fara, sendo percept-vel na sua nica fala julgar ter a vida em perigo. Para o confortar, o narrador e heri do conto, elevado condio de companheiro excelente19, conta -lhe uma histria fantstica, destinada a mostrar -lhe que mesmo nas piores circunstncias sempre possvel acontecer um volte -face. Numa outra viagem em que foi o nico sobrevivente de um naufrgio provocado por uma violenta tempestade onde pereceram todos os tripulantes do seu barco, cento e vinte dos melhores marinheiros do Egipto, acabou por ir parar a uma ilha maravilhosa, a ilha do Ka, onde se deparou com o seu nico habitante, um deus -serpente. Recebido como algo de insignificante e desprezvel, acabou por ser confidente da enorme serpente nessa terra sagrada de regras rituais precisas. No fim, o deus -serpente permitiu que o nufrago regressasse ao Egipto e alcanasse a felicidade.

    Em anlises deste conto tornaram -se correntes afirmaes do tipo: como uma histria de marinheiros logo a mater de obras como a Odisseia ou As Aventuras de Simbad, o Marinheiro20; ou, a estrutura cclica do conto em a -b -c--d -c -b -a, em que a -a o regresso do infeliz comandante, b -b o naufrgio do nico sobrevivente de uma outra viagem, c -c a sobrevivncia do nufrago numa ilha deserta e d a histria da serpente. Com b -b e c -c a ocuparem a maior parte do texto, 149 das 189 linhas, e d, que ocupa apenas seis linhas, como a parte mais relevante por encerrar a revelao divina da histria21.

    latino domicil um deriva de domus, um dos tipos de habitao romana. Neste conto, a palavra khenu (Xnw) aparece como substantivo ou elemento da preposio em-khenu (m-Xnw), entendida por ns sempre com uma certa ambiguidade, mas que, muito provavelmente, no se punha aos leitores de ento, conhecedores das subtilezas da sua escrita, muitas das quais ainda hoje nos escapam (R. O. fauLkner, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 202).

    19 Companheiro (chemsu, Smsw), lit.: Aquele que segue o fara. Era um dignitrio que ajudava o rei a governar o Egipto, numa designao que, aparentemente, deriva de outra bastante mais antiga segundo os Textos das Pirmides do tempo de Pepi I: chemsu Hor, Smsw Hr, ou seja, Aqueles que seguem Hrus. De acordo com a mitologia egpcia, os seguidores de Hrus eram seres simblicos que governavam o Egipto primordial, antes da transmisso do poder aos homens na pessoa do fara, e que o recebiam quando da sua ascenso eternidade. Aqueles que seguem o fara (chemsu per-aa, Smsw pr-aA) seriam os seus representantes na terra. Pode ser traduzido, tambm, por dependente, algum que trabalha para outrem (R. O. fauLkner, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 264; M. Lapidus, La Qute de lle Merveilleuse, p. 21).

    20 Vladimir Vikentiev, por exemplo, explorou intensamente a forma de justificao deste conto atravs de numerosas comparaes com outros contos. Talvez seja a origem deste tipo de afirmaes! Cfr. V. VikentieV, Voyage vers lIle Lointaine, pp. XII-XIII, 2, 6, 73-83.

    21 Cfr., por exemplo, J. N. Carreira, Literatura do Antigo Egipto, pp.109-110, e J. Baines, Interpreting the Story of the Shipwrecked Sailor, p. 67.

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    Vamos comear por tentar localizar geograficamente as viagens. H, de facto, duas viagens, uma dentro da outra. A primeira, aquela que antes foi designada por a -a, est perfeitamente enquadrada nos ltimos trs versos da primeira estrofe: Atingimos os confins de Uauat e passmos Senmut./Olha ns voltmos em paz,/ns alcanmos a nossa (prpria) terra (8 -10)22. Uauat (wAwAt) correspondia regio da Nbia Setentrional, estendendo -se da primeira segunda catarata. Entre o Nilo e o mar Vermelho, era j um pas da Baixa Nbia no final do Imprio Antigo, tendo estado ao longo da sua histria sob domnio egpcio em diversas ocasies, sobretudo a partir do Imprio Mdio, quando foi anexado pela primeira vez para consolidar o poder tebano e a segurana da sua fronteira meridional. Para alm das questes poltico -militares, havia as questes econmicas ligadas ao fluxo permanente de minerais, principalmente ouro, e de produtos exticos dessa e atravs dessa regio. Servindo de tampo entre o Egipto e Kuch23, parte do antigo pas de Uauat repousa hoje sob as guas do lago Nasser24. Senmut (snmwt) o antigo nome da ilha de Biga, localizada a sul de Assuo ao lado da ilha de Agilka e da ilha de Fil, hoje submersa. evidente que para atingir as fronteiras de Uauat teriam que passar por esta ilha, localizada mais a norte do que aquela regio25. E se passaram para alm delas, estavam de regresso e acabavam de atingir a sua (prpria) terra, provvel que estivessem em Elefantina, a porta de entrada sul do Egipto, junto primeira catarata, a cerca de 900 quilmetros de Iti -taui, e com grande preponderncia religiosa, militar e econmica. Elefantina, que nesse tempo era conhecida pelo nome de Abu, a cidade do elefante, foi a capital da primeira provncia do Alto Egipto at perder a primazia a favor de Assuo (Siena, situada mesmo em frente de Elefantina) na poca Greco -Romana.

    Se a primeira viagem no levanta qualquer dvida, j a segunda, b -b, levanta uma srie delas. O nufrago diz: quando me dirigia para a regio mineira do soberano26 (23 -24). Para onde se dirigia o nufrago na sua viagem? A palavra

    22 pH.n.n pHwy wAwAt sni.n.n snmwt/mk rfn ii.n m Htp/tA.n pH.nsw (T. F. Canho, A literatura egpcia do Imprio Mdio: espelho de uma civilizao, II, p. 141).

    23 Quando se tornou independente do Egipto o reino da Nbia passou a designar-se por reino de Kuch, mas no Imprio Novo tanto Uauat como Kuch voltaram a integrar o espao econmico e cultural do Egipto (L. M. arajo, Napata, em Dicionrio do Antigo Egipto, pp. 600-602).

    24 J. Baines e J. mLek, Egipto. Deuses, Templos e Faras, pp. 32-33 e 183; B. manLey, Atlas historique de l'gypte ancienne, pp. 26-27, 37, 41, 43, 45, 50-51, 54-55, 60-61, 68-69, 90, 106 e 124.

    25 J. Baines e J. mLek, Egipto. Deuses, Templos e Faras, pp. 72-73.26 Sm.kwi r biA n ity (T. F. Canho, A literatura egpcia do Imprio Mdio: espelho de uma civilizao, II,

    p. 142).

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    bia (biA), para alm de regio mineira, pode significar bronze, que uma liga, cobre, um metal, que Snchez Rodrguez pergunta se no ser ferro, um mineral no metlico, uma regio mineira, ou firmamento e, ainda, uma matria de origem celeste, conforme os determinativos27. De norte a sul do Egipto, do Sinai Nbia, existiam minas de onde se extraam diversos tipos de minrios, todas elas controladas pelo Egipto como monoplio real28. Neste texto no h uma localizao exacta destas minas. Ser que era perto do Punt? que o nufrago vai ser confrontado com uma personagem que se diz governador do Punt! Na linha 151, a serpente afirma claramente Na verdade, eu sou o governador do Punt29, terra mtica de localizao incerta mas real de onde vinham muitas riquezas para o Egipto, que tambm vemos descritas no conto. Esta personagem uma divindade e, portanto, omnipresente: pode ser o governador do Punt e estar em qualquer outro lugar! Este pode ser um daqueles subterfgios que os criadores destas fices utilizavam para generalizar: uma ilha misteriosa em qualquer parte do universo. Por isso tambm no se pode simplesmente afirmar que esta seja uma viagem ao Punt! O Punt aparece exactamente para introduzir no conto toda uma carga de incerteza e mistrio.

    evidente que depois de bia est en iti (n ity), claramente do soberano; contudo, chamamos a ateno para o facto de bia poder significar firmamento

    27 R. O. fauLkner, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, pp. 80-81; A. snChez rodrGuez, Diccionario de Jeroglficos Egpcios, p. 166.

    28 J. Baines e J. mLek, Egipto. Deuses, Templos e Faras, p. 21; B. manLey, Atlas historique de l'gypte ancienne, pp. 19,51, e 69.

    29 ink is HqA pwnt ( ). A palavra HqA tem um determinativo que leva alguns estudiosos a traduzi-la por rei ou soberano, o caracter G. G7, o falco sobre um estandarte ( ), utilizado como determinativo em divindades e na palavra rei que, neste caso, confere um carcter divino e/ou real a este governador, sem o igualar ao rei do Egipto. Manteremos a traduo de governador em vez de rei, no s porque os Egpcios tinham diversas palavras para este ltimo termo, que o autor no quis empregar aqui, talvez pelo facto de que para eles s havia um rei, o fara, ou pela inteno de fazer a analogia com Sobek, como avanamos de seguida no corpo do texto. Exactamente da mesma maneira que, quando este determinativo aparece a dar carcter divino e/ou real ao senhor da ilha, em 171 ( , rdi.n.i Hknw Hr mryt n nb n iw pn, Dei graas sobre a margem ao senhor desta ilha), no traduzimos nb por rei ou soberano. A eventualidade de confuso com qualquer outro governador do Egipto em nossa opinio no de considerar, porque as palavras ou os determinativos certos distinguem-nos. Por exemplo, , HqA-Hwt, governador de distrito. Tudo isto sem, indiscutivelmente, deixar de ser o governante, o dirigente ou o chefe mximo do Punt, o que nos leva a admitir que numa traduo literria ou num qualquer estudo, no acompanhado do texto hieroglfico nem de transliterao, se possa usar o termo soberano. At mesmo neste trabalho, caso no nos estejamos a referir ao texto em anlise (T. F. Canho, A literatura egpcia do Imprio Mdio: espelho de uma civilizao, II, pp. 148 e 150).

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    e matria de origem celeste ligada viagem do defunto para o Ocidente. Na frmula 816 dos Textos dos Sarcfagos30, Anbis separa do cu uma poro designada por bia para ajudar o defunto a dirigir -se para a terra do Ocidente e, segundo Lapidus, o defunto tem que recitar: bia, sustm -me, faz -me subir para que eu penetre na terra do Ocidente31. Mas Faulkner traduz a primeira parte desta frmula por O ferro foi partido do cu por Anbis. ferro, possas tu abrir o Ocidente! Este o ferro que est na minha boca, que Sokar consagrou em O n [Iunu, ou seja, Helipolis], que faz a gua da minha boca surgir: o ferro foi lavado e eficaz e forte32. As pequenas discrepncias entre as tradues levaram--nos a ver o original. Encontrmos para as duas primeiras frases da frmula 816: Bia foi partido do cu por Anbis. Oh bia, possas tu abrir( -me) o Ocidente33!

    30 Os Textos dos Sarcfagos, uma adaptao dos Textos da Pirmides feita durante o Primeiro Perodo Intermedirio, so frmulas e poemas mgico-religiosos para ajudar o defunto a proteger-se no Alm, assegurando a sua imortalidade. Inscritos em diversos sarcfagos atingiram a sua forma definitiva no Imprio Mdio, sobretudo nas XI e XII dinastias (L. M. arajo, Textos dos Sarcfagos, em Dicionrio do Antigo Egipto, p. 822).

    31 M. Lapidus, La Qute de lle Merveilleuse, p. 26.32 Embora no seu dicionrio diga que bia um mineral no metlico, Faulkner traduz aqui bia por ferro e

    diz que esta passagem se refere ao ritual da abertura da boca com uma enx de ferro. Sem dvida que parece ser o ritual da abertura da boca, mas bia poder ser traduzida por ferro no Imprio Mdio (c. 2040-1780 a. C.)? A metalurgia do ferro s em meados do Imprio Novo (c. 1560-c. 1070) que surgiu no Egipto, depois de se espalhar por todo o Prximo Oriente entre 1600 e 1200 a. C. e, ainda assim, sem substituir de imediato o bronze. At ento existia mas, por no ter sido ainda desenvolvida metalurgia apropriada, o que havia na natureza era muito pouco (mais raro que o ouro) e pouco malevel por falta de tecnologia apropriada. No Egipto tm aparecido artefactos de ferro com dataes do terceiro e do segundo milnio a. C., havendo indcios da existncia deste metal j no quarto milnio. Mas este ltimo era de origem meteortica, o que no acontece aos do terceiro e segundo milnios que no apresentam na sua composio nquel, como o caso dos do quarto milnio. Contudo, o ferro no uma substncia que se obtenha do cu, a menos que se admita a hiptese de ser, de facto, de origem meteortica. Qualquer estrela que tenha cado do cu! H no vocabulrio respeitante a bia duas palavras que, em nossa opinio, em vez de serem traduzidas por um mineral no metlico tm mais possibilidades de serem este ferro meteortico. So as palavras e

    que apresentam o caracter G. N14, uma estrela. Se no Conto do Nufrago poder ter ficado registado a queda de um meteorito, bem possvel que o produto de uma estrela possa ter ficado registado no prprio vocabulrio egpcio! Contudo, at ver prevalecem as opinies de que este ferro era um subproduto da pro-duo de cobre (R. O. fauLkner (ed.), The Ancient Egyptian Coffin Texts. Spell 1-1185 and Indexes, vol. III, pp. 7-8; C. C. Correia, Metalurgia, em Dicionrio do Antigo Egipto, pp. 566-567; J. oGden, Metals, em P. Nicholson e I. Shaw, Ancient Egyptian Materials and Technology, pp. 166-168; R. O. fauLkner, A Con-cise Dictionary of Middle Egyptian, p. 80). Para a cerimnia da abertura da boca, onde era utilizado um instrumento apropriado, veja-se L. m. arajo, Abertura da boca, em Dicionrio do Antigo Egipto, pp. 20-21; ver tambm i. shaw e p. niChoLson, The British Museum Dictionary of Ancient Egypt, pp. 235-236.

    33 , sD biA in inpw m pt hA biA wbA imnt (a. de BuCk, The Egyptian Coffin Texts, vol. VII Texts of Spells 787-1185, p. VII-15).

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    Seja ferro, cobre, bronze ou, simplesmente um metal ou mineral, o certo que uma substncia celeste, uma vez que foi separada do cu por Anbis34. E seja ou no o ritual da abertura da boca, parece estar indiscutivelmente associado a cerimnias fnebres e entrada do defunto no reino dos mortos. Por outro lado invocada Helipolis onde se venerava o Sol atravs das suas diversas manifestaes: Khepri, o Sol nascente, R, o Sol do meio -dia, e Atum, o Sol poente. Atum foi o primeiro a ser adorado em Helipolis, mas R suplantou -o a partir da IV dinastia, em particular R -Horakhti, em que Horakhti o Hrus dos dois horizontes, divindade sincrtica que inclua todas as manifestaes solares, pois se o sol se deslocava entre dois horizontes caminhava do nascente (Khepri) para o poente (Atum) passando pelo znite (R)35. Mesmo quando o culto de R se superiorizou ao de Atum, este no perdeu a primazia de divin-dade demirgica e potenciou as suas prerrogativas atravs da divindade sincrtica R -Atum. E, segundo a mencionada frmula 816, foi em Helipolis que Sokar, divindade funerria, consagrou a referida substncia celeste.

    Sokar, (skr), , , , , cujo nome significa O que est encerrado, era o deus dos mortos que presidia 4 diviso da Duat, o outro mundo. O seu principal centro cultual era a necrpole de Mnfis, Sakara, tendo uma representao antropomrfica mumiforme com cabea de falco ou sendo representado por um falco, normalmente deitado. Desde o Imprio Antigo que Sokar se relacionava com o deus de Mnfis, Ptah, e por ser uma divindade funerria esta associao estendeu -se a Osris fazendo surgir a divindade sincrtica Ptah -Sokar -Osris, cuja unio simbolizava o ciclo completo da vida: Ptah dava a vida, Sokar tratava da morte e Osris representava o renascimento. Na grande festa realizada anualmente em sua honra pelos seus seguidores em Mnfis, dezasseis sacerdotes transportavam -no aos ombros na barca henu, a sua barca sagrada cuja forma excepcional perfeitamente perceptvel no seu hierglifo36. Ser possvel associar Sokar ao Conto do Nufrago?

    34 Num texto onde a referncia seja indubitavelmente a um metal, sem que se saiba se cobre, bronze ou ferro, julgamos ser prefervel utilizar como traduo simplesmente metal. Numa situao em que se apresente como uma uma substncia celeste, uma vez que no h metais na atmosfera, julgamos que mais razovel manter a palavra por traduzir.

    35 L. M. arajo, Atum, R e R-Horakhti, em Dicionrio do Antigo Egipto, pp. 125-126 e 740-743.36 L. M. arajo, Sokar, em Dicionrio do Antigo Egipto, pp. 794-795; J. C. saLes, As Divindades Egp-

    cias, pp. 346 -350; A. snChez rodrGuez, Diccionario de Jeroglficos Egpcios, p. 401; R. O. fauLkner, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 251. Imagens da divindade sincrtica Ptah-Sokar-Osris (uma figura mumiforme) podem ser apreciadas nos acervos egpcios do Museu Nacional de Arqueologia e do Museu de Histria Natural da Universidade do Porto.

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    Por sua vez, a palavra iti (ity) leva -nos a avanar uma outra hiptese de associao mais clara e explcita. A palavra iti aparece no Conto do Nu-frago por trs vezes, por exemplo em 174, , aHa.n aq.kwi Hr ity, Fui ento levado presena do soberano, na sua forma dual que s se aplicaria ao Egipto para simbolizar que o soberano era rei tanto do Alto como do Baixo Egipto. Contudo, a palavra iti ainda tem uma dzia de variantes, a maioria delas sem a presena do caracter G. I3, o crocodilo37. A mesma ideia poderia tambm ser transmitida por nesu ( ou nsw),traduzindo -se como rei do Alto Egipto, ou biti ( bity), rei do Baixo Egipto ou, ainda, o habitual nesu -bit ( nsw -bit), o do Junco e da Abelha, isto , rei do Alto e do Baixo Egipto, tal como o dual pretende simbolizar. Contudo usou -se uma palavra com dois crocodilos. Ter -se - pretendido fazer alguma analogia com Sobek ( , , , ou sbk), o deus -crocodilo? A ltima grafia, em particular, deveras semelhante! Senhor das guas, simulta-neamente solar e ctnico, adorado em todo o Egipto. Tal como o Sol, Sobek saiu das guas na manh da primeira vez sendo por isso considerado tambm um demiurgo. Sobek, cujo nome significa Aquele que provoca a gravidez (ou a fertilidade), associava -se por este motivo a Osris, ou seja, fertilidade e ao renascimento, mas tambm morte e ao sepultamento38. bom ter em conta que Amenemhat III mandou erguer um templo em honra de Sobek em Chedet, a antiga Crocodilpolis grega e actual Medinet el -Faium, e outro a cerca de 30 km para sudoeste, em Medinet Madi, dedicado a Sobek, Hrus e Renenutet39. Pode acrescentar -se que no templo funerrio da sua pirmide de Hauara h uma srie de salas -santurios dedicadas a Sobek, onde foram mesmo encontrados fragmentos de uma esttua de Sobek40.

    37 Outras variantes de iti: , , , , , , , , , , , R. O. fauLkner, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, pp. 32-33; A. snChez rodrGuez, Diccionario de Jeroglficos Egpcios, p. 107.

    38 T. F. Canho, Kom Ombo: o antigo domnio de Sobek, em J. A. Ramos, L. M. Arajo e A. R. dos Santos (ed.), Arte Pr -Clssica, pp. 262 -263; R. O. fauLkner, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, pp. 79 e 139; A. snChez rodrGuez, Diccionario de Jeroglficos Egpcios, pp. 167 e 247. Sales mostra--nos uma interessante imagem de Osris mumificado a ser transportado no dorso de Sobek (J. C. saLes, As Divindades Egpcias, pp. 261 -264).

    39 L. M. arajo, Os Grandes Faras do Antigo Egito, p. 114; R. H. wiLkinson, The Complete Temples of Ancient Egypt, p. 137. Note-se que a capital do Egipto situava-se ento na frtil regio do Faium, onde Sobek era objecto de grande venerao.

    40 M. Lehner, The Complete Pyramids, p. 183.

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    Em vrias ocasies referido no Conto do Nufrago que a viagem decorre no Uadj -uer (wAD -wr), o Grande Verde. Egiptlogos como Alan Gardiner, Lus Arajo, Adolf Erman, Gustave Lefebvre, Miriam Lichtheim, Raymond O. Faulkner, James Allen, William K. Simpson, R. B. Parkinson, Pierre Grandet, E. A. Wallis Budge ou John L. Foster, Abd el -Halim Nur el -Din, ngel Snchez Rodrguez, Andr Barucq e Franois Daumas41, traduzem Uadj -uer uns por mar e outros, filiando -se em Vandersleyen, por Grande Verde ou Muito Verde, os primeiros referindo -se ao mar Vermelho, e os restantes ao Delta, a maior zona verde do Egipto, ou ao Nilo. O nufrago comea por dizer: Eu descia pelo Grande Verde (24 -25)42. Aparentemente estamos a falar com algum prximo ao fara que partiu e regressou ao mesmo local: a capital do reino onde vivia o rei. Considerando o conto do Imprio Mdio, esse local seria Iti -taui. No h dvida que quando ele partiu ele desceu: o verbo hai (hAi) significa, de facto, descer. Ento ele dirigiu -se para norte, uma vez que a corrente descendente do Nilo de sul para norte. E aqui comea a confuso.

    Foster, numa publicao juvenil43, apresenta um mapa em que a viagem do nufrago se inicia em Iti -taui seguindo primeiro para norte, depois faz uma curva direita, entra no topo do mar Vermelho e dirige -se para sul em direco ao Punt. Aparentemente este seria o percurso do nufrago para quem defende que Uadj -uer significa mar. Contudo, a locuo Uadj -uer uma referncia geogrfica ao vale do Nilo e no ao mar Vermelho. Quem nos garante isso Vandersleyen que durante vinte e cinco anos fez pesquisas e reflectiu sobre esta questo. Com uma excelente argumentao, apoiada pela reproduo hieroglfica transliterada e traduzida de 322 documentos, provou que aquele termo jamais designou o mar: uadjuer no podia ser seno uma vista do Nilo, as zonas que ele irrigava, que ele tornava verdejantes, zonas portanto estritamente limitadas

    41 L. M. arajo, Mitos e Lendas do Antigo Egipto, pp. 42, 47, 91 e 185-187; a. Gardiner, Egyptian Grammar, p. 560; R. O. fauLkner, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 56; j. aLLen, Middle Egyptian, p. 456; A. erman, Ancient Egyptian Poetry and Prose, p. 30; G. LefeBVre, Romans et Contes gyptiens de lpoque Pharaonique, p. 33; M. LiChtheim, Ancient Egyptian Literature. A Book of Readings, p. 212; W. K. simpson, The Literature of Ancient Egypt, p. 51; R. parkinson, The Tale of Sinuhe and Other Ancient Egyptian Poems, p. 92; P. Grandet, Contes de lEgypte Ancienne, p. 35; J. L. foster, Ancient Egyptian Literature, p. 9; E. A. W. BudGe, Egyptian Tales and Legends. Pagan, Christian and Muslim, p. 89; A. nur eL-din, The Ancient Egyptian Language, p. 140; . snChez rodrGuez, Diccionario de Jeroglficos Egpcios, p. 137; A. BaruCQ e F. daumas, Hymnes et Prires de l'gypte Ancienne, p. 547.

    42 hAi.kwi r wAD-wr (T. F. Canho, A literatura egpcia do Imprio Mdio: espelho de uma civilizao, II, p. 142).

    43 J. L. foster e L. P. BroCk, The Shipwrecked Sailor, p. 8.

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    aos territrios que a inundao alcanava, quer dizer o vale, incluindo o delta e o Faium, sem excluir as regies ao sul do Nilo no Alto Egipto44. H mesmo uma inscrio em Fil, uma procisso de Nilos, onde um Nilo fala em nome do Hapi do Alto Egipto que reside em Biga, e fornece a divina gua fresca ao wAD -wr45. Assim, a frase que o nufrago proferiu quando contou a sua histria serpente, Eu descia para as minas com uma mensagem do soberano (89 -90), torna mais precisa a direco em que seguia o seu barco: ia para norte, para o Delta ou para o Sinai.

    Procuremos ir um pouco mais longe. O exemplo 145 dos 322 que Van-dersleyen apresenta, extrado do Papiro Harris I, tambm chamado Grande Papiro Harris, ou simplesmente Papiro Harris (h outros papiros na coleco de Harris). Este papiro, que do princpio do reinado de Ramss IV, da XX dinastia, foi encontrado numa tumba em Deir el -Medina, na regio tebana, e foi comprado pelo coleccionador e comerciante de antiguidades egpcias Anthony Charles Harris em 1855. Em 1872 foi adquirido pelo Museu Britnico e cata-logado com a referncia BM9999. Com cerca de 42 metros de comprimento o maior manuscrito em papiro encontrado at ao momento e apresenta 1489 linhas de texto. Redigido em escrita hiertica, divide -se em cinco seces, com 113 colunas de doze ou treze linhas cada, escritas horizontalmente da direita para a esquerda. Contm, ainda, trs desenhos representando o rei Usermaatr--meriamon, Ramss III, frente s tradas de Tebas, Helipolis e Mnfis. um manuscrito de temtica religiosa e histrica. O texto descreve 31 anos de doaes de Ramss III, aos deuses e aos templos de vrias cidades, com vista obteno dos favores dos deuses. A lista de doaes ocupa a maior parte do papiro. A ltima parte do texto narra alguns acontecimentos da XX dinastia, descrevendo a situao catica do princpio do perodo e glorificando as faanhas deste rei. Termina com a morte de Ramss III e a subida ao trono do seu filho Ramss IV. Contudo, nada diz da chamada conspirao do harm nem do assassinato do fara. Como afirma Sales, constitui, juntamente com a Pedra de Chabaka, uma das mais belas snteses da teologia de Ptah46.

    44 Cfr. C. VandersLeyen, Ouadj our. Un outre aspect de la Valle du Nil, pp. 8-9.45 Idem, pp. 74 e 319.46 P. Grandet, Le Papyrus Harris I, vol. 1, pp. 3-26; a propsito da Pedra de Chabaka, a Fundao Calouste

    Gulbenkian editou recentemente a obra de Rogrio Sousa, O Livro das Origens. A inscrio teolgica da Pedra de Chabaka.

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    Na introduo das palavras dirigidas pelo rei Usermaatr -meriamon ao deus criador sincrtico Ptah -Tatenen, cuja segunda divindade, a Terra emergida, o mais antigo deus de Mnfis, que ao ser assimilado e suplantado por Ptah passou a ser o seu nome teolgico personificando a colina primordial, surgem estas duas frases (PHI 44,5)47:

    snnty tA m ir.n.f Ds.f pXr sw m nwn wAD -wr

    Pierre Grandet traduz esta passagem por Que fundou a terra em si prprio e rodeou -a com a inundao do oceano, isto : Ptah emergiu como terra rodeado pelo oceano. J Claude Vandersleyen prefere Planeou a terra como se fez a si prprio percorrendo -a com a inundao do Grande Verde, ou seja, Ptah emergiu como terra percorrendo -a ao mesmo tempo que a inundao do Grande Verde. De facto, o verbo senet (snT) pode significar planear, medir (uma terra) ou fundar (uma casa), enquanto o verbo pekher (pXr) pode assumir os significados de voltar, atravessar (uma regio), circunvalar, deambular, rodear ou envolver48. Preferimos a segunda frase pelos motivos que expomos de seguida, mas alteramos a traduo para Fundou a terra em si prprio atravessando -a com a inundao do Grande Verde, tornando este acto de criao extensvel ao Nilo e sua inundao, razo de sucesso de tudo o que existe no Egipto. O Nilo atravessa a colina primordial tal como atravessa o Egipto.

    E Grandet que d os argumentos a Vandersleyen ao afirmar: Nwn tem aqui muito claramente o sentido de inundao e no de guas primordiais, assim como todas as outras menes do termo que no so acompanhadas do determinativo divino no Papiro Harris I. Devemos rejeitar o conjunto das tra-dues que traduzem nwn wAD -wr por o Nun e o mar; consideramos os dois termos ligados por um genitivo directo. Devemos notar que wAD -wr possui aqui exactamente o sentido do grego Wceausj, o Oceano que rodeia o mundo49.

    Ora, se estamos a falar de inundao estamos no Nilo e no no mar, at porque a que, como diz Sales, emerge a colina primordial: Tatenen era o deus da colina primordial que emerge do lodo frtil do Nilo, fundamento da vida e da

    47 Idem, vol. 2 fotografia 21; e vol. III, pp. 35 e 87; C. VandersLeyen, Ouadj our. Un autre aspect de la valle du Nil, p. 252.

    48 P. Grandet, Le Papyrus Harris I, vol. 1, p. 284; . snChez rodrGuez, Diccionario de Jeroglficos Egipcios, pp. 183 e 380; R. O. fauLkner, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, pp. 93 e 234.

    49 P. Grandet, Le Papyrus Harris I, vol. 2, p. 164 nt. 660.

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    vegetao, dele procedendo, em consequncia, todos os seres e todas as coisas. Alis, continua Sales, nesta acepo de deus da vegetao e da fertilidade, surge figurado com os membros e com o rosto pintados de verde, a cor da criao e da regenerao por excelncia. Ser verde, uadj ( ou wAD), equivalia a ser fresco, frtil, vigoroso50. um fenmeno tpico dos mitos de criao egpcios: a auto -criao. O Nilo foi criado na colina primordial que, por sua vez, foi criada no prprio Nilo. Fixemos, ainda, que a este deus ctnico era tambm atribuda a funo de guardar o caminho do defunto real para o Mundo Subterrneo51.

    Os antigos Egpcios, que nas construes da sua imaginao faziam constante apelo aos elementos naturais que os rodeavam, sabiam perfeitamente que o seu pas no era rodeado de mar. Para oeste nunca chegaram a mar algum, o deserto ocidental conflui com o deserto lbio, e para sul Uauat e Kuch, no deserto nbio, eram, no Imprio Mdio, os seus limites. Por isso que a colina primordial aparece no Nilo e no pode ser o Egipto rodeado pelo oceano. O Egipto no era uma ilha, mas o Nilo tinha ilhas! Mais uma vez o meio ambiente em que vivem que os inspira: a colina primordial surge como uma ilha niltica.

    Enquadrando -se perfeitamente nesta questo, tambm Sinuhe tem uma pala-vra a dizer sobre o Grande Verde, a inundao e as ilhas do Nilo. Na Histria de Sinuhe, depois de uma vida de glria no exlio, o heri deste conto manifesta o desejo de regressar ao Egipto para a acabar os seus dias e poder ter um funeral que lhe permita viver a eternidade. Na resposta ao decreto que Senuseret lhe envia para o convencer a regressar ao seu pas livre de qualquer culpa, Sinuhe apela a uma srie de divindades para que protejam o rei. Em B 209, por exemplo, apela, ao conselho que est sobre a inundao52 e, em B 210 -211, a todos os deuses da Terra Amada e das ilhas do Grande Verde53. Os deuses que aqui so invocados so os deuses do Egipto54, que a Terra Amada onde existem a inundao e as ilhas do Grande Verde. O Grande Verde integra a sua Terra Amada. Sinuhe no

    50 J. C. saLes, As Divindades Egpcias, pp. 280-281 e 291-292. Para a palavra uadj ver j. padr, La Len-gua de Simuh, p. 279; ver ainda a. Gardiner, Egyptian Grammar, p. 560; r. o. fauLkner, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 55; a. snChez rodriGuez, Diccionario de Jeroglficos Egipcios, p. 137; j. p. aLLen, Middle Egyptian, p. 456.

    51 Idem, p. 292.52 DADAt tpt nw. As divindades que auxiliam Hapi, o deus das guas do Nilo (T. F. Canho, A literatura

    do Imprio Mdio: espelho de uma civilizao, II, p. 109).53 nTrw nbw tA-mri iww nw wAD-wr (Idem, ibidem).54 R, Montu, Amon, Sobek-R, Hrus, Hathor, Atum, a Enada, Sopedu-Neferbau-Semseru, Min-Hrus,

    Uereret, Nut e Haroris-R (Idem, ibidem).

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    vai regressar ao Egipto pelo Grande Verde. Aparentemente regressa por terra atra-vs da Sria -Palestina, saindo da Sria em direco ao sul e fazendo uma paragem nos Caminhos de Hrus (B 242), onde o comandante que estava encarregue de patrulhar a fronteira, enviou uma mensagem para o palcio para os informar (B 242 -243)55. Desta forma no se deslocar nem pelo Mediterrneo nem pelo Nilo: ir por terra ao encontro do Nilo, o Grande Verde, e das suas ilhas.

    O nufrago, ento, seguia no Grande Verde, acompanhado pela excelente equipagem que podia prever um vendaval antes da sua chegada e uma tempes-tade antes da sua formao56 (29 -32), mas que no previu o forte vendaval que eclodiu com o vento a bramir e as vagas a atingirem os oito cvados57 que fez

    55 Idem, ibidem.56 sr.sn Da n iit(.f) nSny n xprt.f (Idem, p. 142). As palavras dja e necheni (Da e nSny) referem-se a mau

    tempo. Enquanto o determinativo da primeira, dja, a associa a vento, sendo um vento forte e fora do normal, j a segunda, necheni, algum muito mais forte, cujo determinativo o animal de Set (G. E20), senhor do deserto, causador das tempestades. provvel que seja uma daquelas tempestades de areia a que os rabes hoje chamam de khamsin, capaz de provocar grandes estragos. Encarado como uma manifestao do poder divino, o vento pode ser ouvido e sentido, mas apenas os seus efeitos podem ser vistos. Ns prprios, por duas vezes nos vimos envolvidos em acontecimentos dessa natureza em 2001, quando participmos na primeira expedio arqueolgica portuguesa autorizada pelo Conselho Supremo de Antiguidades Egpcias para escavar o palcio do fara Apris da XXVI dinastia. Uma das vezes na regio da moderna Mit Rahina (Mnfis), em Kom Tuman, no campo de trabalho, e outra em Sakara, na casa junto duna de Sakara que a misso portuguesa ocupou durante a campanha de 2001, pelo menos. Na primeira encontrvamo-nos no campo arqueolgico e os trabalhos ficaram por a nesse dia. Uma brisa inicial evoluiu progressiva e rapidamente para vento muito forte. A nossa inexperincia com fenmenos desta natureza ainda fez com que tentssemos continuar, mas acabmos por ver que era impossvel a manipulao de qualquer equipamento. O vento arrastava as pessoas e tirava-lhes as coisas das mos, era impossvel abrir os olhos e, mesmo abrindo-os, no se via nada a no ser gros de areia a deslocarem-se a grande velocidade e a fustigarem os olhos. As pessoas mal se viam umas s outras, tinham dificuldade em comunicar com o barulho ensurdecedor do vento, mal podiam respirar e os gros de areia magoavam. No final, a grande tenda de apoio rasgou-se de alto a baixo, as varetas tombaram e algumas espias soltaram-se, tendo os seus restos mortais que ser desmontados para irem a coser. Algum equipamento dispersou-se. As reas escavadas tiveram que voltar a ser limpas, pois ficaram cobertas de areia. O segundo caso foi durante a noite e estvamos dentro de casa. As janelas, que durante a noite ficavam abertas, acordaram-nos a bater fortemente contra as paredes, no havia electricidade, mesmo dentro de casa era difcil respirar, a boca enchia-se-nos de areia. s escuras fechmos as janelas mas, mesmo assim, sentamos areia por todo o lado e ouvamos o forte barulho do vento. Ainda o melhor stio para estar era debaixo do lenol: mais valia suportar um ambiente ainda mais abafado do que levar com a areia. Na manh seguinte estava tudo calmo, mas o interior da casa era quase como se no houvesse paredes: havia uma camada de areia por todo o lado que, nos cantos opostos s janelas, chegava a ter alguns centmetros. Depois de passarmos a manh do dia seguinte em limpezas no campo arqueolgico e a tarde no museu de Mnfis em catalogao, o trabalho que sempre acabava por se concluir em casa seria a dobrar nesse dia!

    57 A unidade de comprimento egpcia era o cvado (lat. cubitu), equivalente a cerca de 52,5 centmetros. As suas fraces mais comuns eram o dedo, djeba ( Dba), equivalente a 1/28 do cvado, isto , 1,88

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    o barco naufragar e os matou a todos58. O nico sobrevivente do naufrgio foi depositado numa ilha por uma vaga do Grande Verde (39 -41), uma ilha que tem os seus dois lados na gua (85 -86). Os oito cvados so cerca de 4,2 metros. Alguns tm questionado como seria possvel uma ondulao desta envergadura num rio. Contudo, Vandersleyen tem a resposta: ela corresponde chegada rpida e brutal da inundao: a palavra wAw [uau, onda] no tem seno esse sentido nos outros textos onde se encontra. Quanto vaga de oito cvados que provocou o naufrgio, ela chamava -se nwyt e pertence totalmente ao vocabulrio niltico59. Nem a inundao vinha sempre calma e serena, nem todas as regies do Nilo so suficientemente largas para as guas subirem paulatinamente.

    Quem j navegou pelo Nilo, sabe que no Alto Egipto o rio tem passagens bastante estreitas e rochosas, onde no difcil imaginar que uma cena desta natureza pudesse ocorrer antes da construo da barragem de Assuo. Acrescente--se que o desnvel entre o perodo mais seco do Nilo e a enchente mxima do rio elevava as guas a mais de sete metros de altura. No entanto, algumas passagens so to estreitas, como o caso da primeira catarata, que preciso bastante boa vontade para imaginar um barco daquela envergadura a manobrar a. Textos do Imprio Mdio que relatam expedies punitivas contra os Nbios referem que os locais estreitos, os remoinhos e outros perigos das cataratas eram ultrapassados retirando os barcos da gua, transportando -os s costas por terra e voltando a coloc -los na gua mais adiante60. Contudo, no Imprio Mdio a primeira catarata era contornada j por um canal artificial expressamente feito na VI dinastia para a navegao61. Em todo o caso, este aparente exagero pode at ser um recurso literrio para empolgar o leitor ou o ouvinte, pois morrerem 120 pessoas ou morrerem 3 ou 4 tem um impacto completamente diferente!

    centmetros, o palmo, chesepe ( , , Szp), equivalente a quatro dedos ou 1/7 de cvado, ou seja, 7,5 centmetros, medindo o cvado sete palmos ou vinte e oito dedos; os seus mltiplos mais frequentes eram a vara, khet ( xt), que equivalia a cem cvados, cerca de 52,5 metros, e iteru

    ( itrw), o rio, com um comprimento de 20 000 cvados, ou seja, 10,5 quilmetros (J. P. aLLen, Middle Egyptian, p. 101). Eis as medidas que aparecem neste texto em cvados convertidas em metros: o barco de 120 por 40 cvados media 63 metros de comprimento por 21 metros de largura; vagas de 8 cvados seriam de 4,20 metros; uma serpente de 30 cvados media 15,75 metros; uma barba de mais de 2 cvados media mais de 1,05 metros.

    58 De tal forma era o barulho provocado por esta intemprie que, mais adiante, quando o nufrago ouviu um barulho de trovo, comeou por pensar que fosse uma vaga do Grande Verde (56-59).

    59 C. VandersLeyen, Ouadj our. Un outre aspect de la Valle du Nil, pp. 74 e 319.60 Cfr. L. M. arajo, Barco, em Dicionrio do Antigo Egipto, pp. 142-143.61 B. manLey, Atlas historique de lgypte ancienne, p. 51; S. Vinson, Egyptian Boats and Ships, p. 8.

    Telo CanhoSticky NotePorque que a palavra iteru recuou? Pelo contrrio, ela tem que encostar margem direita do texto. No pode ficar um espao em branco no meio de uma frase. A linha anterior tem que terminar com a palavra mais e a anterior a essa termina em ou como nas provas anteriores.

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    Ainda assim, detenhamo -nos um pouco na questo do tamanho do barco e no nmero da equipagem. Os Egpcios nunca se entusiasmaram por longas navegaes de alto mar, ao contrrio de alguns dos seus vizinhos mediterrnicos como os Fencios, os Cretenses ou os Micnicos. No quer isto dizer que no tivessem usado enormes navios de alto bordo como se confirma em relevos do templo funerrio de Sahur em Abusir. Aqui, no Conto do Nufrago, estamos a falar do barco em geral (depet), certo, mas de navegao no Nilo, o que exclui, tambm, a barca (uia) mais ligada ao culto das divindades ou s cerimnias fune-rrias, como, por exemplo, a maior das barcas conhecidas que a grande barca solar de Khufu, com 5,9 metros de lado por 43,3 metros de comprimento62.

    O Nilo foi ponto de encontro de uma multiplicidade de barcos que variavam bastante de tamanho, equipagem e funo. Muitos desenhos e relevos em rocha, templos ou tmulos, e em particular para o Imprio Mdio, os modelos tridimensio-nais encontrados em diversos tmulos, a par de uma enorme variedade de pequenas embarcaes, mostram grandes barcos com abundncia de remos e, consequentemente, numerosa tripulao. Uma parte destes barcos era feita de papiro, outra parte de madeira de sicmoro, accia ou mesmo madeira do Lbano, como seria o caso das embarcaes de maior porte e, sobretudo, de transportes pesados, como obeliscos e blocos de pedra para a construo de pirmides e templos, por exemplo63.

    62 Cfr. L. m. arajo, Barco, em Dicionrio do Antigo Egipto, pp. 142-143. A grande barca de Khufu foi encontrada desmontada num poo naviforme junto da Grande Pirmide de Guiza, sendo feita com madeira de cedro vinda do Lbano. Ainda com respeito navegao no mar, recentes escavaes no mar Vermelho, em Ayn Sukhna, frente ao Sinai a 70 km da actual cidade de Suez, puseram a descoberto dois barcos do Imprio Mdio, vtimas de um violento incndio que os carbonizou totalmente mas, devido s caractersticas do incndio, mantiveram as suas formas originais, incluindo os cordames e as unies das pranchas. Faziam o transporte de minrios de turquesa e cobre das minas do Sinai, da regio de Serabit el-Khadim, onde existem tambm gravuras rupestres de dois tipos de embarcaes parecidas s embarcaes nilticas. No eram barcos semelhantes aos referidos barcos de Abusir, apenas se diferenciando dos barcos que navegavam no Nilo pelo uso de pranchas de madeira mais espessas e sistemas de unio reforados (ligaduras, entalhes e cavilhas), para poderem navegar no mar, eventualmente um meio aqutico mais agitado e problemtico. As inscries gravadas nas paredes rochosas das minas falam de expedies martimas no tempo de Mentuhotep IV, no final da XI dinastia, e de Amenemhat I, Senuseret I e Amenemhat III, na XII dinastia. Encontrados desmontados em duas galerias, tal como a grande barca funerria de Khufu, mediam entre 13,50 a 15 metros de comprimento e eram feitos maioritariamente de madeira de cedro, com algumas peas de carvalho. As ncoras e os lemes parecem no ter sido diferenciados do rio para o mar (p. pomey, Les Bateaux dAyn Soukhna. Les Plus Vieux Vestiges de Navires de Mer Actuellement Connus, pp. 3-12; C. zazzaro, Les ancres de Mersa Gawa-sis, pp. 13-20; e. nantet, Le Gouvernail gyptien. Le Gouvernail gyptien Constituait-il le Vice originel de la Marine Antique?, pp. 21-28).

    63 Por exemplo, no tmulo de Meketr, um oficial do rei da XI dinastia Memtuhotep, no meio de diversos outros modelos, encontraram-se doze modelos de barcos que ilustram quatro tipos de embarcaes:

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    Vinson apresenta a imagem de um barco de viagem do tmulo de Khnu-mhotep, de Beni Hassan, da XI dinastia, transportando uma srie de pessoas em p entre as duas filas de remadores, cada uma de 14 membros, mais um homem proa, provavelmente com a funo de piloto. No grande leme r no h ningum. uma equipagem de 25 marinheiros64. No tmulo tebano de Intef, da XI dinastia, h pinturas de trs barcos com homens de arco e flechas, escudos e outros tipos de armas, a lutarem a partir dos barcos. Mas so barcos mais pequenos e manobrveis. Alm dos soldados pouco numerosos provavel-mente para poderem manobrar -vontade, quatro a seis a lutarem entre as duas filas de remadores, as equipagens so de 11, 15 e 19 homens65. Se recuarmos VI dinastia e considerarmos um dos barcos em plena navegao representado na mastaba de Mereruka, vizir dos reis Teti e Pepi I, vemos uma equipagem de 44 homens66. Com uma equipagem de 120 homens, o barco do nufrago se tivesse quarenta homens a remar, ainda tinha 80 para lutar. Poderia ser muito confuso e era, de certeza, um barco muito lento para esta finalidade.

    Conforme o que tinham a transportar, os barcos de transporte variavam muito de tamanho e equipagem. Este barco alm de, aparentemente, ter medi-das exageradas, parece t -las completamente desproporcionadas: 63 metros de comprimento por 21 de largura. Esta largura um tero do comprimento, o que, provavelmente, poder estar muito alm da realidade. Tendo em conta a proporcionalidade da grande barca solar de Khufu, para um comprimento de 63 metros, a largura seria de cerca de 8,8 metros. Mesmo que para ganhar esta-bilidade um barco desta envergadura visse a sua largura aumentada para 10/11 metros, estamos a falar de um valor que cerca de metade do apresentado no texto. Ser que pode ser um barco de transportes especiais, como diramos hoje?

    Na sua autobiografia, Ueni, da VI dinastia, afirma que o rei Merenr lhe financiou a construo de um barco de 31,5 metros de comprimento por 15,75 metros de largura (60 x 30 cvados), de accia para transportar uma mesa de oferendas de alabastro (travertino). E o que dizer do transporte dos colossais obeliscos de Assuo para Karnak, que ficaram registados nas paredes do templo funerrio de Hatchepsut? Sem serem concludentes, os clculos efectuados por

    barcos de pesca artesanal, uns de madeira e outros de papiro, barcos-cozinha e barcos de viagem (S. Vinson, Egypyian Boats and Ships, p. 30; D. jones, Boats, pp. 30-31).

    64 S. Vinson, Egypyian Boats and Ships, p. 33.65 Idem, p. 35.66 D. jones, Boats, p. 38.

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    especialistas variaram de 63 metros de comprimento por 25 de largura, podendo suportar cerca de 1500 toneladas, at 84 metros de comprimento por 28 de largura, suportando 2664 toneladas. Revistos estes estudos posteriormente, che-garam ainda aos inacreditveis 95 metros de comprimento por 32 de largura, suportando 7300 toneladas67.

    Contudo, durante o reinado de Tutms I, na XVIII dinastia, Ineni supervi-sionou a construo de um barco de 63 metros de comprimento por 21 metros de largura (120 x 40 cvados) para transportar obeliscos para o templo de Karnak que ainda hoje l esto e pesam 372 toneladas. Estas so as exactas medidas que temos no Conto do Nufrago (25 -27). E se considerarmos as tarefas que tinham que executar, embarcar e desembarcar pesos na ordem das 372 toneladas, 120 homens no seriam de mais. Portanto, o nufrago viajava num barco especial, j que era destinado a transportes especiais. Quanto a ns, isso tambm se pres-sente no prprio texto, j que ele ao iniciar a sua histria afirmou que ia para a regio mineira do soberano (22 -23). Obviamente que tambm as pedreiras eram minas reais! A questo da aparente navegabilidade de uma embarcao desta envergadura to a sul, mais adiante ser compreendida.

    Voltemos ento ao local onde o nufrago chegou depois do acidente, a tal ilha que tem os seus dois lados na gua (85 -86). Uma ilha que tem os seus dois lados na gua uma ilha fluvial. Numa ilha no mar, nunca os seus dois lados estariam na gua. De uma forma geral, devido s correntes martimas, as ilhas no mar tm um lado mais agreste e um lado oposto mais protegido, que poder ser de areal, ou seja, estar na gua. S um rio ao passar por ambos os lados de uma lngua de terra produz uma ilha que pode ter os dois lados opostos de areal. Alis, a expresso os seus dois lados s compreensvel se entendermos que a corrente que d sentido a essa orientao68. Por outro lado, o governador do Punt, quando est a dizer ao nufrago que ele se ir embora da ilha diz: deixars este lugar e jamais voltars a ver esta ilha que desaparecer (153 -154). Tambm esta frase nos leva a crer tratar -se de uma ilha fluvial. As ilhas que aparecem e desaparecem so uma caracterstica niltica: passada a inundao, o aluvio pode provocar o aparecimento de ilhas que, devido s suas caractersticas aluviais, na

    67 Idem, p. 65.68 C. VandersLeyen, En relisant le Naufrag, p. 1023. H contudo quem pense que a ilha do Ka seria

    uma pennsula (ver B. radomska, Die Insel des Schiffbrchigen eine Halbinsel?, pp. 27-30; con-testado por w. westendorf, Die Insel des Schiffbrchigen keine Halbinsel, pp. 1056-1064).

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    cheia seguinte podem desaparecer sem deixar rasto69. Por sua vez, no Livro de Amduat, um texto funerrio do Imprio Novo cujo nome significa O que est no Alm, ou seja, na Duat (dwAt)70, ao serem referidos os domnios de Sokar no Alm, diz -se que est no seu banco de areia, visvel sobre a barca henu no seu hierglifo. Embora apenas implcita, poder esta ser uma via de associao do Conto do Nufrago a Sokar?

    Ora, toda esta histria aconteceu no percurso de Iti -taui para norte, provavel-mente no Delta, como alguns pretendem, pois no houve at aqui qualquer indi-cao de inverso de marcha. Contudo, o senhor da ilha diz ser o governador do Punt, regio que fica no lado oposto do Nilo, ao qual se podia chegar tanto pelo mar Vermelho como pelo rio Nilo. Sabe -se que o Punt foi objecto de numerosas expedies egpcias entre a V dinastia e a poca Greco -Romana, muitas das quais sobreviveram em vrios tipos de relato. A regio era considerada como origem da mirra, do incenso e de outras substncias aromticas, bem como de ouro, marfim, madeiras exticas, entre as quais o bano, e diversas espcies animais, locais ou provenientes de outras regies africanas. Para alm do exotismo, esta terra era tam-bm mtica, pois da vinham diversos produtos para o culto, desde os aromticos e ornamentais s peles rituais dos sacerdotes, o que levou os Egpcios a design -la por Pas de Deus. Apesar de tudo isto, apenas se sabe que deveria ficar na frica Oriental, beira de um rio (seria o Nilo?)71, desconhecendo -se a sua localizao exacta.

    69 Idem, ibidem.70 Aparecendo pela primeira vez no tmulo de Tutms I, o Livro de Amduat um texto funerrio que

    permitia ao defunto atravessar o Alm na barca de R. Est dividido em doze seces correspondendo s doze horas da viagem nocturna do Sol, iniciando-se no Ocidente e terminando com o renascimento solar a Oriente. Com excepo da primeira hora que contm uma introduo e o registo central sub-dividido em dois, apresentando por isso qu