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O CONSELHO CONSTITUCIONAL FRANCÊS E A PROTECÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Beatriz Segorbe FDUNL N.º2 - 2000

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O CONSELHO CONSTITUCIONAL FRANCÊS

E A PROTECÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Beatriz Segorbe FDUNL N.º2 - 2000

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Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Working Papers

Working Paper 2/00

O CONSELHO CONSTITUCIONAL FRANCÊS E A PROTECÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

BEATRIZ SEGORBE

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ÍNDICE

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INTRODUÇÃO

CAP. I – CONTEXTO

A) A tradição francesa

B) A génese do Conselho Constitucional

i) Composição

ii) Funcionamento

iii) Competências

CAP. II – O CRITÉRIO

A Constituição de 1958 e o Bloco de Constitucionalidade

CAP. III – MISSÃO INICIAL E SEU ALARGAMENTO

A protecção dos direitos fundamentais

- A Declaração e a Constituição

- Uma incoerência de base?

- Jurisdicionalização da Declaração

- O reconhecimento de direitos não escritos

CAP. IV – O MODELO FRANCÊS COMO MODELO SUI GENERIS

i) O afastamento do modelo europeu...

ii) ...e a aproximação do modelo americano

CONCLUSÃO

INTRODUÇÃO

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O Conselho Constitucional Francês é um órgão que apresenta características

muito peculiares e cujo estudo se revelou surpreendente. Esperava-se um trabalho

descritivo e um relatório que pouco poderia fugir do sistema consagrado, mas a verdade

é que o Conselho Constitucional, da mesma forma que conseguiu surpreender os seus

criadores, também consegue superar as expectativas daqueles que resolvem ler algo

sobre a justiça constitucional francesa.

Este órgão, ao contrário do que era esperado no momento da sua criação, tem

tido um percurso admirável. Originariamente, surge com uma função muito específica e

a sua importância era diminuta ao pé de outras instituições; todavia, através de uma

jurisprudência hábil, o Conselho Constitucional francês tem conseguido reservar para si,

paulatinamente, mas de uma forma inabalável, um papel primordial no sistema jurídico

e judiciário daquele país, desempenhando uma missão que o veio a tornar, hoje em dia,

uma instituição por todos respeitada.

O seu aparecimento, justificado por uma necessidade de garantir um bom

funcionamento do sistema parlamentarista, explica que a sua missão fosse a de guardião

da separação de poderes. A verdade, porém, é que este órgão veio demonstrar que a sua

utilidade podia ser muito maior e que a sua missão tinha um carácter muito mais

abrangente do que a atribuída pelos seus progenitores. Com efeito, através de uma

actividade jurisprudencial que se tem revelado constante, apesar de umas vezes mais

ousada, outras mais contida, o Conselho Constitucional tem desempenhado um

importante papel na defesa dos direitos fundamentais em França.

Não se julgue, porém, que a evolução é apenas devida à sua actividade

jurisprudencial; um conjunto de circunstâncias tem vindo a permitir que as suas

decisões fossem acatadas e lhes fosse reconhecida uma força que inicialmente não lhes

era atribuída, o que deu ao Conselho Constitucional o pretexto para ir alargando o seu

âmbito de acção.

Já dissemos que a missão inicial deste órgão era muito reduzida, tendo ele sido

criado com a única finalidade de impedir o Parlamento de invadir a esfera do poder

regulamentar autónomo, reconhecido ao Governo pela Constituição de 1958. Com a sua

actividade, aliada ao contexto das decisões que por ele foram sendo emanadas, foi

possível assistir em França a uma viragem, que consistiu num alargamento das funções

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por ele desempenhadas e, cujo papel na protecção dos direitos fundamentais, para muito

contribuiu.

Com o presente trabalho pretende-se fazer uma breve apresentação deste órgão e

procurar explicar a forma como ele foi capaz de, habilmente, realizar esta mudança, sem

gerar constrangimentos, e a ponto de, hoje, em França, desempenhar um papel que mais

nenhum outro desempenha e que se tem vindo a revelar crucial no desenvolvimento,

não só do direito constitucional francês, como também da própria sociedade gaulesa.

Assim, num primeiro momento, faremos uma breve referência ao contexto que

envolvia a sociedade francesa por alturas do aparecimento do controle da

constitucionalidade das leis, por forma a compreender o seu sentido ambíguo à luz da

tradição daquele país, que proclamava a soberania da lei.

Em seguida, procuraremos explicar o aparecimento do Conselho Constitucional,

dando depois umas breves noções sobre a sua composição, competências e modo de

funcionamento. Não faremos aqui uma descrição exaustiva já que o cerne deste trabalho

pretende ser a protecção dos direitos fundamentais; a exposição descritiva será, assim,

feita apenas na medida do necessário para uma compreensão dos pontos essenciais que

caracterizam esta instituição.

O critério a que o Conselho Constitucional recorre para averiguar do controle da

constitucionalidade das leis tem sofrido importantes evoluções. É delas que

pretendemos dar conta no capítulo em que fazemos referência ao Bloco de

Constitucionalidade. Com um entendimento amplo de Constituição, o Conselho

Constitucional tem conseguido fundamentar a inserção no Bloco de Constitucionalidade

de importantes elementos, que se vieram a revelar essenciais para a protecção dos

direitos fundamentais.

Passaremos, depois, ao que pretende ser o âmago deste trabalho; começaremos

por explicar a missão inicial para a qual este órgão estava destinado e a forma como o

Conselho Constitucional conseguiu através das suas decisões (a duas das quais faremos

uma referência mais detalhada, dada a sua importância) ir alargando o âmbito das suas

funções. Na sempre prudente e audaz atitude a que já nos habituou, o Conselho veio a

assumir um papel fundamental na sociedade gaulesa, conquistando um respeito que é

hoje inegável.

Em seguida, procuraremos explicar como tem vindo a ser desenvolvida a

protecção dos direitos fundamentais. Esta questão levou-nos à necessidade de

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consideração de um problema de base: como conciliar disposições que no momento em

que surgiram eram tidas como verdades universais com uma constituição claramente

positivista, que parece negar a existência de qualquer direito natural? Sobre este tema

faremos algumas considerações e analisaremos, brevemente, o que a doutrina tem

entendido sobre o assunto.

Passaremos depois à análise do que tem vindo a assistir-se em França e que

surge como inesperado no contexto da pesada tradição daquele país. O Conselho

Constitucional, tornando-se o principal defensor dos direitos fundamentais tem vindo a

reconhecer a existência de direitos não escritos, participando assim, através de uma

actividade jurisprudencial intensa, na criação e desenvolvimento do próprio direito

constitucional.

Terminaremos este trabalho questionando o modelo francês, no sentido de o

compreender como um modelo sui generis, que parece afastar-se do modelo europeu; e,

assim sendo, averiguar das características que permitem reconhecer uma aproximação

considerável com o modelo americano.

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CAP. I – CONTEXTO

A) A TRADIÇÃO FRANCESA

A tradição francesa, de tão pesada e omnipresente, foi um dos principais

entraves para o reconhecimento de um papel mais importante do Conselho

Constitucional, por alturas do seu aparecimento. A necessidade de um controle da

constitucionalidade das leis fazia pouco sentido no contexto jurídico-cultural

francófono1.

O sistema constitucional francês formou-se a partir de 1789, por via de uma

revolução que se propunha destruir todo o sistema até aí instituído. A necessidade e o

ensejo de pôr fim ao absolutismo e aos arbítrios da monarquia justificavam a

necessidade de um texto constitucional que garantisse o bom funcionamento das

instituições, de modo a proteger os cidadãos.

Todavia, o facto de ter surgido, por esta altura, a primeira Constituição e a ela se

terem seguido um rol de textos fundamentais não provocou, porém, a necessidade de

criação de um orgão encarregue de velar pelo seu respeito e cumprimento. O controle da

constitucionalidade das leis só veio a ser instituído mais tarde, em 1946, com a criação

do Comité Constitucional, o antepassado directo do Conselho Constitucional, que hoje

conhecemos.

A primeira Constituição francesa nasceu numa época que, ideologicamente, se

apresentava profundamente marcada pelas ideias de Rousseau. A lei era concebida

como expressão da volonté générale, participando todos os cidadãos na sua elaboração;

pela sua própria natureza a lei nunca poderia, assim, ser injusta pois seria contrário à

natureza humana querer oprimir-se a si mesmo. O controle da constitucionalidade das

1 Vide FAVOREAU, Actualité et legitimité du contrôle juridictionnel des lois en Europe Occidentale, in Revue du Droit Public et de la science politique en France et à l’étranger, p 1178 que afirma, a este propósito, «en France, en revanche, la tradition historique est en sens inverse. En effet les régimes démocratiques des IIIº et IVº Républiques excluent l’existence d’un contrôle juridictionnel des lois»; também, neste sentido, CLAUDE EMERI, Gouvernement des juges ou veto des sages?, in Revue du Droit Public et de la science politique en France et à l’étranger, Jan-Fev. 1990, pp 335 a 358.

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leis era um mecanismo que surgia, neste contexto, como absolutamente supérfluo. A lei

não poderia fazer mal e a garantia do seu respeito pela Constituição não fazia qualquer

sentido e revelava-se inútil.

A esta inutilidade do controle da constitucionalidade das leis acrescia o seu

carácter inoportuno – se porventura uma lei fosse contrária á Constituição, caberia ao

juíz sancioná-la, o que no espírito dos revolucionários poderia significar um entrave ao

seu dinamismo, por parte de um poder que se pretendia aliado.

Numa palavra, a sacralização da lei tornava o controle da constitucionalidade

inútil, ao passo que a desconfiança no poder judicial o tornava inoportuno2. As

Constituições da época revolucionária não beneficiavam, portanto, de qualquer

mecanismo destinado a garanti-las. A confiança no auto-controle do legislador e a

consagração da sua soberania levavam assim a uma dessintonia de base entre o

princípio da supremacia da constituição e a realidade institucional.

Entre 1791, data do primeiro texto constitucional, e 1958, data da Constituição

actualmente em vigor, verificou-se uma sucessão desenfreada de textos fundamentais, a

ponto de a própria opinião pública conceber as Constituições como textos relativamente

precários. E tal facto permite também compreender um sentimento de desnecessidade de

consagração de um controle da constitucionalidade das leis: para quê submeter uma lei

que é um diploma tendencialmente perene ao respeito pela constituição que está em

constante mutação? Como confiar num critério tão pouco estabilizado?

A evolução das instituições contribuiu no mesmo sentido – nenhum regime

depois de 1791 admitiu a ideia de um poder judicial capaz de fazer contrapeso ao poder

legislativo. O Juíz era visto e pretendia-se um mero servidor da lei, incapaz de um juízo

valorativo sobre a bondade de qualquer diploma.

A Revolução havia revogado a velha máxima que fundava o absolutismo,

subordinando à lei o poder. Todavia, para alguns, o absolutismo apenas sofrera um

recentramento3: a Revolução fizera-o renascer em benefício do legislador. A

necessidade de limitar, através da lei, os abusos de poder do monarca não fazia supôr

nem perceber a necessidade de limitar o legislador. Assim, continuava a existir, em

2 PIERRE BON, La legitimité du Conseil Constitutionnel français, in Legitimidade e legitimação da Justiça constitucional, Colóquio do 10º Aniversário do Tribunal Constitucional, 1995, Coimbra, p 140. 3 Assim, JEAN RIVERO, Fin d’un absolutisme, in Pouvoirs nº 13

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França, um poder cujo arbítrio não se submetia a qualquer norma – a Constituição

existia, mas o legislador podia transgredi-la a seu bel-prazer, em total impunidade.

Em suma, a tradição francesa caracteriza-se por um poder legislativo de essência

e majestade particulares, que eram expressão da própria soberania. Só no início deste

século se começou a debater a questão do controle da constitucionalidade das leis e no

conjunto, os seus defensores apontavam todos para um sistema de controle difuso

levado a cabo pelos tribunais comuns4.

O sistema francês, porém, apresentava determinadas características que

aparentavam compatibilizar-se mal com um sistema semelhante ao da “judicial

review”, do tipo norte-americano5. A soberania do Parlamento e a consequente

sacralização da lei, conquistas da democracia em face do poder real, a separação de

poderes e o temor pela instauração de um “gouvernement des juges” levaram a que

aquela ideia se revelasse demasiado perigosa6.

De qualquer modo, e malgré tout, a Constituição continuava a ser vista como a

lei suprema do Estado. A manutenção deste estado de coisas devia-se à ingénua crença

na capacidade de auto-limitação do legislador, isto é, a interpretação da Constituição

pertencia ao Parlamento, que representava a vontade popular, cabendo a este julgar e

garantir a constitucionalidade das suas próprias leis. A tradição constitucional francesa,

afirmando o princípio da soberania da Constituição, consagrava, na verdade, a soberania

do legislador.

4 Assim, Pierre Bon, La legitimité du Conseil..., ob. cit., p 141 e ss. 5 A este propósito afirma BEARDSLEY, The Constitutional Council and constitutional liberties in France, in The American Journal of comparative law, vol 20, 1972: «The invalidation of na act of Parliament on the ground that it infringies constitutionnaly protected rights of the citizen is alien to French constitutional tradition». 6 Assim, FAVOREAU, Actualité et Legitimité..., ob. cit.

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B) A GÉNESE DO CONSELHO CONSTITUCIONAL

O Conselho Constitucional francês, indesejado por uns e inútil para outros teve,

assim, um nascimento algo conturbado e original. Antes da sua criação, houve uma

tentativa de instituir um controle da constitucionalidade das leis, com a criação de um

orgão, por alturas da entrada em vigor da Constituição de 1946, denominado Comité

Constitucional7. Esta fora uma tentativa cheia de boas intenções mas votada ao inêxito,

a ponto de, ao longo de toda a IVª Républica, este orgão ter sido chamado a pronunciar-

se uma única vez. Um dado importante que importa reter é o facto de a atribuição de

competências consagrada na Constituição, expressamente, limitar o critério para

averiguar da constitucionalidade das leis aos Títulos I a X da Constituição, excluindo o

seu Preâmbulo, o que, como veremos, vem a impedir, nesta altura, a possibilidade de

protecção dos direitos fundamentais, pelo menos, na forma como esta hoje tem lugar.

Em 1958, finalmente, o Conselho Constitucional foi instituído pelo título VII da

Constituição, com o intuito de desempenhar um papel simples e eminentemente

político: a sua função seria evitar um regime de predomínio da vontade do parlamento

sobre a de todos os outros orgãos. A sua existência foi praticamente ignorada pela

opinião pública sobretudo durante os primeiros anos desde a sua criação. Referindo-se a

este facto, afirma LOÏC PHILIP: «les réactions devant la création de cette nouvelle

institution ont été, dans l’ensamble, plutôt négatives»8.

Foi esta tradição que o Conselho Constitucional conseguiu alterar, submetendo

a lei à ordem constitucional e passando esta a integrar o conjunto dos direitos do

homem. O Conselho Constitucional francês teve, assim, o mérito de, lentamente, ir

afirmando a sua importância e ir assegurando a protecção das liberdades contra o

absolutismo parlamentar, contribuindo para a construção de um Estado de Direito.

No espírito dos constituintes de 1958, o papel a desempenhar pelo Conselho

seria essencialmente de ordem política, ou seja o de evitar um regime de predomínio da

7 Para mais desenvolvimentos, vide, entre outros, FAVOREU e LOÏC PHILIP, Le Conseil Constitutionnel, PUF, 1980; BURDEAU, HAMON e TROPER, Droit Constitutionnel, 25ª ed., L.G.D.J.; PIERRE AVRIL e JEAN GICQUEL, Le Conseil Constitutinnel, Paris, 1992 e também uma curta, mas interessante, referência in PIERRE BON, La legitimité du Conseil...¸ ob. cit., pp 141-142. 8 L. PHILIP, Le Conseil constitutionnel, in L’écriture de la Constitution de 1958, Economica et PUAM, 1992, p 481, apud PIERRE BON, La legitimité du Conseil Constitutionnel français, in Legitimidade e legitimação..., ob. cit., p 139.

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vontade do Parlamento, defendendo, assim, os interesses do Governo. Optou-se então

pela criação não de um verdadeiro Tribunal mas antes de uma instituição sui generis,

cujo modelo não se inspira em nenhum outro sistema.

O Conselho Constitucional surgiu, apenas, para garantir um equilíbrio de

poderes, controlando o Parlamento de modo a garantir o Executivo. Esta sua missão

inicial tem vindo a sofrer grandes alterações, pois este órgão acabou por se tornar um

garante dos direitos e liberdades fundamentais, tantas vezes postos em causa pelas

actividades de um Governo maioritário.

Desde o dia que foi criado, o Conselho Constitucional personificava o risco, por

tantos temido, de instauração de um “gouvernement des juges”, medo este que ainda

era agravado pela contínua extensão dos seus poderes, na medida em que os textos que

aplicava e lhe serviam de critério eram normalmente demasiado vagos, necessitando de

concretização.

O temor foi sendo apaziguado em face da atitude de constante prudência com

que este órgão se tem manifestado – de facto, desde sempre se assiste a uma atitude de

rigor e de auto-limitação, que vai retirando argumentos às vozes que se lhe opõem.

Desde o seu aparecimento, as críticas que lhe foram sendo feitas diziam

sobretudo respeito ao excessivo compromisso político que a sua actividade exige,

passando por outras que iam desde as dúvidas relativas à sua competência técnica, ao

ponto de se criticar até a excessiva idade dos seus membros. A imagem que este órgão

possuía junto da classe política era de tal forma negativa, que qualquer decisão por si

emanada era vista com suspeita; a opinião pública, por sua vez, não lhe atribuía

qualquer relevância e alguns membros da comunidade jurídica chegavam mesmo a

negar-lhe carácter jurisdicional9.

O debate centrava-se no confronto entre duas teses: uma que entendia o

Conselho Constitucional como um órgão com funções jurisdicionais e outra que o

concebia como um órgão com funções eminentemente políticas10. A maioria dos autores

optava por considerar que o Conselho exercia os dois tipos de funções, que se

distinguiriam em função do acto praticado. O critério usado para considerar um acto

9 Sobre este assunto vide LUCHAIRE, Le Conseil constitutionnel: Sa place parmis les Pouvoirs publics français, in Jahrbuch des Öffentliche Rechts der Gegenwart, 1989. 10 Com este entendimento, LAVROFF, El Consejo Constitucional frances y la garantia de las libertades publicas, in Revista Española de Derecho Constitucional, vol 1, nº 3, Set-Dez, 1981, p 44.

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jurisdicional encontrar-se-ia na circunstância de se tratar de uma resposta a uma questão

de direito, com autoridade de caso julgado.

De qualquer modo, mesmo os autores que consideram que o Conselho

Constitucional desenvolve funções de carácter jurisdicional, ainda assim, admitem

tratar-se de uma jurisdição particular, que não se confunde com as demais.

I) COMPOSIÇÃO11

O Conselho Constitucional é composto por dois tipos de membros – nove deles

nomeados e os restantes de direito.

O acesso às funções por parte dos membros que compõem o Conselho

Constitucional depende da sua nomeação por uma das três mais altas autoridades do

Estado: o Presidente da República, o Presidente do Senado ou o Presidente da

Assembleia Nacional. Cada uma destas entidades designa três membros, visando-se

com esta nomeação igualitária e tripartida garantir a serenidade da escolha e o prestígio

do Conselho. O poder de nomeação foi atribuído, não às Assembleias, mas aos seus

presidentes com o fim de evitar conflitos políticos demasiado acesos.

Desde a origem da instituição que se tem colocado o problema do alegado

comprometimento político dos membros do Conselho, uma vez que as autoridades de

nomeação, normalmente, escolhem personalidades que partilham das suas próprias

visões políticas.

Em face do papel que inicialmente estava atribuído ao Conselho, fácil se torna

compreender o que distingue o modo de composição da Conselho Constitucional da

maior parte das jurisdições constitucionais estrangeiras: o facto de a escolha dos seus

membros ser totalmente discricionária, não lhes sendo exigida qualquer qualificação

jurídica. De qualquer modo, hoje em dia, é composto sobretudo por juristas. A

nomeação dos seus membros sempre coube a autoridades políticas, o que segundo

FAVOREAU constitui uma vantagem, na medida em que reforça a legitimidade dos seus

membros, que passa assim por ser uma espécie de legitimidade indirectamente

democrática.

11 Para mais desenvolvimentos sobre a composição, modo de funcionamento e competências desta instituição vide, entre outros, FAVOREU e LOÏC PHILIP, Le Conseil Constitutionnel, ob. cit.; BURDEAU, HAMON e TROPER, Droit Constitutionnel, ob. cit..; PIERRE AVRIL e JEAN GICQUEL, Le Conseil Constitutinnel, ob. cit. e FAVOREAU, Le contrôle de constitutionnalité des normes juridiques par le Conseil constitutionnel, in Revue Française de Droit Administratif, Set-Out, 1987.

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O mandato dos membros nomeados tem a duração de nove anos e não é

renovável. Todavia, de três em três anos, assiste-se a uma renovação parcial do

Conselho no seguimento de uma nova nomeação por uma das três autoridades com

poder para tal, que escolhem os membros de uma forma alternada. Isto, para evitar que a

mudança seja efectuada de forma total e se garanta uma certa continuidade na actuação

deste órgão.

A Constituição consagra ainda um regime de incompatibilidades, cujo campo foi

estendido em 1995 – estão previstos dois tipos de incompatibilidades: uma que tem a

ver com mandatos políticos e outra com determinadas actividades profissionais.

Existem ainda sólidas garantias de independência e inamovibilidade, de entre as quais

se encontra o facto de o mandato dos membros do conselho não poder ser revogado

pelas autoridades que os nomearam.

Os membros podem ser considerados demissionários apenas em três casos

específicos: no caso de aceitação de mandato ou função incompatível com o seu

estatuto, de incapacidade física permanente ou de perda de direitos civis ou políticos.

A alínea 2 do artigo 56º da Constituição gaulesa dispõe que são membros de

direito do Conselho Constitucional os antigos Presidentes da República, os quais, apesar

do carácter vitalício do seu cargo possuem uma voz deliberativa equivalente à dos

membros nomeados, estando sujeitos a mesmo regime de incompatibilidades. Até hoje,

apenas dois antigos Presidentes da IVª República tiveram assento no Conselho -

Vincent Auriol e René Coty – e, quer um quer outro, durante muito pouco tempo. O

interesse dos antigos Presidentes da República Francesa por este seu direito tem sido

escasso, presumindo-se que não exerça sobre eles qualquer tipo de atracção. Há mesmo

quem questione a real utilidade deste instituto e, sobretudo, a sua adequação, pois não

raras vezes podem ser suscitadas perante o conselho questões com implicações políticas,

nas quais se confronte a maioria e a oposição, sendo fácil duvidar da imparcialidade das

decisões de um ex-Presidente da República12.

A alínea 3ª do artigo 56º estabelece o regime para a presidência do Conselho: o

presidente é nomeado, de entre todos os seus membros, por decisão pessoal do

Presidente da República. O presidente do Conselho possui um poder de organização

12 Em 1993, chegou mesmo a haver uma proposta do comité consultivo para a revisão constitucional no sentido da supressão dos membros de direito da composição do Conselho Constitucional, a qual, porém, não veio a ser aceite.

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geral dos trabalhos, cabendo-lhe designar o relator de cada caso e possuindo voto d

qualidade em caso de “partage” de opiniões.

II) FUNCIONAMENTO

O Conselho Constitucional não pode pronunciar-se a não ser que seja chamado a

fazê-lo por entidades que lhe são exteriores: é o designado “droit de saisine”, que cabe

a várias figuras que vão desde o Presidente da Républica a um conjunto de 60 deputados

ou senadores13.

A consulta ao Conselho Constitucional tem lugar depois da adopção definitiva

da lei pelo parlamento, mas antes da sua promulgação, suspendendo o prazo para esta

última. A partir do momento em que lhe é dirigida uma determinada questão, o

Conselho tem um prazo de trinta dias para decidir. Este prazo pode ser encurtado para

oito dias, nos casos em que o Governo decrete um carácter de urgência. O Conselho é,

assim, chamado a agir mais rapidamente que a maioria das jurisdições constitucionais.

A alínea 2 do artigo 62º da Constituição dispõe sobre a autoridade das decisões

do Conselho Constitucional – as decisões do Conselho não são susceptíveis de recurso e

impõem-se a todos os poderes públicos e a todas as autoridades administrativas e

jurisdicionais. Esta característica das decisões do Conselho Constitucional abrange não

só o dispositivo da decisão como também os seus fundamentos, o que alarga

consideravelmente o seu âmbito e, como tal, a sua força.

A interpretação que tem prevalecido desta disposição tem conduzido à

possibilidade de existirem contradições nas jurisprudências das jurisdições mais

elevadas, sem possibilidade de arbitragem, na medida em que se tem entendido que a

vinculação às decisões do Conselho se reduz aos casos que por ele foram decididos. De

qualquer modo, até hoje, apenas em três casos se assistiu a um conflito entre o Conselho

Constitucional e o Conselho de Estado.

III) COMPETÊNCIAS

A Constituição francesa não apresenta nenhuma cláusula geral de atribuição de

competências a este órgão, pelo que as suas atribuições são enumeradas de forma

13 Possibilidade introduzida pela lei Constitucional de 29 de outubro de 1974 que operou a revisão da Constituição de 1958.

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limitativa e a maior parte corresponde a hipótese muito específicas, não lhe cabendo

conhecer de qualquer litígio sobre a interpretação da Constituição.

O Conselho Constitucional tem competências ligadas ao exercício do sufrágio

como juiz eleitoral, competências relativas ao estatuto dos titulares de certos mandatos

electivos, competências relativas ao exercício dos poderes excepcionais do artigo 16º14 e

competência relativas ao controle da constitucionalidade das normas.

Estas últimas são, sem dúvida, as suas competências mais importantes e aquelas

que nos interessa analisar para o tema de que nos pretendemos ocupar. O âmbito do

controle da constitucionalidade das normas abarca não só a regularidade do processo de

elaboração da lei, como o respeito pela hierarquia das normas e pela conformidade do

seu conteúdo com as regras constitucionais.

Já vimos que, inicialmente, o papel do Conselho Constitucional era visto apenas

como um meio de limitar os poderes do Parlamento, mas o poder que lhe foi consagrado

assumiu contornos mais vastos sobretudo a partir do alargamento do “droit de saisine”

a grupos de parlamentares – o controle de constitucionalidade passou a sancionar tanto a

acção do Parlamento como a do Governo.

Existem dois tipos de normas cuja submissão ao controle de constitucionalidade

é obrigatório – as leis orgânicas e os regulamentos das assembleias parlamentares. Em

ambos os casos, porém, o controle não é automático, uma vez que continua a depender

de iniciativa, do Primeiro Ministro no caso das primeiras, e do Presidente da

Assembleia respectiva no caso das segundas.

Um outro tipo de controle levado a cabo pelo Conselho Constitucional francês é

o facultativo, que é aquele que exige a iniciativa de uma das entidades elencadas na

alínea 2 do artigo 61º da Constituição. O objectivo do controle facultativo pode ser,

consoante os casos, a defesa do domínio regulamentar, o controle da constitucionalidade

de uma lei ordinária ou o controle da constitucionalidade de um compromisso

internacional.

14 Em situações de estado de emergência, o Conselho deve ser consultado sobre as condições que devem estar reunidas e a que se subordina a apreciação do artigo 16º e deve ser igualmente consultado sobre a aplicação de cada uma das medidas excepcionais tomadas pelo Presidente da Republica. Nestes casos, o Conselho emite meras recomendações, não vinculativas.

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CAP. II - O CRITÉRIO

A CONSTITUIÇÃO DE 1958 E O BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE

Uma das razões que levava a doutrina e a opinião pública a acreditar que o

controle de constiticionalidade seria exercido pelo Conselho Constitucional de forma

marginal era, precisamente, a inexistência de um parâmetro de constitucionalidade

suficientemente amplo que, quer quantitativa, quer qualitativamente, permitisse ao

Conselho actuar de maneira eficaz no desempenho desta função.

Estando o Conselho Constitucional encarregue de controlar a conformidade das

leis com a Constituição é, evidentemente, esta que constitui o seu critério. Todavia, se

alguns autores entendem a expressão “Constituição” num sentido estrito, como se

referindo unicamente ao texto propriamente dito, outros há que entendem aquela

expressão num sentido amplo15. Neste último caso, ela compreenderia não apenas o

texto, como também outros elementos para os quais este remete. Foi numa importante

decisão de 1971, que analisamos infra, que o Conselho Constitucional assumiu um

entendimento amplo de critério de constitucionalidade.

O controlo da constitucionalidade das normas realizado pelo Conselho

Constitucional é, hoje, vasto tendo em conta que lhe compete garantir a regularidade do

processo de elaboração da lei, o respeito pela hierarquia das normas e a conformidade

do seu conteúdo com as regras constitucionais.

Tudo isto é feito por referência a um critério de constitucionalidade que não se

resume, para bem de todos, ao texto da Constituição propriamente dito. Na realidade,

importando-se uma noção corrente de direito administrativo, a expressão “bloco de

constitucionalidade” entrou no uso corrente de todos os constitucionalistas, para

designar o conjunto de textos que servem de parâmetro de controle16.

15 Sobre o clássico debate relativo ao valor da Declaração e do Preâmbulo vide RIALS, Les incertitudes de la notion de Constitution sous la Vº République, inRevue de Droit Public et de la science politique en France et à l’étranger, pp 389 e ss. 16 Para um relato da sua evolução e comparação do sentido da expressão em França e em Espanha vide FAVOREU e LLORENTE (orgs.), El bloque de la constitucionalidad (Simposium franco-español de Derecho Constitucional), Madrid: Civitas, 1991

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Esta expressão surgiu no direito francês no início dos anos 70 e tem sido alvo de

uma importante evolução ao longo dos anos, a ponto de LOUIS FAVOREU17 afirmar que

as definições que são dadas de Bloco de Constitucionalidade não são imutáveis,

variando de tempos em tempos – primeiramente era definido como um conceito vago e

indefinido enquanto hoje compreende noções precisas e operativas, pois o Conselho

Constitucional conseguiu impor ao legislador nacional o respeito por um conjunto de

normas de referência, claramente delimitadas.

Ao contrário do que se possa pensar, esta não foi uma expressão de origem

jurisprudencial, pois o Conselho Constitucional, nas suas decisões, prefere recorrer a

expressões como “princípios e regras de valor constitucional”, para designar o conjunto

de normas cujo respeito se impõe à lei. O uso desta expressão partiu da doutrina, mais

concretamente, dos comentários à importante decisão de 16 de Julho de 1971, relativa à

liberdade de associação. O Direito Administrativo sempre fizera referência ao “bloco de

legalidade”, que designava o conjunto de regras, para além das leis positivas, que se

impunham à Administração em virtude do princípio da legalidade. A partir desta noção

de “bloco de legalidade” nasceu e desenvolveu-se a de “bloco de constitucionalidade”,

sem dúvida por se mostrar adequada para designar o conjunto de princípios e regras de

valor constitucional. Há quem diga que esta ideia de “bloco” invoca ainda uma imagem

de solidez e unidade, como conjunto que não pode ser cindido. Outros, porém, criticam-

na, considerando que invoca uma ideia de rigidez e imutabilidade que em nada

corresponde á realidade18.

Convém agora determinar de forma precisa o seu conteúdo19. Conforme se disse

supra o conteúdo do bloco de constitucionalidade tem variado desde a sua origem, de

tal modo que, se no início, englobava um vasto conjunto de normas, hoje só podem ser

consideradas quatro categorias de normas, como fazendo dele parte integrante.

O bloco de constitucionalidade é composto pelos seguintes elementos: o texto da

Constituição de 1958, o seu Preâmbulo que remete para a Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão de 1789 e para o Preâmbulo da Constituição de 1946; o

Preâmbulo da Constituição de 1946 que, por sua vez, remete para os “princípios

17 FAVOREU e LLORENTE (orgs.), El bloque..., ob. cit., pp 19 e ss. 18 Vide, entre outros, JEAN-MICHEL BLANQUER, L’ordre constitutionnel d’um régime mixte, Le sens donné à la Constitution par le Conseil Constitutionnel, in Revue du Droit Public, nº 5/6, 1998, pp1535 e ss. 19 Para uma análise mais detalhada vide FAVOREU e LLORENTE (orgs.), El Bloque..., ob. cit., pp 25 e ss e RIALS, Les incertitudes..., ob. cit., pp 587 e ss.

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fundamentais reconhecidos pelas leis da República” e proclama os “princípios

particularmente necessários ao nosso tempo”.

As disposições contidas no texto da Constituição têm todas a mesma força e,

apesar de a sua maior parte se referir à regulamentação dos poderes públicos, a verdade

é que determinadas disposições afectam directamente os direitos e liberdades

fundamentais: o artigo 2º refere a liberdade religiosa, o artigo 3º, os direitos cívicos, o

artigo 4º, partidos políticos, o artigo 64º, a independência da magistratura e o artigo 66º,

a liberdade individual.

As disposições da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789,

directamente aplicável a partir da decisão de 16 de Julho de 1971, serve pela primeira

vez como parâmetro de controle numa decisão de 1973, quando baseia a declaração de

inconstitucionalidade de uma lei das finanças que violava expressamente o artigo 6º

daquela Declaração.

O conjunto das disposições que compõem a Declaração são aplicáveis, apesar de

alguns autores terem defendido que apenas algumas delas o seriam, na medida em que,

nem todas teriam valor de direito positivo. Não obstante, o Conselho Constitucional

nunca fez qualquer distinção e sempre aceitou decidir com base, e tendo em

consideração, a Declaração, na sua totalidade.

O lugar ocupado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e do

Cidadão no Bloco de Constitucionalidade é de tal modo importante que o Conselho

chegou mesmo, numa decisão de 1982, a declarar expressamente que apesar da sua

idade este documento tinha uma força equivalente pelo menos à reconhecida ao

Preâmbulo de 1946.

O Preâmbulo de 1946, tal como tem sido aplicado pelo Conselho Constitucional

representa uma declaração de direitos económicos e sociais, que completa a Declaração

de direitos de 1ª geração de 1789.

A famosa decisão de 1971 veio considerar as disposições do Preâmbulo da

Constituição de 1946 como parte integrante das normas constitucionais20, e foram pela

primeira vez aplicadas enquanto critério para aferir da constitucionalidade de uma

norma numa decisão de 1975.

20 Vide RIALS, Les incertitudes..., ob. cit., p 594.

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Tal como acontecera com a Declaração Universal também em relação ao

Preâmbulo se discutira se todas as suas disposições teriam valor jurídico-positivo. O

Conselho Constitucional sempre se negou a fazer qualquer distinção entre elas,

considerando-as a todas directamente aplicáveis.

Quanto aos princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República, estes

integram-se no bloco de constitucionalidade de uma forma indirecta, na medida em que

o Preâmbulo da Constituição de 1958, não os mencionando expressamente, se refere ao

Preâmbulo da Constituição de 1946, que os reafirma solenemente, reconhecendo-lhes

um valor equivalente ao dos direitos e liberdades consagrados na Declaração de 1789.

Estes princípios foram consagrados originalmente por leis ordinárias e não por

leis constitucionais, não existindo nenhum critério formal que permita identificá-los. O

Conselho Constitucional pode assim criar, inspirando-se em leis ainda em vigor, cuja

origem pode remontar há mais de meio século, novos princípios constitucionais cujo

respeito impõe ao legislador actual.

O Conselho Constitucional tem revelado uma atitude de prudência no sentido de

evitar recorrer à sua invocação para fundamentar qualquer decisão de

inconstitucionalidade. Daí que se fale, por vezes, em elementos marginais do bloco de

constitucionalidade.

A atitude do Conselho Constitucional é sobretudo de prudência, pois, facilmente,

seria acusado de estar a tentar “governar” – o reconhecimento dos princípios não é uma

actividade desvinculada, e o próprio Conselho tem fixado critérios precisos para o seu

reconhecimento, mas não deixa de ser interpretativa e como tal criadora.

Finalmente, os “princípios políticos, económicos e sociais particularmente

necessários ao nosso tempo” são referidos no Preâmbulo da Constituição de 1946 e são

considerados intemporais, vindo o Preâmbulo de 58 recuperá-los21. Dado o reduzido

número de vezes a que o Conselho Constitucional a eles recorre, também poderão ser

considerados elementos marginais do Bloco de Constitucionalidade.

21 Para mais desenvolvimentos vide MARC DEBENE, Le Conseil Constitutionnel et “les principes particulièrement nécessaires à notre temps”, in Revue de Droit Administratif, 20 Nov 1978.

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CAP. III – MISSÃO INICIAL E SEU ALARGAMENTO

Já fizemos referência ao intuito que presidiu à criação deste orgão. O Conselho

Constitucional surgiu no ordenamento francês, depois da tentativa falhada de instituir

um controle de constitucionalidade das leis com o Comité Constitucional, com uma

função muito concreta: a de garantir o respeito pela separação de poderes instituída,

evitando qualquer regime de predomínio do Parlamento.

Na altura em que foi criado dominavam as ideias de Rosseau e sendo a lei

concebida como expressão da vontade geral, não fazia sentido, nem tão pouco se sentia

a necessidade de instituir um controle da constitucionalidade das leis.

Foi esta soberania da lei que o Conselho Constitucional através da sua

jurisprudência conseguiu pouco a pouco afastar, sendo o principal responsável pela

defesa da Constituição.

Assim, verifica-se que este órgão conseguiu, através de uma prudente audácia,

alargar o âmbito das suas funções, assumindo um papel que se veio a revelar

fundamental na sociedade francesa. As funções que hoje desempenha, todavia, não se

resumem a garantir o respeito pelo texto da Lei Fundamental. Vão mais além. Com o

alargamento do critério de constitucionalidade22 - a constituição actual do Bloco de

Constitucionalidade foi, como vimos, também obra da jurisprudência do Conselho

Constitucional -, passou a ser responsável pela defesa dos direitos e liberdades

fundamentais, assumindo funções para as quais inicialmente não tinha sido criado.

O alargamento da sua missão inicial é devido a uma actividade jurisprudencial

intensa, que lhe permitiu adquirir uma importância hoje incontestável no sistema

constitucional francês. Graças a ele, «a soberania do legislador cedeu o passo à

supremacia da Constituição. O respeito pela separação de poderes e pela submissão

dos juízes à lei foi suplantada pela prevalência dos direitos dos cidadãos face ao

22 BURDEAU, HAMON e TROPEL, Droit Constitutionnel, ob. cit., pp 699 e ss.

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Estado»23. Todavia, desde a sua criação, sempre se colocou um problema de

legitimidade e verifica-se, hoje, a legitimação da actividade do Conselho Constitucional

se encontra directamente ligada ao papel por ele assumido enquanto defensor dos

direitos fundamentais.

O Preâmbulo da Constituição actualmente em vigor faz uma importante

remissão para a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, daí que o

valor jurídico a atribuir ao Preâmbulo se tenha tornado uma questão cuja solução teria

consequências práticas importantes.

Ora, foi em 1971, com uma decisão sobre a liberdade de associação que, pela

primeira vez, o valor jurídico do Preâmbulo é consagrado, o que veio permitir alargar a

noção de conformidade à Constituição, assumindo o Conselho um papel de protector

das liberdades fundamentais.

É interessante analisar o que realmente estava em causa e verificar a forma como

o Conselho aproveitou este caso para iniciar a sua “démarche” na defesa dos direitos

fundamentais24:

A decisão do Conselho veio pôr fim a uma sucessão de acontecimentos, que

tinham tido o seu início em Maio de 1970, com a dissolução de um pequeno partido de

esquerda chamado “La Gauche Prolétarienne”, com base numa lei de 1936 que visava

combater grupos e milícias privadas. O assunto rapidamente se tornou célebre, a ponto

de um grupo de cidadãos manifestar claramente a sua oposição (onde se incluía Sastre e

Simone de Beauvoir) constituindo uma associação designada “Les Amis de la Cause du

Peuple”.

A constituição das associações estava regulamentada numa lei do início do

século, que exigia o depósito de uma declaração sobre a organização e os seus

propósitos e de uma cópia dos estatutos da associação junto do Presidente da Câmara de

Paris. Este deveria proceder à publicação daquela informação no Jornal Oficial.

Todavia, em obediência a instruções do Ministro do Interior, recusou a sua publicação,

23 VITAL MOREIRA, Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade, in Legitimidade e legitimação da Justiça Constitucional, Colóquio do 10º aniversário do Tribunal Constitucional, Coimbra, 1995, p 179. 24 Sobre este assunto vide LAVROFF, El Consejo Constitucional frances..., ob. cit.

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pois este considerava que a associação não era mais do que uma reencarnação do

partido que fora extinto.

A associação interpôs então uma acção junto do Tribunal Administrativo de

Paris, o qual, em 1971, vem ordenar a publicação oficial dos estatutos da associação,

que pode assim finalmente constituir-se.

Quatro meses mais tarde, eis que surge uma lei que vem alterar a de 1901,

atribuindo ao Presidente da Câmara poderes para remeter a documentação sobre a

constituição de novas associações ao Procurador da República, nos casos em que se

suspeitasse que a associação a constituir tivesse um fim imoral ou ilegal ou revelasse

uma tentativa de reconstituição de uma associação já assim considerada.

Rapidamente se colocou a questão de saber se a alteração da Lei de 1901 que

exigia um controle a priori, não violaria a liberdade de associação, na medida em que

criava entraves ao direito de se constituir livremente uma associação de fins não

lucrativos, impedindo-a de adquirir plena personalidade jurídica.

O Presidente do Senado veio, assim, solicitar ao Conselho Constitucional que se

pronunciasse sobre a questão, dando assim a este órgão a possibilidade de emanar uma

decisão que se veio a revelar fundamental, não só para o aumento do respeito

conseguido junto da opinião pública, como para o próprio alargamento da missão para a

qual fora criado.

Foi, de facto, com esta decisão que, pela primeira vez o Conselho vem invocar

os “princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da Républica”, considerando a

liberdade de associação como uma liberdade constitucional. Vem, assim, consagrar de

forma definitiva o valor jurídico do Preâmbulo, alargando o critério por que afere da

constitucionalidade das leis e assumindo um papel de defensor das liberdades

fundamentais.

Esta decisão importou alterações de dois tipos: uma quantitativa, na medida em

que veio aumentar as disposições e princípios que passaram a fazer parte integrante do

Bloco de Constitucionalidade, e outra qualitativa, pois a inserção na Constituição de um

conjunto de princípios e regras relativos a direitos e liberdades fundamentais veio alterar

a própria natureza da Constituição. Tal como afirma PIERRE BON, «la reconnaissance,

par la décision 71-44 DC du 16 juillet 1971, d’une pleine valeur constitutionnelle aux

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dispositions du Préambule a radicalement changé les perspectives du contrôle de la

constitutionnalité»25.

Nesta decisão revelou-se a audácia do Conselho, sempre temperada com uma

dose de prudência. O próprio momento escolhido para agir não parece ter sido inocente

– o Conselho decidiu reforçar o seu papel precisamente quando se assistia à primeira

eleição através de sufrágio universal e directo do Chefe de Estado, que veio alterar o

equilíbrio de poderes previsto em 1958, justificando-se assim a necessidade de garantir

os direitos e liberdades dos cidadãos, perante o risco de concentração dos três poderes

(Chefe de Estado, Governo e Parlamento) sob a mesma cor política.

O Conselho Constitucional consegue assim assumir um papel de garante de um

contra-poder, que ironicamente passa a incumbir a membros designados pelos três

poderes agora submetidos ao seu controle.

«Ainsi, de la surveillance du Parlement et tout particulièrementde la défense de

l’exécutif, le Conseil constitutionnel est passé à la défense des compétences du

Parlement fusse contre lui-même, à la garantie des droits fondamentaux et à la

protection des droits de la minorité (...)»26.

A propósito deste decisão colocou-se logo a questão do perigo de instauração de

um “gouvernement des juges” e se, por um lado, se felicitava o Conselho pela decisão

tomada, logo se alertava para os perigos inerentes a decisões deste tipo, adoptadas no

futuro. A soberania do Parlamento e o mito da soberania da lei começavam a ser postos

em causa por um órgão que não tinha sido criado com esse fim.

De qualquer modo, todos lhe reconheciam importância, a ponto de haver já

quem lhe chamasse a sentença Marbury v. Madison francesa. Será porventura

demasiado, uma vez que, apesar do volte de face reconhecido, o controle de

constitucionalidade das leis já existia neste país; apenas nunca tinha sido exercido no

âmbito dos direitos fundamentais.

Mais tarde, em 1975, uma outra decisão, esta sobre interrupção voluntária da

gravidez, veio permitir, de novo, ao Conselho um alargamento da sua missão. O que

estava em causa era o texto de uma lei, resultante de uma proposta da Ministra da Saúde

Simone Veil, que vinha acrescentar aos casos em que se admitia uma interrupção

25 PIERRE BON, La legitimité du Conseil..., ob. cit., p 147.

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voluntária da gravidez, previstos por uma lei de 1920, uma nova causa: a situação de

“détresse” da mãe.

O que estava em causa, era novamente a definição do conceito de Constituição,

pois era necessário determinar se este conceito integraria ou não os compromissos

internacionais, na medida em que, aparentemente, aquela lei violaria o disposto no

artigo 2º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Pela primeira vez, o

Conselho é chamado a pronunciar-se sobre a sua competência para verificar a

conformidade de uma lei relativamente a um tratado ou acordo internacional. A solução

dada a esta questão traria inevitavelmente consequências quanto ao conteúdo do bloco

de constitucionalidade e quanto ao próprio âmbito de actuação do Conselho.

Ora, o Conselho veio a declarar a sua incompetência para dirimir este tipo de

questões, considerando que o facto de uma lei ser contrária a um tratado não implicar

necessariamente a sua desconformidade à Constituição. Esta auto-limitação por parte do

Conselho, todavia, não o impediu de declarar expressamente que as disposições do

Preâmbulo de 1946 têm valor de direito positivo, mesmo as que se encontram redigidas

em termos muito genéricos, e daqui a importância decisiva desta decisão para o

alargamento da missão inicial.

26 PIERRE BON, La legitimité du Conseil..., ob. cit., p 149.

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A PROTECÇÃO DOSDIREITOS FUNDAMENTAIS

O texto da Constituição francesa apresenta uma característica particular que

permite justificar e compreender a importância que a actividade do Conselho

Constitucional no domínio da protecção dos direitos fundamentais assumiu. Trata-se de

um diploma composto por 89 artigos, a maioria dos quais dedicados exclusivamente á

regulamentação das relações entre os poderes públicos. Não encontramos assim, ao

longo do corpo da Constituição propriamente dita, qualquer catálogo ou enunciação de

direitos fundamentais.

Nas palavras de FAVOREAU, «conformément à la tradition française depuis

1875, et à la différence des constitutions des pays voisins, la Constitution de 1958

contient peu de dispositions directement applicables aux individus»27.

A necessidade de reconhecimento de direitos foi assim sentida de forma aguda

neste país e foi através de uma jurisprudência simultaneamente prudente e audaz que o

Conselho Constitucional conseguiu provocar um volte face ao assumir funções para as

quais não tinha sido criado. Todavia, esta é uma etapa de um longo percurso de

conquistas, entretanto, percorrido.

No início, o espectro do “gouvernement de juges” atemorizava qualquer réstia de

poder concedido ao juíz constitucional, agravado pelo facto da criação deste órgão ter

tido, sobretudo, cariz político. A verdade é que o Conselho Constitucional conseguiu, de

forma diríamos que bastante diplomática, um feito que se tinha como inimaginável no

momento da sua criação – assumir um papel crucial no desenvolvimento do direito

constitucional. E, se como nota Vital Moreira, «a garantia dos direitos fundamentais é

hoje um traço comum à generalidade das constituições e tornou-se uma ideia inerente à

própria definição de Constituição»,28 só por mérito da jurisprudência do Conselho

Constitucional é que esta afirmação abrange o caso francês.

27 FAVOREAU, Actualité et legitimité du contrôle juridictionnel des lois en Europe Occidental, in Revue du Droit Public et de la science politique en France et à l’étranger, p 1158. 28 Vital Moreira, Princípio da maioria..., ob. cit., p 181.

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A DECLARAÇÃO E A CONSTITUIÇÃO

Durante muito tempo, a questão das relações entre a Declaração de Direitos de

1789 e as Constituições francesas sucessivas constituiu um dos temas de forte

controvérsia entre os publicistas daquele país. Desde as leis constitucionais de 1875 que

não faziam qualquer referência à Declaração de 1789, eis que surge a Constituição de

1946 que para ela remete no seu Preâmbulo, mas excluindo este, expressamente,

enquanto critério de constitucionalidade. A Declaração dos Direitos do Homem, apesar

de referida, não tinha, porém, o seu respeito garantido pela própria Constituição, não

devendo por isso o Comité Constitucional integrá-la no parâmetro de controle.

Durante a IIIª Républica teve lugar em França um debate doutrinal entre grandes

publicistas franceses29, acerca do valor jurídico a atribuir à Declaração, que na altura

não beneficiava da “ancrage” constitucional que hoje detém. O debate acabava, assim,

por girar em torno da questão do lugar que deve ser reconhecido ao direito natural.

HARIOU e DUGUIT defendiam o valor jurídico da Declaração, aspirando ambos a

um controle de constitucionalidade que permitisse garantir que a lei se harmonizasse

sempre com aqueles princípios fundamentais.

No lado oposto, encontramos CARRÉ DE MALBERG, que se recusa a reconhecer

qualquer valor jurídico à Declaração. Para ele, a Declaração não é mais do que o

enunciado de verdades filosóficas, não contendo regras jurídicas susceptíveis de

aplicação pelo juiz.

O desenvolvimento histórico veio dar razão a DUGUIT e HARIOU. Depois da

Segunda Grande Guerra, a França orienta-se em vista de uma nova constituição que

passa a integrar a velha Declaração de Direitos do Homem. Todavia, esta integração

continua a levantar problemas na medida em que não é pacífico o valor jurídico a

reconhecer ao Preâmbulo da Constituição, que para ela remete. Segundo RIVERO e

VEDEL, a mesma assembleia, os mesmos partidos e por vezes os mesmos oradores

reconheciam ao Preâmbulo duas naturezas opostas - tanto se lhe referiam como

verdadeiro texto jurídico de natureza constitucional, como logo o consideravam um

enunciado de objectivos filosóficos e políticos.

29 Sobre este assunto vide MARIA LÚCIA AMARAL, Responsabilidade do Estado..., ob. cit., pp 195 e ss.

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A Constituição de 1958, todavia, conservando a referência à Declaração no seu

Preâmbulo, nada diz quanto à sua exclusão do Bloco de Constitucionalidade. Este facto

permitiu reforçar a posição daqueles que sempre defenderam o valor jurídico da

Declaração de 1789, apesar de não constituir argumento decisivo que permitisse calar a

voz daqueles outros, que se lhe opunham. O silêncio quanto à sua exclusão do critério

de constitucionalidade podia ser interpretado como argumento favorável à sua inclusão,

mas não impedia que outros entendessem que, se o legislador constituinte, de facto

quisesse incluí-la no Bloco de Constitucionalidade deveria fazê-lo de forma inequívoca.

A clarificação deste impasse deveu-se ao papel do Conselho Constitucional que através

da sua jurisprudência conseguiu afirmar o valor jurídico desta Declaração, que foi assim

definitivamente consagrada no direito positivo. Esta jurisprudência foi bem acolhida

pela opinião pública e pela maior parte da doutrina, que viam nela o meio de garantir os

direitos fundamentais dos indivíduos e de reforçar o Estado de Direito.

Esta constitucionalização da Declaração de 1789 não foi de todo fácil – o seu

velho texto não fora redigido na perspectiva de um controle da constitucionalidade das

leis, o que implicava sempre o risco de permanecer letra morta ou de abrir a porta a um

“gouvernement des juges”, atribuindo ao juiz um poder que, de tão perigoso, por todos

era temido. Não havia dúvida que disposições vagas e ambíguas como as que constam

da Declaração deixavam uma margem de manobra ao Conselho Constitucional muito

ampla; a inexistência de um controle sobre este órgão fazia recear que a sua actividade

pudesse conduzir a situações de abuso. Porém, estes receios rapidamente se acalmaram

em face da “sagesse” do Conselho que foi desenvolvendo, lentamente, um corpo

jurisprudencial, susceptível de fixar o conteúdo jurídico da Declaração de 1789,

adaptando-a à realidade contemporânea. O Conselho Constitucional conseguiu gerar

uma confiança na sua capacidade de auto-limitação, que em muito recorda a confiança

que antes existira em benefício do legislador.

A Declaração beneficia hoje de um novo enquadramento resultante da sua

inserção na Constituição, sendo também pacífico que a Constituição deve garantir os

direitos por aquela enunciados. Nem sempre foi assim mas, a verdade é que, mesmo

durante a época em que as Constituições vigentes em França não lhe faziam referência,

a Declaração não deixou nunca de ter a sua força e de inspirar a necessidade de

protecção e respeito pelos direitos do homem.

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UMA INCOERÊNCIA DE BASE?

O problema da relação entre a Declaração Universal de Direitos do Homem e a

Constituição é, porém, muito mais profundo – não se trata simplesmente de um

problema de indeterminação ou de envelhecimento do texto, mas de verdadeira

oposição entre duas concepções do direito: como conciliar uma declaração que reflecte

e enuncia princípios de direito natural, aceites no século XVIII, com uma Constituição

que nasce do positivismo jurídico contemporâneo?

O Conselho Constitucional resolveu, sem dúvida, a questão que durante muito

tempo preocupou os jurista, sobre o valor positivo actual da Declaração30, uma vez que

o declarou com toda a autoridade que lhe é reconhecida, ao afirmar que esta fazia parte

integrante da Constituição da Vª Républica. Todavia, sempre permanece a questão não

menos importante, da coerência deste direito positivo constitucional, no qual fora

integradas disposições que lhe são totalmente alheias, redigidas enquanto princípios de

direito natural.

Poderá pensar-se que tal facto é um falso problema, na medida em que não

interessaria a concepção de direito dos redactores da Declaração, devendo bastar-nos

conhecer a vontade actual do legislador constituinte.

Porém, não parece que se deva ignorar a vontade expressa e as intenções dos

autores que o redigiram, sem nos arriscarmos a reduzir o direito a um conjunto de

construções dogmáticas sem qualquer fundamento ou sentido.

Os dois primeiros artigos da Declaração proclamam a igualdade e os direitos do

Homem que são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Estes

direitos são, depois, desenvolvidos nos artigos seguintes, a ponto de as liberdades ali

previstas surgirem como modos de manifestação daqueles direitos proclamados no

artigo 2º. As restantes disposições da declaração referem-se às condições institucionais

necessárias para exercício dos ditos direitos e liberdades.

O propósito dos deputados da Assembleia Nacional encontra-se traçado logo nas

primeiras linhas do Preâmbulo da Declaração: reagindo contra a ignorância, o

esquecimento e a violação dos direitos do homem, decidiram enumerar, numa

declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do ser humano.

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Para alguns autores31 esta referência ao direito natural parece situar a Declaração

num prolongamento do jusnaturalismo, confirmado pelo estilo manifestamente

declarativo do texto. Todavia, para lá das aparências, a Declaração parece ser o

resultado da absorção do direito natural num outro sistema – o do direito positivo que

aqui se inicia32.

O próprio termo “declaração” parece de facto situar este texto numa perspectiva

jusnaturalista, no sentido de lhe caber revelar direitos pré-existentes. E os seus autores

assim parecem pensar quando, logo no início, acentuam o carácter meramente

declaratório da sua obra. Longe de pretender “criar” direito, apenas pretendiam fixar,

num documento solene, um conjunto de princípios simples e incontestáveis. E a

revelação destes é resultado de um reconhecimento “iluminado”, no qual o século XVIII

tanto confiava. A redacção da Declaração pretendia-se assim pedagógica. Visava-se, por

um lado recordar ao poder político a necessidade de respeitar os direitos do homem

anteriores ao surgimento desse mesmo poder e, por outro, difundir estes princípios entre

a população.

Quando se levanta a questão do valor jurídico da Declaração de Direitos, todos

estão de acordo quanto ao facto de esta ter sido redigida numa perspectiva ainda

baseada num direito natural, bem distante do positivismo moderno. Não obstante, a

verdade é que, se este facto é por todos conhecido, já ninguém se preocupa em retirar as

consequências desta evidência e em analisar os seus reflexos nas relações entre a

Declaração e a Constituição.

Não há dúvida que a Declaração, por força da actividade do Conselho

Constitucional, foi incorporada na Constituição de 1958 e está dotada do valor

reconhecido a este diploma. Mas importa precisamente salientar que, para os seus

autores, não somente a Declaração tinha um valor supra-constitucional, uma vez que ela

enunciava verdades objectivas e não normas jurídicas, como também consideravam que

este valor não era susceptível de ser modificado pela sua incorporação eventual no

próprio texto da constituição.

30 Sobre este assunto vide MICHEL VILLEY, Le droit et les droits de l’homme, 2ª ed., PUF, 1989, pp 140 e ss. 31 PATRICK WACHSMANN, Déclaration ou constitution des droits?, in 1789 et l’invention de la Constitution, Actes du colloque de Paris, LGDJ, Paris, pp 45 e ss. 32 «Positivaram finalmente o direito natural» - expressão empregue por CAPPELLETTI, Il controllo giudiziario di constituzionalità delle legi nel diritto comparato, Milano, 1968, p 38, apud MARIA LÚCIA AMARAL, A responsabilidade do Estado, ob. cit., p 340.

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29

Os redactores da Declaração entendiam nela exprimir verdades eternas que

deveriam basear todas as instituições, e não apenas fixar regras jurídicas. E mesmo os

seus adversários estavam de acordo neste ponto, fundando nele o argumento que não

caberia à Assembleia Nacional elaborar dissertações metafísicas deste género.

A diferença entre a Declaração de Direitos e a Constituição está bem patente na

própria designação “declaração”, bem como nas particularidades do procedimento

seguido: contrariamente aos decretos que aboliam privilégios, a Declaração não foi

submetida à sanção do Rei. Por outro lado, o seu Preâmbulo indica de forma clara que

se trata unicamente de relembrar direitos naturais, infelizmente caídos na ignorância e

no esquecimento, e não de criar novas leis positivas.

Se os constituintes de 1789 consideraram necessário relembrar solenemente os

direitos inalienáveis do homem e do cidadão é porque estes deveriam servir de

fundamento às novas instituições, e mesmo ao conjunto da legislação que viesse a ser

criada no futuro. É esta conformidade e respeito pelos direitos do homem que

garantiriam, a essas instituições e a essas leis, a sua legitimidade e valor.

Aqui se encontrava um pouco a ideia de tábua rasa e o propósito de edificar uma

organização jurídica nova sobre os elementos de direito natural, que são dados à razão

humana para que esta os conheça e respeite. Esta concepção já tinha presidido à

redacção da Declaração de Independência dos Estados-Unidos: franceses e americanos

encontravam-se perante a necessidade de reconstruir toda a ordem social a partir da

base. De qualquer modo, no caso americano não se tratava de estabelecer os

fundamentos de um sistema político, mas de obter uma garantia de direito positivo de

determinadas liberdades contra as investidas de um poder instituído33.

Se esta perspectiva se enquadra no positivismo moderno que sempre entendeu

que o valor da Declaração depende da Constituição, em nada se adequa ao ponto de

vista dos constituintes de 1789 que subordinavam o valor da Constituição à Declaração.

Os constituintes de 1789 pretendiam enunciar na Declaração de Direitos verdades

indiscutíveis. Todavia, poder-se-á questionar se o facto de terem sentido necessidade de

o relembrar numa exposição preliminar não será prova que, afinal, aquelas não seriam

tão evidentes.

33 Veremos infra como se tem vindo a assistir a uma aproximação entre a justiça constitucional destes dois psíses.

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30

Desde então, não é possível discernir se são os próprios direitos do homem e do

cidadão que têm um valor intrínseco que fundamenta e legitima a autoridade que lhes é

reconhecida ou se esta não provém, antes, do facto de aqueles estarem inscritos numa

Declaração que lhes dá força. Com efeito, tendo em conta o procedimento pelo qual a

Declaração foi emanada, cabe perguntar se ela se distinguirá, de facto, das restantes

normas de direito positivo.

Se a Declaração de 1789 não conserva um significado jurídico a não ser na

medida em que se inclui, por remissão, na Constituição de 1958, deixa de se saber qual

o fundamento da própria Constituição. E se a Declaração foi redigida de um ponto de

vista de direito natural, a verdade é que tem sido aplicada como ou enquanto direito

positivo. Ora, se para os seus autores a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão

continha verdades objectivas indiscutíveis, ela deveria ter necessariamente um valor

supra-positivo. Porém, a verdade é que a própria jurisprudência do Conselho tem

subordinado o conteúdo da Declaração a outras disposições, às quais reconhece valor

constitucional.

Muitos admitem que a Declaração tenha tido um valor supra-constitucional na

sua época, mas que esta afirmação deixou de fazer sentido hoje em dia, a partir do

momento em que o Conselho decidiu que esta declaração faz parte integrante da

Constituição de 1958, o que lhe conferiu exactamente o mesmo valor jurídico que as

restantes normas constitucionais. Deixaria assim de conter o enunciado de verdades

filosóficas e passaria a ser constituída por verdadeiras normas de direito positivo.

De todo o modo, a doutrina positivista francesa parece ter mantido a consciência

da irredutível oposição de natureza que separa uma declaração de direitos da sua

garantia constitucional. Tem mantido a noção de que não basta incluir a Declaração na

Constituição para que aquela se transforme na segunda, tornando um conjunto de

princípios em normas de direito positivo.

A actual atitude dos juizes e dos juristas, apesar de tudo, é de alguma

aproximação de ideias mais antigas da escola de direito natural, que normalmente eram

rejeitadas – é que o positivismo mais rigoroso acaba por chegar a conclusões muito

próximas das dos homens de 1789, pois acabam por ter consciência que a força dos

direitos do homem advém de algo mais que a sua consagração constitucional – apesar

de tudo, o fundo ainda tem primazia sobre a forma.

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31

JURISDICIONALIZAÇÃO DA DECLARAÇÃO

A Declaração proclamou, no início do processo revolucionário, um quadro

filosófico e político de uma nova sociedade através de princípios considerados eternos,

intemporais e aptos a ser aplicáveis a toda a humanidade. Dois séculos depois, ela

continua a fundar a sociedade democrática e a Republica francesa. Para tanto, a

actividade levada a cabo pelo Conselho Constitucional tem tido um papel crucial,

através não só da juridificação de princípios nela enunciados, como também na

proclamação de novos princípios e na sua actualização.

A Declaração de 1789 que constituía o Preâmbulo da Constituição de 1791 veio

a ter um destino que a todos surpreendeu – desaparecida qualquer remissão desde 1793,

foi preciso esperar pela Constituição de 1946 para que ela tenha retomado um lugar

determinado no quadro jurídico francês. Porém, conforme referido supra, só com a

Constituição de 1958 passou a servir de critério valorativo da constitucionalidade das

leis.

Hoje em dia, a Declaração faz parte do Bloco de Constitucionalidade, em virtude

das remissões resultantes dos Preâmbulos das Constituições de 58 e 46 e da

jurisprudência do Conselho Constitucional. Esta tem-se vindo a revelar, por um lado,

através de uma juridificação de princípios consagrados naquela Declaração e, por outro

lado, através de uma interpretação actualista de modo a permitir a aplicação de

enunciados com mais de duzentos anos, aos dias de hoje.

De qualquer modo, sempre sob a ameaça da acusação de se cair num

“gouvernement de juges”, o Conselho tem desempenhado uma importante missão de

interpretação e de concretização dos princípios abstractos que fazem parte da

Declaração, de modo a torná-los aplicáveis, assegurando uma protecção dos direitos

fundamentais.

A transformação implicada na jurisdicionalização de princípios demasiado vagos

é uma operação complexa e que, segundo alguns, pode ser analisada de forma

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sistemática34. Estes autores mostram e explicam como dos princípios vagos que se

fundam apenas numa ideia de justiça e que se encontram demasiado longínquos para

poderem fundamentar directamente normas de direito positivo, se pode deduzir regras

que constituem o escalão intermédio entre o princípio e a norma de direito positivo.

Através deste escalonamento é possível retirar de princípios abstractos as regras neles

contidas, que já constituem directivas de conduta capazes de fundamentar as normas de

direito positivo. A jurisdicionalização da declaração dos direitos do homem constituiria

assim um exemplo interessante da criação de direito jurisprudencial35.

Durante muito tempo, a actividade francesa de protecção dos direitos

fundamentais foi criticada como pouco realista, na medida em que baseada numa

declaração de liberdades formais, pouco concretizáveis na vida quotidiana.

A Declaração respondera, no momento em que foi redigida a necessidades

práticas – por um lado, fixava o espírito da legislação para o futuro e, por outro, criava

directrizes que permitiam integrar as lacunas, uma vez que o legislador não poderia

nunca prever todos os casos. Não obstante, hoje em dia, o controle da

constitucionalidade das leis tem vindo a ser largamente utilizado no domínio dos

direitos do homem e das liberdades fundamentais, sobretudo depois do alargamento do

“droit de saisine” em 1974, o que tem vindo a permitir ao Conselho fazer uma

aplicação completa da Declaração, fundamentando uma panóplia de decisões que

recorrem à Declaração Universal dos Direitos do Homem como base e fundamento para

limitar a lei. Ela apresenta um pleno valor jurídico, de que ninguém mais duvida, e que

se revela benéfico e essencial para a garantia de um Estado de Direito.

Com certeza, se porá um dia o problema de saber se não será preferível redigir

um novo texto que venha completar e precisar a Declaração Universal dos Direitos do

Homem. De qualquer modo a sociedade francesa já tem consciência da dificuldade

deste objectivo, bem como dos riscos inerentes de limitar o legislador, criando-lhe

quadros demasiado rígidos. E não parece que a vantagem de garantir uma maior

34 Vide, com muito interesse, Normes de valeur constitutionnelle et degré de protection des droits fondamenteux, Rapport présenté par la délégation française à la VIIIº confèrence des Cours Constitutionnelles européennes, in Revue Française de Droit Administratif, Mai-Jun, 1990. 35 Sobre a interpretação dos direitos do homem vide FROMONT, Tradition et progrès: la jurisprudence du Conseil Constitutionnel, in Jahrbuch des Öffentliche Rechts der Gegenwart, 1989.

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segurança jurídica ficasse devidamente satisfeita. Como diz JEANNEAU36, «uma coisa é

actualizar uma declaração de direitos que passou à posteridade, outra é fazer uma

nova mais adaptada ao nosso tempo. A história não é assim tão fértil em grandes

inspirações».

O RECONHECIMENTO DE DIREITOS NÃO ESCRITOS

Hoje, a Declaração faz parte do Bloco de Constitucionalidade, integrando o

conjunto de normas de referência para o controle da constitucionalidade das leis. A

jurisprudência do Conselho permitiu assim reconhecer-lhe uma incontestável

actualidade jurídica. Apesar de manter todo o significado simbólico, ela tornou-se uma

garantia concreta de protecção dos direitos fundamentais. A Declaração deixou de ser a

proclamação de uma ordem ideal, para hoje em dia desempenhar um papel muito

concreto de garantia de respeito pelos direitos fundamentais, na medida em que

constitui um critério usado para aferir da constitucionalidade da nova criação legislativa.

A sua integração no texto constitucional, porém, não deixa de ser ambígua –

mesmo que os direitos proclamados sejam tidos como eternos, a verdade é que foram

redigidos numa época precisa. A sua aplicação à legislação contemporânea exige, da

parte do Conselho Constitucional, uma leitura e interpretação actualista, o que nem

sempre é tarefa fácil.

As jurisdições constitucionais europeias têm revelado uma tendência

generalizada para assegurar aos particulares uma protecção forte dos seus direitos

fundamentais. Nesta perspectiva, o juiz constitucional assume o papel crucial de

actualização do catálogo de direitos fundamentais, revelando e fundamentando a

existência de direitos não escritos, não positivados, mas inerentes ao sistema jurídico e à

ordem constitucional.

Certo é que há países em que as condições para esta actividade “criadora” do

juíz são mais favoráveis do que outros – a França conta-se entre os primeiros, dada a

particularidade do seu texto constitucional. O articulado da constituição não consagra

nenhum catálogo de direitos fundamentais, daí que tenha sido a actividade

36 JEANNEAU, “Juridicisation”et actualisation de la Déclaration des droits de 1789, in Revue du Droit

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jurisprudencial do Conselho Constitucional que veio a permitir que a Declaração

Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão viesse a ser mais do que um simples

enunciado formal de um conjunto de princípios.

Nas palavras de DOMINIQUE ROSSEAU, «a Constituição tem vindo a tornar-se,

cada vez mais, resultado da actividade jurisprudencial; continua a ser um acto escrito,

sem dúvida, mas escrito pelo juíz constitucional.»37

Daqui resulta uma necessária busca de equilíbrio entre a certeza e segurança do

direito e a própria flexibilidade do sistema jurídico, de modo a garantir uma solução de

compromisso entre ambos os extremos.

O Conselho Constitucional, neste âmbito, terá sempre de levar a cabo uma

actividade prudente, na medida em que um reconhecimento desenfreado de direitos

como fundamentais acabaria por lhes retirar o valor que merecem, além de mais

facilmente provocar situações de contradição. Por outro lado, pode sempre perguntar-se

da legitimidade do Conselho para levar a cabo esta função, na medida em que o

reconhecimento de direitos não-escritos por parte do juiz constitucional o torna

«depositário da escala de valores constitucionais»38.

Por este motivo, provavelmente, segundo MARIE-CLAIRE PONTHOREAU, «a

tendência actual é para uma compressão do Bloco de Constitucionalidade e para uma

revitalização da Constituição»39, no sentido de se evitar o recurso a princípios não-

escritos. Aqui se revela, novamente, uma auto-limitação do juiz constituconal, por

forma a não colocar em risco a legitimidade que lhe é reconhecida.

Public et de la science politique en France et à l’étranger, 1989. 37 DOMINIQUE ROUSSEAU, Une réssurrection: la notion de constitution, in Revue de Droit Public et de la science politique en France et à l’étranger, Jan-Fev, 1990, p 5. 38 MARIE-CLAIRE PONTHOREAU, La reconnaissance des droits non-écrits par les Cours Constitutionnelles italienne et française, Paris: Economica, 1993, p 217. 39 MARIE CLAIRE PONTHOREAU, La reconnaissance..., ob. cit., pp 131 e ss.

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CAP. IV – O MODELO FRANCÊS COMO MODELO SUI GENERIS40

A Constituição francesa apresenta desde logo a especificidade de ser composta

por textos dispersos, redigidos em diferentes períodos, e a doutrina sempre insistiu nas

dificuldades resultantes da sua aplicação. O catálogo de direitos fundamentais encontra-

se assim dividido entre o corpo da Constituição propriamente dito, a Declaração

Universal dos Direitos do Homem e o Preâmbulo de 1946.

O controle da constitucionalidade em França é realizado através de um sistema

de controle a priori e concentrado, que torna a lei inatacável a partir do momento em

que é promulgada. São apontadas como vantagens a este sistema o facto de a

irregularidade ser travada na fonte, o que garante melhor os cidadãos e o respeito pelo

poder legislativo que dele resulta, uma vez que é menos atentatório para o legislador

corrigir um texto que ainda não entrou em vigor, do que retirá-lo posteriormente do

ordenamento jurídico. E como inconvenientes, o facto de uma lei que ainda não foi

aplicada poder ainda não ter revelado as suas inconstitucionalidades, o juiz pronunciar-

se num momento em que os debates políticos ainda não cessaram e o juiz acabar por

intervir no processo legislativo, interpondo-se entre o voto e a promulgação da lei.

I) O AFASTAMENTO DO MODELO EUROPEU...

O direito francês desconheceu assumidamente o princípio da supralegalidade – o

princípio da separação de poderes impedia, por um lado, que o poder legislativo pudesse

ter carácter vinculado e, por outro, que fosse atribuída competência aos tribunais para

conhecer e julgar da constitucionalidade das leis41.

Foi assim uma actividade jurisprudencial do Conselho Constitucional que veio

tornear este estado de coisas, e por ironia, alterar a separação de poderes consagrada,

para cuja protecção e garantia ele fora criado. A legitimação da actividade do Conselho

Constitucional não tem resultado, assim, do texto constitucional, mas da sua própria

actividade e da forma como esta tem sido acolhida pela opinião pública.

40 Para uma interessante análise comparativa vide FAVOREAU, Le controle juridictionnel des lois, legitimité, effectivité et développements récents, in ; Actualité et légitimité..., ob.cit pp 1173 e ss. 41 A mais bela expressão desta antinomia encontra-se, segundo RIALS, Les incertitudes..., ob. cit., p 597, na própria Declaração de 1793 ao afirmar: «Un peuple a toujours le droit de revoir, de réformer et de changer sa constitution. Une génération ne peut assujetir à ses lois les générations futures.»

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36

Tal como afirma MARIA LÚCIA AMARAL, «a lei possui ainda hoje em França,

um estatuto jurídico assaz singular»42. Conforme explica, neste país nunca foi sentida

de forma intensa a necessidade de um controlo jurisdicional dos actos do legislador. A

lei encontrava-se elevada ao grau de fonte exclusiva e incontestada de direito, não

fazendo sentido submetê-la a qualquer tipo de controle. CARL SCHMITT falava na

«pátria do legalismo»43. O conceito de invalidade da lei não fazia parte do discurso

doutrinário e jurisprudencial francês. Nem podia fazer. A inexistência de um parâmetro

superior em relação ao qual ela fosse aferida impedia que alguma vez se pudesse

conceber um julgamento do valor da lei.

Na Europa, ao contrário, o dogma da soberania da lei não faz sentido à luz do

princípio da constitucionalidade das leis – o juiz encontra-se mais fortemente vinculado

à Constituição do que à lei, devendo esta ser sindicada por referência ao texto

fundamental. A proclamação do fim da soberania da lei e a proclamação da

constitucionalidade dos actos legislativos provocou um isolamento do caso francês em

relação ao modelo europeu. «A perda irremediável do dogma da identificação entre

ratio e voluntas, a perda irremediável da convicção de que a decisão legislativa é

sempre uma decisão justa, é um fenómeno que se inscreve com particular clareza no

processo de crescimento das sociedades europeias deste século»44.

Ora, desde a revolução francesa que o dogma da soberania da lei tem imperado

naquele país – por motivos vários: desde o temor de instauração de um “gouvernement

des juges”, à convicção de que a lei é expressão da vontade geral, a verdade é que as

Constituições francesas se mantiveram afastadas da corrente comum que se verificava

na Europa. Nem mesmo a Constituição de 1958 veio pôr fim a este estado de coisas. O

Conselho Constitucional fora pensado para garantir o equilíbrio entre os diversos órgãos

do poder político do Estado, sobretudo garantindo o executivo contra as ingerências do

poder legislativo. Como nota PIERRE BON, «Il est clair que les intentions des auteurs de

la Constitution, en créant le Conseil Constitutionnel, n’étaient pas d’instituer une

juridiction constitutionnelle plus ou moins calquée sur le modèle austro-kelsenien et

chargée de garantir le respect de la Constitution et nottament des droits fondamentaux

qu’elle proclame»45.

42 MARIA LÚCIA AMARAL, A Responsabilidade do Estado, ob. cit., p 145. 43 CARL SCMITT, Die Lage der europaïschen Rechtswissenchaft (1943-44), in Verfassungrechtliche Aufsätze aus den Jahren 1924-1954, Berlin, 1985, 3ª ed., pp 386-429, apud MARIA LÚCIA AMARAL, Responsabilidade do Estado, ob. cit., p 146. 44 MARIA LÚCIA AMARAL, Responsabilidade do Estado, ob. cit., p 176. 45 PIERRE BON, Legitimité du Conseil..., ob. cit., p 142.

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Esta missão para que fora talhado, inicialmente, o Conselho Constitucional tem

vindo, de facto, a sofrer uma transformação, por acção deste mesmo órgão, que através

da sua jurisprudência tem conseguido afirmar a submissão da lei a determinados

parâmetros jurídico-materiais, que vai buscar ao progressivo alargamento do bloco de

constitucionalidade. Mas desta evolução ainda não é legítimo concluir que o princípio

da constitucionalidade esteja efectiva e definitivamente consagrado em França, ao

contrário do que sucede no resto da Europa.

II) ... E A APROXIMAÇÃO DO MODELO AMERICANO

É interessante verificar como dois modelos à partida tão distantes apresentam, na

realidade, tantos pontos em comum – apesar da história constitucional dos Estados

Unidos revelar a capacidade deste país para redigir um texto fundamental duradouro,

enquanto a França conheceu inúmeras constituições, a verdade é que ambos nasceram

de uma revolução. E as ligações intelectuais e políticas entre os dois países, muitas

vezes ignoradas, contribuíram decisivamente para uma convergência na evolução das

instituições e do próprio direito constitucional.

Hoje, a ideia difundida e por todos aceite, tem sido a de que a França, atrasada é

certo, tem caminhado no sentido da convergência em relação ao modelo europeu46, o

que implica o correlativo afastamento do modelo americano47. Ora, a concepção de

ACKERMAN48 do monismo e do fundacionalismo europeus e a sua proposta de dualismo

americano vem possibilitar uma leitura radicalmente diferente do caso francês.

A concepção monista atribui aos eleitos pelo povo o direito absoluto de os

representar e o poder soberano ao legislador. A concepção fundacionalista, por sua vez,

defende a existência de um núcleo irredutível de direitos fundamentais, que existem

para proteger o cidadão contra qualquer atentado dos poderes públicos. ACKERMAN vem

então defender que as instituições americanas desenvolveram o que se pode chamar

“uma terceira via”, a que chamou dualismo.

46 Referindo pontos de contacto entre o sistema francês e o espanhol, vide FAVOREAU, Consideraciones comparadas sobre la “revolucion juridica francesa”, trad. por CALDERÓN MARTÍN, in Revista del Centro de Estudios Constitucionales, 1, Set-Dez, Madrid, 1988. 47 Vide em defesa deste entendimento: FAVOREU, Modele americain et modele européen de justice constitutionnelle, in Annuaire International de Justice Constitutionnelle, IV, Aix-en-Provence, 1988; Les Cours Constitutionnelles, PUF, 1985, pp 5 a 31. 48 ACKERMAN, Au nom du peuple, Les fondements de la démocratie américaine, trad. por JEAN-FABIEN SPITZ, Paris, 1998.

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Para ele, as instituições americanas começaram por ser fundacionalistas, na

medida em que o Tribunal Supremo velava pelo respeito pela Constituição e pelos

direito fundamentais nela garantidos. Mas, ao mesmo tempo, eram também monistas,

pois, em determinados momentos de grande mobilização popular, o povo americano

pode, por intermédio dos seus representantes, alterar a Constituição, sem sequer

respeitar o procedimento formalmente previsto para tal suceder.

Neste sistema dualista, o Tribunal Supremo representa um triplo papel: por um

lado, garante a Constituição, invalidando as leis que com ela são incompatíveis; por

outro garante que as alterações da Constituição se baseiam, de facto, num grande

movimento de mobilização popular; finalmente, tem um papel integrador de

reconhecimento da alteração entretanto efectuada.

ACKERMAN explica, ainda, que a estabilidade das instituições nos Estados

Unidos se deve, não tanto ao equilíbrio de poderes, mas à forma com aquela nação

conseguiu traduzir, no plano institucional, o poder do povo: limitando-lhe o poder nos

períodos ditos ordinários e permitindo a sua intervenção, nos períodos de

transformações constitucionais, sem o respeito excessivo pelos formalismos

processuais.

A França, por seu lado, nascida também de uma revolução, parece ter seguido o

percurso inverso. Inicialmente encontra-se consagrado o regime monista com a

soberania absoluta do legislador, que, progressivamente, tem vindo a ser limitado pela

actividade jurisprudencial do Conselho Constitucional. Será, então, interessante pôr a

hipótese de, hoje em dia, em França se ter conseguido atingir um sistema dualista, com

uma abertura fundacionalista num modelo inicialmente monista. E isto porque se tem

vindo a assistir a uma progressiva limitação do legislador, com a exigência de respeito

pelo texto constitucional, hoje, também ele integrando, indubitavelmente, direitos

fundamentais.

E mais. Também cabe perguntar se o Conselho Constitucional francês não tem

vindo a desempenhar o papel fundamental de “dar voz” ao poder constituinte, na

medida em que, sem revoluções, a natureza da Constituição tem vindo a ser alterada –

se inicialmente, este era um texto que apenas dispunha sobre a organização do poder

político, hoje em dia, ninguém duvida da constitucionalidade da Declaração Universal

dos Direitos do Homem e do Cidadão.

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39

O Conselho Constitucional acaba por desempenhar uma função dupla, algo

contraditória: se por um lado garante a Constituição, preservando-a, na medida em que a

lei votada pelo Parlamento só traduzirá a vontade geral desde que respeite a

Constituição, por outro, contribui para uma alteração da sua natureza na medida em que

a Lei Fundamental deixa de integrar apenas um modelo programático de organização

política, para passar a conter outro tipo de normas, como as relativas aos direitos e

liberdades fundamentais.

Perante este facto coloca-se a questão de saber se de facto a legitimação do

Conselho Constitucional não estará muito mais próxima do modelo americano que do

modelo europeu49. Hoje, em França, os cidadãos, não tendo mais confiança nos seus

representantes eleitos, apreciam a coabitação como uma forma de controle mútuo, nos

períodos de estabilidade. Esta cooperação não gira em torno do Parlamento e do

Presidente como nos Estados Unidos, mas entre as duas fatias do poder executivo, o que

num país como a França, tão confiante no Estado, é a melhor forma de garantir uma

cooperação relativamente equilibrada50.

Uma convergência franco-americana tem vindo, assim, a desenvolver-se na

prática, sem que tenha sido previamente pensada. São dois os pontos essenciais que

aproximam a França dos Estados-Unidos e a afastam dos restantes países europeus:

antes de mais, em ambos os países, as transformações são e continuam a ser populares,

como momentos em que o povo toma o seu destino nas mãos e investe a sua energia e a

sua identidade para provocar uma alteração profunda no estado de coisas. Momento este

que é também de alteração social, mas situada esta em plano inferior, pois trata-se, antes

de mais, de um episódio de redescoberta da cidadania e de redefinição política. Em

segundo lugar, em França como nos Estados-Unidos, o Presidente da República, chefe

do poder executivo, é eleito por sufrágio universal e directo, o que favorece a

concentração do poder.

Em período de mudança, quando o povo é mobilizado para intervir directamente

nos assuntos públicos, esta tendência é acentuada e pequenas mobilizações podem ser

causa de rápidas transformações constitucionais. Ora, o princípio democrático visa

49 FAVOREAU, Actualité et legitimité..., ob. cit, pp 1182 e ss, parece defender opinião diversa ao invocar uma série de razões pelas quais o modelo norte-americano não deveria ser consagrado em França. 50 Para uma interessante análise do papel do Conselho vide FAVOREAU, Le Conseil Constitutionnel et l’alternance, in Revue Française de Science Politique, nº 4-5, Ag-Out, 1984.

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garantir que nada se faça contra a vontade do povo, mas não já que este possa realizar,

de forma imediata, todo e qualquer desejo de transformação.

Aceitar esta convergência é, de facto, assumir a popularidade das transformações

constitucionais e dos momentos de ruptura, que representam a sua herança institucional.

E torna-se aqui necessário encontrar um equilíbrio, de forma a que, nem pequenas

convulsões possam provocar facilmente alterações na Constituição, nem os grandes

movimentos mobilizadores sejam impedido de as realizar em virtude de regras

procedimentais de revisão da Constituição.

Assumir este dualismo permitirá retirar as verdadeiras consequência da eleição

do Presidente da República por sufrágio universal – este facto torna necessário não o

reforço do poder do presidente, mas o seu contrabalanço, tanto em período de

serenidade, como em período de revolução. Esta lógica é contrária à principal

proposição do pensamento constitucional dominante em França (fundacionalista, na

perspectiva de ACKERMAN), que visa reduzir o mandato presidencial para cinco anos, de

modo a fazê-lo coincidir com o mandato dos parlamentares: com um chefe do poder

executivo eleito ao mesmo tempo que a assembleia e pelo mesmo período de tempo, por

sufrágio universal directo e sem responsabilidade perante esta, os perigos são enormes.

Ligando um presidente irresponsável, com um Parlamento eleito a seu lado, acentuar-

se-ia o vício do sistema, que é o da submissão do Parlamento ao Presidente da

República.

A popularidade das alterações e a eleição do Presidente da República por

sufrágio universal acabam, assim, por aproximar o sistema francês muito mais do

sistema americano, do que dos regimes políticos, alemão, britânico ou italiano. A

integração destes dois elementos exige que os procedimentos de alteração da Lei

Fundamental sejam revistos e que haja uma nítida separação entre as funções

parlamentares e presidenciais.

Em França, porém, a evolução das instituições tem sido realizada em sentido

diferente, numa tentativa de aproximação do modelo europeu, que em nada se coaduna

com a sua tradição constitucional. Ao longo da Vª República tem-se caminhado para

uma fusão dos poderes, em vez de, como ensina o exemplo americano, promover a

pluralidade de poderes eleitos de diversas formas, que tem evitado a sua concentração e

favorecido a criação de um espaço de debate próprio, trazendo à luz do dia os méritos

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dos governantes, permitindo sempre a intervenção decisiva do povo, nos momentos

fundamentais. Cabe perguntar se será este o melhor caminho a seguir.

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CONCLUSÃO

A decisão relativa à liberdade de associação marcou o fim de uma etapa na

história constitucional francesa - o Conselho Constitucional deixou de ser o mero

defensor das prerrogativas do Executivo contra o Parlamento, função para a qual tinha

sido criado, e passou a desempenhar uma missão de guardião das liberdades

constitucionais, que lhe conferiu um papel singular na sociedade francesa.

Desde sempre, têm surgido propostas de reforma do Conselho, sobretudo desde

que este assunto passou a ser um bom tema eleitoral, pois este órgão passou a estar

associado, desde o alargamento das suas funções, a uma ideia de defesa das liberdades,

o que toca sempre muito a opinião pública.

Umas propostas visam instaurar um Tribunal Supremo do tipo norte-americano,

outras defendem um “droit de saisine” alargado aos cidadãos; outras ainda entendem

benéfico instaurar um mecanismo de excepção de inconstitucionalidade. Em 1974, o

Presidente Giscard d’Estaing chegou mesmo a fazer uma proposta no sentido de

instaurar a “auto saisine”, ou seja, a possibilidade de o Conselho Constitucional,

oficiosamente, tomar a iniciativa de controlar a constitucionalidade de um diploma

legal; foi rejeitada pelo peso da tradição, com base no velho argumento de que a lei é

expressão da vontade do Parlamento, devendo como tal ser respeitada.

No fundo, o que tem estado sempre em questão é o problema de saber se um

órgão, cuja composição é eminentemente política, deve ou não, em democracia, situar-

se acima do Parlamento, a ponto de poder controlar a actividade levada a cabo por este

último. A solução de atribuir este poder aos juizes em geral colide com o espectro de

instauração de um “gouvernement des juges”, sempre presente no espírito dos

franceses.

Apesar de tudo, o Conselho Constitucional tem um papel limitado: apenas pode

ser chamado a pronunciar-se antes da promulgação da lei, e desde que uma das

entidades com legitimidade para tal solicite a sua intervenção, e mesmo quando chega a

um veredicto de inconstitucionalidade, num caso extremo, sempre a norma de referência

pode ser alterada de modo a permitir a promulgação da lei.

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O Conselho Constitucional, ciente de todo este clima de desconfiança, tem

revelado uma extrema prudência, a ponto de auto-limitar o seu poder de intervenção –

numa decisão de 1975 vem declarar que não dispõe de um poder geral de apreciação e

de decisão idêntico ao do Parlamento, recusando-se a participar no chamado “law-

making power”.

Desta forma, o Conselho Constitucional sempre evitou tornar-se numa terceira

câmara, recusando o exercício de qualquer réstia de poder legislativo. Todavia, a

verdade é que este órgão desempenha uma função híbrida que o coloca numa situação

complicada – se, por um lado, deve defender as liberdades públicas, o que implica dar

força às disposições constitucionais através de uma interpretação construtiva, por outro,

deve fazê-lo sustentadamente, sob o risco de ser acusado de querer governar.

Não obstante todos os cuidados e prudências do Conselho Constitucional, é

inevitável o reconhecimento da existência de um certo poder discricionário, que se

manifesta, nomeadamente, no reconhecimento por parte deste órgão de um princípio

como fundamental. O cerne de toda a problemática encontra-se no facto de o Conselho

Constitucional se movimentar num terreno movediço, onde o político e o jurídico se

confundem. As suas decisões nunca se limitam ou limitarão a abordar apenas uma

destas vertentes; serão sempre necessários fundamentos jurídicos apoiados em juízos de

carácter político e vice-versa.

ALEC STONE sintetiza esta ideia de forma brilhante: «Constitutional Courts

produce legal language and doctrinal commentary, but they are also govrnmental

institutions which are shaped by and in turn shape the political environment. It is in this

environment that these courts endover to survive, to compete for power, and to

prosper»51.

Em face deste complicado panorama, a verdade é que o Conselho Constitucional

tem sabido gerir habilmente os conflitos suscitados pela sobreposição dos sistemas,

político e jurídico, com as suas conflituantes exigências. Numa procura incessante de

equilíbrios, tem assumido difíceis funções que, vistas numa diferente perspectiva,

parecem conduzir ao afastamento do modelo europeu de justiça constitucional e à sua

aproximação do modelo americano. Resta saber se esta virá, de facto, a ser assumida no

futuro e dela retirada todas as consequências.

51 ALEC STONE, The birth of Judicial Politics in France, The Constitutional Council in Comparative Perspective, Nova Iorque, 1992

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