O conflito urbano

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Universidade Presbiteriana Mackenzie Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Relatório para a disciplina de Estudos Sócio Econômicos II Isabela Rosengarten Rios Turma B 1

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Reflexão acerca do conflito urbano como parte essencial da construção da metrópole.

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Page 1: O conflito urbano

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Relatório para a disciplina de Estudos Sócio Econômicos II

Isabela Rosengarten Rios

Turma B

São Paulo

2015

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1. Relatório Conceitual: “O conflito é uma condição para a vitalidade urbana”

“A violência é necessária para construir o novo mundo urbano sobre os escombros do

antigo.” (HARVEY, 2014, p.50)

Sabe-se que a urbanização acompanha os valores de uma época; nenhuma rua

foi aberta sem ser por algum interesse comercial ou social. Deste modo, é possível

afirmar que a construção de uma cidade é paralela à construção desta mesma sociedade.

Além disso, “A urbanização sempre foi, portanto, algum tipo de fenômeno de classe

(...)” (HARVEY, 2014, p.30), pelo fato de que a urbanização é necessária para consumir

o excedente de produção, e quem retém estes excedentes são as classes do topo da

pirâmide social.

Tendo a França do século XIX como exemplo fenomenológico, sua renovação

urbana era o modo mais claro da burguesia exalar a nova modernidade 1 mortalmente

ferida pelo fetiche da mercadoria. A antiga cidade parisiense era demasiadamente

estreita às vistas do burguês, que então abriu passeios convidativos à circulação, criou

galerias e passagens urbanas, que se assemelham à shoppings primitivos. O surgimento

de novos elementos construtivos, como o ferro e o vidro, são decisivos para a

construção de grandes armazéns, nos quais abrigaram as grandes exposições universais

da época. Walter Benjamin comenta este fenômeno como a máxima do espectro

burguês: “As exposições urniversais são os lugares de peregrinação da mercadoria como

fétiche.” (BENJAMIN, 1940, p.39)

Baudelaire, poeta francês e flâneur 2 arquétipo, saudoso pela antiga Paris, relata

estas mudanças urbanísticas em As flores do Mal 3:

“A velha Paris não mais existe (a forma de uma cidadeMuda mais depressa, infelizmente!, que o coração de um mortal); (...)

Paris muda! Mas nada na minha melancoliaAlterou-se! Novos edifícios, andaimes, blocos,

Velhos subúrbios, tudo para mim torna-se alegoria,E minhas recordações são mais pesadas que rochas.”

Não obstante, para que Paris passasse por esta renovação urbana, houveram

grandes conflitos: a Revolução Francesa antecedeu a nova urbanização, causando

profundas mudanças sociais e intelectuais na sociedade francesa. A monarquia

absolutista que reinava o país caiu em apenas três anos, e após o travamento de grandes

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conflitos de campo ideológico que se refletiram em revoltas e o governo de Napoleão

Bonaparte, Luís Bonaparte assumiu o poder em 1851 inicialmente como Presidente da

Segunda República Francesa e posteriormente como Imperador da França no Segundo

Império. Sem este motim, não haveria a renovação da cidade de Paris, que até hoje

colhe frutos contruídos naquela época.

Apesar de que o gatilho para a renovação urbana de Paris tenha sido uma revolta

social, esta apenas aconteceu por interesses econômicos e políticos. Primeiramente, ao

subir no poder, Luís Bonaparte tinha que solucionar “(...) o problema de absorção do

capital excedente, e para isso anunciou um vasto programa de investimentos

infraestruturais (...) [e isto] significou a reconfiguração da infraestrutura urbana de

Paris.” (HARVEY, 2014, p.34).

Haussmann foi prefeito de Paris durante o Império de Luís Bonaparte, e

remodelou a cidade durante 17 anos. Esta reforma passava a imagem de beleza e

modernização, porém, o âmago da questão era tornar a cidade imponente contra

barricadas, insurreições e combates populares, além de absorver o capital gerado em

massa. A geometria das ruas não permitia a aglomeração fácil de pessoas, frente às vias

estreitas medievais. Desta forma, ergueu-se uma Paris sobre os escombros da antiga,

abriu novas instituições financeiras e de crédito para permitir a movimentação de capital

e com isso, permitiu que a roda do excedente de produção permanecesse incessante.

É possível perceber deste modo, que as mudanças urbanísticas ocorrem para

marcar épocas, reforçar o poder político e manter o excedente de produção em

movimento. Todavia, o que fazer quando mudanças são necessárias para o povo, que

não sejam de interesse do governo?

A contemporâneidade é marcada pela destruição criativa 4 desenfreada,

imprimindo territórios e despejando pessoas que não são consideradas como agradáveis

naquele local. Isto é uma tentativa violenta de ressignificar a cidade e criar um convite

seletivo aos passeios públicos e semi-públicos. A questão é que segregar partes da

população é apenas maquiar uma parte ínfema do grande problema que é a questão

social hoje.

A construção de shoppings centers em São Paulo é a afirmação de como se

manipula a imagem de um espaço social: este local semi-público é o local mais comum

de desfrute da classe média e alta paulistana. Tal edifício condensa inúmeras atrações

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além do comércio, como cinemas, teatros e restaurantes, trazendo uma gama de

possibilidades de lazer para a família. Porém, este é apenas um simulacro de como deve

ser um espaço social, pois não permite a entrada de qualquer indivíduo ou a

aglomeração de grupos. E como exercer a cidadania sem a real interação social? A

tendência da anomia do espaço público é um fato conectado com a criação de paisagens

para a Global Class: pessoas sempre em trânsito, desenraizadas e que não cultivam

laços sociais.

Como subversão e resposta à esta agressão urbana, encaixa-se o conceito de

Máquinas de Guerra, de Deleuze e Guatarri. Ocupar é a norma, distribuindo-se em um

espaço aberto, e tendo o sistema de rizoma, pois pode surgir em qualquer ponto. É um

espaço feito de conexões, improvisações e imprevisibilidade, fora do aparelho de

Estado. Este espaço pode surgir em qualquer lugar informal: terrenos vazios, espaços

públicos abandonados e vãos entre edifícios – eles habitam dobras e fissuras do urbano.

Camelôs, favelas e outras ocupações ilegais do território também se caracterizam como

uma Máquina de Guerra: são armas contra a imposição capitalista do uso do território.

Visto pela população formal, estas ocupações são conflitos, pois incomodam,

chocam e instigam. Qualquer fenômeno fora da norma é um conflito, pois trás o

questionamento, outros pontos de vista, outras realidades. Para quem o faz, é uma

reconquista do que lhe foi tomado, afinal, o direito à moradia e à espaços públicos é, em

teoria, de todos.

Destarte, a complexidade da cidade é, na verdade, este conflito entre o formal e

o informal, entre as Máquinas de Guerra e os Aparelhos de Captura. Tal conflito

dificulta o controle do Estado sobre as pessoas, pois é imprevisível. Porém, como os

arquitetos podem construir para este cenário? Abraçar os Aparelhos de Captura e

reproduzi-los é um afronte à sociedade e o dever dos arquitetos é servir à esta.

Montaner descreve como arquitetura da energia 5 projetos que tomam como

partido sistemas de fluxos e diagramas imateriais para conceber seus projetos. São

arquiteturas que trazem essa necessidade social como partido inicial e à celebram,

criando espaços que possibilitem esta interação social imprevisível. Deste modo, trazem

à formalidade para as Máquinas de Guerra e uma vitalidade aos espaços urbanos.

Dentro deste contexto, Montaner descreve que

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“A possibilidade de uma arquitetura de diagramas, que delimite malhas para administrar matéria e energia, pertence à nossa época de incertezas, marcadas pela dissolução das experiência tipo-morfológicas, pela crise dos recursos semânticos e linguísticos e pela paulatina escassez de recursos. Dessa maneira, a ênfase no processo de elaboração do projeto torna-se mais importante do que o próprio objeto final, a resolução caso a caso prima sobre a definição de métodos gerais.” (MONTANER, 2009, p.190)

Como exemplo para estas arquiteturas da energia, é possível citar o projeto Praça

das Artes, do escritório Brasil Arquitetura, localizado no Vale do Anhangabaú em São

Paulo. Este projeto tinha como programa um edifício de uso privado, porém optou por

costurar nos entre-meios do quarteirão e deixar o térreo livre para a circulação e

permanência das pessoas que por lá passam. Neste local agora ocorrem feiras, shows,

reuniões de estudantes, aulas abertas públicas, entre muitos outros usos imprevisíveis e

que reforçam o exercício da cidadania.

Em suma, a cidade e o capital são atrelados e se desenvolvem juntos, reforçando

a estratificação social em seu máximo. A renovação urbana se dá por meios de conflitos

que podem ter raíz em fontes diferentes: a ressignificação da imagem de uma cidade por

trás de interesses políticos; o controle da população pelo Estado; mudanças e revoltas

sociais; ou ocupações informais rotineiras, porém não menos importantes. Todos estes

fatores são essenciais para a vitalidade urbana hoje, pois a população mundial cresce

exponencialmente, além do esvaziamento do campo e migração para as cidades. Porém,

é necessário que a população sempre permaneça ativa no seu papel de moldar a história

das cidades, para que estas sejam cada vez mais moldadas e convidativas para o uso

público, resistindo à destruição criativa e aos arquipélagos de enclaves modernizados.

2. Notas:

1 Termo cunhado por Baudelaire correspondente à um novo mundo em decadência mercantil.

2 O flâneur é a caricatura da persona moderna, aquele que observa rotineiramente as atividades cotidianas da cidade e sociedade que o cerca. É um intérprete do cenário urbano.

3 Baudelaire, Le Cygne (The Swan), 1857.4 David Harvey utiliza o termo “destruição criativa”em Cidades Rebeldes (2014) para descrever o processo de mutação urbana através da desapropriação massificada de partes da cidade, geralmente de lotes que pertencem à uma fatia mais desfavorecida da população. 5 Josep Maria Montaner em Sistemas Arquitetônicos Contemporâneos, 2009.

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3. Bibliografia

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. São Paulo: Victor Civita, 1984. 335 p.

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: ED. UFMG, 2006.

CANTINHO, Maria João. Modernidade e alegoria em Walter Benjamin In: Espéculo.

Revista de estudios literarios. Universidad Complutense Madrid, 2003. Disponível em:

https://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero24/benjamin.html Acesso em

30/05/2015.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de

Janeiro: Ed. 34, 1995.

HARVEY, David. Cidades Rebeldes. Do direito à cidade à revolução urbana. São

Paulo: Martins Fontes – Selo Martins, 2014.

HARVEY, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo:

Boitempo, 2011.

MONTANER, Josep Maria. Sistemas arquitetônicos contemporâneos. Barcelona: G.

Gili, 2009. 223 p.

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