O CINEMA E A ILUSÃO DO MOVIMENTO...Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim,...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE FILOSOFIA WALLACE NOGUEIRA SANTOS SILVA O CINEMA E A ILUSÃO DO MOVIMENTO SALVADOR 2015

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE FILOSOFIA

    WALLACE NOGUEIRA SANTOS SILVA

    O CINEMA E A ILUSÃO DO MOVIMENTO

    SALVADOR

    2015

  • WALLACE NOGUEIRA SANTOS SILVA

    O CINEMA E A ILUSÃO DO MOVIMENTO

    Monografia apresentada ao Curso de Graduação em

    Filosofia, Faculdade de Filosofia e Ciências

    Humanas, como requisito à obtenção do título de

    Bacharel em Filosofia.

    Orientadora: Profª PHDrª Silvia Faustino.

    SALVADOR 2015

  • RESUMO

    Henri Bergson denuncia em Matéria e Memória e Evolução Criadora nossa intelecção

    como produtora de uma ilusão a medida que percebe o movimento efetuado, e comprara

    essa ilusão a do cinematógrafo por este reproduzir o mesmo movimento ao infinito.

    Contrariando Bergson, Gilles Deleuze retira o cinema da ‘ilusão do movimento’ e eleva

    essa arte industrial a criação de imagens que ultrapassam a superfície do instantâneo da

    película para a profundidade de uma imagem que dura. Fundamento temporal

    primordial bergsoniano. Procuraremos entender como Deleuze realiza essa reviravolta

    possibilitando ao cinema partir de uma ilusão e chegar ao movimento real, reafirmando

    radicalmente a filosofia do próprio Bergson através do conceito de imagem-movimento

    percebido por Bergson e atualizado por Deleuze.

  • 4

    SUMÁRIO

    1 INTRODUÇÃO

    O que é o movimento real e o que o cinema tem a ver com isso? ........................... 05

    2 PRIMEIRO CAPÍTULO

    Como se opõem movimento e espaço percorrido para os

    Modernos e os Antigos em Bergson ....................................................................... 08

    3 SEGUNDO CAPÍTULO

    Como, na evolução do cinema enquanto arte industrial, Deleuze devolve/ revela

    dele algo maior que uma simples ilusão .................................................................. 15

    4 TERCEIRO CAPÍTULO

    O todo, a duração, a imagem-tempo se dão no encontro entre a imagem-movimento e os objetos e promovem juntos a criação ............................................ 25

    5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 31

    6 REFERÊNCIA ....................................................................................................... 34

  • 5

    INTRODUÇÃO

    Bergson é o primeiro filósofo a comparar a idéia de cinema - em sua época

    cinematógrafo - a uma ilusão. Uma simulação do que seria o movimento para a razão, a

    ciência em geral, para o materialismo, o idealismo e o dualismo vulgar. Para Bergson, o

    cinema é a concretização da confusão que fazemos quando comparamos movimento a

    espaço percorrido. Segundo ele, o movimento envolve um processo de transformação

    do todo e não apenas um deslocamento de um corpo ou objeto. O movimento acontece

    também por vibrações, não é somente um processo psíquico. Bergson radicaliza quando

    resolve analisar em Matéria e Memória um corpo sem memória em meio aos objetos. E

    então chega a uma conclusão fascinante: podemos ser todos imagens. Com a diferença

    de que nossa imagem se movimenta, é uma imagem consciente de si, diferente dos

    objetos que são em si, sem consciência, se movem, mas não mudam. Ou seja, Bergson,

    ao analisar a natureza do tempo, que é duração, e do espaço, que é único à medida que

    dura, denuncia a existência de imagens-movimento, que Deleuze irá chamar de cortes

    móveis da duração.

    Um sistema complexo do movimento se abre sobre a leitura desse conceito de Bergson

    por Deleuze que, inegavelmente, se apoia na base bergsoniana de espaço-tempo e o

    empresta para o cinema dando ao conceito um efeito imagético. Imagem-movimento.

    Parece um ato inconsequente de sua parte, mas o que Deleuze viu, foi que Bergson

    estava certo. De fato, o cinema é uma invenção do final do sec. XIX, período da

    modernidade em que muitas tecnologias ainda estavam em completa evolução, a

    biologia, a física, a química, os processos mecanicistas de Newton a Leibniz, momento

    em que ilusões estavam se construindo e se destruindo. O cinematógrafo foi um desses

    aparelhos que surgiram para entreter, uma pré-tv de circo. Os programas eram cabeças

    voadoras e truques de cortar o corpo ao meio, só que produzidos através de trucagens

    cinematográficas. Mas diante das evoluções, o cinema também acompanha os processos

    de transformação, e ultrapassa as expectativas da ciência, por se tornar um processo

  • 6

    híbrido entre a indústria e a arte, tornando-se uma arte industrial. Pois as artes também

    sofreram transformações. Segundo Deleuze, o cinema insurge como uma das maiores

    invenções já dadas em plena modernidade. De dentro dos próprios clichês, tiramos a

    composição de um mundo. Isso não é mais entretenimento, isso é transformação. O

    cinema é uma ilusão que possibilita uma linguagem, mas não se limita a ela, sendo mais

    profundo, justamente, porque se expressa através de imagens-movimento, a partir de

    uma película.

    Então, é uma ideia que carrega consequências interessantes para o pensamento em torno

    dessa arte. Uma delas é o conceito de virtualidade imanente. Para além de um conceito,

    imagem-movimento também quer dizer que a imagem está na película, quadro a quadro,

    materialmente falando, no aleto de prata queimada pela luz e revelada com químicos

    reveladores. Mas ao pôr as imagens no projetor. Das imagens que passam, não são mais

    fotogramas (frames) que vemos, não vemos quadro a quadro as vinte e quatro poses

    tiradas por minuto pela câmera, e sim, imediatamente, uma imagem única que se

    estende pelo tempo em que a vemos e identificamos como única e que se expressa de

    maneira única naquele momento, em que a cada mudança de movimento ela seja em si.

    Isso é imagem-movimento. Quer dizer que o cinema parte de uma ilusão – qualquer

    corpo vira ponto afixado de uma imagem capturada num rolo de filme de trinta e cinco

    milímetros a vinte e quatro fotos por minuto – da qual fala Bergson, e chega a

    expressão de uma realidade própria e imediata da imagem-movimento. Eis o nosso

    fascínio quando tocamos no cinema. Ele é uma composição de espaço-tempo subjetivo

    cuja metafísica se enraíza na produção de subjetidades, por isso se alimenta de uma

    ilusão, para expressar uma realidade. Isso era exatamente o que Bergson queria mostrar

    ao criticar a ciência quando esta reduzia a uma abstração o conceito de movimento. Se

    desconsideramos essa complexidade do movimento, tornamos o tempo uma unidade

    independente e o espaço ganha uma dimensão infinita, o que só pode ser uma ilusão

    cinematográfica. O que Bergson queria era dar à modernidade a sua metafísica. Uma

    metafísica imanente. Ele não alcançou o cinema em sua maturidade.

    Mas Deleuze irá expor o conceito de movimento em Bergson em três níveis diferentes e

    a cada nível, uma forma dinâmica, um todo em si se apresenta composto pelos

    anteriores. Ao final desse processo, o que temos é a construção imagética do conceito de

    movimento, como numa mandala. Este trabalho pretende elucidar as reflexões

  • 7

    filosóficas que Deleuze realiza quando opera a arqueologia do conceito de movimento,

    explorando a complexidade do pensamento filosófico de Bergson sobre o cinema. É

    nosso objetivo aprofundar e problematizar as consequências que o pensamento

    deleuziano produz quanto à concepção de como se realiza uma imagem

    cinematográfica. Importa também analisar o conceito de imagem cinematográfica

    enquanto arte que toma o tempo e o espaço para fundamentar sua realidade. Antes

    mesmo de ser produto da evolução, ela é como a música, que segundo Jorge Luiz

    Borges, é algo que se empresta ao mundo. O cinema é mais velho que sua existência o

    afirma? Se pergunta Deleuze.

    Mas essa visão cosmológica do cinema é imanente justamente por atravessar o

    movimento como conceito primordial. E Deleuze irá levantar um sistema presente no

    primeiro capítulo de Matéria e Memória, mas não tão claro assim. Os três capítulos que

    se seguem, neste trabalho monográfico, perpassam esses três níveis de análise do

    movimento, descobertos por Bergson, e aproximados por Deleuze aos conceitos

    cinematográficos fundamentais. Assim, temos um primeiro nível da definição dos

    objetos, que são pontos utilizados para medir distâncias ou calcular períodos, mas não

    servem para analisar o movimento, justamente por não nos informar o que existe entre

    eles. Deleuze os denomina de cortes imóveis do movimento, esse é o nosso primeiro

    capítulo. O segundo nível, envolve justamente o que existe entre esses pontos, o

    movimento real, o que escapa a qualquer medida. Numa deriva deleuziana, o que

    Bergson chamaria de imagens-movimento, que está entre os objetos e os relaciona num

    todo, numa duração, e por isso Deleuze os chamará de cortes móveis da duração. Esse é

    o segundo capítulo. Por fim, o Terceiro Capítulo se trata do movimento do Todo, e

    como o todo se confunde com a duração, mas sendo ele mesmo um corte móvel, por ser

    composto pela junção dos objetos, e por ser a soma das relações entre os objetos. Nesse

    caso, o todo se caracteriza por ser aberto. Essa é a virada que Bergson realiza na

    filosofia contemporânea, segundo Deleuze. A nossa metafísica está em se perguntar

    pelo Novo e não pelo Eterno, ou pela Forma, por isso é uma metafísica imanente.

  • 8

    CAPÍTULO PRIMEIRO

    Segundo Deleuze, Bergson apresenta três teses sobre o movimento, apontando um equívoco

    na forma moderna e antiga de constituição do espaço e do tempo. A primeira tese é

    demonstrar como espaço percorrido e movimento se opõem enquanto conceitos. O que será

    sesenvolvido ao longo desse primeiro capítulo.

    Para os antigos e os modernos o espaço percorrido é infinitamente divisível enquanto que

    movimento é algo indivisível, ou não se divide sem mudar de natureza a cada divisão.

    Significa que os espaços percorridos pertencem todos a um único e mesmo espaço

    homogêneo, ao passo que o movimento é heterogêneo, irredutível em si. Logo, não

    podemos reconstituir o movimento com posições no espaço ou com instantes no tempo,

    quer dizer, com cortes imóveis. “Não é possível realizar essa reconstituição sem acrescentar

    às posições ou aos instantes a idéia abstrata de uma sucessão, de um tempo mecânico,

    homogêneo, universal e decalcado no espaço, o mesmo para todos os movimentos.”1 E

    assim de duas maneiras falhamos o movimento, onde irão se expressar tempo e espaço.

                                                                                                                             1  Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009,

    p.13.  

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    Por mais que aproximemos ao infinito essas duas posições, o movimento sempre se fará

    entre as duas. Isso que estará sempre entre esses dois pontos não é o movimento, mas os

    limites que expressam uma qualidade da ação empregada nesse movimento. O que Bergson

    vai chamará de duração concreta. A duração se apresenta como fator qualitativo de

    sensações; a consciência apreende o momento de qualquer forma, o que diferirá um

    momento de outro nessa apreensão será a intensidade dos sentidos dispostos em perceber

    com maior ou menor profundidade a relação desse evento específico sobre os demais

    também vividos pela consciência, pervertendo a idéia de diferenciação lógica, quantitativa,

    que se localiza no tempo e no espaço, pela diferenciação da duração como unidade

    irredutível da percepção e da sensibilidade para cada momento de reflexão ou da

    experiência. Onde se encontram as conseqüências do paradoxo bergsoniano: a “heterogenia

    qualitativa”, diferenciar-se pela qualidade.

    No entanto, os antigos como os modernos nos mostraram como é possível cortar, pontuar,

    associar o movimento de qualquer coisa em qualquer lugar no espaço e no tempo a qualquer

    outra coisa. Essa foi a descoberta do espaço liso, do espaço homogêneo, como o silêncio

    tácito da linha do mar no horizonte, sob a qual resguardam-se imensas correntes marítimas.

    Essas correntes são únicas e eternas dentro desse sistema marítimo e terrestre, movimento

    que se acopla ao universo dos planetas e assim por diante. Segundo Deleuze, o que Bergson

    descobre é o movimento em sua complexidade. Dois mundos paradoxais, mas

    complementares. O que Bergson aponta como a produção máxima de uma ilusão, conceber

    o movimento por pontos no espaço, comparando-o a ilusão cinematográfica. Deleuze irá

    retornar a esse mesmo ponto, desvendando no pensamento bergsoniano sua questão sobre

    qual seria a metafísica ideal para a modernidade. E encontrando no conceito de imagem-

    movimento, uma possível resposta. O que Deleuze aponta é que Bergson chega à fórmula da

    ilusão, que ele mesmo irá condenar de concepção cinematográfica do movimento, seja:

    > e .

    Não sem motivo, Deleuze soma os dois conceitos aparentemente opostos entre movimento e

    espaço percorrido. Espaço-Tempo real e Espaço-Tempo ilusório. Movimento real implicará

    sempre uma duração concreta, mas é preciso somar ao movimento real algo que não lhe

    expressa, mas que está contido no movimento. Ou seja, o movimento é a soma desses

  • 10

    pontos intervalados que resultam de uma duração. Logo, a pontuação dada no fluxo do

    movimento, é como se pode observar uma mudança qualitativa do próprio movimento.

    Onde todo corte imóvel implica num tempo homogêneo e abstrato. Porém cada corte opera

    uma mudança na duração. Uma mudança qualitativa, implicando também um outro tipo de

    corte. Só que referido ao movimento. Um corte móvel, que expressa um tempo real e um

    espaço heterogêneo. Por isso Bergson batiza a má fórmula acima de concepção

    cinematográfica da realidade, em 1907, na sua Evolução Criadora.

    Nessa primeira tese sobre o movimento, Deleuze traz à tona a primeira parte de Matéria e

    Memória, onde Bergson discorre sobre o movimento real questionando a função e o lugar

    da Memória para o espírito. Bergson parte para uma dialética radical como o próprio título

    sucita. No ponto de vista da Matéria, como se pudéssemos nos isolar de qualquer tipo de

    lembrança, costume, cultura de si, e sermos apenas um objeto entre os demais, tudo pode ser

    visto como um mar de imagens. Se ainda assim pudermos nos distanciar a ponto de os

    objetos serem microdimencionados, veremos que alguns objetos se movem por si enquanto

    outros esperam ser carregados. Essa é a diferença entre a imagem de nosso corpo e a

    imagem dos objetos. A de que nosso corpo é dotado de nervos, eferentes e aferentes, que

    comunicam a periferia do corpo ao seu centro e vice-versa. São estimulados pela presença

    de outros corpos, inclusive aqueles destituídos de qualquer sensibilidade. Sendo assim, nos

    movemos estimulados por um meio comum. Recebendo movimento do objeto e devolvendo

    esse movimento para o objeto. Bergson expõe sua idéia na passagem abaixo.

    "Percebo bem como as imagens exteriores influem sobre a imagem que chamo meu

    corpo: elas lhes transmitem movimento. E vejo também de que maneira este corpo

    influi sobre as imagens exteriores: ele lhes restitui movimento. Meu corpo é portanto,

    no conjunto do mundo material, uma imagem que atua como as outras imagens,

    recebendo e devolvendo movimento, com a única diferença, talvez, de que meu corpo

    parece escolher, em uma certa medida, a maneira de devolver o que recebe.”2

    De fato o cinema contém em si essas duas condições, ele produz uma ilusão para expressar

    a realidade. Nessa passagem, Bergson expõe o problema a respeito do cinema. “Com efeito,

    o cinema procede com dois dados complementares: cortes instantâneos chamados imagens;                                                                                                                          2  Bergson, Henri, Matéria e Memória – Ed. Martins Fontes, 2ª Ed., São Paulo, 1999. p.14.  

  • 11

    e um movimento ou um tempo impessoal, uniforme, abstrato, invisível ou imperceptível,

    que está no aparelho com o qual se faz desfilar as imagens.”3 Esse é exatamente a

    concepção antiga de movimento, o falso movimento. Mas realmente impressiona o fato de

    Bergson dar um nome tão moderno à mais antiga das ilusões, como diz Deleuze, que

    remonta os paradoxos de Zenão para pensar no tempo espacializado, no espaço subdividido

    e homogêneo. Mas a isso o próprio Bergson irá atribuir a percepção natural na Evolução

    Criadora "quer se trate de pensar o devir quer de exprimi-lo, quer mesmo de percebê-lo, não

    fazemos realmente nada além de acionar uma espécie de cinematógrafo interior. o

    mecanismo de nosso conhecimento usual é de natureza cinematográfica.”4 Pensamento que

    revela a vida como algo a mais que um invólucro ilusório que congela o movimento em

    pequenos fotogramas. Para Bergson, todo apelo será o de superar o mecanismo do falso

    movimento do aparelho e se ater à duração concreta do movimento real cuja medida escapa.

    “Quando o cinema reconstitui o movimento com cortes imóveis, nada mais faz do que o que

    fazia já o pensamento mais antigo (os paradoxos de Zenão) ou do que faz a percepção

    natural.”5

    Deleuze cita Bergson que, ao aproximar as questões da percepção natural, como faz a

    fenomenologia, ao cinema revela desde já uma atitude em que nela percebemos uma

    lietralidade e uma certa pedagogia das ações ou do aprendizado. “Captamos vistas quase

    instantâneas da realidade que passa e, como elas são características dessa realidade, basta

    alinhá-las ao longo de um devir abstrato, uniforme, invisível, situado no fundo do aparelho

    do conhecimento… Percepção, Intelecção e linguagem procedem em geral assim. Quer se

    trate de pensar o devir, ou de exprimir, ou até de o percepcionar, nada mais fazemos que

    acionar uma espécie de cinematógrafo interior.”6

    E aqui começam os problemas. Deleuze o expressa muito bem: "Deverá entender-se que,

    segundo Bergson, o cinema seria apenas a projeção, a reprodução de uma ilusão constante,                                                                                                                          3  Bergson, Henri, Evolução Criadora – Ed. Martins Fontes, 1ª Ed., São Paulo, 2005. p.305  4  Bergson, Henri, Evolução Criadora – Ed. Martins Fontes, 1ª Ed., São Paulo, 2005, p.331  5  Bergson, Henri, Evolução Criadora – Ed. Martins Fontes, 1ª Ed., São Paulo, 2005, p.305  6  Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009, p.14  

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    universal? Como se tivesse feito cinema sem o saber? Mas então são muitos os problemas

    que se apresentam." 7 Aproximando-se da questão sobre a ilusão cinematográfica do

    movimento sendo comparada aos paradoxos de Zenão, podemos pensar que o cinema é

    mais antigo que sua própria origem revela, já que a própria percepção natural já é um

    produto de um processo cinematográfico, visto que para percebê-la precisamos produzir

    uma síntese que seja, diferente da fenomenologia, cuja ancoragem do sujeito no mundo

    propõe uma consciência do mundo. E para Bergson não há consciência de mundo por ser a

    consciência o próprio mundo. Seja, não é possível mais sustentar a consciência como algo

    em si e a coisa ser algo diferente dela, mas como resolver isso? Entre essas duas posições, o

    problema é que ainda há uma distância quando atribuímos à consciência um meio para se

    chegar em algum lugar, quando na verdade ela já é o próprio lugar. Nesse sentido o Cinema

    é algo que satisfaz a condição bergsoniana, não apenas por ser um reduto de produção de

    imagens conscientes, mas por ser ele composto por imagem-movimento. Diante disso,

    imediatamente emprestamos a ele nossa realidade e não o contrário. Mas Bergson encontra

    no cinema apenas a realização de uma ilusão, um exemplo pontual de reprodução do

    movimento, a própria imagem da ilusão. Husserl nem considera o cinema como algo

    relevante. Mas a fenomenologia terá um papel importante para a compreensão da realidade

    cinematográfica.

    Nenhum outro filósofo cita o cinema, apenas Merleau-Ponty, pela fenomenologia, mas

    ainda assim, para ele o cinema é dúbio demais para firmar uma realidade. É interessante o

    posicionamento da fenomenologia diante da realidade. Pois toda percepção está ancorada

    numa percepção natural e as suas condições. Essas “condições são coordenadas

    existenciais que definem uma ancorarem do sujeito percepcionante no mundo (…) uma

    abertura ao mundo que vai exprimir no célebre toda consciência é consciência de alguma

    coisa.”8 Para Merleau-Ponty, por mais que o cinema produza uma realidade, se distanciando

    ou se aproximando da nossa, ele suprime essa dualidade entre percepcionante e

    percepcionado, sujeito ancorado no mundo, porque ele substitui imediatamente essa

    dualidade por um saber implícito, cuja percepção natural permite-se ficar em segundo

    plano, numa intencionalidade segunda. “Assim sendo, o movimento percepcionado ou feito,

                                                                                                                             7  Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009, p.14  8  Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009, p.94  

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    deve evidentemente ser compreendido não no sentido de uma forma inteligível (Ideia) que

    se atualizasse numa matéria mas no de uma forma sensível (Gestalt) que organiza o campo

    perceptivo em função de uma consciência intencional em situação.”9 As outras artes fazem

    do mundo uma irrealidade, mas o cinema transforma a realidade do mundo, e o reconstrói

    numa narrativa. Seu objetivo será sempre o de transformar o mundo em sua própria imagem

    e vice-versa.

    A fenomenologia ainda necessita de uma imagem e de um mundo, por mais que este se

    represente, à beira de uma realidade, ela já se torna algo externo ao mundo que se torna real

    a partir de uma imagem. Se entende por essa idéia um pré-cinema. Há um claro privilégio

    dado à percepção natural, que expressa o movimento se referindo a poses, formas. Só que

    existenciais ao invés de essenciais, diz Deleuze. Mais uma vez percebe-se que o cinema por

    esse ponto de vista se mostra inadequado, produzindo uma ilusão, já que aproxima-se de

    uma realidade, mas é diferente da que minha percepção natural pode produzir. Deixar ela

    em segundo plano, significa que a congelamos numa forma que se mantém inativo quando

    emprestamos nossa percepção ao cinema, ao mesmo tempo que percebe-se no cinema a

    potência de aproximar percepcionante de percepcionado, mundo e percepção, imagem e

    movimento.

    Bergson irá pegar a via da consciência imediata. E não de uma consciência de um mundo. E

    a grande questão é, como eliminar a ancorarem num mundo, deixando esse dualismo, sem

    perder o centro? Sem ancoragem nos pontos num mundo onde tudo é fluxo, onde não

    existiriam pontos fixos além de instantâneos em consequência do movimento produzido.

    “Na verdade significa que a realidade pode ser produzida por três tipos de percepção: a

    consciente, a natural e a cinematográfica.”10

    Para Bergson o cinema tem outra consequência diferente da fenomenologia. Para ele não há

    diferença entre percepção cinematográfica e percepção natural, porque ele parte sempre do

    mesmo princípio, posto que percebemos o cinema como percebemos a linguagem e a

    fotografia. Por isso a percepção natural não é um modelo, e não poderia ser, porque isso

                                                                                                                             9  Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009., p94.  10    Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009,  p95  

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    seria ainda estar preso a uma forma, a um centro, a uma idéia de que há sempre algo

    anterior, originário à percepção – e não a partir de um encontro.

    “O modelo seria um estado de coisas que não parasse de mudar, uma matéria-fluxo onde

    não fosse possível ancorar nenhum ponto e encontrar nenhum centro” pp95 É nesse mundo

    de onde se deve produzir um centro, num estado aleatório de coisas, que se deve descobrir

    como é possível produzi-los. Por esses termos é que podemos pensar nos tipos de percepção

    que insurgem desse processo sensível de se encontrar no mundo onde a produção de um

    centro equivale a qualidade de percepção produzida pelo encontro. Seja ela consciente,

    natural ou cinematográfica. Dentre essas o cinema é curioso por “justamente não ter centro

    de ancoragem e horizonte, os cortes que ele opera não impediriam de remontar o caminho

    descido pela percepção natural. Em vez de ir do estado de coisas não-centrado para a

    percepção centrada, ele poderia remontar para o estado de coisas não-centrado e aproximar-

    se dele. E se aqui também se fala de aproximação, esta seria o contrário da que a

    fenomenologia invocava. Mesmo através de sua crítica do cinema, Bergson estaria em

    sintonia com ele.”11

    Pensa-se que tudo é imagem e que estamos num momento anterior a uma sobreposição de

    forças em que uma imagem atue sobre outra. Não há distinção entre o movimento e o

    movente. “Todas as imagens se confundem com suas ações e reações.”12 Numa variação

    universal a imagem se confunde com o movimento. Dessa forma, os movimentos se

    assemelhariam mais a movimentos de troca por compensação ou descompensação de

    elementos, como nos sais ou meios em que disparam microorganismos que se movimentam

    por intensidades e fluxos.

    "Deve concluir-se que a primeira tese sobre o movimento é mais complexa afinal do que

    parecia. Há por um lado uma crítica contra todas as tentativas de reconstituir o movimento

    com o espaço percorrido, quer dizer, adicionando cortes imóveis instantâneos e tempo

    abstrato. E há por outro lado a crítica do cinema, denunciado como uma dessa tentativas

    ilusórias, como a tentativa que faz culminar a ilusão. Mas há também a tese de Matéria e

                                                                                                                             11  Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009, p95.  12  Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009, p96.  

  • 15

    Memória, os cortes móveis, os planos temporais, e que pressentia de maneira profética o

    futuro ou a essência do cinema."13

    CAPÍTULO SEGUNDO

    Bergson aponta a negação como necessária a filosofia, através de conceitos básicos e

    profundos que remontam ao próprio ato do pensamento ao longo de sua história, quando

    denuncia a ilusão gerada pela ciência ao tentar reproduzir o movimento. Uma reação

    instintiva da razão contra o novo e a produção da ilusão como possibilidade do

    panorama racional através das eras. Bento Prado Junior consegue demonstrar o quanto

    Bergson contribuiu para a ciência, ao denunciar, em seu vazio conceitual, a ilusão

    produzida pela própria filosofia que, através das categorias do entendimento, cria um

    movimento histórico-evolutivo da consciência humana, empobrecendo a diversidade.

                                                                                                                             13  Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009, p16.  

  • 16

    Para Deleuze, quando Bergson denuncia o cinema como ato culminante dessa ilusão,

    revelando o que seria o movimento real no primeiro capítulo de Matéria e Memória, nos

    deixa uma incógnita sobre o cinema em sua própria evolução, seja: apesar de o cinema

    carregar a marca dessa ilusão, ele se aprofunda numa temporalidade própria e numa

    espacialidade incomum a ponto de produzir um movimento real na construção de sua

    linguagem. Portanto, a apropriação do conceito bergsoniano de imagem-movimento

    também se aplica ao cinema como seu reduto natural de produção imagética. Mas como

    pode o cinema sustentar esse paradoxo, tal como o faz a filosofia quando denuncia a

    sabotagem do pensamento, conservar no dispositivo a ilusão e expressar no movimento

    sua realidade?

    Ao analisarmos a imagem cinematográfica, sua unidade mínima é o instantâneo (still),

    normalmente denominado de ‘fotograma’, ou ‘frame’ para o cinema digital,

    significando um corte imóvel do movimento, justo por congelá-lo numa imagem fixa.

    Deleuze irá utilizar a palavra ‘corte’ em respeito à idéia bergsoniana de movimento

    como fluxo continuo em contraposição à ciência, cujo movimento é substituído por

    pontos no espaço. Acontece que a imagem vista desse movimento gerado pela

    sequência de fotogramas, nos transmite uma imagem média que está entre os

    fotogramas. Ela nos dá primeiramente o movimento. Algo que se encontra entre os

    pontos fixados pelos fotogramas, e que só pode ser visto no movimento real. Nessa

    passagem, em tom revelador, Deleuze expõe:

    “O cinema procede com fotogramas, quer dizer com cortes imóveis, vinte e quatro

    imagens por segundo (ou dezoito no início). Mas o que ele nos dá, como muitas vezes

    se observou, não é o fotograma, é uma imagem média à qual o movimento não

    acrescenta, não se adiciona: o movimento pertence pelo contrário à imagem média

    como dado imediato. Dir-se-á que o mesmo se sucede com a percepção natural. Mas aí

    a ilusão é corrigida a montante da percepção pelas condições que tornam a percepção

    possível no sujeito. (…) Em suma, o cinema não nos dá uma imagem à qual ele

    acrescentaria movimento, dá-nos imediatamente uma imagem-movimento. Dá-nos um

    corte, sim, mas um corte móvel, e não um corte imóvel + movimento abstrato. Ora, o

    que é de novo muito curioso é que Bergson tinha perfeitamente descoberto a existência

  • 17

    de cortes móveis ou de imagens-movimento.”14

    Então, se, por um lado, o cinema fixa pontos espaciais (‘frames’) numa película, a ele

    interessa sempre o que está sendo produzido entre esses pontos, o que vai ditar uma

    certa qualidade de movimento, já que, ao se movimentar um rolo cinematográfico, os

    frames se tornam invisíveis à percepção. Vê-se a própria imagem-movimento. A

    mudança de movimento significa um corte na duração, o corte móvel descoberto por

    Bergson. Uma mudança sentida pela percepção como algo único pertencente a cada

    movimento. Essa é a diferença entre o corte do movimento sofrido por um fotograma

    (frame), acionando uma percepção científica do movimento, e um corte no fluxo do

    movimento sentido na mudança do movimento pela ação, que é a condição bergsoniana

    para que o movimento real se efetue.

    Uma vez compreendido o conceito de imagem-movimento num paralelo entre a vida e o

    cinema, resguardando a natureza fenomenológica de cada qual, aprofundemos um

    pouco mais na ideia de reprodução do movimento enquanto ilusão fundamental. Para

    tal, retomemos a análise feita por Bergson em Evolução Criadora sobre essa questão

    dita pela própria filosofia e sintetizada pela ciência como um fim em si: o de sempre

    reconstituir o movimento com instantes ou posições.

    Para os antigos, a ilusão do movimento baseava-se no imutável das Formas e Ideias. A

    Forma sendo vista como Ideia no mundo das ideias ou vista como potência resguardava

    ainda um momento único para si, em que se formava então um sentido para a existência,

    um fim, um caminho em que se pudesse expressar a vida. “O movimento assim

    concebido será pois a passagem regulada de uma forma para outra, quer dizer, uma

    ordem das poses ou instantes privilegiados, como uma dança.” 15 Não importa o

    caminho entre as formas, visto que qualquer um representa um acidente, um erro, uma

                                                                                                                             14  Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009, p15.  15  Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009, p17.  

  • 18

    escalada em direção à forma imutável e transcendente do ser. Na modernidade, o espaço

    tornou-se homogêneo e o tempo espacializado, onde o movimento vai referir-se a

    instantes quaisquer. Não existe uma transcendência a se perseguir como fim, a repetição

    se tornou o meio para que se mantenha a forma sempre presente, numa imanência

    constante. Assim, para Deleuze “a revolução científica moderna consistiu em referir o

    movimento já não a instantes privilegiados mas ao instante qualquer. Para poder

    recompor o movimento, já não se o recompunha a partir de elementos formais

    transcendentes (poses) mas a partir de elementos materiais imanentes.” IM, pp17

    Evoluímos, então, migrando do inteligível para o sensível, da transcendência para a

    imanência, reificados e mantendo uma relação com o conhecimento enciclopédico e

    deixando o lado místico com a existência. O conhecimento ganha valor pela superfície

    de seu volume. O cotidiano carece de surpresas. A repetição é o norte e o lucro está à

    frente do sentido da existência. Pautados na ciência enquanto desmistificação da

    realidade, a era das luzes nos legou uma mudança radical do tempo e do espaço, cujas

    revoluções mais profundas, remontam à órbita e ao tempo dos planetas com Kepler, ao

    espaço percorrido e ao tempo de queda de um corpo em Galileu, à geometria moderna

    cartesiana (de localizar um ponto no espaço a qualquer momento) e ao cálculo

    infinitesimal entre Newton e Leibniz. Se, para os antigos, a Forma e a imobilidade eram

    a maneira de perpetuar o espírito e de alcançar a verdade, para a modernidade, o eterno

    está na possibilidade de se produzir o mesmo

    Enquanto a dialética moderna preza pela imanência do movimento, a antiga se excede

    pela transcendência. A dialética moderna encontra seus instantes privilegiados dentro

    do ordinário porque o movimento só poderia ganhar sentido na imanência, só pode

    acontecer no presente. Essa dessacralização do tempo, tornado unidade em si, surge de

    uma dialética acumulativa cuja forma passa a ser um acidente, a diferença pela série, a

    necessidade da novidade. Diante da materialidade do equipamento, Deleuze analisa

    como o cinema acompanhou as revoluções modernas, e adota o método dialético de

    Matéria e Memória para demonstrar no cinema sua própria construção fundamental.

    Uma dialética que procura por uma metafísica para a modernidade. Uma correção que

    atinge ao próprio cinema enquanto tecnologia moderna. Sua definição não se restringe

  • 19

    ao teatro, fotografia, dança, pintura, nem é a soma destes. Há uma identidade própria.

    Por isso perguntamos: como o cinema produz subjetividade ao ponto de uma mise en

    scene poder ser dita “cinematográfica” e soar única?

    Em 1896, ano em que Bergson lança Matéria e Memória, o cinema não passava de um

    truque imagético proporcionado pelo cinematógrafo, primeiro aparelho a conseguir

    disparar dezoito fotogramas por minuto, capturando o movimento pelo giro da manivela

    presa a uma caixa escura, e contendo uma película foto-sensível. Criado com o objetivo

    de estudar o movimento, a ciência não viu mais que pequenas fotografias sequenciadas,

    que repetiam o movimento ao infinito, algo que para a indústria não se diferenciava da

    fotografia de pose, não resguardava nada de novo. Mas que foi redescoberto por

    Georges Méliès como um aparelho capaz de produzir mágicas a partir de trucagens e

    sobreposições de imagem. Entre outros truques, o cinematógrafo, em seu processo de

    transformação da imagem, era algo que poderia fazer o homem chegar à lua 60 anos

    antes dos tripulantes da Apollo 11: em 1902, G. Méliès lança seu clássico Viagem à

    Lua, filme que até hoje impressiona pela complexidade de sua produção. Mas uma

    complexidade que estava aquém do que o cinema viria a se tornar enquanto linguagem.

    Diante dessa evolução, denominada como primeiro cinema, o processo de tomada de

    ponto de vista da câmera assemelhava-se mais ao teatro e se caracterizava por ser

    baseado na projeção, formalismo que tornava o espaço homogêneo e o tempo preso ao

    espaço na movimentação de cena, em que toda ação precisava ser visualizada sem

    abstrações, metáforas ou elipses. Nesse caso, os personagens precisavam aparecer de

    corpo inteiro. Pois, se a imagem vista fosse o detalhe da mão, essa seria como algo sem

    corpo, uma mutilação do real, algo extremamente caro para a imaginação da época, em

    que toda ação se passava como na “boca de cena”, para que se visse a cena acontecer

    por completo. Isso tornava a câmera fixa. Não havia fora-de-campo.

    A princípio, todo o processo de tomada de ponto de vista da câmera era baseado na

    projeção, assemelhando-se mais ao teatro. O formalismo da câmera fixa se prestava à

    aproximação da natureza teatral, tanto na imagem quanto no movimento dos

  • 20

    personagens. Portanto "a evolução do cinema far-se-á pela montagem, pela câmera

    móvel e pela emancipação do plano que se diferencia da projeção (…). Então o plano

    deixará de ser uma categoria espacial para se transformar numa categoria temporal e o

    corte móvel e não mais imóvel."16

    Mas, quando Deleuze relaciona o conceito bergsoniano de imagem-movimento ao

    processo cinematográfico, faz o cinema superar a percepção natural na condição de

    fazer o movimento sair da representação para um processo de transformação do real,

    revelando na captura das imagens o movimento que muda não apenas em perspectiva

    mas em termos de natureza. De tal forma que o espaço heterogêneo se abre para o

    tempo que dura e por isso único a cada mudança. Esta é a duração que se faz no próprio

    movimento. Uma transformação e não apenas deslocamento é o sentido mais profundo

    do conceito de imagem-movimento.

    Percebe-se aqui uma passagem bastante importante para a pesquisa de Deleuze com os

    conceitos bergsonianos e o desenvolvimento do cinema enquanto linguagem. Ele aponta

    para a imagem, em seu sentido profundo de construção de subjetividades. Então, a

    imagem é um instrumento bélico que atua no nível da cultura. Por um lado, todo

    processo fílmico de suporte da imagem cinematográfica é um negativo (película

    fotossensível), ou um DCP (‘Digital Cinema Package’), projetores e salas de cinema,

    lentes, câmeras etc... podemos nomear todo esse instrumento de objeto ou matéria,

    como tudo o que diz respeito à produção, no sentido mais material do processo

    cinematográfico. E por outro lado, todo filme tem sua própria realização, única a cada

    filme, com “assinaturas” que se repetem em cada cineasta, equipe e material humano de

    pesquisa ou de temática, algo que podemos chamar de imagem-movimento. Se

    comparamos o processo dialético da composição desses mundos envolvidos, teremos

    um corpo chamado filme. Quer dizer que o conceito de imagem-movimento se estende

    por princípio a tudo o que compõe a imagem produzida, inclusive e principalmente o

    processo de criação do fora-de-campo da imagem.

    Diante da descoberta de novos processos como a montagem e a mudança de tomada de

    ponto de vista da câmera, a criação de uma natureza própria estava começando a                                                                                                                          16  Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009, p16.  

  • 21

    despontar, mesmo que ainda sem cor e sem fala, quando a imagem se expressava no

    cinema mudo e em preto e branco. Sentida como algo novo e transformador, ela evoluía

    de uma ilusão mágica para a descoberta de um instrumento profundamente político e

    social, quando Sergei Eisenstein, pai da montagem, lança em 1925 o Encouraçado

    Potemkin. Mas Bergson não alcançou o desenvolvimento da linguagem

    cinematográfica. A ele, restou utilizar o termo cinematográfico para expressar como

    nossa concepção de movimento não passava de uma grande ilusão. Por isso Deleuze

    conclui que Bergson havia descoberto o cinema antes mesmo dele existir, ao encontrar

    na evolução do cinema a duração como princípio de criação da realidade. Assim, a

    análise deleusiana da evolução da linguagem cinematográfica encontra no cinema tanto

    o princípio dessa ilusão, quanto sua superação.

    Na modernidade, o estado de imanência das formas relacionadas a instantes quaisquer

    traz consigo o ordinário, a reprodução, o comum. Esse processo quantitativo é caro para

    a história da filosofia que demanda de Bergson uma análise profunda da razão diante do

    movimento ordinário que se estabelece entre dois pontos quaisquer. “O instante

    qualquer é o instante equidistante de outro. Definimos por isso o cinema como o sistema

    que reproduz o movimento referindo-se ao instante qualquer. Mas é aqui que surge a

    dificuldade. Qual é o interesse desse sistema?”17

    Deleuze nos faz regredir aos primórdios do cinema, ao famoso “exemplo do galope do

    cavalo": “este só pode ser exatamente decomposto pelos registros gráficos de Marey e

    pelos instantâneos equidistantes de Muybridge, que referem o conjunto desse

    movimento a um ponto qualquer. Se se escolher bem os equidistantes, cai-se

    forçosamente em tempos notáveis, quer dizer, em momentos em que o cavalo tem uma

    pata no chão, depois três, duas, três, uma. Pode chamar-se-lhe instantes privilegiados;

    mas não é de todo no sentido das poses ou das posturas gerais que caracterizavam o

    galope nas formas antigas. Estes instantes já não têm nada a ver com poses, e seriam até

    formalmente impossíveis como poses. Se são instantes privilegiados, são-no a título de

    pontos notáveis ou singulares que pertencem ao movimento, e não a título de momentos

    de atualização de uma forma transcendente."18

                                                                                                                             17  Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009, p 20.  18  Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009,

  • 22

    Já sabemos que o cinema, fiel à sua origem, guarda em si essas duas naturezas. De um

    lado, seu mecanismo de fotogramas sequenciais, que giram de acordo com a perfuração

    da película; de outro, a captação de um momento qualquer, criando um mundo, e daí

    para cortes móveis que mudam de natureza à medida que se movimentam. Mas esses

    momentos privilegiados não têm nada de transcendente porque se prestam ao próprio

    movimento, e cuja presença lhe exige uma imanência.

    Deleuze observa em Eisenstein sua seleção de instantes notáveis. Há sempre uma

    análise imanente do movimento e de modo nenhum de uma síntese transcendente.

    Permite que salte pontos singulares entre os pontos comuns. Isso era o que desejava

    Eisenstein que revoluciona a montagem no cinema pela dialética do movimento na

    produção de uma síntese de momentos notáveis. Esse é o salto qualitativo de que fala

    Deleuze. E evolui em direção ao tratamento do signo cujo devir se dá no movimento. O

    movimento é a mudança na duração e no todo. O que se move muda. Mudança é a

    natureza da Duração. Uma narrativa cinematográfica só pode acontecer se o todo puder

    se completar no outro. Mover-se é deslocar-se, essa mudança se opera no espaço e, à

    medida em que caminho, o todo à minha volta muda. Ângulos, sombras, formas, como

    andar em volta de uma montanha percebendo como seus contornos ora são pedras, ora

    são rostos. É nesse sentido que se pode falar de uma mudança de qualidade num certo

    todo.

    Em Bergson, “por mais diferentes que as duas concepções sejam do ponto de vista da

    ciência, elas não deixam de ser mais ou menos idênticas no resultado. Com efeito vem a

    dar no mesmo recompor o movimento com poses eternas ou com cortes imóveis: em

    ambos os casos falhamos o movimento, porque nos damos um Todo, supomos que tudo

    , ao passo que o movimento só se faz se o todo não estiver dado nem puder

    dar-se. Assim que nos damos o todo na ordem eterna nas formas e das poses ou no

    conjunto dos instantes quaisquer, então o tempo já é ou a imagem da eternidade ou a

    consequência do conjunto: já não há lugar para o movimento real.”19

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         p 19.  19  Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009,

    p21.

  • 23

    Se a filosofia antiga se propunha a estudar o eterno, a filosofia moderna precisava

    encontrar sua própria filosofia. “Quando referimos o movimento a instante quaisquer

    temos de nos tornar capazes de pensar a produção do novo, isto é, do notável e do

    singular, em qualquer um desses momentos: trata-se de uma conversão total da filosofia

    e é aquilo que Bergson se propõe a fazer finalmente, dar à ciência moderna a metafísica

    que lhe corresponde, que lhe falta, como a uma metade falta a sua outra metade.”20

    O conceito de movimento torna translúcida a necessidade de se apontar o equívoco do

    próprio pensamento. Em síntese, o conflito temporal se apresenta como primeira grande

    questão. De onde resulta o conceito de imagem-movimento. O movimento não se define

    por posições no espaço, não se confunde com deslocamento, justo por haver uma

    diferença de natureza entre este, que se torna apenas uma ideia, quando comparado ao

    conceito de deslocamento. Para todo observador, o ponto de vista varia com o

    deslocamento segundo a latitude, a longitude, a altitude, a profundidade, a pressão e

    etc… o movimento real se define pela duração, camadas do real que se apresentam no

    movimento, a cada mudança de movimento, uma camada a mais, aprofundando a

    natureza do espaço, o observador sofre a ação desse movimento. O tempo aí apresenta,

    denuncia o equívoco de se confundir espaço percorrido com movimento ao congelar o

    movimento no espaço infinito. O movimento real precisa ser considerado no presente,

    para que sua materialidade se torne densa e o tempo dinâmico.

    Não é sem razão que caímos nesse equívoco. O problema da Forma sempre nos levou a

    questionar o infinito, o eterno, um contraponto para nossa passagem tão breve diante

    das estrelas. Vimos como os antigos se diferenciavam dos modernos nessa questão do

    movimento, considerado como um meio ou um acidente para atingir a forma, a

    perfeição, ou a manutenção de um sistema. É verdade que a modernidade toma o

    formalismo por modelo e o reproduz em milhares de exemplares. Na Grécia antiga, a

    Forma era única, os deuses sempre habitaram o espírito do herói capaz de suportar a

    tragédia por si. A Forma dialética transcendente transforma-se num materialismo ou

    idealismo, ou num dualismo vulgar, tentando resolver a dialética imanente da

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           20  Bergson, Henri, Evolução Criadora – Ed. Martins Fontes, 1ª Ed., São Paulo, 2005, p343.  

  • 24

    dessacralização do mundo. Mas se, para os antigos, o Todo era resolvido na Forma e na

    transcendência, os modernos reclamam de uma metafísica, a forma torna-se vulgar e

    comum para manter a ideia. Porém os dois têm a mesma raiz problemática: eles

    precisam se dar no Todo. Mas o que será o todo para a modernidade?

    É para onde aponta o terceiro capítulo de nosso trabalho, o problema do Todo e do

    Eterno. Se o movimento é ato presente, como compreender o todo que é eterno? Para

    que se compreenda o eterno precisamos criar para nós um tempo ilusório. Mas, como

    nos dar o Todo num tempo real? Para responder a essa questão, Bergson assumirá uma

    dialética para si em Matéria e Memória, como se buscasse uma metafísica para a

    modernidade, partindo do conceito de realidade pelo movimento enquanto

    transformação do real. Bergson se pergunta pelo o novo, pelo que lhe é próprio; ele dura

    num Todo aberto, à medida de sua própria abertura de consciência. O todo tem a

    dimensão da abertura que uma consciência é capaz de abrir para si. A hybris é

    justamente a expansão ou contração dos limites dessa consciência.

    Então, o cinema seria um sistema que funciona justamente por ser composto por formas

    abertas (o écran, por exemplo, é uma forma aberta, porque sempre se dará a parte de um

    todo para qualquer fotografia que se faça, assim como o roteiro ou a construção de um

    personagem, há sempre um recorte, tem que haver)? Porque se o cinema carrega nele o

    conceito de movimento como transformação, translação, um complexo cuja comparação

    estaria mais próxima de uma grande mandala especular, composta por movimentos que

    se expandem e se contraem para além da tela, onde o espectador é esse outro espelho de

    movimentos únicos, a se transformar diante desse movimento, então um filme se realiza

    por tornar o espaço um todo aberto, num sistema a gerir um novo ser e consciência,

    numa dinâmica renovadora da existência (um portal?). Pois, para Deleuze, o

    pensamento que se revela aí resguarda desejos profundos: “Poderemos negar que as

    artes deverão fazer essa conversão? E que o cinema seja nesse aspecto um fator

    essencial e até que tenha um papel a desempenhar no nascimento e na formação desse

    novo pensamento, dessa maneira de pensar? Eis porque Bergson não se limita a

    confirmar a sua primeira tese sobre o movimento. A segunda tese de Bergson, embora

    se detenha a meio do caminho, torna possível um outro ponto de vista sobre o cinema, o

    qual já não seria o aparelho aperfeiçoado da mais velha ilusão mas, pelo contrário, o

  • 25

    órgão a aperfeiçoar da nova realidade.”21

    CAPÍTULO TERCEIRO

    Numa questão simples de como o Cinema expressa o real, habita um sem fim de mundos. É

    realmente profunda a questão que Deleuze toma de Bergson, que toma para si o problema

    do pensamento racional. Até agora vimos como o Cinema pôde partir de uma condição de

    ilusão para a produção de uma realidade, justo por conter em si esse poder dar um

    tratamento virtual ao movimento. E isso é feito sempre a partir da imanência, sem perder de

    vista que o movimento é processo de transformação do real, e não apenas um deslocamento,

    que é somente uma das consequências de o movimento se dar enquanto ação. Bergson

                                                                                                                             21 Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009.  p22.  

  • 26

    chega à consideração do movimento real questionando alguns fundamentos relacionados ao

    idealismo, ao materialismo e ao dualismo vulgar. Um deles é o problema entre a extensão e

    a inextensão da relação do corpo com os objetos. E então ele nos faz entender por que razão

    o estado cerebral é o começo de uma ação e não a condição de uma percepção. Há apenas

    uma diferença de grau e não de natureza entre o cérebro e a medula espinhal, entre o

    estímulo e a resposta, a sensação e a percepção. O movimento só pode se dar pela ligação

    do corpo com o espírito, de um modo em que a ação seja o prolongamento de uma

    virtualidade entre o corpo e o objeto.

    A memória é o maior problema que Bergson encontra para fundamentar seu tratamento de

    tornar o corpo apenas um movente, cuja memória se encontra nas relações que o corpo seja

    capaz de criar. Enquanto que o dualismo vulgar, isto é, o materialismo e o espiritualismo,

    tentam explicar o fenômeno de percepção e de memória, físico e moral, como elementos

    externos à sua condição de existência, como se para coincidirem tivessem que contar com

    um poder acima deles, numa transcendência. O grande problema do materialismo seria a

    consciência epifenômeno – sempre se pergunta quem nasceu primeiro, como se deu a vida,

    ou se a repetição é um dado inconsciente do todo – e responde com questões de teor parcial

    em relação ao todo que envolve o universo. O grande problema do idealismo está na

    passagem da ordem que aparece na percepção à ordem que resulta na ciência; para Kant, a

    incompreensão da passagem da sensibilidade ao entendimento. Já o dualismo vulgar estará

    sempre oscilando entre o materialismo e o idealismo. "O comum entre o materialismo, o

    idealismo e o dualismo vulgar é que tomam as operações elementares do espírito, percepção

    e memória, por operações de conhecimento puro e não de movimento apenas."22 Somos

    convidados a mergulhar numa experiência sensitiva para, enfim, poder concluir o

    pensamento de que o movimento é o responsável pela intensidade das relações em geral,

    desde a permanência de seu estado à cinemática de suas partes. Ele é mais que apenas uma

    reflexão, é uma ação virtual de um movimento real.

    De fato, ampliou-se o conceito de movimento quando percebemos que ele é um complexo

    de relações onde localizamos pelo menos dois elementos bem distintos: um, que muda de

    natureza enquanto se move, a imagem-movimento; e outro, que muda apenas de perspectiva

    dentro do movimento de translação, os objetos. Mas se considerarmos o sistema pelo ponto                                                                                                                          22  Bergson, Henri, Matéria e Memória – Ed. Martins Fontes, 2ª Ed., São Paulo, 1999,  p 264.  

  • 27

    de vista dos átomos que compõem qualquer matéria, nos damos conta de que todo o sistema

    se move e por isso está sempre a mudar. Os objetos se transformam num movimento

    equivalente a um açúcar dentro de um copo d’água. Imediatamente ficará úmido e se tornará

    uma pasta doce, não aparecerá mais em grãos. E, mesmo que ninguém o mexa na água, ele

    terá derretido em alguns dias. Não se notará a açúcar sem beber a água. Trata-se, portanto,

    do movimento em dimensões mínimas envolvidos na relação entre as partes. Esse é o

    famoso exemplo de Bergson, e não poderia ser mais simples. O movimento é um ato livre

    que acontece devido a diferença entre os elementos. Fazendo uma correção, o deslocamento

    é apenas o último ato do movimento.

    Por isso será dito que as relações são relativas às forças que envolvem as partes, quanto

    mais intensas essas relações se derem a cada movimento, maior será a liberdade de realizar

    a ação, e assim ela se tornará menos virtual e mais real: produzindo uma expressão por cada

    movimento, durando a cada corte móvel. Esse sistema compõe um todo que dura, que se

    compõe de imagem-movimento e imagens conscientes de si, que são os cortes móveis. E os

    objetos que se movem, mas não mudam, são os cortes imóveis. “Os deslocamentos

    puramente superficiais de massas e de moléculas que a física e a química estudam> passam

    a ser, < relativamente a esse movimento vital que se produz em profundidade, que é

    transformação e já não translação, aquilo que a paragem de um objeto móvel é para o

    movimento desse objeto no espaço.”23

    Essa intimidade do movimento com a matéria, transformam o movimento em partículas de

    ondas luminosas e sonoras, não somente do que é composta a matéria e o ar; mas é inefável

    e se traduz inclusive no Aleto de Prata do que são compostos os filmes negativos do cinema

    de película: a cada intensidade de onda de cor uma profundidade a mais na prata. Ela é

    esculpida pela luz, possibilitada pela óptica. Hoje em dia é o que chamamos de CCD

    (charge-coupled device) que evoluiu para o CMOS (Complementary Metal Oxide

    Semiconductor) que interpretam o sinal luminoso, e o transformam em sinal elétrico,

    traduzindo um ponto de cor pela vibração da luz. Esse também é o movimento ao qual se

    refere Bergson. Os micro-movimentos das partículas que o compõe, desde a

    intencionalidade do meio até à compreensão de um todo. É por isso que Deleuze vai dizer

    que “aquilo que Bergson descobre está pra lá da translação, é a vibração, a irradiação. O                                                                                                                          23  Bergson, Henri, Evolução Criadora – Ed. Martins Fontes, 1ª Ed., São Paulo, 2005, p32.  

  • 28

    nosso erro é achar que o que se move são elementos quaisquer exteriores às suas

    qualidades.”24 O que se move, se transforma.

    O que se transforma expressa nessa transformação uma duração, um todo. A duração é um

    todo que muda a cada corte no movimento. Mas como é possível o todo mudar? Os objetos

    que participam do todo não mudam por representarem um todo em si, pontos no espaço,

    cortes imóveis. Então, se os objetos não mudam é por serem fechados, como os conjuntos.

    O todo pelo contrário, é composto pelos objetos, que se relacionam com o todo através do

    movimento. Então, o todo deverá ser a soma dessas relações e não apenas a soma dos

    conjuntos que são os objetos. Uma vez que se supõe que as relações se caracterizam por

    ocorrerem entre os objetos, elas têm estruturas abertas. Então o todo é composto também

    pela abertura do que são feitas as relações entre os objetos, que significam à medida que se

    relacionam com o todo. O todo, por isso, produzirá um movimento conforme a reação de

    suas partes sobre ele. De forma tal que poderíamos ver o movimento se expressar nos

    corpos por onde passa, conforme uma onde incessante, só que sempre em sentidos opostos.

    Os conjuntos são compostos por estruturas fechadas. As relações se dão entre os conjuntos e

    geram terceiros, quartos, quintos conjuntos/ mundos conforme se dê a duração do

    movimento. Novamente, a duração se confunde com o todo. Mas como o todo pode se dar?

    Não pode, justamente pelo fator tempo, implícito em todo esse processo do movimento.

    Tanto a modernidade quanto a antiguidade procuraram conceber o todo, por razão de sua

    filosofia se estabelecer nas categorias eternas do entendimento, e pela Forma ser de

    relevância superior para a antiguidade, onde se buscava alcançar a “perfeição”. Para a

    modernidade, a Forma aparece em estado vulgar, comum, apenas com algumas

    singularidades em sua repetição.

    Por entender o tempo como uma composição do movimento e não como uma unidade

    independente, Bergson passa a se perguntar pelo novo e não mais pelo todo. E aponta para

    uma possível metafísica diferente, por ser composta pelo movimento, que é imanente. Não é

    à toa que Deleuze se debruça sobre o cinema quando compreende esse mecanismo

    bergsoniano do movimento, porque é como se o próprio cinema contivesse em si a

    realização de todas as linguagens. Ele possibilita produzir pela imanência do movimento,

    sua matéria prima, uma metafísica que lhe ultrapassa. E então pode unir os pontos ao invés                                                                                                                          24  Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009, p23.  

  • 29

    de isolá-los para conhecê-los. Por isso que uma narrativa é sempre a parte de um todo,

    porque o que não vemos é pura metafísica, o fora-de-campo do cinema. Podemos perguntar

    de quantas metafísicas se produz uma imagem?

    De qualquer forma, é esse o ponto. Se os conjuntos são fechados, eles se diferenciam do

    todo que é uma abertura. Por isso quando nos atentamos apenas para os conjuntos fechados,

    não percebemos mudanças no meio, a não ser o movimento de translação, e podemos

    confundir espaço percorrido com movimento, considerando apenas a perspectiva ou o ponto

    de vista. Mas ao percebermos que o movimento se dá na relação, desde a composição

    molecular ou estética de sua forma, eles nos atraem, e nós os cultivamos. Eles nos

    emprestam movimentos, e nós devolvemos esse movimento de uma outra forma. Eles nos

    compõem e nós o cultivamos em sentidos e percepções. É onde tudo se transforma.

    Essa mistura é o que podemos chamar de relação. Daí porque se afirma que o todo é a soma

    das relações, por onde se der a abertura para o todo, onde ele próprio é um corte móvel.

    Disso decorre que os mundos podem se encontrar e se influenciar reciprocamente, na

    medida em que se estruturam justamente por serem unidades relacionais. Define-se então

    uma composição entre os dois tipos de sistemas: i) o dos cortes móveis, que expressam um

    movimento real, um sistema aberto; ii) e o dos cortes imóveis, que nos remete para os

    conjuntos, que são sistemas fechados. Um sistema então se define pela “abertura de um todo

    que durar, cujos movimentos são tantos outros cortes móveis que atravessam os sistemas

    fechados.” IM, p26. Deleuze irá nos apresentar a fórmula: remete aos sistemas fechados (…) ao passo que: duração

    concreta> remete para duração e para os sistemas abertos.

    Por isso Deleuze pôde chegar as três teses do movimento em Bergson. Primeiro, temos que

    os conjuntos ou sistemas fechados se definem por objetos discerníveis ou partes distintas, e

    quando se tenta definir o movimento por eles, se chega a uma fórmula parcial a respeito da

    natureza do movimento, qual seja: a espacialização do tempo cuja natureza do espaço ganha

    uma abertura infinita, com a produção de uma ilusão. Segundo, o movimento de translação

    passa a um nível mais complexo, que é a transformação de uma natureza pelo movimento

    relacional entre as partes, que se estabelece entre os cortes do nível de suas moléculas e

    ainda virtuais, que se tornam concretas à medida de sua realização e aproximação entre si,

    um verdadeiro processo de vibrações em ondas. E em terceiro lugar, temos a duração ou o

  • 30

    todo. Um sistema que está sempre a mudar de acordo com as suas próprias relações compõe

    um ritmo na pulsação das ondas entre os elementos. Algo que só poderia se dar no tempo.

    Por isso o tempo não é um elemento a mais no sistema, ele é a própria expressão dos

    sistemas, ele é condição, condicionado e condicionante.

    Decupando a fundo a definição do conceito de movimento em Bergson até aqui, a partir

    dessas definições, temos que ele é aquilo que passa pelos objetos, que podemos chamar de

    ação, que interfere e modifica o meio entre eles, e à medida que se realiza, interfere na

    duração, e no todo. O movimento é uma conexão onipresente da relação do todo com os

    objetos. Assim, os objetos podem ressignificar o todo, onde se desfazem como signos e

    onde também se encontram reorganizados no todo.

    O movimento faz a relação entre os sistemas fechados e abertos. Logo, o movimento se dá

    por uma pulsação, e não por vetores pontuados no espaço. O movimento compõe

    internamente o sistema fechado que dura no sistema aberto, e quanto expressa o tempo do

    sistema aberto dá ao sistema fechado um tratamento de fora para dentro, forçando-o a abrir-

    se. O meio muda conforme a pulsação desses sistemas e a composição do movimento entre

    eles. A duração se abre aos sistemas fechados, de onde se teria uma consciência para cada

    abertura que se produziu entre o corpo e a duração que o compõe, o que de alguma forma, é

    proposto pela relação dado no movimento. O movimento é por onde o todo se faz presente

    nos objetos que, reunidos, expressam o todo. E nesse movimento tudo muda.

    Por isso, uma das conclusões às quais Deleuze chega é que o próprio todo é um corte móvel

    da duração. Isso significa dizer que é no movimento que se realiza a virtualidade imanente

    de Bergson, lido por Deleuze. Mas, se é no movimento que se estabelece a relação entre os

    cortes imóveis, os objetos e suas partes, ou os conjuntos fechados, relacionando-os a um

    todo que muda, essa mudança no todo será sentida nos objetos relacionados a esse todo,

    será expressa por eles, pois o todo sofre essa interferência do movimento. Ele é um corte

    móvel.

    Deleuze realizou uma verdadeira arqueologia do pensamento bergsoniano, no primeiro

    capítulo de matéria e memória, dando-nos uma visão cosmológica da definição de

    movimento na relação entre esses sistemas. O movimento que à primeira vista se mostrava

    como um conceito extremamente simples, se apresenta como parte fundamental da idéia de

  • 31

    imanência como expressão da mudança de um todo. Portanto o que se apresenta no

    primeiro capítulo é: “1) não há só imagens instantâneas, quer dizer, cortes imóveis do movimento; 2) há imagens movimento que são cortes móveis da duração; 3) há, por

    fim, imagens-tempo, quer dizer, imagens-duração, imagens-mudança, imagens-

    relação, imagens-volume, para lá do próprio movimento…”25

    CONCLUSÃO

    Consideremos, primeiro, a parte relativa aos objetos e sua transformação dentro do próprio

    cinema. As consequências do pensamento desencadeado por Bergson a respeito do

    movimento real atinge profundamente o cinema, sua estrutura e sentido. Se no primeiro

    cinema, o espaço era euclidiano, onde o que realmente interessava era a boca de cena, ou

    seja, o que se passava em primeiro plano, com a câmera fixa, no cinema contemporâneo, o

    espaço sofre influência completa da revolução pela qual passa o desenvolvimento

    tecnológico. Não apenas quanto ao tema, mas também quanto à forma de movimentar a

    câmera ou como chegar nos objetos: que brilho interessa para a cena; qual é o movimento

                                                                                                                             25  Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009, p27.  

  • 32

    fundante entre todos os objetos que se movimentarão desde o início da cena ao final; como

    estava o ambiente no início do take e como ficará no final. É isso do que resultará o traço

    dramático numa imagem cinematográfica. Então, chegamos a processos básicos de

    transformação do objeto, mas o que determinará cada objeto em cena será a linguagem

    adotada para aquele cinema. Pois podemos ter muito bem muitos filmes de ficção científica

    sobre o futuro, mas será um futuro para cada qual. Os objetos, como cortes imóveis do

    movimento, são responsáveis pelo desencadear de uma ação. São corpos que se misturam

    com o corpo do personagem.

    Não é sem razão que a imagem cinematográfica consegue construir uma camada de

    realidade que não está na imagem, uma atmosfera, com planetas gravitando em torno de

    uma questão. Nesse caso os planetas seriam os próprios personagens, e eles são o segundo

    ponto da conclusão. Eles são a própria imagem-movimento, são de fato cortes móveis da

    duração. Claro, podemos confundir a duração aqui com a duração da cena, mas esse é

    apenas um registro cronológico. Numa experiência de SET cinematográfico, essa duração

    se assemelha mais a quando se está em plena cena, todos os profissionais atentos, rodando a

    cena. A cena acaba, mas o diretor não corta, faz um gesto de manter a mise en scenne em

    curso. Uma boa equipe simplesmente acata a ordem e mantém o curso da cena. Pois é

    justamente ali, no final da cena que se percebe uma duração impensada do movimento.

    Nesse caso, está no espírito da direção o tempo impregnado em cada plano, a expressão de

    cada cena. De como os personagens se apropriaram do espaço, e como compõem suas

    relações com os objetos no espaço. Essa análise é superficial, por se aplicar apenas a mise

    en scene. Mas ela facilmente se estenderia para os outros processos na cadeia de produção

    cinema. Como a montagem que, nesse caso, tem o filme como objeto e espírito, nesse

    momento será pautado pelo montador e não mais pelo diretor, apesar de ele ser o

    responsável pelas imagens. Assim como ao fotógrafo do filme, que corta a luz que o diretor

    propõe, mas é ele que produz as sombras sobre as quais as criaturas aparecem. E assim por

    diante. A imagem-movimento é o que está na imagem e o que contribui para que essa

    imagem exista. Sendo um corte móvel, ela escolhe a forma de devolver o movimento para o

    objeto. É nesse sentido que ela é um corte na duração. No caso do ator, o corte é dado

    dentro da imagem, quando, por exemplo, o personagem decide parar em cena. No caso do

    diretor, o corte no movimento é um duplo corte, porque vai cortar na imagem e na equipe,

    porque seu pensamento está voltado para o todo. Pois é na montagem que se realiza pela

    primeira vez um todo, que até então eram partes. A soma dessas partes não é o todo, na

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    verdade, o todo se expressa pela duração e, para isso, somos obrigados a somar os tempos

    que se deram nas relações. Algo que escapa ao cálculo, mas que sabemos ser uma soma,

    justo por existir nessas relações a produção de um filme.

    Essa é a terceira e última posição da conclusão para a nossa análise dos textos deleuzianos,

    em que ele toma emprestado os conceitos bergsonianos para tentar explicar o fenômeno do

    cinema e suas consequências. O filme é um todo aberto, construído pelas relações de suas

    partes; ele se confunde com a duração por apresentar um tempo próprio, um sentido próprio,

    uma sensação, uma memória. Claro que Bergson não teria como saber onde o cinema

    chegaria. Tão pouco o saberemos nós. O cinema ainda é uma arte muito nova, ao passo que

    sua estrutura é anterior à linguagem, por estar fundamentado no tempo e no espaço,

    anteriores à linguagem. E aqui Deleuze dá a sua última cartada. Sendo um filme um todo

    que dura por ser composto de imagens-movimento entre os objetos que se expressam nesse

    todo, ele é a expressão de uma imagem-tempo. É a expressão que dá ao todo a sua síntese

    categórica, favorecendo, para o cinema, as suas várias linguagens, não importando quem

    começou primeiro a fazer cinema. Basta que se faça, e ele florescerá de acordo com os

    processos subjetivos que nascem junto com sua condição. Significa dizer que o cinema é

    uma tecnologia da ordem da cultura. Como uma ferramenta que pode ser usada para

    reforçar ideias, da forma como essas ideias são apropriadas pela cultura de cada povo.

    É nesse sentido que o cinema pode expressar uma identidade ou servir de destruição de

    alguma. E não é sem razão que também nos vemos colonizados pelos cinemas alheios.

    Podemos expressar isso em termos de linguagem apenas, ou em termos de público. Não

    apenas referindo-nos ao mercado de salas de exibição às tv’s pagas, mas ao povo, que não

    conta sua história, que a perde para um outro. É a partir do conceito de imagem-tempo que

    pode se analisar o cinema mundial em suas linguagens e definir uma cultura

    cinematográfica para cada povo. É o que Deleuze irá realizar em suas reflexões sobre

    Imagem-Movimento e Imagem-Tempo.

    Não sei se o leitor compreendeu ao ponto de dar ao conceito de imagem-movimento apenas

    uma imagem, mais que uma clareza de seu conceito. A pretensão deste trabalho surgiu de

    leituras dos textos que exigiram empenho para entender inclusive o que neles se inscrevem

    nas entrelinhas. Inevitavelmente, esse estado de consciência me instiga, enquanto realizador

    de cinema, a aprofundar na realização do que se compreendeu aqui por movimento. Uma

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    pesquisa que se faz também com a luz.

    REFERÊNCIAS

    Bergson, Henri, Matéria e Memória – Ed. Martins Fontes, 2ª Ed., São Paulo, 1999.

    Bergson, Henri, Evolução Criadora – Ed. Martins Fontes, 1ª Ed., São Paulo, 2005.

    Bergson, Henri, Duração e Simultaneidade – Ed. Martins Fontes, 1ª Ed., São Paulo,

    2006.

    Bergson, Henri, Curso sobre a Filosofia Grega – Ed. Martins Fontes, 1ª Ed., São

    Paulo, 2005.

    Bergson, Henri, Memória e Vida – Ed. Martins Fontes, 1ª Ed., São Paulo, 2006.

    Deleuze, Gilles, A Imagem-Movimento – Ed. Assírio e Alvim, 2ª Ed., Lisboa, 2009.

    Deleuze, Gilles, Bergsonismo – Editora 34, 1ª Ed., São Paulo, 1999.

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    Silva, Franklin Leopoldo e, Bergson, Intuição e discurso filosófico – Ed. Loyola, São

    Paulo, 1994.