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iii UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES HELOISA PISANI O Cheiro do Ralo: a poética de Lourenço Mutarelli e o processo de transposição para o cinema por Heitor Dhalia Dissertação apresentada ao Instituto de Artes, da Universidade Estadual de Campinas, para a obtenção do título de Mestra em Multimeios. ORIENTADOR NUNO CESAR PEREIRA DE ABREU ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA E ORIENTADA PELO PROF.DR. Nuno Cesar Pereira de Abreu CAMPINAS 2012

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

HELOISA PISANI

O Cheiro do Ralo: a poética de Lourenço Mutarelli e o processo de transposição para o cinema por Heitor

Dhalia

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes, da Universidade Estadual de Campinas, para a obtenção do título de Mestra em Multimeios.

ORIENTADOR NUNO CESAR PEREIRA DE ABREU

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA E ORIENTADA PELO PROF.DR.

Nuno Cesar Pereira de Abreu

CAMPINAS 2012

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Agradecimentos

Agradeço, em primeiro lugar, à compreensão, ao imenso apoio e carinho de

meus pais, Lairsse e Mario.

A Gustavo e Guilherme, meus irmãos, Graziele e Lara, queridas cunhadas,

ao casal mais doce, cuja simplicidade semeou tantas flores, histórias e amor em

minha vida, seu Luís e dona Cida, meus avós, a Samuel e Laudineia, meus

sempre presentes tios, pelo incentivo e paciência por minhas tantas ausências.

Ao meu orientador Nuno Abreu, que me fez admitir meus próprios

questionamentos.

À disponibilidade e grande colaboração da banca formada por Fernando

Passos e Vania Cerri.

À generosidade e às criações de Lourenço Mutarelli.

Rodrigo Gomes Lobo, pela amizade infinita, pelas leituras atentas e

conversas sempre acompanhadas por discussões existenciais, trocas de

referências das mais diversas e piadas esdrúxulas.

Marília Mello Pisani, minha prima-irmã-mestre-ídola, referência que me

ajuda a seguir pelas ciências humanas e questionar a vida em seus pontos cada

vez mais essenciais.

Morena Madureira, Kátia Pensa Barelli, Breno Pensa Barelli, Pérola

Lozano, pela profunda amizade, pelas longas e eternas conversas, pelos

encontros, por me fazerem crer na felicidade. Ao pequeno Joaquim, fruto da

existência do amor.

A Antonio Martinelli, interlocutor responsável por referências determinantes

em meu caminho e por descobertas sempre em processo.

Rodrigo Eloi, que me abre os pensamentos e o sorriso todos os dias e

instantes.

À amiga Fernanda Gonçalves, pelo companheirismo e tanto mais.

Cayo Honorato, pelo amadurecimento e disciplina, por ter me colocado em

frente ao espelho.

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Ludmilla Rubinger, pela simples existência que se aprofunda a cada

encontro.

Gabriela Lopes Ventola, Maria Luiza Reigota, Maira Mifano Sasso, Ana

Maria Masson Furlan pela amizade, risadas e colos.

À colaboração e disponibilidade de Monica Palazzo, Wenceslao Oliveira

Junior, Paulo Franchetti, Luciano Dutra, Helio Salles Gentil e Guta Carvalho.

Gustavo Torrezan, artista, amigo e profissional tão dedicado, por quem

tenho grande admiração, pelas leituras iniciais e disponibilidade.

Aos companheiros que me aturaram durante esse período de estudos,

crises, escritas, durante os quais, no entanto, continuamos compartilhando tantas

risadas: Rafael Montorfano, Thiago Freire, Wagner Palazzi, Simone Wicca, Regina

Marques, Melina Izar Marson, Mauricio Ricci, Luana Ligeiro Greve.

Aos amigos Juliano Almeida, Bruno Guerra, Diego Bravo, Rodrigo Bulamah

e Benjamin Parton.

À interlocução poética e cinematográfica de Cesar Rodrigues.

Ao Sesc, por ter concedido uma bolsa de estudos que me possibilitou

frequentar aulas e encontros acadêmicos mesmo a trabalho. A Elisa Maria

Americano Saintive, Ilona Hertel e Denise Mariano pelo apoio.

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“Vem aí um delírio, se o leitor não for dado à contemplação destes

fenômenos mentais, pode saltar o escrito”

(Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas).

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Resumo

Este trabalho se constitui por uma leitura da obra de Lourenço Mutarelli em seu

percurso das histórias em quadrinhos até a literatura em busca de uma poética do

autor. A transposição de seu primeiro livro, O Cheiro do Ralo, para o cinema, pelo

diretor Heitor Dhalia, é analisada de forma a levantar questões narrativas próprias

aos dois meios (contrapondo-os ao mesmo tempo em que os aproxima) e à

criação dos dois artistas.

Abstract This study is comprised of a reading of the work of Lourenço Mutarelli from its

precursor in comics to literature in search of the poetics of the author. The

transposition of his first book, Drain's Smell, to cinema, by the director Heitor

Dhalia, is analyzed in order to raise specific issues about the two media narratives

(opposing them at the same time as it brings them closer) and to the work/creation

of those two artists.

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SUMÁRIO

ABERTURA ...................................................................................... p. 1

LITERATURA E CINEMA: APROXIMAÇÕES ................................. p. 6

LOURENÇO MUTARELLI ................................................................ p. 10

Quadrinhos ............................................................................ p. 11

Literatura ............................................................................... p. 26

A poética do autor ................................................................. p. 31

O muito, o complexo ............................................................. p. 37

O humor, a paródia, a ironia ................................................. p. 39

O vazio .................................................................................. p. 40

O transcendental, a magia, os distúrbios psicológicos ......... p. 46

O Cheiro do Ralo, livro .......................................................... p. 52

HEITOR DHALIA ............................................................................. p. 66

O Cheiro do Ralo, filme ........................................................ p. 70

A Direção .............................................................................. p. 76

Direção de Arte...................................................................... p. 79

Direção de Arte em O Cheiro do Ralo .................................. p. 83

Sequência de abertura ......................................................... p. 86

Fachada da loja .................................................................... p. 88

Composição da loja .............................................................. p. 91

Externas/ Fachadas/ Cidade ................................................ p. 101

Lanchonete ........................................................................... p. 105

Figurinos ............................................................................... p. 106

Sequências ........................................................................... p. 111

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TRANSCRIAÇÕES DE CENA LIVRO-FILME ................................. p. 116

A compra do olho .................................................................. p. 116

• Livro ......................................................................... p. 116

• Filme ........................................................................ p. 118

Cliente que oferece caneta de ouro ...................................... p. 122

• Livro ......................................................................... p. 122

• Filme ........................................................................ p. 124

Última parte/ Sequência final ................................................ p. 125

• Livro ......................................................................... p. 125

• Filme ........................................................................ p. 128

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................ p. 131

REFERÊNCIAS FÍLMICAS ............................................................. p. 134

SITES .............................................................................................. p. 134

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ABERTURA

Cinema. Literatura. Espaço.

Este trabalho se deve ao entrecruzamento de muitas ideias e interesses

pelos quais circulei principalmente a partir de 2008 – mas que, obviamente, foram

sendo desenvolvidos durante toda minha formação.

Trabalhar em uma instituição cultural com a elaboração de uma

programação na área de literatura e cinema me fez refletir continuamente sobre as

possíveis formas de aproximação com as obras e artistas que eu, no papel de

curadora, considerava interessante propor.

Pensar a formação de público para esses campos, a meu ver, envolve

necessariamente o encontro não apenas com a obra em si, mas também com

quem a produz.

Uma programação cultural em literatura que pense não apenas o estímulo à

leitura, mas também sua produção pode ser proposta pela criação de acesso ao

livro (bibliotecas e espaços de leitura), que conforma a leitura íntima, individual, e

também pelo seu compartilhamento por meio de encontros com autores,

pesquisadores e amantes das letras.

Para divulgar a produção atual e discutir o que se passava no universo dos

escritores, tomei como prioridade a realização de atividades com a presença de

autores contemporâneos, que apresentavam não apenas seu trabalho, mas

também um pouco de seu processo de criação, além de referências que serviram

de base para sua formação, leituras e outras discussões pertinentes.

O fluxo criado por esses encontros permite trocas múltiplas, tal como

aconteceu durante os anos em que acompanhei diferentes atividades e processos,

principalmente na área de literatura. Rodas de Leituras, oficinas de escrita literária,

homenagem a autores com a apresentação de trabalhos derivados de suas obras

em diferentes linguagens, entre outros projetos, suscitaram o encontro entre

pessoas de origens bastante diversas mas com algum interesse em comum.

Dessas vivências surgiram rodas em bares, saraus, outros eventos literários para

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fora dos muros da instituição em que trabalho, uma revista eletrônica com a

colaboração de diversos participantes dessas atividades, além da mudança de

perspectivas pessoais e profissionais para alguns de seus frequentadores. Os

grupos e as pessoas criaram sua autonomia em relação ao que era proposto

nesse espaço.

Aí está a dimensão da arte, do encontro e o sentido que entendo haver não

apenas em minha profissão, mas também neste estar no mundo. Aquela reflexão,

que desde o início de meu trabalho como programadora me acompanhava, sobre

os porquês de meu interesse pela leitura e pela sétima arte desde a infância,

sobre o que poderia me atrair e a outras pessoas para atividades culturais nessas

áreas, sobre a estrutura primeira de que derivam os trabalhos em cada suporte,

em cada linguagem, acabaram me mostrando que a práxis existe e faz sentido

quando, para além da teoria, tornamos possível – e muitas vezes de forma ainda

oculta – a presença desses questionamentos na atividade concreta, no encontro

com as obras, mas, principalmente, com o humano (ou mesmo com o Humano).

Foi nessa busca por referências que me dessem base para a discussão e

proposição que cheguei ao trabalho de Beatriz Resende, crítica literária e

Professora Titular de Poética do Departamento de Ciência da Literatura da

Faculdade de Letras da UFRJ. Contemporâneos – expressões da literatura

brasileira no século XXI me aproximou de alguns dos temas e tensões presentes

no trabalho de escritores recentes. Essas características acompanham não

apenas a produção literária, mas também todo o movimento artístico, político e

cultural de seu tempo, já que nenhuma dimensão da vida se dissocia.

O desafio, então, seria o de (re)conhecer, principalmente, o que estava

sendo feito no presente – sem desconsiderar, é claro, a importância irrefutável de

obras e autores já consagrados.

Ao procurar estabelecer um diálogo que aproximasse as dimensões desse

movimento entre trabalho-emprego e trabalho-estudo, desenvolvi uma proposta de

pesquisa para o mestrado, cujo resultado apresento aqui.

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Pensar o contemporâneo é pensar o atual. Lançar o olhar para o momento

em que estamos nós próprios inseridos é um desafio grande. Para realizar uma

aproximação dessas questões que nos envolvem, que nos rodeiam, mas que, de

tão próximas, por vezes se escamoteiam, se fazem invisíveis, proponho uma

análise da obra de Lourenço Mutarelli, multiartista que atualmente se entende

enquanto escritor e que tem publicado uma média de um livro por ano.

Seu trabalho é criado em estreita relação com o espaço urbano e também

com a experiência proporcionada pela sétima arte – para a qual os direitos de

todos os seus livros já foram vendidos.

A literatura de Lourenço Mutarelli apresenta características que

estabelecem uma grande proximidade com o cinema. Não à toa, seu primeiro livro

teve os direitos de filmagem vendidos cerca de dois meses após a publicação.

A presença de suas obras na produção audiovisual instiga a busca por

elementos comuns à produção brasileira contemporânea nesses dois campos.

Entre 2002, quando lançou seu primeiro romance, e 2011, foram seis livros

publicados e todos eles transitam pelo universo do cinema.

O foco de minha leitura, no entanto, se dá, mais atentamente, sobre seu

primeiro livro, O Cheiro do Ralo, e o filme homônimo a que deu origem, dirigido

por Heitor Dhalia.

Procuro, com isso, abordar questões narrativas, de composição, técnicas e

poéticas que permeiam os dois campos (cinema e literatura) e entender em que

ponto essas obras se aproximam ou se distanciam no trabalho dos dois criadores.

A análise do trabalho de Mutarelli busca encontrar características que o

acompanham desde suas primeiras produções, assim como pontos que se

desenvolveram e se alteraram ao longo de sua trajetória como quadrinhista e

escritor.

O esmiuçamento de suas obras acontece de forma a tentar evidenciar a

poética do autor, entendida, aqui, como as características específicas de seu

conjunto de obras que articulam uma proposição de experiência estética.

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Essas características não dizem respeito, em geral, àquilo que está exposto

apenas denotativamente (a partir de temas, por exemplo), mas também de sua

forma de estruturação (suporte, elementos, composição, entre outras tensões).

São essas similaridades entre os diferentes trabalhos de um autor que

conformam seu estilo em um “programa de arte” (PAREYSON, 1997),

normalmente em consonância com o seu tempo, sua época, ou seja, sua

realidade. De acordo com Luigi Pareyson:

uma poética é eficaz somente se adere à espiritualidade do artista e traduz seu gosto em termos normativos e operativos, o que explica como uma poética está ligada ao seu tempo, pois somente nele se realiza aquela aderência e, por isso, se opera aquela eficácia (idem, p.18).

A obra de Lourenço Mutarelli chama a atenção pelo sucesso de público, por

sua circulação e permanência entre outras artes da contemporaneidade, mas,

principalmente, por conformar um estilo tão marcado e tão próprio ao autor.

Na segunda parte deste trabalho, realizo uma breve análise de dois dos

três primeiros longas de Heitor Dhalia, Nina (2004) e À Deriva (2009), seguida por

uma leitura mais longa e mais atenta de seu segundo filme, O Cheiro do Ralo

(2007), baseado no livro de Mutarelli.

Inicio o trecho dedicado ao trabalho audiovisual em questão com uma

leitura sobre a construção do discurso fílmico a partir da direção (que engloba

desde acertos de roteiro, direção de arte, assim como fotografia, enquadramentos

e movimentos de câmera, atuação, edição e montagem, ou seja, o filme como

uma obra, um todo). Em seguida, analiso mais detalhadamente sua relação com a

construção da materialidade concreta do set de filmagem (cenários, objetos de

cena, figurinos, maquiagem) por meio do trabalho de direção de arte, que se

constitui como uma das ferramentas que Heitor Dhalia utiliza de forma mais

enfática.

A interpretação da obra de arte é infinita e nunca definitiva, não havendo,

portanto, processo de interpretação que se possa dizer acabado. Dessa forma,

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este trabalho se pretende como uma leitura que se conforma transitória,

inacabada, articulada por um emaranhado de referências e reflexões que não

existiriam sem uma subjetividade implicada. Contudo, sempre procurei empenhar

meu próprio gosto apenas como via de acesso à obra, nunca como critério de

juízo.

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LITERATURA E CINEMA: APROXIMAÇÕES

Atualmente, no Brasil, é bastante evidente a frequência com que as obras

literárias contemporâneas têm sido transpostas para o cinema, o que denota uma

proximidade entre as questões emergentes nos dois campos.

A palavra escrita e as imagens em movimento têm estabelecido relações

estreitas e se influenciado mutuamente desde seu surgimento. A convergência de

linguagens e suportes tem sugerido a imersão de algumas indexações e

rotulações. Mario de Andrade já criara, na década de 1920, um romance

cinematográfico, ou, como definiu ele próprio em carta a Sérgio Milliet, (2 de

agosto de 1923): “Um romance. Cinematográfico” (apud AVELLAR, 2007, p.60).

Tratava-se de Amar, verbo intransitivo, obra cujos personagens circulavam pelas

sessões do Cine República, mas que não trazia a sétima arte apenas como

citação, fazia-se ela própria dos recursos de montagem: “Fragmentada e de ritmo

ágil, partida num sem-número de planos, a narrativa corre quase sem pausas, e

aqui e ali um capítulo dura só três palavras: Mamãe! Olhe Carlos!” (idem, p. 61).

Precedendo o autor modernista, Machado de Assis já havia proposto, mais

de quatro décadas antes, em 1880, um outro modo narrativo. Em Memórias

Póstumas de Brás Cubas, o defunto autor inicia suas memórias pelo fim, por sua

morte. Coloca-se como um espectador de sua própria vida para dizer que,

enquanto vivo, não viveu realmente.

Brás Cubas se comunica diretamente com o leitor, justifica-se, realiza

cortes na história, propõe desvios, reordena fatos de modo não linear. Machado

criou cinema antes mesmo do surgimento da sétima arte.

Não apenas o teatro ou a literatura influenciou o cinema (e vice-versa) ou a

fotografia reinventou a pintura. A alteração dos modos de produção, a

urbanização, o surgimento da imagem em movimento e suas formas de edição e

transformação narrativa, as novas composições musicais, tudo conforma a

vivência humana no mundo e se inter-relaciona, alterando-se reciprocamente.

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Em Cinematógrafo de Letras (2006), Flora Süssekind analisa a influência

da modernização no Brasil sobre as obras literárias da época. As alterações

daquela sociedade, entre as quais o crescimento da imprensa e a urbanização,

tornaram-se temas, mas também passaram a fazer parte da estrutura e do estilo

da escrita de diferentes autores, cujas interpretações e aproximações dessa

realidade se opunham – tal como em João do Rio e Olavo Bilac. Não à toa, o

gênero que se proliferou nessa época foi a crônica, em estreita relação com a

cidade e a política.

Assim também ocorre hoje. No decorrer do desenvolvimento das diferentes

formas narrativas e suportes de expressão, a percepção da realidade se altera em

um movimento contínuo.

Em Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI

(2008), Beatriz Resende apresenta o que aqui vem sendo escrito entre os anos

1990 e início dos anos 2000 como trabalhos caracterizados pela “fertilidade,

multiplicidade e qualidade”. O pluralismo estaria presente por meio das diferentes

vozes que se manifestam atualmente.

Entre as características recorrentes da produção editorial recente estariam

a presentificação, em forma de temas urgentes, de um presente dominante “no

momento de descrença nas utopias que remetiam ao futuro, tão ao gosto

modernista” (p.27) - que se opõe ao historicismo que servia como base dos

romances até há pouco tempo -, de vozes que se assumem (tal como o crescente

movimento da literatura periférica), das novas formas de edição possibilitadas em

grande parte pela popularização das redes e pela criação de múltiplas editoras.

A presentificação, segundo a autora, também poderia ser reconhecida em

outras artes, como no teatro e nas artes visuais, por meio do crescente

desenvolvimento da performance e de instalações site-specific, que trabalham a

partir da efemeridade.

O retorno do trágico, outra característica que Beatriz Resende aponta em

sua análise, estaria relacionado à unidade de assunto, tempo e espaço. Na

criação de forte sentimento trágico (que, de acordo com ela, apareceria na prosa

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atual), a força recairia sobre o presente. Ela relembra que, de todos os gêneros da

poética clássica aristotélica, o que se realiza sempre no presente é o trágico.

O trágico estabelece um efeito peculiar com o indivíduo, supera-o e traça uma relação direta com o destino. Trágico e tragédia são termos que se incorporaram aos comentários sobre nossa vida cotidiana, especialmente quando falamos da vida nas grandes cidades (p.30).

O fragmentário na narrativa, o humor e ironia sutis impediriam que essas

obras se tornassem apenas relatos do “mundo cão”.

Dentro dessas características apresentadas, emergeria como um dos

temas mais evidentes da literatura brasileira contemporânea a violência das

grandes cidades. Ela é centro de obras como Cidade de Deus, de Paulo Lins, O

Invasor, de Marçal Aquino, O matador, de Patrícia Mello. Todos esses livros (e

poderiam ser citados muitos mais) foram transpostos para o cinema.

A aproximação de obras de nossa literatura contemporânea com o cinema

sugere temas e formas narrativas comuns aos dois campos. Parte desse trabalho

de transcriação, no entanto, transforma a localização e abordagem do texto em

experiência estética diversa, tal como fez Fernando Meirelles ao “estetizar” a fome

(como cunhou Ivana Bentes).

A criação de imagens poéticas produz sensações estéticas que nos

possibilitam outras vivências. Não seria, então, necessário o compartilhamento da

experiência no mundo real para que o leitor a vivesse por meio da imagem

poética. Segundo Bachelard (2008), trata-se de passar fenomenologicamente para

imagens não vividas, imagens que a vida não prepara, mas que o poeta cria.

Mesmo quando tratam de um mundo fantasioso, essas imagens

proporcionam ao público uma sensação estética real, mesmo que essa realidade

se refira apenas à obra em si. A “estetização” realizada por alguns diretores

proporia, então, uma outra experiência.

Neste texto, analiso a obra de Lourenço Mutarelli, a fim de identificar temas

e modos narrativos comuns ao longo de seus diferentes trabalhos, e os

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procedimentos empregados pelo diretor Heitor Dhalia ao recriar, para o cinema, a

primeira obra literária daquele autor, O Cheiro do Ralo, na qual, como procuro

expor adiante, fazem-se presentes muitos elementos comuns ao que Beatriz

Resende apresenta como característica de nossa produção recente no campo da

literatura.

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LOURENÇO MUTARELLI

Lourenço Mutarelli se graduou em Educação Artística na Faculdade de

Belas Artes (de São Paulo). A princípio interessado pela pintura, sentia

necessidade de escrever palavras em seus quadros.

Iniciou sua carreira como ilustrador e passou a trabalhar nos filmes da

Turma da Mônica. Foi na gibiteca disponibilizada aos funcionários do escritório de

Mauricio de Souza que teve maior contato com obras de graphic novel

contemporâneas, que despertaram seu interesse por essa forma narrativa. A partir

daí, começou a criar seus próprios quadrinhos.

Seu trabalho autoral foi primeiramente publicado de forma independente em

fanzines durante a década de 80 (Over-12 foi o primeiro deles) e, posteriormente,

em revistas e coletâneas de HQs (como a Animal, a Tralha e a Heavy Metal).

Tratavam-se de histórias mais curtas até o lançamento de Transubstanciação, de

1991, pela editora Dealer, uma narrativa mais longa que foi considerada um

divisor de águas em sua trajetória e que lhe rendeu os prêmios de melhor história

do biênio, concedido pelo júri da Primeira Bienal Internacional de Quadrinhos,

realizada no Rio de Janeiro em 1991, Prêmio Ângelo Agostini da AQC –

Associação dos Quadrinhistas e Cartunistas (SP) e troféu HQ MIX. Depois,

publicou Desgraçados (1993, Editora Vidente), Eu te amo Lucimar (1994, Vortex)

e A Confluência da Forquilha (1997, Editora Lilás). Todos eles receberam o HQ

MIX.

A partir daí, ganhou espaço na Devir Livraria, que publicou Sequelas (1998,

também vencedor do HQ MIX), O Dobro de Cinco (1999, Prêmio HQ MIX e Ângelo

Agostini), O Rei do Ponto (2000, Prêmios HQ MIX como melhor desenhista

nacional e melhor álbum de ficção, além de ser premiado no 11o Festival de

Amadora, em Portugal), Transubstanciação (2a edição de 2001), A Soma de Tudo

(Partes 1 e 2, ambas de 2001), Mundo Pet (2004) e A Caixa de Areia (2006),

assim como alguns de seus primeiros trabalhos em literatura e teatro – cujos

direitos em parte foram posteriormente comprados pela Companhia das Letras.

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Desde sua ida para a literatura, Mutarelli lançou seis romances: O Cheiro

do Ralo (Devir, 2002, Companhia das Letras, 2011) , Jesus Kid (2004), Natimorto

(Devir, 2004, Companhia das Letras, 2009), A Arte de produzir efeito sem causa

(2008, terceiro lugar no Prêmio Portugal Telecom), Miguel e os demônios (2009) e

Nada me faltará (2010).

Depois disso, por pressão da nova editora para que retornasse aos

quadrinhos, criou Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente

(2011). Apesar de a obra ter sido solicitada como tal, se constitui mais como uma

história ilustrada do que como uma novela gráfica, que se compõe com desenhos

sequenciais.

Cada página contém apenas uma imagem e o texto não combina

necessariamente com a ilustração. Mutarelli trabalha a partir da fragmentação e

faz uso de cortes costumeiramente utilizados em técnicas de edição do cinema

que propõem a ordenação dos fatos pelo espectador/leitor.

Ao lançar o olhar para sua obra como um todo, é possível reconhecer que

já as primeiras produções do quadrinhista apresentam algumas características

que a acompanham até os dias de hoje.

Quadrinhos Entre algumas de suas principais obras gráficas está Sequelas (1998), uma

coletânea que reúne parte do trabalho que o quadrinhista realizou em dez anos de

trajetória profissional. O material permite acompanhar o desenvolvimento de sua

obra autoral, cujas primeiras criações aconteceram em 1988 com sua auto

publicação em fanzines, e de sua carreira, tendo em vista que nesse álbum estão

reunidas histórias que foram editadas de forma independente, publicadas em

coletâneas e, outras, em revistas de circulação nacional.

Mutarelli separou sua produção em capítulos de acordo com diferentes

classificações (por período de produção, características estéticas ou temáticas e

meios nas quais foram publicadas). O capítulo um é dedicado às primeiras

histórias em que ainda não havia um maior cuidado estético (plástico e narrativo).

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Nos demais estão uma segunda fase de sua produção (que mostra um trabalho

mais minucioso), três versões para o mesmo argumento (sobre “O Nada”), as

(poucas) histórias em parceria, ilustrações para RPG e histórias avulsas criadas

após Transubstanciação.

A publicação é permeada por comentários em que ele próprio faz algumas

análises sobre os trabalhos e observações sobre o momento de sua criação.

Existem, ainda, no decorrer do álbum, alguns desenhos de criança, que analisa a

partir de sua formação e de sua relação com a família.

A abertura de Sequelas, como um prólogo, diz: “Alguém me disse que

antigamente o nanquim era extraído do polvo. Me parece que o polvo desprendia

sua tinta quando sentia-se ameaçado. Creio que quando desenhe eu devolva ao

nanquim sua função primitiva. Eu sou como o polvo”.

No desenho, um ilustrador, enquanto fuma, trabalha à mesa. Desenha algo

próximo à imagem de Cristo crucificado com Maria ajoelhada a seus pés (o que,

posteriormente, ao longo da obra, descobrimos ser um desenho feito pelo autor

em sua infância). Temos sua visão lateral esquerda, quase de costas, posição da

qual ele também nos olha, sem virar a cabeça, apenas com os olhos. Por sobre a

prancha, um maço de Marlboro, isqueiro, cinzeiro, xícara de café, rádio, luminária,

caixa de giz, papeis, borracha, apontador, ficha de orelhão, rolo de papel

higiênico, régua, esquadro, corretivo, fluido para isqueiro, um porta-lápis-canetas-

escova-abridor de envelopes-tesoura-colher, vários organizadores de CDs em que

se podem ver nomes como Elomar e Carlos Gardel, no mural à parede, pequenos

papeis, pôster ou foto com imagem de uma mulher, outro de um carro.

A gaveta ao seu lado esquerdo está aberta. Podemos ver mais do que

detalhadamente a textura da madeira de sua cadeira. O centro da mesa é

iluminado. Nas demais áreas, um denso tracejar cria o sombreamento e o forte

contraste da imagem. A mesa, a parede, a moldura da janela, assim como os

demais objetos e imagens dispostas ao seu redor são formados e cobertos por

muitos traços paralelos. Sua roupa também. Sua pele, ainda que na área clareada

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pela luminária, ganha texturização e idade pelas muitas marcas nos braços

magros, rosto e pescoço.

Imagem 1 – auto-retrato para abertura de Seqüelas

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Assim Mutarelli se apresenta ao leitor (Imagem 1). Seu trabalho é marcado

por uma aparente aproximação com sua vida pessoal. Alguns de seus

personagens se parecem com reflexos seus. No caso dos desenhos, é clara a

semelhança física. Como personalidade, é possível verificar a proximidade entre

criador e criatura por alguns hábitos e fatos de sua vida que recorrentemente

aparecem nas histórias.

No final daquele mesmo álbum, a foto do autor: por sua diagonal esquerda,

quase de costas, vemos Lourenço Mutarelli trabalhando à mesa. A foto em preto e

branco nos deixa ver sua sala de trabalho com os mesmos elementos

apresentados na ilustração da abertura de Sequelas, mas com maior distância e

de forma muito mais organizada, limpa. O contraste entre a área iluminada e a

sombra é tão grande que mal se pode distinguir suas mãos sobre o papel, assim

como não se vê o que desenha. Mutarelli não nos olha (Imagem 2).

O enfrentamento entre as duas imagens, foto e sua recriação pelo desenho

do autor, deixa clara a interpretação que faz da imagem e, consequentemente, de

sua realidade próxima, e a subjetividade implicada ali como em suas demais

criações. Mutarelli transforma a vida aparentemente banal em acontecimento não-

usual ou fantástico. Expõe, por seus desenhos, sua visão de mundo, produz

distorções em contextos cotidianos – ponto que se pode verificar ao analisar sua

literatura.

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Imagem 2 – foto de Lourenço Mutarelli no final de Sequelas.

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Entre os personagens de sua produção inicial como quadrinhista (1987-

1988), concentrados no Capítulo I de Sequelas, um garoto que escreve poemas

distribuídos em balas e que é despedido, resolve cometer suicídio cheirando e

bebendo cola de sapateiro e que, assim, se transforma ironicamente em um hiper-

herói baixinho, sem poder algum. Um piloto de avião que sai à procura de seu

ídolo, O Pequeno Príncipe, e acaba sem combustível, sofre um acidente, perde os

dentes e outras partes do corpo e encontra o que procurava: o menino vindo do

asteróide Paraíba, o pequeno príncipe chamado Sivirino. Uma mulher que, de

tanto mexer no próprio umbigo, desfaz seu nó e espalha suas tripas pelas ruas do

Rio de Janeiro ouvindo a voz de deus sentenciar que “agora é tarde”. Um super-

herói (paródia do Batman) que vem à Terra para ajudar uma mãe incomodada a

se desfazer dos vestígios do filho que se suicidou.

As primeiras histórias têm traços mais leves, tratam-se de composições

menos carregadas, mais limpas, com menos elementos. Mutarelli ainda não

parece se ater à profundidade dos quadros (que se tornará algo marcante em

suas histórias), apesar de algumas produções desse período trazerem essa

característica (como Piegas City, já de 1988).

Logo nesses primeiros trabalhos, o autor faz uso do recurso “recordatório”,

em que insere nos quadros, mas fora dos balões, uma espécie de narração da

história. Algumas vezes ela é feita em primeira pessoa pelo protagonista (como

em Solidão ou O Pequeno Príncipe, ambas de 1987), em outras, em terceira

pessoa (como nas três versões de O Nada, de 1988, 1989 e 1994).

Mas logo seus desenhos ganham pontilhados e muitas linhas, paralelas ou

convergentes, se tornam mais sujos, mais pesados, sem ainda chegar ao que se

tornaria seu trabalho em A Love Story de Amor, Resignação, cordel urbano

(ambas presentes na coletânea) ou Transubstanciação, por exemplo, em que os

protagonistas são criaturas completamente deformadas.

Transubstanciação (1991) é considerado um “divisor de águas”, produção

em que Mutarelli encontrou (e assumiu) seu estilo gráfico e narrativo. Foi a partir

desse trabalho que ele começou a se dedicar a histórias mais longas, que não

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dependessem de uma revista para publicação, o que lhe abriu também as portas

para o mercado editorial. Tal como seus futuros trabalhos, essa primeira obra narrativa mais

desenvolvida (e mais longa) já se divide em capítulos não necessariamente

sequenciais. Desde cedo Mutarelli nos apresenta uma história com a qual nos

relacionamos de maneira semelhante à proposta por outras formas narrativas,

como o cinema ou a literatura moderna (influenciada, ela também, pela sétima

arte). Ele faz uso de diferentes enquadramentos e sequencialidades. Há diversas

cenas intercaladas, suspensões temporais, ambientações em que o protagonista,

que até então ainda não nos foi apresentado, apenas permanece em cena.

Acompanhamos seus pensamentos, a ação da chama de uma vela e o tango de

Carlos Gardel tocando na vitrola. Ele está imóvel (Imagem 3). Recebemos informações visuais, narrativas, mas também imagens sonoras

propostas nas composições de seus desenhos e palavras.

O segundo capítulo é aberto com uma cena externa, em que o personagem

é interpelado por um pedinte que o questiona sobre deus e o capitalismo. Thiago

acorda do sonho na casa de sua amante.

Mutarelli constrói e desconstrói as cenas. Acompanhamos os

acontecimentos por uma outra lógica. Somos apresentados a um ambiente que,

em seguida, é suprimido. Essas localizações servem não apenas para introduzir

os leitores no pano de fundo em que a história ocorre, em seu cenário, mas

também em uma espécie de frequência em que a obra vibra.

Daquela casa, Thiago segue para a sua própria. Aos poucos, por meio dos

diálogos, recebemos mais informações sobre sua origem, seu passado recente e

suas intenções. Ele acaba de sair da cadeia, onde passou os últimos oito anos por

ter assassinado o próprio pai, um ser bizarro possuidor de quatro braços, que era

explorado pelo circo. Thiago alega tê-lo matado para seu próprio bem. Os

indivíduos não mereceriam a dor e a humilhação de uma existência tão cruel. Ele

sai da prisão com o objetivo de procurar pela mulher que dizia amá-lo para que ela

o mate – o que seria uma prova de seu amor.

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Imagem 3 – Transubstanciação (p. 9).

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O personagem inverte a lógica predominante, relacionando o amor e o bem

desejado a alguém à supressão da vida. A morte seria a única saída para tantas

mazelas e sofrimentos.

A predominância desse ambiente está nas imagens do livro. A ideia de

suicídio, da prostituição, da miséria, de uma vida decadente, da violência e da

religiosidade (sempre evidenciada como contraditória), está presente de forma

intensa nos desenhos (Imagem 4).

No final da década de 90, quando o autor sobrevivia fazendo ilustrações

para RPG, seu interesse pelo romance policial (que lia desde a adolescência),

aliado à vontade de criar aventuras nos quadrinhos, impulsionou a criação da

trilogia sobre o detetive Diomedes. Formada por O Dobro de Cinco (1999), O Rei

do Ponto (2000) e A Soma de Tudo (partes 1 e 2, ambas de 2001, reeditadas em

volume único em julho de 2012 pela Companhia das Letras), a obra constitui mais

um marco na trajetória de Lourenço como quadrinhista por conformar um outro

modo narrativo.

É perceptível o amadurecimento do autor nesses trabalhos. Mutarelli

desenvolve uma trama policial mais complexa, em que acompanhamos a

aventuras (ou desventuras) de Diomedes, um policial aposentado, detetive

fracassado, que nunca desvendou um caso sequer. Ele é baixinho, gordo, careca,

seus traços são deformados, sua mulher o trai com o rapaz que conserta a

televisão de sua casa. Seu caráter é bastante duvidável. Apesar disso, como os

demais personagens do autor, ele causa empatia com o leitor. Trata-se de uma

espécie de anti-herói, que faz tudo errado, mas que possui um apelo cômico e

suas razões próprias para agir do modo como age.

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Imagem 4 – Transubstanciação (p.31).

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No primeiro volume, O Dobro de Cinco, ele é procurado por Hermes, um

homem que solicita sua ajuda para encontrar Enigmo, um antigo mágico

desaparecido. A partir daí, Diomedes entra no universo do circo, de personagens

bizarros e decadentes, ouve seu infeliz destino pelo tarô da travesti Melissa.

Depois de o protagonista passar por diversas situações complicadas, o livro

termina sem resolução. O volume seguinte, O Rei do Ponto, dá continuidade à

história. Dessa vez, um ano após os acontecimentos de O Dobro de Cinco, ele

recebe Germano Cale em seu escritório. O investigador possui provas de que

Diomedes tenha matado o domador de leões Lorenzo e o chantageia para que

colabore com a resolução de um outro caso: um assassino em série cujas vitimas

são sempre casais que parecem ter se suicidado tomando veneno para rato.

Lourenço trabalha de forma bastante minuciosa o enquadramento e a luz

das cenas. A sequência de imagens gera uma forma narrativa e movimentos

semelhantes aos do cinema. Mutarelli acelera ou arrasta as cenas, criando um

ritmo diferente de acordo com cada acontecimento. Na Imagem 5, por exemplo,

torna-se mais evidente o quão patético Diomedes é pela passagem em que

Germano Cale joga uma garrafa, que gira lentamente no ar enquanto o detetive a

acompanha com o olhar até que ela atinja sua cabeça. A cena acontece em slow

motion.

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Imagem 5 – O Rei do Ponto (p.19).

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Além de moldar o tempo de acordo com cada situação, o autor insere

trilhas sonoras em alguns trechos de seus quadrinhos, tais como a música de Tom

Zé e José Miguel Wisnik (Imagem 6), que, para quem a conhece, imprime

velocidade à cena, ou uma cantiga popular (Imagem 7), que confere ironia à

composição. Conseguimos acompanhar as ações dos personagens e elementos

desse suspense por um cenário urbano e realista, criado em um clima sufocante,

tal qual nos filmes noir.

Cada quadro apresenta uma composição rica em detalhes.

A terceira parte da trilogia, A Soma de Tudo, lança Diomedes para uma

aventura intercontinental. Sua viagem para Amadora, em Portugal, foi

impulsionada pela participação de Mutarelli em um festival naquela cidade. Os

dois volumes que compõem estes últimos momentos do policial estão esgotados

e, assim como O Dobro de Cinco e O Rei do Ponto, relançados pela Companhia

das Letras em 2012 com o titulo de Diomedes: A trilogia do acidente.

A trilogia, que teve um bom número de venda, foi influenciada pelos

desenhos do francês Tardi, do italiano Lorenzo Mattotti, o filme Pulp Fiction, de

Quentin Tarantino, e a descoberta do Tarô (que posteriormente estaria em outros

trabalhos seus na literatura, como O Natimorto).

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Imagem 6 – O Rei do Ponto (p.87).

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Imagem 7 – O Rei do Ponto (p.97).

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Literatura

Mutarelli diz que, em 2002, estava saturado de imagens. Foi durante um

feriado de carnaval, em que sua mulher e filho viajaram, que surgiu a ideia de O

Cheiro do Ralo. O texto, que ele não sabia se era exatamente um livro, foi escrito

em cinco dias, corrigido em dez e enviado para a Devir, editora que publicava

seus quadrinhos na época. A princípio não houve interesse em lançar o romance,

pois acreditava-se que seu público era apenas para as HQs.

Em uma visita a Arnaldo Antunes, Lourenço lhe entregou uma cópia do

texto. Dias depois, o compositor enviou um e-mail elogiando o trabalho. Sua

editora, então, aceitou publicar a obra com um desenho do quadrinhista como

capa e com o texto de Antunes na quarta capa – o que lhe daria credibilidade.

Segundo o autor, graças aos escritores Marçal Aquino e Marcelino Freire, o

livro foi descoberto em pouquíssimo tempo. Menos de um mês após seu

lançamento, os direitos para filmagem haviam sido vendidos.

Depois disso, sua vida mudou. Começaram a aparecer inúmeras

encomendas de textos, principalmente para o teatro (gênero a que se dedica,

como leitor, desde a adolescência).

O diretor Heitor Dhalia, que havia comprado os direitos de O Cheiro do

Ralo, estava na pré-produção de seu primeiro longa-metragem, Nina (2004), e

pediu que Lourenço fizesse as ilustrações e animações para o filme.

Para o longa feito a partir de sua primeira obra, o autor foi convidado a

atuar como o segurança da loja.

A partir daí, publicou um livro por ano, número bastante acima da média da

maioria dos escritores.

O relativo sucesso do filme para a dimensão de sua produção revelou o

trabalho de Mutarelli. Ao contrário do que ele próprio esperava, o cinema levou os

espectadores para a literatura.

Nesse primeiro livro, é perceptível como o autor enxuga suas frases em

relação ao desenvolvimento que fazia nos quadrinhos para contextualizar algum

acontecimento.

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Mutarelli credita essa alteração à sua aversão a longas descrições, tais

como a de parnasianos que o “traumatizaram” na infância e adolescência e o

fizeram gostar da leitura já com uma idade mais avançada.

Em seguida vieram encomendas de roteiro. Jesus Kid (2004) foi escrito a

partir de um pedido do diretor Heitor Dhalia para um roteiro de filme de ação de

baixo orçamento. Como Mutarelli explica na nota de abertura, preferiu o formato

de romance à frieza daquela forma – para a qual seria, posteriormente, adaptada.

O livro conta a história de um escritor de werterns vendidos em bancas de

jornal que é convidado a escrever um roteiro por um produtor e um diretor de

cinema. A proposta é de que ele receba trinta mil reais e passe três meses em um

hotel, sem poder sair, para narrar a história de um escritor, trancado em um hotel,

em crise criativa. Como Max e Fabio, os jovens cineastas, enfatizam inúmeras

vezes, cinema é ação e o roteiro deve ter muita ação.

Eugênio de Souza e Silva (que assina sob o pseudônimo de Paul

Gentleman) assume a personalidade de seu principal personagem, o caubói Jesus

Kid, que, por vezes, encarna em seu corpo. Durante toda a narrativa o escritor

hipocondríaco o evoca para encarar situações que considera difíceis, tais como,

logo no primeiro parágrafo do livro, entrar no restaurante do hotel e conversar com

os dois cineastas:

Não consigo respirar. Abro a boca buscando ar. Transpiro. Tremo. O lugar me oprime, estou parado na porta do restaurante. Licença, um homem atrás de mim diz. Dou passagem, ele entra. Meu coração bate desorientado. Acho que vou ter um enfarte, ou um derrame. Tomo um comprimido amarelo. Procuro me concentrar. Penso nos trinta mil. Peso minhas dívidas. Preciso entrar. Penso em Jesus. Evoco Jesus Kid. Jesus ajeita o chapéu de forma a esconder os olhos. Jesus Kid entra. Jesus Kid é frio. Caminha pelo suntuoso restaurante. Nada o intimida. Jesus Kid não tem medo de nada. Jesus caminha pelo restaurante. Não está tranquilo porque sempre está alerta. Todas as pessoas no restaurante são bonitas e saudáveis. Todos no recinto possuem pelo menos trinta e dois dentes. Brancos. Eu sou feio. Meus dentes são amarelos. Jesus Kid tem o rosto marcado e uma beleza agressiva. Procuro esconder meu desconforto. Jesus Kid nunca demonstra emoção. Seu rosto é sempre igual. Jesus só ri quando morre ou quando

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mata. Como nunca morreu, até hoje só sorriu quando matou. Jesus faz um delicado carinho em sua Smith & Wesson cabo de madrepérola. Agora sorri por mim. Procuro os dois idiotas. O restaurante está cheio. É hora do almoço. Todos são belos e bem sucedidos. Homens de negócio, mulheres de negócios. Todos fazem seus pedidos num tranquilo francês. Eugênio? Me viro. Eugênio? Vejo dois jovens alinhados. Sorrindo com seus trinta e dois brancos dentes. Eles têm, aproximadamente, um ano de vida para cada dente. Eugênio? Eles repetem. Percebo um volume de A Balada dos Nervos sobre a mesa. Engulo seco. Deixo que Jesus atue por mim. Jesus Kid os saúda tocando a aba do chapéu com o indicador. Eles sorriem (p.12-13).

Além da dificuldade refletida pelo protagonista em criar ação em uma

história que se passa dentro de um hotel, os contratantes inserem, a cada dia,

novos personagens e situações que devem estar presentes na produção para que

consigam verba de algum patrocinador ou outros benefícios. No roteiro devem

haver pin-ups, batatas fritas em saquinho, um halterofilista e, como não poderia

faltar em uma produção brasileira, uma favela (apesar de o filme se passar dentro

de um hotel).

O livro é uma ironia ao universo das produções cinematográficas. O autor

se remete, inclusive, a fatos referentes à encomenda desse mesmo trabalho –

como fica evidente pela nota de abertura escrita por Heitor Dhalia. A encomenda,

no entanto (ou evidentemente?), nunca chegou a ser filmada.

Seu terceiro trabalho na literatura é O Natimorto (originalmente lançado em

2004 pela editora Devir e relançado pela Companhia das Letras em 2009), que

também foi criado por encomenda.

Dirigido por Paulo Machline (2008), o filme apresenta Mutarelli como o

Agente, protagonista que se encanta pela Voz, interpretada por Simone

Spoladore, uma cantora cujo canto, de tão puro, é inaudível aos ouvidos humanos.

Ele propõe a ela que vivam trancados em um quarto de hotel. É ali que seus

distúrbios começam a emergir.

Esse livro ainda não apresenta definições quanto aos espaços. Temos

poucas referências aos locais em que acontece cada cena: rodoviária, casa, hotel.

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O livro é narrado em primeira pessoa e entremeado por diálogos. Seu

formato se aproxima ao de uma peça de teatro, para o qual foi adaptado e dirigido

por Mario Bortolotto (2007). Antes de cada fala está escrito o nome do

personagem que a pronuncia: “A Voz”, “O Agente”.

Em seguida veio A Arte de produzir efeito sem causa (2008), que lhe

rendeu o terceiro lugar no Prêmio Portugal-Telecom, dedicado a obras em língua

portuguesa.

Trata-se do primeiro trabalho na literatura em que Mutarelli utiliza a

narração em terceira pessoa. Nessa obra, acompanhamos Junior, um homem que

pede demissão do emprego, abandona a mulher e o filho e volta a morar com o

pai. Sem perspectiva, ele passa os dias deitado no sofá, fumando, bebendo café e

espiando a estudante que aluga um quarto no apartamento. A construção

narrativa se dá de forma a nos levar por seu raciocínio ilógico. Junior desenvolve

um quadro psicótico, acredita em uma realidade criada por ele próprio na qual

recebe cartas e encomendas anônimas pelos Correios que carregam mensagens

encontradas apenas ao relacionar suas letras.

Miguel e os demônios (2009) foi escrito por encomenda a partir do

argumento: um policial que se apaixona por um travesti. Desta vez, o destino do

protagonista parece se desenvolver de acordo com o que lhe revela um colega de

trabalho envolvido com uma seita que cultua Lúcifer. Apesar de não haver

resoluções ou determinações sobre a veracidade desse fato dentro da obra, os

acontecimentos se desenrolam dentro do que havia sido anunciado pelo policial.

A ideia era, novamente, de que o autor desenvolvesse a narrativa em forma

de roteiro. É perceptível, no início do livro, a tentativa de Lourenço em roteirizá-lo.

Ao longo da história, no entanto, as especificações vão se perdendo, se tornando

mais escassas. O autor considera difícil aprofundar os personagens em roteiros.

Prefere criar o romance para que depois seja reescrito.

Não por acaso, essa é sua narrativa mais cinematográfica. Ele descreve

minuciosamente as cenas e os personagens, produz planos, indica closes, cortes,

ações, sons, localizações, cita nome de ruas, bairros, datas:

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Calor infernal. Dezembro. Interior de um Fiat Uno branco modelo 94. Rua Domingos de Morais, Vila Mariana. Fachadas se alternam. Pequenas lojas, pequenas portas, prédios comerciais e residenciais. Blocos de três ou quatro andares. Papai Noel por toda parte. Múltiplo. Ubíquo. Papai de plástico, papai de gesso, papai de papelão. Postes e molduras cobertos de lampadinhas. Pisca-pisca (p.5-6).

Tudo é muito determinado, tal qual no roteiro, porém se constrói no formato

de romance, em texto corrido.

Lourenço faz inversão temporal ao embaralhar cenas e utilizar flashbacks,

indicados durante o texto pela coloração, iluminação e edição da cena:

Sépia. Terreno baldio. Imagem borrada, luz difusa. Lembrança. Um menino solitário brinca com um graveto. Miguel, menino. Detalhe da mão do menino erguendo o graveto para o céu. O graveto acompanha o percurso de aviões que passam. Esquadrilha da Fumaça. O menino tropeça em algo e cai. Percebe um cão vira-lata morto a seus pés. O menino se levanta e com o graveto cutuca, levemente, o cão (p.9).

As frases, como em seus demais livros, vão se completando – não a

despeito de uma pontuação fragmentária, mas justamente por conta do ritmo que

ela impõe à leitura.

Nada me faltará (2010) se inicia com o retorno de Paulo, um homem que

havia sumido um ano antes com sua esposa e a filha pequena. Ele volta sozinho à

casa da mãe sem se lembrar de nada. A trama se desenrola pela tentativa de

todos ao seu redor em fazer com que lembre de algo, retome sua vida, o trabalho

ou se preocupe com sua família, da qual demonstra (e diz ao psicoterapeuta) não

sentir falta nenhuma.

O livro é construído exclusivamente por diálogos, que constituem cenas

bastante delimitadas. Algumas mais longas, outras muitas extremamente curtas.

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Não há nenhuma descrição, mas o fato de todos os personagens terem

nomes próprios ajuda a localização de cada acontecimento e o acompanhamento

da história.

Até surgir o 12o capítulo (p.97):

“E aí?

E aí?”

A suspensão, tal qual Mario de Andrade já inserira, na década de 1920, em

Amar, verbo intransitivo, produz no leitor uma maior experiência de fragmentação.

Além da estruturação do livro em cenas, assim como no cinema, suspende-se da

narrativa seu ritmo linear de trechos ordenadamente intercalados. O leitor-

espectador é, mais uma vez, surpreendido pelo deslocamento e pela supressão

de um possível sentido previamente estabelecido pela obra.

A poética do autor

“(...) eu nada entendo, mas sinto tudo, da forma mais intensa possível”

(Sequelas, p.16).

Podem-se verificar diversas tensões que perpassam a produção de

Mutarelli desde os quadrinhos até seus textos para o teatro e a literatura. O autor

cria um mundo específico em estreita relação com o grotesco, que mistura o

estranho e o bizarro com o humor a partir do recorrente uso da ironia.

Muitos de seus leitores acabam por relacionar o que desenhou e escreveu

à sua personalidade. Há, entre suas obras, algumas histórias autobiográficas ou

referências a episódios que se passaram com ele próprio. A maioria delas, no

entanto, tem caráter puramente ficcional, apesar de seguirem o tom e o clima das

experiências que Lourenço vivia em casa fase (entre elas uma depressão

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profunda e a síndrome do pânico, que o impulsionaram a criar

Transubstanciação).

O autor foi convidado a atuar em trabalhos feitos a partir de obras suas – o

que acabou, também, por fortalecer a ideia de que fosse ele mesmo o

protagonista de seus livros.

No longa O Cheiro do Ralo, o autor fez o papel do segurança da loja, o

qual, no livro, é um personagem bastante coadjuvante. O diretor Heitor Dhalia

valorizou sua participação no filme. A escolha do escritor, baixo, magro e franzino,

para o papel tornou o personagem mais irônico.

Já o longa O Natimorto (2009), de Paulo Machline, foi protagonizado por

Mutarelli na interpretação de um agente que propõe a uma cantora (cuja voz, de

tão bela, é inaudível aos ouvidos humanos) que passassem a viver trancados em

um quarto de hotel.

Entre convites para curtas-metragens e peças de teatro, participou de O

que você foi quando era criança, peça de Mario Bortolotto a partir de texto seu, e

do projeto Escritores em Cena, do Itaú Cultural, com curadoria do escritor

Marcelino Freire, em que foi dirigido por Nilton Bicudo sobre seu texto O Outro.

Esse trabalho foi criado a partir de um relato dramático dos últimos minutos de

vida de seu pai.

A presença do absurdo na obra do autor não a afasta da percepção mais

imediata da vida cotidiana. Pelo contrário, é justamente nessas situações

ficcionais muitas vezes grotescas que a realidade mais salta aos olhos do leitor.

Assim o é quando Junior, protagonista de A Arte de produzir efeito sem causa,

passa a delirar e relacionar elementos de cartas com mensagens secretas vindas

do além e destinadas a ele. A construção que o escritor faz nos leva a

acompanhar esse modus operandi do personagem, seus delírios, os sentidos que

cria para os acontecimentos.

Um ponto marcante de seu trabalho na literatura são os diálogos, cujo

desenvolvimento se deve em grande parte ao exercício dos balões nos

quadrinhos. A trilogia de Diomedes, por exemplo, contava histórias complexas por

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meio de um personagem muito limitado. Para que a obra funcionasse, Mutarelli a

desestruturou em diálogos cotidianos, mais simples. Esse processo é entendido

pelo autor como fundamental para suas obras posteriores.

Tanto assim que Nada me faltará é constituído exclusivamente por

diálogos. Os personagens todos possuem nomes, pronunciados apenas nas falas,

e, mesmo sem outro tipo de indicação, é possível identificar os acontecimentos e

quem são os interlocutores em cada conversa.

A maior parte de seus quadrinhos é feita em preto e branco com a técnica

de nanquim e extremamente marcada pela riqueza de detalhes das composições.

Em geral, cada quadro é formado por inúmeras imagens que conferem peso e

dramaticidade à narrativa.

Suas HQs se aproximam de um estilo expressionista (influência assumida

pelo autor) ao criar deformidades e distorções, fazer o uso constante de contrastes

por meio de jogos de luz e sombra. Essas características plásticas são reiteradas

pela presença, em suas histórias, de temas como sexo, drogas e escatologias

sempre protagonizados por personagens perversos ou com outros distúrbios

psicológicos, que criam uma ambiência por vezes próxima ao fantástico ou

surreal.

Tratam-se de figuras cheias de conflitos e questões existenciais, deprimidas

ou depressivas, que lançam ao mundo um olhar trágico e pessimista.

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Imagem 8 – Transubstanciação (p.53).

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Ao mesmo tempo, o autor vê em seu desenho uma aproximação com a

obra barroca. Essa influência se deveria à organização imagética a partir de

muitos elementos (aparentemente incompletos e fragmentários), não essenciais,

tendendo à assimetria e a não preocupação com uma suposta clareza ou

comunicação direta. Mutarelli procura preencher todos os espaços vazios da

página (Imagem 8).

Essa proximidade pode ser constatada também no dinamismo, movimento,

nos (já citados) contrastes de seus desenhos, além da presença temática

concomitante da vida material e espiritual, que, no trabalho de Lourenço Mutarelli,

é criada pela relação entre seres humanos e figuras transcendentais, que estão

mais próximas à monstruosidade do que à ideia religiosa de um deus. Não existe,

aí, uma dicotomia entre esses personagens. Todos eles têm um lado humano e

sobre-humano. Existem em sua obra seres antropomórficos, mas que misturam

figuras míticas a criaturas monstruosas, com proporções alteradas e membros

distorcidos, possuidores de engrenagens em seus corpos (Imagem 9).

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Imagem 9 – Transubstanciação (p.8).

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O muito, complexo

Outra característica que acompanha o trabalho do autor já se encontra nos

primeiros materiais gráficos apresentados em Sequelas: a presença denotada de

múltiplas referências, principalmente artísticas. Ele faz questão de incluir em seus

desenhos e nas falas dos personagens o nome de compositores e instrumentistas,

escritores, teóricos, programas de televisão. A presença desses referenciais

conforma grande parte da personalidade de seus protagonistas. Eles se criam na

cadência em que essas referências nos vão sendo apresentadas – muitas vezes

com extrema ironia.

A verdadeira história de João (1988) é dedicada a Jane e Herondy, dupla

de cantores românticos da música brasileira daquela mesma década. Em

Transubstanciação, o personagem ouve um tango de Carlos Gardel enquanto

aguarda a chama de uma vela se apagar, fuma enquanto na imagem aparecem

nomes de bandas e compositores, trechos de músicas, notícias de jornais,

orações, expressões utilizadas em rótulos de alimentos, entre tantas outras

(Imagem 10).

Em seu primeiro romance, O Cheiro do Ralo, o narrador cita de Valêncio

Xavier a Paul Auster, Ferréz, Freud, programas do Discovery Channel e Cartoon

Network. Em Miguel e os demônios, um dos personagens mistura inúmeras

referências históricas para justificar sua crença numa seita demoníaca.

-É de possessão que tratamos! ‘O meu caminho é o do desenvolvimento das possibilidades escondidas do homem. É um caminho contra a natureza e contra Deus.’ Que caminho é esse que a teosofia trouxe da Índia anunciando o novo messias Jiddu? Quem é Yehoshua nascido em Nazaré quatro anos antes de Nosso Senhor? O que levou Constantino em Niceia, em 325, a adotar essa fé? Por quantas moedas Kissel Mordechai serviu a um estranho senhor? E que me diz de Cali, que colecionava cabeças, patrona dos tugues, seus coletores? Que estranho Deus é o teu, Miguel? (p.106).

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A presença desses muitos elementos concretos contribui para a construção

de um pano de fundo complexo, por vezes caótico, em que o leitor é apresentado

à possibilidade de múltiplas conexões.

Imagem 10 – Transubstanciação (p.19).

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Somado ao enclausuramento espacial dado em diferentes histórias suas,

espaços restritos pelos quais os protagonistas circulam, essas muitas citações se

constituem como rebatedores, paredes de um labirinto pelo qual o leitor cambaleia

e acompanha as diversas ligações elaboradas pelo raciocínio perturbador de seus

personagens.

O humor, a paródia, a ironia Essas múltiplas referências presentes em quase todo o trabalho de

Mutarelli, além de servirem para a construção da personalidade de seus

personagens e criar ambientações, servem, principalmente, como base para o

humor que permeia seus quadrinhos e, mais ainda, sua produção literária.

De autores da literatura nacional e estrangeira a cantores bregas, de tango,

canais de televisão a cabo, programas de ginástica, passando, ainda, por cantigas

e parlendas da cultura popular, o autor faz paródias e constrói trocadilhos que

contribuem para seu humor ácido: “Se essa bunda se essa bunda fosse minha”

(2011a, p.21).

Além da função exercida por esses elementos externos à obra, seus

personagens normalmente são, eles próprios, patéticos, ou agem de forma a

ironizar seus interlocutores, as situações que vivenciam ou verdades

compartilhadas: Ele entra. Ele faz uma careta. Essa será a nova senha. Para entrar tem que fazer cara feia. É o preço. Este é o preço para sentir o cheiro do inferno. Nossa senhora! Que cheiro ruim! Fede, não fede? Ô! E como. Você come? O quê? Você que falou, “fede e como” (idem, p. 99).

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Suas frases são irônicas e estabelecem jogos com as palavras e seus

sentidos. O nome do caubói Jesus Kid é sempre usado nesse sentido: “Jesus só ri

quando morre ou quando mata. Como nunca morreu, até hoje, só sorriu quando

matou” (2004, p.12) ou em “Vou ao banheiro e lavo o rosto e ajeito os cabelos.

Batem à porta. Evoco Jesus. Prometo reconciliação. Jesus não vem” (idem, p.56).

O humor ácido de Mutarelli fortalece o caráter pessimista de suas histórias,

ridiculariza seus personagens, que estão sempre passando por algum tipo de

sofrimento ou proporcionando sofrimento a outros. Ainda assim, não existe uma

dualidade de caráter, uma dicotomia entre bem e mal. A ponte entre ambos os

pólos muitas vezes é estabelecida pela piada ou pela ironia. Em sua obra, é

possível rir de situações angustiantes.

Na obra de Mutarelli, no entanto, as referências artísticas ou populares não

existem para serem ironizadas e ultrapassadas por aquilo que ele cria. Pelo

contrário, o autor as utiliza como ferramenta para criar ambiências ou ridicularizar

personagens e a obra a si mesma.

O vazio

O próprio autor questiona, em Sequelas, o motivo para ter feito três versões

de um mesmo argumento para uma HQ que tematiza o “vazio”.

Eu queria ver a sua cara. Idealizava um ‘ser’, personificava, um ser espacial devido à vastidão do Nada, o Vazio como substância, invertendo os valores, pois é ele quem nos reveste, envolve, todo o espaço, a composição do infinito. Nós é que somos a lacuna, o vazio. O Vazio tem a dimensão do infinito (MUTARELLI, 1998, p.75).

Tratam-se de três histórias (I, II e III versões) intituladas O Nada (1988,

1989 e 1994), que contam sobre o encontro de homens solitários, entediados, com

uma aeronave e com um “inimigo interplanetário” ou um “invasor interplanetário”.

Vestido como astronauta, ele chega ameaçadoramente. Ao quebrar seu capacete,

esses homens não encontram nada, assim como nada há dentro da aeronave.

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Fim da história. “E assim como veio o estranho ser, ou não ser, partiu. Deixando

apenas uma insuportável sensação de que sempre esteve e continuará presente

dentro de nós...” (idem, p.96).

O mesmo tema está presente em outras obras. Geralmente seus

personagens adotam comportamentos incompreensíveis ou obsessivos sem

motivos aparentes ou como consequência de fatos banais. Assim o é em O Cheiro

do Ralo e O Natimorto. A presença do absurdo, que acompanha todas as

histórias, desde a situação mais corriqueira à mais fantástica (num sentido

underground, sujo), traz consigo o “vazio” desses personagens. Os diálogos

muitas vezes estão centrados na argumentação em que um dos interlocutores se

pauta pela razão e o outro insiste no non sense, em argumentos que seguem uma

lógica própria, perturbadora, que colocam personagens e leitores em um labirinto.

É o que ocorre em A Arte de produzir efeito sem causa, em que Junior, ao

longo da narrativa, passa a se comportar de modo psicótico, relacionando

acontecimentos, letras de cartas e bilhetes, achando mensagens subliminares em

coisas aparentemente banais. O leitor é levado a esse ambiente, acompanha

Junior (cujo nome já remete ao próprio pai, à sua sombra e dependência), entra

em sua lógica, passa a pensar em seu ritmo.

A presença do nu e do sexo é outra característica marcante de sua obra. Já

em seu trabalho gráfico se evidencia a nudez, a aparição de órgãos sexuais

(principalmente o masculino, o falo), em corpos sempre decadentes, de seres

sobrenaturais, homens ou mulheres (Imagem 11).

Seus personagens estão quase sempre à procura de sexo. Em O Cheiro do

Ralo, por exemplo, em algumas negociações com suas clientes, o narrador propõe

que tirem a roupa ou que lhe façam sexo oral em troca de seu dinheiro.

Nas poucas vezes, em toda sua obra, que se tratam de relações amorosas,

elas não são correspondidas. Nos demais casos, essas aparições dizem respeito

à atração carnal, da satisfação de um desejo físico, não intermediado por

sentimentos. A crueza de um mundo real, quase aos moldes naturalistas, não se

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reduz, no entanto, à verossimilhança do concreto e factual – ainda que claramente

ficcional.

Imagem 11 – Piegas City (em Sequelas, p. 46).

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Imagem 12 – Resignação (em Sequelas, p.145).

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Paradoxalmente, as situações, quanto mais fantasiosas, mais se

aproximam de um forte sentido de realidade. Mutarelli cria metáforas que refletem

dimensões muito presentes na vida humana, como a solidão e a falta de sentido

na vida (Imagem 12). 

Os personagens criados pelo autor estão entre o humano e o fantástico. A

mescla entre o real com a ficção torna mais evidente as contradições e o absurdo

da condição humana tão presentes em sua obra.

Em O Cheiro do Ralo, o protagonista se apaixona pela bunda de uma

garçonete e passa a querer comprá-la para si. Aquela determinada parte do corpo

se torna para ele um fetiche. Quando a garçonete o chama para “tomar uma

cervejinha” ele se assusta e nega o convite. Não lhe interessa se aproximar dela

de outra forma, mas sim de pagar para vê-la, possuí-la.

O desnudamento de seus personagens acontece não apenas no sentido

concreto. Pelo contrário, significam mais a inexistência de sentimentos ou

pudores, de valores moralistas, significam o vazio de uma existência mais próxima

da morte do que da vida (entendida, esta última, no sentido da criação Humana).

Lourenço arranca-lhes a roupa, mas também a pele, a carne, os órgãos, os ossos

(Imagem 13). Seus personagens são, por vezes, moribundos, por vezes,

assassinos, quando não os dois ao mesmo tempo.

A perversidade está presente em sua obra de diferentes formas. Seja pelo

ato de violência física (como em diversos quadrinhos e em alguns episódios de

seus livros, como em O Cheiro do Ralo, Jesus Kid, Miguel e os demônios e Nada

me faltará), seja de formas mais escamoteadas, como nos pensamentos ou nas

provocações do protagonista a seus interlocutores em O Cheiro do Ralo.

Os personagens de Lourenço Mutarelli estão sempre em situação

degradante, de humilhação, impostas por outros ou por si próprios, eles apanham,

são xingados, não têm dinheiro, são sujos, eles fedem. Eles sempre sofrem.

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Imagem 13 – O Pequeno Príncipe (em Sequelas, p. 32).

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O transcendental, a magia, os distúrbios psicológicos

A construção do ambiente em que acontecem as histórias se dá também

pelos temas. Desde seus desenhos de criança – alguns dos quais espalhados

pelas páginas de Sequelas -, Mutarelli aponta para elementos religiosos ou

mágicos, para a existência de um (ou de vários) deus(es) ou para a figura do pai,

da autoridade. Sejam eles na própria figura de Cristo (como nos desenhos de sua

infância), sejam em outros personagens que têm alguma relação com o

transcendental, é a eles que se recorre na busca de ajuda e solução para as

questões dos demais personagens. Não se trata de procura pela redenção no

sentido de perdão ou ascensão ao céu, mas de sanar problemas imediatos ou

acabar com o sofrimento por meios mais drásticos, como a morte.

Mesmo quando se trata da própria figura de deus, nos quadrinhos, ele é

sempre algo mais próximo a um monstro ou a um animal, uma figura bizarra,

grotesca. Assim acontece em Aquela Velha História, de 1989, em que um ser (que

possui estrutura corporal de um humano, com braços, pernas, mãos, pés, tórax,

pênis, mas características de inseto, asas, antenas, boca afilada) bate à porta de

Deus - semelhante à sua imagem - à procura de dinheiro para sustentar seus

filhos. Na casa existem sacos de dinheiro espalhados pelo chão, mas o bicho

apenas zomba do pedinte: “Á ti fodê!”.

Depois de todas as humilhações, o músico desiste e vai embora. Deus o

chama da porta de casa e lhe entrega o dinheiro, repetindo: “Você pode falar que

foi tudo, menos fácil! Fui durão, não fui? Não foi fácil, hein?” (Imagem 14). As

conquistas demandam sacrifícios.

O próprio título Transubstanciação se remete diretamente à religião cristã.

A palavra designa a transformação do pão e do vinho no corpo e no sangue de

Jesus Cristo, levando à sua “real presença” no ato de comunhão, em que fieis

rememoram o renascimento de Cristo.

Existem algumas marcas religiosas que acompanham seus desenhos,

como, principalmente, o crucifixo ou Jesus Cristo crucificado.

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Imagem 14 – Aquela Velha História (em Sequelas, p.65).

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Na literatura, observamos o deslocamento de grande parte dessas

referências para outras perspectivas místicas, mágicas, para o fetiche ou

distúrbios psicológicos, assim como a autoridade de “deus” é ressignificada pela

presença do pai.

Lourenço acredita que o desenho distancia o leitor da realidade (motivo,

então, para haver incursões mais fantásticas nessa linguagem). Pelo contrário, a

ilusão criada pela palavra na literatura estaria muito mais próxima das

experiências compartilhadas por quem lê.

Em seu primeiro romance, o protagonista responsabiliza o cheiro do ralo

por suas angústias. Assim como outros objetos negociados em sua loja, que

carregariam consigo tantas histórias, o ralo seria o responsável por sua má sorte,

seria a conexão com o inferno:

Os ralos, e todos esses canos, parecem ser apenas um lugar para onde os dejetos e a água vão. Mas não são. Esses buracos são na verdade outra coisa. Ah, é? E o que são? São portais. São os portais do inferno. E é por eles que nos observam. Ele fica coçando a cabeça. Ele age como se eu fosse louco. E depois de muito tempo, que eu gastei com um estúpido ignorante, ralé, resolvi não querer seus serviços. Se o que eles querem é me observar. Se o que querem é enlamear minha mente. Se o que eles querem é me deixar doente. Eu mesmo tapo o portal. Pego o telefone e encomendo vários metros de areia e sacos de cimento. E não esqueçam de mandar as pedrinhas. É isso mesmo, cascalho (p.79).

Já em O Natimorto, o Agente determina como será seu dia pela figura da

propaganda antifumo do maço de cigarro, que ele relaciona e interpreta como uma

carta do tarô.

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Em Jesus Kid, esse papel de fuga da realidade é dado ao personagem-

título. O caubói criado pelo escritor Eugênio de Souza e Silva determina suas

ações durante quase todo o livro. Seja ao ser invocado e “agir” pelo autor, seja ao

humilhá-lo e fazer com que Eugênio faça o que o personagem que criou quer.

Assim, a narrativa vai sendo feita a partir dos atos e devaneios do protagonista.

Em alguns momentos fica claro que os feitos de Jesus Kid narrados por Eugênio

nas situações em que se encontra no hotel são apenas fruto de sua imaginação.

Em outros casos, pela reação de seu interlocutor, entende-se que o que foi

narrado, como alguns atos violentos do caubói, aconteceu de fato na realidade da

obra, mas pelo corpo do escritor.

Nesse mesmo livro existe, ainda, a figura de um chinês que, segundo

Eugênio, viveria trancado no subsolo do restaurante ao lado do hotel e que

escreveria as mensagens do biscoito da sorte. Com o tempo ele passa a enviar

mensagens secretas para que alguém o tire dali.

O desequilíbrio psicológico de seus protagonistas aparece de diferentes

formas em cada livro. Em Jesus Kid, a indistinção de Eugênio entre realidade e

devaneio está explícita desde o início quando o escritor evoca Jesus Kid para que

aja por si em uma situação de insegurança e ansiedade ou por suposições

aparentemente absurdas, tais como os pedidos de socorro enviados do subsolo

de um restaurante pelo chinês prisioneiro.

No caso de O Natimorto, o Agente recorre a medicamentos durante suas

várias crises, além de assumir seu histórico de internação. O Lorax (medicamente

usado para o controle dos distúrbios de ansiedade associada com sintomas

depressivos) está presente em grande parte de seus trabalhos, desde os

quadrinhos até a literatura. Ele é citado nominalmente ou indicado pela coloração

amarela do comprimido (em Jesus Kid) ou do excremento produzido pela ex-noiva

(em O Cheiro do Ralo).

O próprio fato disparador da trama em O Natimorto de propor à Voz que

vivessem trancados em um quarto de hotel já denota, em si, um distanciamento da

realidade por parte do protagonista, assim como o faz também sua interpretação

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dos maços de cigarro como se fossem cartas de tarô que definirão, dia a dia, os

acontecimentos de sua vida.

Em O Cheiro do Ralo, pelo contrário, os distúrbios do comprador não estão

explícitos por suas ações, mesmo porque alguns fatos ou considerações absurdas

suas se confundem com tanta ironia que desfia a todos os interlocutores e consigo

mesmo durante os fluxos de consciência.

Nos seus primeiros trabalhos na literatura, Mutarelli suprime quase todas as

referências à localização das histórias. Nos demais livros, já é possível perceber

uma descrição mais minuciosa.

Esse enraizamento na realidade é feito, por exemplo, por meio do nome

das ruas e bairros pelos quais os personagens transitam em Miguel e os

demônios, pela estação do ano, temperatura, datas e descrições minuciosas (do

suor de Miguel, do modelo de seu carro, dos enfeites natalinos no comércio local,

da roupa provocante de sua cunhada). A localização precisa se estrutura de forma

a criar uma base sobre a qual se desenvolverão os devaneios e distúrbios do

protagonista.

É possível observar que, nos seus diversos livros, o aprofundamento

desses distúrbios é inversamente proporcional à localização da história. Quanto

mais detalhes temos sobre a “realidade” daquele personagem, maior sua fuga ou

mais distorcida sua forma de enxergar as coisas.

Em sua obra, existe a presença do relato autobiográfico e de referências

pessoais de Mutarelli. O autor brinca ao se colocar nas obras até mesmo pelos

nomes de seus personagens. Na trilogia do detetive Diomedes, um domador de

leões chama-se Lorenzo. Em Jesus Kid, o narrador tem o nome de Eugênio e um

senhor de idade se chama Lourenço. Em A Arte de produzir efeito sem causa, o

protagonista é Junior - ao mesmo tempo nome de Lourenço Mutarelli e uma

metáfora que explicita a dependência que o personagem estabelece com o pai.

A relação pai e filho é outro tema presente em suas obras. Uma das poucas

informações sobre a o comprador de O Cheiro do Ralo é que ele nunca chegou a

conhecer o pai – que apenas engravidou sua mãe sem ter com ela nenhuma

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relação amorosa. Durante o desenvolvimento da trama, ele passa a querer montar

seu pai com objetos comprados em sua loja. Em primeiro lugar, o olho de vidro,

que se torna seu amuleto e passa a testemunhar sua vida. Em segundo, uma

perna mecânica. O protagonista projeta seu afeto nos bens materiais que acredita,

em algum ponto, serem capazes de substituir os sentimentos despertados pela

relação humana.

Os demais personagens dessa história são cunhados por características

suas, de objetos que carregam ou com significações criadas pelo narrador. É

perceptível o desenvolvimento da individualidade que o autor cria em seus

personagens, com o passar do tempo, ao longo das diferentes obras.

Em seu primeiro romance, ninguém possui nome próprio. Em nenhum

momento há qualquer tipo de referência aos personagens a não ser pelo objeto

que oferecem ou, no caso da garçonete, pelas características de sua bunda.

O anonimato, no entanto, não dissolve os personagens em categorias

sociais típicas, em estereótipos. Não existem categorias, mas sujeitos singulares

anônimos e que não se identificam com nenhum arquétipo, mas apenas com os

objetos que carregam e passam a representar nas interpretações do protagonista.

Em Jesus Kid, o narrador cria apelidos para cada um de seus interlocutores

de acordo com associações. Os produtores Máximo e Fabio se tornam “Os

Gargantas Profundas”, por falarem muito, em referência ao filme pornô “Garganta

Profunda”. O recepcionista do hotel, Arlindo, é chamado por ele apenas de Chet,

mesmo nome do recepcionista de Barton Fink, filme dos irmãos Joe e Ethan Coen

citado diversas vezes no livro.

Os distúrbios de personalidade e o apelo ao transcendental na obra de

Lourenço Mutarelli evidenciam as contradições entre o papel do homem, sua

imaginação e a existência de forças superiores que regeriam seu destino. Seus

personagens não questionam a si mesmos. Eles crêem em diferentes coisas, mas

necessariamente em algo que esteja fora deles próprios, para além das

responsabilidades humanas. Isso se manifesta nos seres mágicos e monstruosos

de seus quadrinhos, na crença mística e nos distúrbios psicológicos de

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personagens tanto das HQs quanto da literatura que os fazem deslocar o foco e o

sentido de suas ações para objetos e acontecimentos.

Todas essas características trazem aquele que parece o eixo central da

obra do autor: o vazio e a falta de sentido da existência humana. À procura desse

sentido, seus personagens lançam expectativas em seres superiores, criam

desejos e culpabilizam objetos, desenvolvem raciocínios e lógicas próprias, que

constroem labirintos cuja saída não parece existir: nem para os personagens, nem

para os leitores.

O Cheiro do Ralo, o livro Um homem, dono de uma loja de objetos usados, negocia não apenas os

objetos, mas os valores das próprias pessoas.

O Cheiro do Ralo é construído a partir de cenas das negociações que o

protagonista estabelece com os vendedores. Em toda a narrativa, ele não vende

nada, apenas compra, e essa é a forma com que se relaciona com esses sujeitos,

tratados por ele como coisas. Seu prazer sádico é saber até que ponto chegam

por seu dinheiro.

Ele termina seu relacionamento faltando apenas um mês para o

casamento, dizendo à noiva que não acredita em felicidade, que nunca gostou

dela, assim como nunca gostou de ninguém.

A frieza e ironia com que lida com qualquer pessoa faz parte do jogo que

tenta estabelecer com o mundo. Para ele, tudo pode ser comprado e as coisas

difíceis são as de maior valor. Além disso, o personagem projeta valor em objetos

para os quais cria seu próprio sentido.

O conflito que move a história se inicia quando o protagonista se apaixona

pela bunda da garçonete de uma lanchonete e passa a comer ali todos os dias

para vê-la. Seu objetivo se torna pagar para que tire a roupa, comprá-la para si.

As personagens do livro existem a partir dos objetos que carregam, não

têm personalidade constituída na obra. Sua função é a de representar o objeto

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carregado e a dependência de sua venda para obter dinheiro. Chegam à loja em

busca da troca de seus pertences – que, para eles, têm valor subjetivo, dotado de

afeto, todos os objetos “têm história” – pelo dinheiro do comprador – que perverte

as emoções dos que a ele recorrem e força a negociação até “ganhar o jogo”, ou

seja, comprar o objeto pelo menor preço possível ou humilhar os clientes –

desvalorizando, assim, não apenas a coisa em si, mas, principalmente, a

subjetividades dessas pessoas.

O protagonista identifica os personagens com o que lhe oferecem e, a partir

desses objetos, cria diversas histórias. Ele lhes lança novas significações, novos

sentidos ficcionais, deposita seu afeto nas coisas, não nos seres humanos.

O cheiro do ralo do banheiro de sua loja passa a atormentá-lo e, então, o

narrador começa a relacionar todos os seus problemas ao odor que sai dali. Para

ele, o ralo é sua conexão com o inferno. Para ver a bunda, ele tem que comer

naquela lanchonete. O lanche lhe faz mal e, por causa disso, o ralo fede.

Outra hipótese sua é de que seus conflitos estejam conectados às muitas

histórias dos pertences que negocia. Os acontecimentos, portanto, estariam todos

relacionados às coisas, não a si próprio e às suas ações. O protagonista fetichista

desloca o foco e sentido de seus atos para os objetos. Eles se tornam

responsáveis por sua vida, por seus problemas.

O personagem compra um olho de vidro, que se transforma em uma

espécie de amuleto, e passa a fazer com que o olho testemunhe seu mundo. Em

suas ilusões, aquele é o olho do pai que nunca conheceu e que, fantasia, morreu

na guerra antes de o filho nascer. Em outro momento, adquire também uma perna

mecânica, outra parte para montar seu “pai Frankstein”, como ele próprio diz.

Na relação com cada cliente, cria um personagem, que pode ser

falsamente complacente ou extremamente sarcástico, de acordo com sua

avaliação sobre aquela pessoa ou com a situação em que cada um se coloca. Seu

sarcasmo aparece na repetição de frases, termos e gestualidade de seus clientes,

no jogo de palavras e sentidos que cria em cada diálogo, na encenação de suas

atitudes.

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A uma viciada que tenta lhe vender objetos sem valor, ele se demonstra

interessado e lhe dá o dinheiro. Com o passar do tempo, o comprador não mais

aceita suas ofertas e, então, apenas lhe paga quando ela se submete a ele e tira a

roupa – situação determinante para o encadeamento da narrativa, já que ela é a

única cliente que retorna à loja constantemente e seu papel é fundamental para o

desfecho.

O destino do protagonista se constrói a partir da relação efetivada com os

demais personagens que cruzam seu caminho. São eles que o procuram por uma

necessidade e neles toda sua densidade psicológica é despendida.

Ao mesmo tempo em que o personagem é responsável pelas ações que

seus interlocutores têm contra si, ele se manifesta como um títere, sem reações

ou a busca de um objetivo claro, apenas recebendo o que se manifesta contra ele

próprio de forma quase passiva. Ele provoca situações e aguarda seu desfecho.

Esse é seu jogo.

O narrador consegue uma relativa cumplicidade do leitor pelo humor

presente no sarcasmo e na ironia de suas reflexões e falas. No entanto, ao

mesmo tempo, adota uma postura arrogante e sádica que o afasta da ideia do

personagem-herói: “Eu adoro fazê-los voltar quando trazem coisas pesadas”

(p.58). Pelo contrário, assim como os demais protagonistas de Mutarelli, seu

destino é trágico. Ele sofre e faz sofrer.

Sua frieza fica evidente pelas piadas e ironias que faz com seus

interlocutores e pelas construções em que coloca, em um mesmo período,

assuntos bastante diferentes, tais como um acontecimento supostamente

dramático relacionado à sua vida pessoal e comentários sobre programas de

televisão:

O telefone toca. Acho que atendo antes mesmo disso. Ele diz que sua filha está internada. Ele diz que fizeram lavagem. Ele diz duas caixas de Lorax. Imagino baldes, repletos de merda e amarelos Lorax. Ele diz que eu não sou homem. Não sou homem para sua filha. Ele diz que ela tentou se matar. Com os convites na gráfica. No

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AXN um leão abocanha a cabeça de seu domador. Nunca mais a procure. Fique longe da minha filha. Isso não fica assim. Ele diz que sou filho da puta. Tempestade colhe quem vento plantou. Johnny Bravo apanha na cara. Na parede Rosa e Azul. Tiro Valêncio Xavier da estante. Deito na cama que fiz. As pessoas morriam de gripe. No mundo que eu mesmo quis (p.24).

A tensão da história aumenta conforme o cheiro do ralo piora – o que

desencadeia maiores delírios no comprador.

O desenvolvimento narrativo da obra se serve mais do processo em que as

neuroses do personagem principal se desenrolam do que dos próprios fatos

narrados. As cenas, em geral, são constituídas pela entrada e saída de clientes,

pelos diálogos estabelecidos entre eles e o comprador, assim como por alguns

episódios em que vai para casa ou à lanchonete para almoçar algum sanduíche

servido pela garçonete/bunda.

O ritmo da história é acelerado de acordo com o aumento da tensão do

protagonista em relação à angústia por possuir a bunda e, principalmente, ao

cheiro do ralo que o atormenta. Ao invés de consertá-lo, o dono da loja resolve

fechá-lo com cimento, o que faz com que o esgoto transborde. Então, ele insiste e

coloca mais cimento. Não há preocupação com as consequências de seus atos, o

que importa é o instante.

A relação do protagonista com esse buraco é paradoxal. Ao mesmo tempo

em que ele tem medo de que as pessoas pensem que o cheiro do ralo vem dele –

coisa que evidencia por seus diálogos e pensamentos o tempo todo -, sente

necessidade desse odor para lhe dar força. Algum tempo depois de fechar o ralo,

ele quebra o cimento e o cheira aliviado.

Em determinado momento da narrativa, o protagonista começa a ter de

volta para si as consequências do tratamento que dá às pessoas.

Sua ex-noiva lhe envia bilhetes ameaçadores e tenta se suicidar. A

garçonete – chamada por ele apenas como “bunda” – se ofende com sua proposta

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de pagar para que lhe mostre a bunda, pede demissão do trabalho e, então, o

protagonista passa um período sem a encontrar.

Sua percepção sobre a realidade vai se alterando, ele começa a ver e sentir

vultos e, então, já não há distinção clara entre o que são seus delírios e o que de

fato acontece dentro da realidade da obra. O protagonista recebe um sapo com a

boca costurada – dentro da qual há uma mensagem para ele: “Estive no inferno e

lembrei de você”.

Mais uma vez Mutarelli faz com que o leitor acompanhe os sentidos do

protagonista, não apenas sua rotina, mas principalmente seus pensamentos e

percepção subjetiva daquilo que ocorre ou acredita acontecer.

Somos todos testemunhas de seus distúrbios psicológicos e das distorções

que realiza ao deslocar o sentido das coisas:

Eu já sei o que foi que aconteceu. Não foi culpa do olho. Coitado. É que eu andava estressado. Por isso eu absorvia o sentimento das coisas. Porque tudo o que eu compro tem história. Tem sentimento. E eu, cansado, acabava os absorvendo para mim. É como no caso do olho. Coitado. Não era ele quem me trazia má sorte. Eram os sentimentos nele contidos. É isso. E no fundo, em relação à bunda, foi melhor assim. Porque, se por um lado não a vejo, por outro tenho me alimentado melhor. O cheiro se foi para sempre. E meus pensamentos voltaram a fluir. Voltei aos livros. E, hoje, me sinto bem. Não existe mais vulto. Meu sono se regularizou. É isso aí. É claro que ficaram resquícios. Mas a coisa é pouca. É café-pequeno (p.55).

Decepcionado com o sumiço da bunda, ele é seduzido por uma cliente

casada, com quem gasta todo o seu dinheiro em troca de sexo oral e pela qual se

demonstra apaixonado. Esse é o único momento da história em que aparece mais

claramente alguma forma sua de sentimento (mesmo que extremamente volátil).

Além desse episódio, seu afeto é empenhado de forma mais sutil na tentativa de

montar seu pai com objetos oferecidos a ele em sua loja. Depois de perceber que

aquela mulher havia feito falsas juras de amor e que tinha interesse apenas em

seu dinheiro, ele volta à lanchonete e consegue o número do telefone da ex-

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garçonete, que aceita realizar seu desejo (ser paga para mostrar sua bunda). O

dono da loja lhe oferece emprego como sua recepcionista.

Ela nem desconfia que esse seu cargo é provisório. Coisa para menos de um mês. Então mando ela embora. E talvez ela vá. E talvez ela vá e carregue consigo um filho. E um dia esse filho tente me reconstruir. Sem saber o meu nome. Talvez ele me ame. Talvez ele nunca saiba que eu não amo ninguém. Talvez sua herança seja o cheiro do ralo (p.175).

Outros clientes se ofendem com suas humilhações e, a certa altura, se

revoltam contra ele, agridem-no fisicamente e, no final da história, a viciada o

assassina.

Primeira obra literária de Lourenço Mutarelli, o livro foi escrito em um

período de cinco dias e se remete bastante a outras formas narrativas, tais como a

linguagem das histórias em quadrinhos e o cinema. Há uma evidente

predominância de ações, diálogos e fluxos de consciência do narrador-

protagonista, que fazem com que seu ritmo seja acelerado, além da divisão da

história em episódios e cenas independentes, que determina uma certa

fragmentação em sua cadência. Originalmente lançado pela Devir, em 2002, o livro foi reeditado pela

Companhia das Letras em 2011, editora que vem publicando todo o trabalho

literário do autor.

A história é contada em primeira pessoa pelo próprio protagonista, cujo

nome não é citado nenhuma vez. Fluxos de consciência se misturam às falas dos

diversos personagens sem diferenciação de pontuações ou determinação de a

quem se remetem. Os diálogos se desenvolvem da mesma forma como o fluxo de

consciência do narrador, separados apenas por pontos finais. As descrições, no

geral, se referem somente às ações, não a elementos visuais. Ainda assim, a obra

possibilita a leitura de imagens bastante específicas pela influência de sua

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temática e estrutura narrativa, que colaboram para que o leitor construa o

background, o cenário, em que se passa a trama. Mesmo sem descrever

visualmente o espaço, Mutarelli reconstrói a experiência da grande cidade a partir

de outros elementos de sua obra.

Assim como em seus quadrinhos, ele parece tentar preencher todos os

espaços vazios possíveis. Neste caso, o espaço não se refere ao branco do papel,

mas sim ao tempo de leitura. Ele não nos dá pausas.

O livro é todo feito em estruturas curtas, fragmentadas: frases, falas, cenas

separadas por linhas em branco, capítulos numerados que contêm títulos e uma

ilustração (retirada de um catálogo de produtos da Sears, uma rede de lojas de

departamento estadunidense).

Ao mesmo tempo em que esses cortes imprimem velocidade à leitura e

andamento da obra, as descrições de situações imediatas ao personagem, as

suas observações sobre programas de TV, objetos ou outros elementos próximos

a ele e a recorrência no uso das mesmas estruturas de frase, palavras,

expressões e sonoridades criam círculos e a ideia de tédio, monotonia.

Me pego olhando uma jarra de um suco que eu mesmo fiz. Fecho a geladeira. Ligo a TV. Imagino uma série de coisas. Misturadas ao que a TV diz. No 80 são três se pegando, naquela velha coreografia de filme pornô. No Discovery um mostrengo assustado. A série americana já vem com risadas. No Cartoon um desenho que vi quando era criança. No teto uma lâmpada desatarraxada. No sofá minha roupa de ontem. Na estante ainda tem livro pra ler. O jornal repete o atentado de um mundo que eu mesmo fiz (p.15)1.

O modo de estruturação narrativa é aliado à falta de referências espaço-

temporais. Poucas ações deixam entrever o que o autor esteja informando a

respeito da época ou chamando a atenção do leitor para traços da sociedade em                                                         1 Grifos meus. 

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que se passa a narrativa. Essa função é principalmente exercida por elementos

ocultos que agem como princípios constitutivos da obra.

Com efeito, não é a representação dos dados concretos particulares que produz na ficção o senso da realidade; mas sim a sugestão de uma certa generalidade, que olha para os dois lados e dá consistência tanto aos dados particulares do real quanto aos dados particulares do mundo fictício (CANDIDO, 2010a, p.39).

Não há descrição de costumes e contextualização histórica. O que há de

documento é parte constitutiva das ações. Essa falta de referências espaço-

temporais, no entanto, é até certo ponto suprida pelo tema e estrutura narrativa da

obra. Elementos básicos da história expressam sua localização. O fato de o

protagonista ser um dono de loja de usados que negocia objetos constantemente

e a existência de uma personagem que é viciada em drogas nos alerta sobre sua

proximidade com o nosso tempo, assim como camadas ocultas da narrativa que

servem como modo de condução do leitor também propiciam a experiência

contemporânea.

Segundo Susana Scramim (2007), a noção de literatura do presente, para

além da ideia do contemporâneo, está ligada ao risco inclusive de se produzir algo

que não seja literatura ou que a coloque em um lugar outro, o de passagem entre

discursos, mas que produza a possibilidade de conhecimento e da experiência: o

problema, questiona a pesquisadora, “é como fazer experiência poética e ao

mesmo tempo produzir conhecimento se nosso presente está saturado de

memória” (p.16).

A literatura de Lourenço Mutarelli não possui passado, não se refere a

memórias, não mobiliza referências precisas. Sua obra se opõe ao historicismo. O

protagonista de O Cheiro do Ralo não tem nem mesmo nome.

No livro em questão, os elementos da história (loja de objetos antigos,

lanchonete, personagens que circulam sem se conhecerem, a viciada, entre

outros tipos que apresentam “males” de nosso tempo), assim como os diálogos e

períodos curtos, pontuação que entrecorta o fluxo de leitura, a repetição de

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palavras, termos, sons – aliterações – e rimas criam um ritmo frenético que se

remete à experiência dos sujeitos nos grandes centros urbanos. Mesmo sem

localizar os acontecimentos, o autor suscita uma possibilidade de leitura

condizente com a experiência cosmopolita. O livro - que Valêncio Xavier, em seu

prefácio, classifica como “neo-realismo citadino” - segue o compasso de uma

grande cidade.

De acordo com Anatol Rosenfeld (2009, in CANDIDO et al), “a criação de

um rigoroso mundo imaginário, de personagens ‘vivas’ e situações ‘ verdadeiras’,

já em si de alto valor estético, exigem em geral a mobilização de todos os recursos

da língua” e outros elementos da composição literária, tanto no plano horizontal

quanto no vertical (das diferentes camadas de leitura e panos de fundo que se

intercalam durante a obra).

Assim, o leitor cria representações a partir da interação de seu repertório

consolidado e do que lhe é fornecido pela obra por meio de suas imagens

poéticas. No entanto, nem todos os elementos necessários à construção de

sentido da narrativa estão explícitos. Pelo contrário, é exatamente a sua falta, o

“espaço vazio” que propõe a necessidade de preenchimento pelo sujeito.

É dessa forma que se constitui o cenário, pano de fundo para a leitura.

Muitos objetos, ruas, asfalto, construções, tudo empilhado sem haver espaços

imagéticos vazios, por mais paradoxal que isso possa parecer, já que não há,

justamente, descrição espacial na obra literária em questão.

No romance, também não há quantificação de valores nem indicações

precisas sobre a localização onde se passa a história, época de seu

acontecimento ou sua duração. O personagem principal transita entre sua loja, a

lanchonete em que come para ver a “bunda” e sua casa, onde passa a maior parte

do tempo mudando o canal da TV a cabo ou lendo livros, cujas referências variam

dentro da literatura nacional (Valêncio Xavier, Ferréz) e estrangeira (James Ellroy,

Paul Auster), além de Freud.

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As únicas referências de espaço citadas em todo o livro são o “centro” e a

rua “Conselheiro Crispiniano” (região de São Paulo onde se encontram muitas

lojas de antiguidades, principalmente do ramo de fotografia).

O espaço em que se passa a narrativa é, portanto, restrito, situando-se

apenas entre os locais citados pelo narrador. Ao mesmo tempo em que a

velocidade da escrita é estonteante, o leitor acompanha o protagonista por um

curto trajeto, é localizado em poucos ambientes, que se tornam sufocantes não

apenas pela sua quantidade, mas, principalmente, pelo clima criado pela obra –

que envolve todos os seus elementos de constituição.

Para Wolfgang Iser (1999), a leitura acontece pela relação entre livro e

leitor, entre os quais existe uma diferença de nível. A obra dispõe seus elementos

de forma a criar espaços vazios e lugares indeterminados, os quais têm de ser

preenchidos, criados, pelo leitor. A narrativa não contem em si todos os elementos

para sua compreensão. O sentido é construído apenas na interação com o sujeito.

Para Iser, a concretização diz respeito ao fato de os aspectos apresentados pelo

texto serem atualizados durante a leitura. Ou seja, ele não aponta para uma

relação recíproca, mas para uma diferença de nível de texto e leitor. Os elementos

não estão “dados” no objeto de arte, são atualizados, interpretados,

ressignificados pelo leitor (p.111).

Assim, o sentido da obra é criado de acordo com o repertório dos sujeitos

envolvidos na leitura na relação com a imagem poética criada pelo artista.

A configuração cíclica de O Cheiro do Ralo se dá também pela repetição

das ações. Grande parte das cenas se inicia com “ele entra” ou “ela entra”.

Dessa forma, o texto de Lourenço Mutarelli influencia não apenas o ritmo

de leitura, mas a experiência do leitor em relação à construção do pano de fundo

em que se passa a história (cenário, contexto) e, principalmente, no caso, à

personalidade desse protagonista, cujo pensamento acelerado e perverso se torna

“vertiginoso”, como ele próprio descreve no livro:

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Paul Auster me deixa confuso. Ele escreve no ritmo que eu penso. Vertiginoso. Todos aqueles Sr. White, Sr. Green. Como no jogo do tabuleiro. Sr. White com a faca, na biblioteca. ‘Da mão para a boca’. Ela me entrega o lanche. Ela quase sorri. Ela se vira para buscar o refrigerante. Eu poderia ficar uma semana só olhando ela se virar. Esse livro já é outro? Mostro a capa. Paul do quê? Ela me diz que gostava de ler. Só revista. Revista dos Astros. Astros da TV. Eu pagaria só para olhar essa bunda. Peço um café. Ta sem fome de novo? É. Seu nome era a mistura de pelo menos outros três. Seu pai, sua mãe e algum astro de TV. Ela pergunta o meu. Eu falo. Ela repete em voz alta. Ela deve ler mexendo a boca. Ela deve mexer a boca até quando vê as fotos dos astros. Deve mexer a boca evocando seus nomes. Roberto Carlos (p. 14-15).

Ao contrário do que o autor propunha em seus quadrinhos, nesta sua

primeira obra literária, as orações são extremamente curtas e fragmentadas. Elas

se complementam após os pontos finais, que imprimem à leitura um ritmo e um

sentido próprios, de uma certa confusão e sequencialidade.

Além dos diálogos, as orações descrevem apenas ações dos personagens

e o julgamento que o protagonista faz sobre cada um que aparece em sua loja ou

em sua vida.

Os diálogos são transcritos sem diferenciação de pontuações, misturando-

se a todo o texto ao longo da obra.

Ele entra. Um raro livro. Jura ser a primeira edição. Chuto baixo, bem baixo. Quero que ele pense que eu não sei o que tenho ali. Ele me chama de ignorante. Reforço sua ideia dizendo, Baudelaire? Nunca ouvi falar. Heresia! Blasfema. ‘Les Fleurs Du Mal’. Não falo francês.

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Nem inglês. Nunca aprendi nem sequer a língua do P. É a primeira edição francesa. Isso vale uma fortuna. Isso quem diz é você. O pior é que eu preciso da merda dessa grana. E por falar em merda, o cheiro é do ralo. Que cheiro? Ele não sente! Quadruplico a oferta. Ele põe a mão sobre o peito. Ele pede para sentar. Chamo a mocinha e peço um copo d’água. Se o senhor soubesse como eu preciso desse dinheiro. tenho um filho doente. A vida é dura (p.26-27).

O tempo da narrativa é dado pelas cenas representadas apenas em

diálogos e pensamentos do personagem principal. A recorrência dos fluxos de

consciência que permeiam a obra quebra seu ritmo “real”, introduzindo uma

suspensão do tempo ou o tempo subjetivo do narrador.

As descrições das cenas ocorrem todas no tempo passado até a quinta

página do romance. A partir daí, o narrador assume o verbo no presente e a leitura

se torna simultânea ao acontecimento dos fatos. Esse recurso determina uma

similaridade com a experiência cinematográfica, em que espectador acompanha

os personagens e a história no tempo em que tudo é vivido.

O texto de Lourenço Mutarelli parece ter sido escrito para ser lido como

cinema, experienciado. Daí a afirmação do escritor e roteirista Marçal Aquino de

esse ser o livro que mais facilmente transpôs para roteiro. O autor faz uso

basicamente da descrição de ações, diálogos e divagações do protagonista (que,

no longa-metragem, se transformaram em narração over2).

Ele imprime velocidade à narrativa, realiza cortes, acelera o tempo para

depois retomar cenas e citações. Mutarelli possibilita o embaralhamento da

história sem, no entanto, deixar claro se sua ordem está alterada. Tratam-se de

episódios. Não temos, como em muitos outros casos do cinema e da literatura, a

ocorrência de flashbacks ou de inversão temporal. Ele simplesmente cria cenas,

capítulos e os apresenta ao leitor - a quem cabe estruturar seu sentido.                                                         2 Voz over se refere à narração que não é proveniente de nenhum elemento da cena e que se sobrepõe à imagem, não apenas se somando a ela, mas a alterando. 

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Em O Cheiro do Ralo, além das falas, existem reiteradas descrições das

ações de cada personagem, que estão inseridas no fluxo de consciência do

narrador.

Ele entra. Alguns livros nas mãos. Põe aí, sobre a mesa. São bons livros. Ele diz. Desculpe o cheiro. Tudo bem. E não é que hoje voltou a feder? Me surpreendo. É então que ouço o barulho da água. Me levanto e vou até o banheirinho. Splash, splash, splash. O vaso transborda. Ih! Deve ser o sifão. Todo mundo diz isso. A água não para. Molha meus sapatos. Molha os sapatos dele. Ele olha pra mim. Eu olho pra ele. É melhor chamar um encanador. É melhor. O cheiro é forte, hein?! É. E costuma piorar. Falo eu (p.76).

Dessa forma, Mutarelli constrói um texto em que indica diversas imagens,

inclusive sonoras. Ele nos dá elementos muito claros para a construção da

história. Apesar disso, praticamente não existem descrições visuais. São raros os

momentos em que adjetiva alguém ou algum objeto – como é o caso da bunda,

“imensa e disforme”, “redonda e farta” “por estrias e celulite ornada”, e da viciada:

Ela é seca. A calcinha é igual de criança. Ela é osso e pele caída. Nem na Etiópia poderia ser miss. Ela é toda hematomas (p.82).

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Ao invés da supressão de elementos concretos ou descritivos conformar

uma literatura abstrata, sua obra possibilita, curiosamente, leituras bastante

visuais.

Essa característica se relaciona diretamente às duas artes sequenciais às

quais seus livros estão mais estreitamente relacionados: as histórias em

quadrinhos, em que iniciou sua carreira e que o impulsionaram para a literatura, e

o cinema, para o qual toda a sua obra está em processo de transposição.

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HEITOR DHALIA

Formado em Arquitetura, Heitor Dhalia trabalhou em grandes agências de

publicidade do país, onde fez mais de cem filmes publicitários. Sua primeira

participação no cinema foi como assistente de direção no longa de estreia de

Aluizio Abranches, Um Copo de Cólera (1999, baseado em romance de Raduan

Nassar). No mesmo ano dirigiu o curta Conceição e, em 2002, foi co-roteirista de

As Três Marias, daquele mesmo diretor. Seu primeiro longa-metragem, Nina (2004), é livremente inspirado no

romance Crime e Castigo, de Fiódor Dostoievski, e se localiza entre o suspense e

o drama. O filme conta a história de Nina, que tem aproximadamente vinte e cinco

anos e vive longe dos pais na cidade de São Paulo, em um quarto alugado no

velho apartamento de Eulália, uma senhora mesquinha que controla todos os

passos da menina e que lhe cobra todo o tempo o dinheiro que a inquilina lhe

deve. Nina não estuda e sai do emprego como balconista de uma lanchonete

após um surto com vários clientes. Ela frequenta o submundo do centro

paulistano, vai a festas de música eletrônica em que acontecem orgias e todos

usam drogas, tenta vender seus parcos pertences a um ambulante em troca de

dinheiro para comer.

Uma das poucas coisas que a protagonista tem prazer em fazer é

desenhar. As ilustrações utilizadas no filme foram feitas por Lourenço Mutarelli,

com seus traços, temas e técnicas usuais: distorções, seres humanos

deformados, preto no branco feito com nanquim. As imagens expressam a mente

perturbada da menina.

Conforme a avareza e a crueldade de Eulália vão aumentando, Nina

alimenta a ideia de assassiná-la. Sua imaginação e seus delírios são expressos

com animações que se intercalam durante o filme nos mesmos traços dos

desenhos feitos pela personagem. Quando a velha a expulsa do apartamento, ela

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a mata. No entanto, o médico legista atesta: Eulália morreu do coração. O

espectador fica, então, à mercê dos delírios da protagonista.

Em seu primeiro longa, Heitor Dhalia experimenta ao máximo aquilo que

seria uma marca em seus dois próximos filmes: um minucioso trabalho plástico.

Na maior parte das tomadas a câmera não faz grandes movimentações,

mas são constantes as aproximações em close em momentos de maior

dramaticidade. Algumas cenas são enquadradas na vertical, a 180o do sujeito

focalizado (quadro 1), e se desenrolam com a aproximação em close ou em

movimentos giratórios, que denotam o desequilíbrio da personagem (quadro 2).

Quadro 1 – 23min31s Quadro 2 - 1h05min50s

O filme é uma clara referência ao cinema expressionista, tanto no tema

quanto visualmente. Há a predominância de contraste de cores e luz, (Quadro 3)

bem como de algumas pequenas distorções pela proximidade da câmera,

principalmente em contra-plongée3 (Quadro 4) ou uso do “olho-mágico” da porta

(olho-de-peixe) para o enquadramento, e utilização de sombras que se estendem

pelo cenário (Quadro 5). Algumas transições entre diferentes sequências são

feitas em fade preto, tal como em O Gabinete do Dr Caligari.

Os sonhos da menina aparecem em cenas em preto e branco (Quadro 6),

que fazem alusão a figuras do cinema surrealista de Buñuel.

                                                        3 Contra­plongée (em francês, “contra‐mergulho”) se refere ao posicionamento de câmera em que o objeto é filmado de baixo par cima, de forma a situar o espectador abaixo do objeto, o que, em geral, cria uma sensação de grandiosidade e superioridade do que está sendo filmado em relação ao observador. 

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Quadro 3 - 1h09min45s Quadro 4 - 22min51s

Quadro 5 - 59min19s Quadro 6 - 1h02min08

O filme busca ao máximo manter apenas tons de cinza e cores frias com a

predominância do preto, o branco, o cinza, o marrom, o verde e o azul. As paredes

são todas envelhecidas e manchadas em tons de cinza esverdeado. Nina usa

sempre roupas, botas e meias três quartos pretas, maquiagem borrada, seus

cabelos estão sempre sujos e despenteados. Ela sua. A direção de arte (de Akira

Goto e Guta Carvalho) e a fotografia em alto contraste (de José Roberto Eliezer)

são determinantes para a criação do clima de suspense do longa.

Em 2007, Dhalia estreou seu segundo longa, O Cheiro do Ralo (analisado

mais à frente), e, em 2009, À Deriva, filme que o levou à seção Un certain regard

(Um certo olhar) do Festival de Cannes.

À Deriva acompanha as férias de uma família da classe média alta em

Búzios, Rio de Janeiro, no início da década de 80.

A narrativa toma como foco o olhar da filha mais velha, a adolescente

Filipa, que descobre, ao mesmo tempo, as relações amorosas e a traição entre os

pais - um escritor francês e uma professora.

O casal decide passar um tempo na casa de praia na tentativa de se

reconciliar. Porém, todos assistem ao naufrágio da relação.

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O filme se inicia com e é entremeado por cenas subaquáticas em que se

ouve apenas o barulho da água. Cria-se uma imagem poética que nos remete à

solidão e ao pensamento individual.

Neste trabalho, o diretor usou a câmera de forma bastante livre. O

enquadramento, no entanto, se mantém em plano americano e close na maior

parte do tempo. A narrativa trata dos conflitos íntimos de uma adolescente e as

imagens são usadas de forma a evidenciar essa proximidade com seu drama,

apesar da paisagem exuberante do lugar.

Algumas externas do local são feitas em grande angular, mas essa

utilização é menos frequente e, ainda assim, não captam toda a paisagem ao

optar por manter uma certa aproximação com os personagens em cena (exemplos

em quadros 7 e 8).

A cuidadosa fotografia, de Ricardo Della Rosa, aproveita ao máximo a

iluminação natural e destaca tons amarelados como os de fotos antigas,

aproveitando, inclusive, diversos momentos do nascer ou pôr-do-sol, fator que

colabora imensamente para a criação do clima da época em que se passa a

história. Foram utilizadas duas câmeras 16mm e uma 35mm para os planos gerais

e cenas noturnas, em que se pretendia manter a pouca luminosidade.

Quadro 7 – 2min56s Quadro 8 - 1h07min32s

A direção de arte novamente é assinada por Guta Carvalho, que tinha como

premissa adotar intervenções o mais discretas possíveis. A composição é feita

com objetos e figurinos típicos dos anos 80, como se evidencia pelos quadros 9 e

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10, em que vemos uma máquina de escrever, louças e o rótulo utilizado na época

para as latas de Nescau.

Quadro 9 – 9min39s Quadro 10 - 20min12s

O Cheiro do Ralo, o filme

Segundo longa dirigido por Heitor Dhalia, O Cheiro do Ralo se caracteriza

por ser um filme totalmente independente bancado por seus próprios realizadores.

A falta de suporte, segundo eles, deve-se ao receio dos possíveis patrocinadores

em financiar uma obra que transgredisse algumas normas da cinematografia atual.

O primeiro impedimento acontecia a partir do próprio título da obra: O Cheiro do

Ralo afastava qualquer possível apoiador. Em segundo lugar, o roteiro indica a

abertura do filme com um superclose de uma bunda, que toma toda a tela.

Dessa forma, a saída encontrada para sua realização foi a de se

associarem e custear o próprio trabalho. A obra tem baixíssimo orçamento para

um longa. No total, foram gastos R$315 mil.

Após o termino das filmagens, o filme recebeu R$300 mil pelo prêmio de

fomento do Estado de São Paulo, verba que viabilizou sua finalização.

A exibição em salas de cinema, que fez 200 mil espectadores4, aconteceu

apenas a partir de março de 2007 por conta da aprovação do longa pelo edital de

distribuição da Petrobrás. Sob responsabilidade da distribuidora Filmes da

                                                        4 Segundo o roteirista do filme, Marçal Aquino, em palestra realizada no SESC Campinas, em 13/08/2009.  

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Estação, o filme rodou por algumas cidades do Brasil, além de ter sido exibido em

outros países onde recebeu algumas premiações.

Apesar de um processo dificultoso para sua realização, O Cheiro do Ralo é

ganhador de diversos prêmios, entre os quais o de Melhor Filme na Mostra

Internacional de Cinema de São Paulo, no ano de 2006, e de Melhor Ator para

Selton Mello, Prêmio Especial do Júri e Melhor Filme Latinoamericano no Festival

do Rio daquele mesmo ano.

A ideia de filmá-lo surgiu do interesse do diretor Heitor Dhalia pelo livro de

Lourenço Mutarelli, que o levou a comprar seus direitos para a filmagem. O

segundo passo foi tomado por Selton Mello, que, logo depois de ler o texto em

uma ponte aérea, ligou para o diretor se oferecendo para fazer o papel principal. O

ator tinha se encantado com a obra e com seu narrador. Depois de muita

insistência, Dhalia o aceitou como personagem principal.

Em contraposição à única referência espacial relacionada ao centro de São

Paulo no livro de Lourenço Mutatelli, na obra cinematográfica a história se passa

em um bairro industrial. O protagonista, cujo nome não aparece na versão literária,

chama-se Lourenço - primeiro nome do autor do livro, que acabou assumindo, no

filme, o papel do segurança da loja.

O roteiro foi adaptado pelo próprio diretor, Heitor Dhalia, em parceria com o

escritor e roteirista Marçal Aquino, que já criou diversos roteiros para cinema a

partir de livros, inclusive O Invasor e o recente Eu receberia as piores notícias dos

seus lindos lábios, ambos de sua autoria e filmados por Beto Brant. Segundo

Marçal, O Cheiro do Ralo foi a obra que transformou mais facilmente em roteiro,

dada sua construção, em que prevalecem os diálogos e descrição de ações.

Grande parte dos fluxos de pensamento do protagonista foram transformados em

voz over no filme.

No geral, as cenas se mantêm de forma bastante semelhante à do livro.

Tema, estrutura e ações permanecem praticamente os mesmos nas duas obras

(literária e cinematográfica), tendo sido feitas apenas poucas adaptações e

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algumas intervenções dos próprios atores sobre o roteiro e as falas, já que o

diretor trabalha de forma recorrente com a improvisação.

Suas escolhas evidenciam, no entanto, outro tipo de intervenção na obra.

Heitor Dhalia transformou alguns elementos do livro para o filme de acordo com

opções estéticas e narrativas para o “funcionamento” que pretendia para a versão

cinematográfica.

No filme, a relação de Lourenço com a cliente casada (por quem, no livro,

se apaixona momentaneamente) é bastante pontual e se realiza em apenas um

encontro. Esse momento, que se constitui como um dos pontos mais dramáticos

da obra, é suprimido, havendo, portanto, um menor adensamento psicológico do

personagem.

Na história do cinema, é comum observar a tentativa de aproximar a

linguagem cinematográfica à literária, fazendo desta última uma espécie de

manual narrativo para o meio audiovisual. Com o aperfeiçoamento da nova

“linguagem”, no entanto, seus criadores passaram a assumir seus elementos

técnicos como potenciais criadores de um novo discurso, ou melhor, de uma nova

experiência estética.

Assim, o diretor se vale de total liberdade para propor os elementos e

ordenação que constituirão sua obra – que é única.

Ao extenso questionamento sobre qual a relação existente entre a literatura

e o cinema, Andrei Tarkovski pontua: Acima de tudo, a liberdade única, de que desfrutam os artistas de ambos os campos, de escolher os elementos que desejam em meio ao que lhes é oferecido pelo mundo real, e de organizá-los em sequência. Esta definição pode parecer por demais ampla e genérica, mas ela me parece abranger tudo o que há de comum entre o cinema e a literatura. Para além dela, as diferenças são irreconciliáveis, e provêm da disparidade essencial entre o mundo e a imagem reproduzida na tela, pois a diferença básica é que a literatura recorre às palavras para descrever o mundo, ao passo que o filme não precisa usá-las: ele se manifesta diretamente a nós (1998, p.70).

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Essa compreensão por parte dos realizadores permitiu uma crescente

experimentação na linguagem cinematográfica. Mesmo tendo como ponto de

partida a narrativa literária, muitos diretores conseguiram construir obras

audiovisuais bastante diversas do proposto por palavras escritas. Um dos

exemplos, no caso brasileiro, é Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos (1963,

baseado em obra homônima de Graciliano Ramos). O diretor faz uso de recursos

expressivos próprios do meio cinematográfico, utilizando as imagens como

possíveis geradoras de novas sensações.

Segundo Carlos Avellar (2007), em Vidas Secas, o diretor aproveitou as

palavras de Graciliano como estímulo para criar suas imagens e não como

reconstituição de uma imagem verbal. Para ele:

Um texto (literário ou cinematográfico) fala por seus procedimentos estilísticos e não pelo eventual caráter fotográfico de sua escrita. Ver um filme não se reduz a uma leitura direta do que vemos na tela no momento da projeção, nem ler um livro se reduz à imediata identificação das palavras impressas no papel (p.55).

Ainda assim, a influência de ambas as artes uma sobre a outra, reciproca-

mente, é marcante: “Ao passar os olhos pela literatura (eureka!) o cinema

descobriu que a imagem não é só a flor da pele: é também texto. Ela não ilustra o

que pensamos com palavras: ela pensa de outra maneira” (idem, p.56).

Ao defrontar as duas propostas de O Cheiro do Ralo, nota-se outra

intenção que não a da “fidelidade” da obra cinematográfica.

No livro, a bunda é descrita como “enorme”, “farta” e “quase disforme” e

como único atributo da garçonete cuja “cara era melancólica”, “quase

inexpressiva” (utilizando palavras da própria obra).

No filme, a personagem é representada pela atriz Paula Braum, que possui

uma beleza mais delicada e mais dentro dos padrões publicitários do que a

descrição da obra literária. A garçonete, no filme, não se identifica com a

personagem descrita no livro, cujo único atributo seria a bunda. As imagens

pretendidas são outras.

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Ao mesmo tempo em que propõe um elemento de uma beleza comum, em

contraposição à obra literária, Heitor Dhalia opta por uma construção de um

espaço fílmico que se distancia de ambientes reais, de uma possível experiência

compartilhada. Ele tenta recriar o universo das histórias em quadrinhos.

Cenários e figurinos não buscam se aproximar das possibilidades de

visualidades cotidianas dos espaços onde se passa a narrativa ou das

caracterizações de pessoas “comuns”. Ao invés disso, a obra é construída de

forma a se remeter a ela mesma, a uma criação, e se aproxima mais do universo

das HQs do que daquilo que se vê como usual no cinema mais recente. Por um

lado, a busca pela representação do real - estética reforçada pela própria

utilização, de formas diversas, de espaços “reais” pelo neorrealismo italiano, pela

Nouvelle Vague e, no Brasil, pelo Cinema Novo ou, mais recentemente, por obras

que tentam revelar uma vertente da realidade, ainda que ficcional e plastificada, tal

como o emblemático Cidade de Deus e outros filmes que geraram discussão

sobre uma possível “cosmética da fome”, termo criado por Ivana Bentes em

contraposição à “estética da fome” de Glauber Rocha. Por outro, a criação de um

mundo imaginário, como na “ficção científica” ou mesmo nos filmes criados a partir

de HQs, que fazem o uso recorrente de ferramentas de edição e computação

gráfica, buscando a imagem fantasiosa.

O Cheiro do Ralo se passa entre esses dois mundos. Não há manipulação

imagética a ponto de torná-lo virtual, afastado da materialidade concreta. Sua

cenografia, objetos de cena, figurinos e demais elementos são reais, palpáveis,

construídos de fato. No entanto, sua criação se dá de forma a afastá-lo da

experiência do espectador. Evidencia-se a escolha de locais, a construção da obra

em si. A composição de quadros, planos e sequências é feita de forma a não

ocultar um trabalho ficcional.

O estranhamento que a ambientação pode causar em quem assiste ao

filme é, em parte, função da obra de arte. O deslocamento do banal ou apenas

seu enquadramento, sua evidenciação pela arte o ressignificam. Os sujeitos se

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deparam com algo comum em um contexto inesperado, o que faz com que

experienciem aquilo de outra maneira ou mesmo reflitam a respeito.

Em seu livro O Ato da Leitura, Wolfgang Iser discorre sobre a concepção de

Roman Ingarden, para quem o padrão fenomenológico para a definição de objetos

diz respeito à existência do objeto real, aquele que é apreendido, e do objeto ideal,

o que é constituído, imaginado.

Para ele, o objeto de arte se distingue desses dois por ser de natureza

intencional: não possui a determinação universal do objeto real nem a existência

autônoma do ideal, “pois é um objeto que espera sua realização” (1999, p.108).

Essa realização apenas acontece pela relação de sentido que é estabelecida pelo

sujeito que com ela se relaciona.

A criação imagética no filme O Cheiro do Ralo se dá nesse âmbito, entre o

real e o ideal. Utilizam-se elementos usuais para a criação de composições outras,

incomuns.

Ao optar pelas filmagens em um único galpão – onde foram construídos

todos os ambientes – e por tomadas externas sem ações específicas (apenas

como conexões para outras sequências, transições), o direcionamento do filme se

encaminhou para uma forte intervenção imagética sobre esses espaços. O

“universo” em que se passa o longa é criado por um intenso trabalho de direção

de arte e de fotografia.

O Cheiro do Ralo pode, em alguns aspectos, se aproximar de algumas

formas de produção cinematográficas, como o “cinema de transgressão”

estadunidense, criado pelo movimento punk nas décadas de 70 e 80 (e cunhado

como tal em 85 por Nick Zedd). Com a proposta de produzir choque e humor, suas

filmagens em geral eram feitas com câmeras super 8, enfocando temáticas

irônicas e fetichistas. Ou ainda o chamado “cinema de borda”, filmes feitos de

forma totalmente independente com baixíssimo orçamento.

No entanto, ambos os gêneros pautam-se por uma estética bastante tosca,

improvisada. As condições de realização ficam evidentes no resultado final e essa

é mesmo a intenção.

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Em contraposição, Heitor Dhalia, que criou sua trajetória profissional na

publicidade, prima por uma construção plástica milimétrica – tal como os demais

trabalhos do diretor - ainda que com poucos recursos. Ao mesmo tempo em que

utiliza um orçamento baixíssimo para um longa, realiza um cauteloso trabalho de

arte. A unidade estética de seus filmes é extremamente cuidadosa.

A Direção Tal como a obra literária, o longa-metragem O Cheiro do Ralo é dividido em

capítulos.

O filme se caracteriza por uma direção basicamente estática e de edição

fragmentária. Praticamente todas as tomadas são feitas com câmera fixa, exceção

a pequenos movimentos em que se acompanha algum personagem ou em cenas

que denotam o delírio do protagonista ou atos de violência (quadros 11 a 14),

todas elas feitas com câmera na mão em que a imagem é produzida de forma

bastante trêmula e instável.

Quadro 11 - 1h16min31s Quadro 12 - 1h16min38s

Quadro 13 - 1h16min48s Quadro 14 -1h18min25s

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A grande maioria dos enquadramentos é feita com a câmera horizontal em

posição frontal, lateral ou na diagonal do que é filmado. O contra-plongée é usado

poucas vezes com o objetivo de ampliar a dramaticidade da cena, tal como

quando Lourenço agride, sem qualquer motivo, o cliente que havia lhe oferecido

um relógio de bolso na primeira cena e que retorna à loja no meio da narrativa.

Com o personagem caído no chão na parede oposta ao banheiro, Heitor Dhalia

posiciona a câmera em um plano baixo atrás da mesa do protagonista. Durante as negociações, os personagens estão em primeiro plano, com

enquadramento que se inicia na mesa de Lourenço.

Aliados a posicionamentos de câmera quase sempre frontais, os cortes

secos geram o sentido de fragmentação visual. A ideia de continuidade, no

entanto, é construida por elementos geométricos que persistem na cena – daí a

insistência no círculo marrom da fachada da loja.

As transições são feitas também pela trilha sonora. O diretor faz uso de

músicas na abertura, em que acompanhamos a bunda até a lanchonete, em

momentos em que evidenciam a solidão do protagonista (assistindo à televisão

em casa, por exemplo) e em situações tensas ou cômicas: quando dá em cima da

bunda na lanchonete, quando a noiva entra com faca na loja, quando o encanador

lhe dá uma bronca, quando começa a fechar o ralo. Nesses casos, tratam-se

sempre de músicas que tendem à comicidade. Heitor Dhalia opta por enfatizar o

lado engraçado da obra.

Outra característica destoante nas diferentes obras homônimas diz respeito

ao tempo das narrativas.

Enquanto Lourenço Mutarelli realiza cortes bruscos entre capítulos,

fragmenta cenas e as próprias frases, que vão se completando mesmo após

diversos pontos finais, Heitor Dhalia opta pela transições em que o protagonista

vaga pelas ruas vazias da cidade. O diretor prorroga a duração desse caminhar,

cria amplos espaços com o enquadramento em que Lourenço, o personagem,

ocupa pequena parte da tela. A distância criada pelos diferentes panos de fundo

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das obras em questão, de ambientação e cenário, diz respeito também à relação

temporal criada entre obra literária e leitor, obra cinematográfica e espectador.

Ao defrontar livro e filme, torna-se evidente, ainda, a supressão, no trabalho

audiovisual, de grande parte dos momentos que carregam mais peso dramático,

principalmente as cenas que apresentam sexo.

Quando sua noiva o procura na loja, Lourenço apenas lhe arranca a faca e

a dispensa dizendo que “não tem nada pra oferecer”. No livro, pelo contrário, a

mulher, chorando, se oferece a ele. Lourenço descreve a cena com sarcasmo e se

satisfaz com ela, mandando-a embora em seguida.

Em outra parte da narrativa, o diretor suprime toda a contextualização a

respeito da mulher casada com quem o comprador se envolve (no livro). No filme,

ela apenas chega e já se inicia o jogo entre eles: Lourenço lhe dá dinheiro para

que tire a roupa.

O aprofundamento dos delírios do protagonista também fica menos claro na

obra audiovisual. No decorrer do filme, alguns enquadramentos provocam leves

distorções em seu rosto e a maquiagem o empalidece de forma sutil.

Suas dores de barriga, um dos fatos condutores da história, não existem

em imagens visuais ou sonoras. Subentende-se a situação pelas vezes em que

Lourenço sai do banheiro e se ouve o barulho de uma descarga.

Dessa forma, torna-se evidente a importância da criação de metáforas que

revelem o que não está presente na obra. Nesse sentido, o trabalho de direção de

arte se constitui como um dos elementos mais enfatizados no longa-metragem. As

cores que representam o ralo, a maquiagem que denota o enjôo e os delírios, a

frieza dos cenário contribuem em grande parte para a criação dos sentidos

propostos por uma direção que opta por sugerir, não por mostrar.

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Direção de Arte

Função que se alterou muito ao longo da história do cinema, a direção de

arte se constituiu, a princípio, pelo trabalho de cenografia, que hoje faz parte de

um conjunto maior de ações, cuja intenção é refletir sobre a concepção estética do

filme criada pelos elementos físicos que aparecem em cena (locação, cenografia,

figurinos, objetos de cena, maquiagem, entre outros tantos), além de coordenar as

funções da equipe que realizará tudo o que foi concebido.

Enquanto o diretor de fotografia define climas a partir da escolha de lentes,

suportes de captação da imagem, iluminação, entre outros aspectos, a direção de

arte se ocupa com a composição dos espaços e elementos que o constituem

fisicamente, a arquitetura, a definição da paleta de cores pela qual as imagens

transitam, assim como o uso de texturas. Todas essas etapas ocorrem de forma a

propor imageticamente uma coerência plástica e visual ao filme buscando

metáforas que se associem à proposta do trabalho. São criados climas a partir de

todas as escolhas.

A cinematografia tem empregado suas possibilidades de diferentes

maneiras com o decorrer do tempo. Inicialmente inexistente dentro dos grandes

estúdios em que se faziam as filmagens, a função do diretor de arte (também

chamado por Production Designer) se tornou predominante no cinema

contemporâneo de muitos países, o que demonstra a importância da criação

estética nas obras a partir dos itens que as constituem de forma mais elementar.

De acordo com Vincent LoBrutto (2002):

A production design metaphor takes an idea and translates it visually to communicate or comment upon the themes of the story. An object or an image is transformed from its common meaning and stands in for or symbolizes an aspect of the narrative, and thus adds poetic complexity to the story. The metaphors evoked by images may be complex and be comprehensible to varying degrees, but often the viewer easily reads a latent meaning. Unlike the intangible words in poetry that conjure up multiple meanings and symbolic imagery in the reader’s mind, images in movies are concrete. Using an object or image to transcend the purpose of its physical reality is a challenge, because the metaphorical intent may

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appear vague. It may be difficult to get the audience to understand the narrative objective of the metaphor 5(p.25).

O processo de criação dessas metáforas acontece em diferentes fases e

passa primeiro pela leitura do roteiro, a partir do qual se define, em diálogo com a

equipe (principalmente com o diretor e diretor de fotografia), o universo imagético

em que ocorrerá a história, como serão, imageticamente, os personagens e

espaços, qual o clima e ambiente sensorial.

As referências utilizadas para se pensar composições, paleta de cores e

climas têm, em grande parte, origem nas artes visuais. Muitos pintores são

inspiradores do trabalho de arte na cinematografia mundial.

O longa Moça com brinco de pérolas (direção de Peter Webber, 2003) foi

criado a partir do best seller da escritora Tracy Chevalier, que ficciona a história da

modelo retratada pelo holandês Johannes Vermeer em quadro com o mesmo

título.

Vermeer é considerado um dos mais importantes pintores da Holanda e sua

mais consagrada obra – que deu origem ao livro e ao filme – foi a inspiração para

que a equipe criasse o clima e a unidade estética audiovisual. O filme aborda a

relação do pintor com a modelo (que trabalha limpando sua casa) e sua

aproximação por conta da afinidade que têm em relação ao preparo das tintas e

ao cuidado com a limpeza das janelas, que influencia a luz incidente no cenário a

ser retratado. A obra se torna, de certa forma, metalinguística. Ao mesmo tempo

em que é criada a partir do trabalho do pintor, realiza, ela mesma, a construção

imagética sobre a obra de Vermeer. O longa se tornou uma referência no quesito

                                                        5 A metáfora criada pela direção de arte parte de uma ideia e a traduz visualmente para comunicar ou comentar a respeito de temas da história. Um objeto ou imagem é transposto de seu significado comum a fim de substituir ou simbolizar algum aspecto da narrativa, além de proporcionar uma complexidade poética  à  história.  A metáfora  evocada  pelas  imagens  pode  ser  complexa  e  ter  sua  compreensão  em diversos níveis, mas normalmente o  espectador pode  facilmente  fazer uma  leitura de  seu  significado latente.  Diferentemente  das  palavras  incompreensíveis  da  poesia,  que  dão  margem  a  múltiplos significados e  imagens na cabeça do  leitor, as  imagens de um filme são concretas. A utilização de um objeto de forma a transcender sua fisicalidade é um desafio, já que o propósito metafórico pode parecer bastante vago. Por vezes se  torna difícil   a compreensão do público para com o objetivo narrativo da metáfora (tradução minha). 

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e recebeu três indicações ao Oscar, justamente pelos trabalhos de fotografia,

direção de arte e figurino.

Em outros casos, a influência pode vir de outras formas de arte ou ser

desenvolvida por meio de diferentes processos criativos. Para o longa Rush (1991,

Lili Zanuck), que conta a história de dois policiais que investigam narcóticos e se

tornam eles próprios viciados, o diretor de arte Paul Sylbert criou metáfora visual a

partir da ideia do inferno a que os personagens têm acesso. Pensando na

dualidade, em elementos que se repelem, ele fotografou poças formadas depois

da chuva em postos de gasolina, em que se distinguem água e óleo (que brota do

interior da terra, outra relação com a proposta). A paleta trabalhada foi definida a

partir das cores refletidas pela incidência da luz nessas poças (LOBRUTTO,

2002).

Nesse processo de criação, com base nas definições que vão sendo

tomadas, a equipe se responsabiliza pela pesquisa de alocações ou espaços

possíveis para as filmagens, assim como de objetos de cena, roupas e demais

utensílios a serem utilizados na obra.

As possibilidades de composição dos quadros6 são pensadas a partir

desses elementos. No caso específico da direção de arte, elas englobam cenários,

objetos de cena, e os próprios personagens com seus figurinos, adereços,

maquiagem e afins. A equipe tem que estar sempre disponível, antes, durante e

após as filmagens. É de sua responsabilidade preparar o set, garantir que todos

os itens necessários às cenas estejam à mão quando necessário, além de dar

cabo de todos os objetos, móveis e demais utensílios utilizados após o término

das filmagens.

As cores sobre as quais se trabalha em um filme não possuem apenas valor

decorativo ou estético, mas também, e principalmente, dramático, e são sempre

resultantes da afinação entre arte e fotografia.

                                                        6 O conceito de quadro diz respeito à imagem que cabe em um fotograma e que se assemelha ao quadro de pintura, imagem estática, que cria um limite de imagem (AUMONT, 1995), aquilo que é enquadrado, e que constitui a unidade elementar da imagem em movimento.  

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A escolha da paleta depende não apenas da criação das cenas, mas do

trabalho estreitamente próximo com diretor de fotografia, já que são necessários

conhecimentos sobre qual tipo de luz será empregada, assim como dos filtros

utilizados tanto nas lentes quanto nos refletores, além do suporte em que serão

registradas as filmagens. Tons, películas, formas de revelação (no caso do

analógico) ou regulagem de câmera e tratamento (em meios digitais) definem o

resultado final. É necessário, portanto, um trabalho muito próximo entre esses

profissionais e conhecimento mútuo entre as respectivas áreas.

A transformação de um roteiro em filme requer reflexão e escolhas bastante

explícitas em relação a todos os elementos da história. Quem são os

personagens? Onde vivem? Em que época? Qual sua camada social e de que

forma se relacionam com o mundo? As respostas a essas perguntas são definidas

pelo diretor e propostas ao espectador por meio de imagens. As roupas, a

maquiagem, o cabelo de um personagem, sua casa, seu trabalho, tudo comunica

algo a respeito dele.

Em É proibido fumar, de Anna Muylaert (2009), a personagem principal

(interpretada por Glória Pires) é uma professora de violão que vive sozinha no

apartamento dos pais já falecidos. O filme todo se constrói pela tentativa

angustiante da protagonista em largar o cigarro. Sua caracterização é bastante

clara: trata-se de uma mulher entre os quarenta e cinquenta anos que vive

atrelada ao passado e à sua condição dentro da própria família. Seu nome, Baby,

já diz de si. Ela usa um corte de cabelo e penteados fora de época, franja e

tranças como se ainda fosse uma criança. Suas roupas também explicitam sua

falta de cuidado consigo mesma. Esses elementos vão se transformando com a

narrativa, conforme a personagem se apaixona pelo vizinho (interpretado por

Paulo Miklos) e passa a tentar chamar sua atenção. Sua preocupação com a

aparência e o abandono do cigarro exigem um esforço do qual ela não parece ser

capaz ou estar disposta a realizar. Essa contradição contribui para a angústia do

espectador, que acompanha suas ações de uma posição totalmente

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desconfortável, sem vislumbrar possíveis resoluções para o drama, cuja

complexidade vai aumentando no decorrer da narrativa.

Entre outros prêmios, o longa ganhou como melhor Direção de Arte (de Ana

Mara Abreu) no 42o Festival de Brasília.

Tal qual no filme citado, a direção de arte em geral procura criar uma

unidade não apenas plástica, mas de sentido nas obras.

Pensar a constituição do cinema a partir de seus elementos mais básicos,

tais como a própria direção de arte, fotografia, enquadramentos e movimentos de

câmera, significa entendê-los como fundamentais para a experiência

proporcionada pela obra.

Direção de Arte em O Cheiro do Ralo

A estética do filme foi pensada a partir de sua realidade e do baixo

orçamento disponível.

De acordo com a diretora de arte Guta Carvalho, em entrevista para esta

pesquisa, a proposta passou a ser a de criar uma unidade visual que se

remetesse ao universo imagético das histórias em quadrinhos. O processo de

transposição da obra literária para o cinema se dá em relação estreita com a

trajetória profissional do autor do livro, premiado quadrinhista, cujo primeiro

romance é O Cheiro do Ralo.

Heitor Dhalia, Guta Carvalho e José Roberto Eliezer (diretor de fotografia)

quiseram imprimir no longa essa mesma experiência estética, recriando-a em

outro suporte, outra linguagem, construída com outros recursos.

A impossibilidade de utilizar locais públicos para as tomadas – o que

exigiria um equipamento muito mais dispendioso, tais como gruas, refletores e

uma equipe e mobilização muito maiores – fez com que o diretor optasse por uma

locação única que lhe possibilitou maior liberdade para a construção do espaço e

posicionamento de câmera.

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As filmagens foram realizadas em um galpão alugado no bairro da Mooca,

onde se construíram os espaços cênicos, além de tomadas mais simples feitas

nas ruas e na lanchonete.

A loja é constituída pela sala de Lourenço (onde acontecem as negociações

com seus clientes), o banheiro de sua sala (onde se encontra o ralo), a sala de

espera e um estacionamento.

De sua casa, aparecem sala (onde assiste à televisão), cozinha (onde

termina seu noivado) e hall do prédio (onde recebe sua ex-noiva e o entregador de

pizza).

As ações da narrativa acontecem em tomadas internas (loja, casa e

lanchonete). As externas são utilizadas como transições e servem também como

contextualizações do espaço fílmico.

Tratam-se de cenas em que pessoas chegam ou vão embora da loja,

normalmente sozinhas - acontece apenas um encontro entre a viciada que sai

enfurecida, quebrando um prato que não foi comprado por Lourenço e outro

vendedor que chega à loja, além da entrada de dois encanadores conjuntamente.

Em outros casos, Lourenço transita pelas ruas vazias, cinzas, atravessa

quadros que têm como fundo apenas fábricas, galpões, muros pichados. A

câmera se mantém sempre estática.

Em toda paisagem há intervenções, sejam elas aguadas7 ou a criação de

pinturas (como o círculo marrom na fachada da loja ou os coqueiros em um dos

muros pelos quais Lourenço passa).

Na loja e na casa existem muitos móveis de diferentes estilos, épocas,

origens. Não há predominância de um padrão, o que gera, assim como no livro,

uma suspensão das referências temporais exatas. Por esses elementos apenas,

não se pode intuir de que década se trata pela falta de um estilo arquitetônico, de

móveis ou moda.

Ao mesmo tempo, a composição é feita em padrões geométricos. Em

praticamente todos os planos existe a divisão do quadro em dois espaços por uma                                                         7 Diluição de tinta em água que busca efeitos diversos, como a aparência de envelhecimento da parede. 

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linha predominantemente horizontal. Esse elemento contribui com a ideia de

fragmentação, de quebra da unidade e de achatamento, tal qual a imagem

tipicamente bidimensional dos quadrinhos.

Prevalecem no filme tons de cinza e marrom.

O figurino de Lourenço é todo criado em tons de marrom, uma estreita

relação com a ideia do ralo, do esgoto. Ele é o próprio excremento de que trata o

filme. Suas roupas não têm estampas. O único momento em que veste uma

camisa com o desenho de pássaros é quando sonha com a bunda.

O cinza se impõe sobre o cenário e sobre a própria paisagem. A fachada da

loja de Lourenço, assim como sua parte interna, são cinzas: paredes, chão,

armários. Essa é a cor do ambiente urbano que, nas composições do filme

abordado, se liga à frieza e individualidade do protagonista, à sua solidão e à dos

demais personagens.

A garçonete, pelo contrário, é a única personagem que usa roupas com

estampas figurativas: flores, coqueiros, barcos, cogumelos. Sua caracterização

sempre remete a paisagens, assim como a própria abertura do longa é feita num

enquadramento superclose de sua bunda. O shorts utilizado por ela possui,

justamente, estampa de uma praia. O diretor estabelece aí um jogo. A

predominância da bunda na tela se impõe como a própria paisagem,

contextualização e localização do filme.

A lanchonete também se diferencia dos demais espaços do longa. É um

local colorido, em que há pessoas, frutas, vida. É ali que se dá o encontro de

Lourenço com um outro mundo não tão solitário quanto o seu.

A própria garçonete é a simbolização da ação emocional, do que é

imediato, do gosto “popular”. Ela lê a Revista dos Astros e se interessa logo por

Lourenço ao perceber suas investidas e o convida para “tomar uma cervejinha”.

Assim como em suas demais ações, Lourenço sente a necessidade de

“coisificar” aquela bunda, que se torna seu maior objeto de desejo. Ao invés de

convidá-la para sair, prefere pagar para vê-la. Não deve haver envolvimento

emocional.

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Sequência de abertura

O Cheiro do Ralo se inicia com a sequência em que uma bunda toma toda

a tela. A câmera a segue pelas ruas, enquandrando-a ora pela diagonal direita,

ora perpendicularmente.

Não se pode ver o rosto da personagem ou qualquer outra parte de seu

corpo, a não ser parte das pernas e braços, na altura do quadril.

Ironicamente, veste shorts cuja estampa figura coqueiros, flores, um veleiro

e ondas. Cria-se a imagem de paisagem em duplo sentido.

A tendência da cinematografia mundial é a de realizar aberturas com

paisagens. É dessa forma que se localiza o espectador no filme. Uma grande

angular que caminha para cortes ou aproximações dos personagens, tomadas

internas. É esse o caminho de fora para dentro do filme.

Em O Cheiro do Ralo, o sentido da sequência inicial pode ser entendido de

forma semelhante. O diretor nos localiza na paisagem do filme: a bunda. É ali que

se passará, simbolicamente, a história. Se não na bunda, em parte daquilo que ela

produz, o que dá origem aO Cheiro do Ralo.

No entanto, a sequência é criada de forma a deixar entrever por onde essa

personagem caminha. É possível vislumbrar paredes, calçadas, portões, postes.

Tudo cinza e bege – como as demais paisagens do filme, analisadas mais à frente

neste texto.

A bunda segue pela rua e entra em uma lanchonete. Ali podemos, pela

primeira vez, visualizar o rosto de uma pessoa: Lourenço, que lê sentado ao

balcão.

A personagem passa para a parte interna do balcão e se abaixa para pegar

algo. Há, então, um corte para o enquadramento de Lourenço que vê e torna a

olhar para a bunda que, percebe-se, chamou sua atenção. Há outro corte e a

câmera se volta novamente para a bunda.

Instaurou-se, aí, imagética e dramaticamente, a relação de Lourenço com

seu “objeto” de fetiche.

A segunda sequência se inicia já na fachada de sua loja.

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Quadro 15 - 29s Quadro 16 - 43s

Quadro 17 - 52s Quadro 18 - 1min09s

Quadro 19 - 1min24s Quadro 20 -1min32s

Quadro 21 - 1min41s Quadro 22 - 1min45s

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Quadro 23 - 1min50s Quadro 24 - 1min52s

Fachada da Loja

Como todas as tomadas externas, não há ações específicas quando as

cenas se localizam na fachada da loja de Lourenço.

O enquadramento é quase o mesmo em todas elas e se tratam de

momentos apenas de chegada ou saída de seus clientes ou do próprio

protagonista. Essa construção se dá em estreita relação com a estrutura do livro:

as sequências se iniciam repetidamente com “ele entra” ou “ela entra”. A câmera é

quase sempre estática, não realizando nenhum tipo de aproximação ou

afastamento. Ao longo do filme, a semelhança entre as tomadas insinuam, mais

uma vez, a ideia de monotonia e repetição.

Quadro 25 - 30min30s Quadro 26 - 30min40s

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Quadro 27 - 41min58s Quadro 28 - 42min02s

Assim como nas cenas da chegada ou saída de clientes, não há

movimentação de câmera em quase todo o filme. A mudança de enquadramento

ou a aproximação da cena acontece basicamente por cortes, como no caso do

cliente que vende o olho para Lourenço e do segurança, quando expulsa um dos

vendedores a pedido do dono da loja. Nesses exemplos, o enquadramento de

ambos os personagem também se repete.

Tal qual no livro, o filme utiliza a repetição como ferramenta discursiva. No

caso das duas obras, não se trata de informação específica que se pretende

comunicar, mas sim de provocar no leitor ou espectador a sensação de incômodo,

mesmice, de que anda em círculos.

A fachada da loja é composta por uma parede cinza com marcas das

pinceladas e por uma espécie de moldura branca que a divide em quatro partes.

No canto esquerdo, a parede serve como uma espécie de fuga do espaço fílmico.

É por ali que todos os clientes chegam ou saem. No canto direito, localiza-se a

porta da loja. Em metal cinza, gasto, antigo, ela possui um stencil8 de uma cadeira

em sua parte inferior direita.

A composição se assemelha a jogos de videogame em que o final de cada

fase possui uma porta, portal ou alguma passagem para que o jogador acessa sua

continuação. É por aquela porta que os personagens entram no mundo de

                                                        8 Tipo de pintura muito comum em intervenções urbanas que utiliza fôrma vazada pela qual passa a tinta.

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Lourenço. É ali dentro que ele lhes impõe seu jogo. Normalmente, é ele quem

ganha.

No meio do cenário, em uma das partes da parede cinza, existe um grande

círculo preenchido de marrom, no mesmo estilo de pinceladas. Esse ponto

persiste em todas as tomadas da fachada e se relaciona imageticamente com o

ralo da loja e com o olho que o protagonista compra.

Esse círculo simboliza os dois objetos, cujas características são atribuídas

àquele local. A loja fede, ali é o próprio esgoto. É por ali que todos vão, de fato,

entrar. É por aquele “portal” que adentrarão o universo fétido construído por

Lourenço. Heitor Dhalia produz, com isso, uma ideia de continuidade entre as

cenas. O círculo faz a transição de uma tomada a outra.

Ao mesmo tempo, ele serve como uma fuga do filme. É o olho que “já viu

de tudo”. Ele se lança para fora da tela.

Quadro 29 - 2min10s Quadro 30 - 11min37s

Quadro 31 - 20min02s Quadro 32 - 41min02s

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Quadro 33 - 56min39s Quadro 34 -58min52s

Quadro 35 - 1h05min55s Quadro 36 - 1h18min25s

Composição da Loja

É na loja onde se passa a maior parte do filme. Ali acontecem as

negociações de Lourenço com seus clientes, é o espaço onde estabelece seu

jogo, exerce sua perversão.

Trata-se de uma sala bastante ampla em que a direção de arte inseriu

diversos elementos. São artigos velhos ou antigos, de procedência e contextos

diversos. Não existe uma unidade sobre o estilo do mobiliário, não havendo,

assim, forma de se distinguir a época de sua origem.

Existem alguns enquadramentos que se repetem. Por vezes, a câmera se

coloca próxima ao ponto de vista de Lourenço, não pretendendo, no entanto,

simbolizar seu olhar. Em geral, essas tomadas têm como fundo a parede em que

há diversos porta arquivos empilhados uns em cima dos outros. São peças de

cores e tamanhos diferentes, compondo uma espécie de unidade fragmentária.

Esses objetos representam a paleta de cor básica do espaço.

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Os quadros são criados de forma a compor figurinos com esse elemento do

cenário. Na maior parte das cenas, os personagens estão dispostos bastante

próximos à parte do porta arquivos que representa a cor da roupa que ele próprio

veste. Podemos notar essa identificação em diversos momentos, como, por

exemplo, nos quadros 37 a 42.

Quadro 37 – 2min23s Quadro 38 - 6min29s

Quadro 39 – 23min03s Quadro 40 - 48min09s

Quadro 41 - 59min10s Quadro 42 - 1h08min15s

Mesmo quando há cortes na imagem, seguidos de aproximação do

personagem, o enquadramento busca manter essa intencionalidade e dar ênfase

a outros elementos dentro da mesma composição (quadros 43 e 44).

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Quadro 43 - 17min06s Quadro 44 - 17min12s

No caso acima, a gola da camisa do vendedor do violino se identifica com a

numeração do porta arquivos cinza. No quadro 43, ela está à sua esquerda. Após

o corte (quadro 44), o enquadramento a captura à direita.

A direção de arte do filme brinca o tempo todo com formas de composição

que estimulam o reconhecimento de elementos comuns e, ao mesmo tempo,

causam estranhamento.

A parede formada pelos porta arquivos, por exemplo, estimula a tensão por

se constituir como um objeto dramático. Trata-se de algo concreto utilizado de

forma não convencional. O espectador compartilha o entendimento do que sejam

aqueles objetos. Porém, eles são utilizados de forma estranha. Ao mesmo tempo

em que provocam uma difusão do olhar e a fragmentação por conta de sua forma

de montagem (diversos retângulos de diferentes tamanhos e cores sobrepostos

uns aos outros), chamam a atenção pela identificação com outros elementos que

se revezam em primeiro plano nas diversas tomadas do longa metragem (tal como

a exemplificada acima).

Na cena em que a viciada abre a porta totalmente nua acusando Lourenço

de ter abusado dela, os clientes entram em sua sala e o agridem. Nesse

momento, os vários atores se localizam bastante próximos, criando a ideia de

multidão, e se posicionam em frente à pilha de porta arquivos (quadro 45).

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Ao lado dos porta arquivos, existe uma máquina de pinball9 e uma balança

antiga, com o marcador redondo, que é utilizado algumas vezes para compor a

transição entre uma cena e outra. Nos cortes, ela aparece na mesma posição que

o círculo da fachada da loja ou o olho.

Quadro 45 - 1h16min48s

Quadro 46 - 5min58s Quadro 47 - 26min19s

Atrás da mesa de Lourenço existe uma estante de livros, relógio, cabide

(que fica o filme todo dependurado sem roupa), a porta do banheirinho (ora aberta,

ora fechada), um bebedouro, diversos painéis de recados, uma estante pequena e

outra maior, de madeira, que ocupa todo seu lado esquerdo, onde deposita muitos

objetos. Esse móvel fica inteiro tomado pelas mercadorias: aparelhos de televisão,

ventilador, relógios, luminárias, cabeça de boneca, garrafas, manequim, caixas,

além de um capacete de astronauta – que, após as filmagens, foi dado como

recordação do filme para o autor do livro, Lourenço Mutarelli, e se tornou elemento

para outra história sua, transformada em quadrinhos por Olavo Costa e Fernando

Saiki (O Astronauta, editado pela Zarabatana Books em 2010).                                                         9 Jogo de fliperama bastante comum na década de 80. 

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Quadro 48 – 1h20min11s Quadro 49- 2min38s

Quadro 50 - 6min Quadro 51 - 1h01min02s

Quadro 52 - 1h25min37s

Essa estante concretiza a confusão de Lourenço e, mais uma vez, serve

como recurso narrativo que gera a ideia de fragmentação pelos cortes, diálogos

curtos e repetições. Os objetos compõem uma imagem que apresenta profusão,

complexidade.

A lateral esquerda da sala aparece menos na narrativa, já que foi por seus

enormes vitrôs que entrou a luminosidade para as filmagens – outra forma de

diminuir os gastos para a realização do longa-metragem.

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Quando as tomadas a focalizam, parte dos vidros está fechada para evitar

a luz contra a câmera.

Quadro 53 - 13min Quadro 54 - 1h33min16s

Nessa parede se encontram também outros móveis bastante gastos,

estantes, escrivaninhas, assim como objetos variados: televisão, uma máquina,

pastas de arquivo e uma porta que permanece fechada.

A porta de entrada da sala, que dá acesso à sala de espera, se posiciona

na parede da lateral direita de Lourenço. Nesse plano existe um vitrô grande, que

fica fechado na maior parte do tempo, um sofá (em que Lourenço se senta apenas

uma vez para negociar com um cliente que lhe oferece um rastelo), uma geladeira

antiga, um carrinho mecânico para transportar cargas, entre outros elementos,

como algumas latas e uma boneca de plástico.

Como nas tomadas externas, os clientes chegam da esquerda para a

direita, onde Lourenço se senta. O ambiente que eles ocupam é apenas da mesa

para trás. O único momento em que alguém ultrapassa a mesa é quando a cliente

casada tira a roupa e faz sexo oral no protagonista em troca de todo o seu

dinheiro (que ele guarda em caixinhas de charuto na gaveta de sua mesa).

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Quadro 55 - 48min32s Quadro 56 - 1h29min43s

Atravessando a porta, encontra-se a sala de espera, única entrada para a

loja. O acesso até ela se dá por um elevador antigo, de porta sanfonada. Algumas

tomadas são feitas por ali na chegada de Lourenço ou de clientes (como a esposa

que se despe para ele ou o vendedor da perna mecânica).

Quadro 57 - 1h10min36s Quadro 58 - 1h20min52s

Quadro 59 - 33min28s

Nesse ambiente, ficam a secretária, o segurança, além de algumas

pessoas que aguardam para serem atendidas.

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Ao fundo da mesa da secretária, mais um vitrô grande dá acesso à sala de

Lourenço.

As paredes são divididas em duas partes. A parte inferior é pintada de um

verde escuro muito gasto e separada da superior, de cor branca suja, por duas

faixas estreitas nas cores amarela e vermelha.

Um orelhão antigo, vermelho, estante com arquivos, mesinha de centro,

sofá, telefone e computador são objetos que compõem o ambiente.

Na parede em frente à porta da sala de Lourenço, mais vitrôs e outra porta.

As cores predominantes, novamente, são frias e tons de marrom e bege.

O espaço serve como a transição entre o mundo externo e a loja. Ali

acontecem poucas ações, como quando Lourenço comemora ter encontrado um

soldado que “salvou a vida de seu pai” (mais uma fantasia que cria, dessa vez

junto com o cliente) distribuindo dinheiro para os que aguardam na recepção, ou

no diálogo com o segurança, no qual criam um raciocínio que culmina no pedido

para que este se livre do mendigo que está sentado em frente à loja.

Quadro 60 - 16min14s Quadro 61 - 47min34s

Em determinado momento, Lourenço está nervoso, desequilibrado, e agride

um de seus clientes assim que ele entra em sua sala. A sequência é criada com

câmera na mão, o que causa tremulações e imprime maior dramaticidade e tensão

às cenas.

Quando o enquadramento capta todo espaço, a câmera se localiza em

posição baixa, próxima ao chão, e tem em primeiro plano o gaveteiro de Lourenço

(que se assemelha esteticamente ao porta arquivos), em segundo plano, o

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protagonista chutando o outro personagem e, em terceiro, o próprio porta

arquivos, que serve como fundo de cena.

Mesmo assim, a transição entre essa posição de câmera e a imagem mais

próxima dos atores se dá por corte. Em seguida, vemos Lourenço em contra-

plongée. O olho nos vê em plongée (quadro 63).

Quadro 62 – 53min54s Quadro 63 – 54min19s

Esse posicionamento da câmera é repetido no momento da morte do

protagonista. Depois de ser atingido, ele rasteja pelo chão para chegar até o ralo.

A câmera se situa em plano baixo, enquadrando Selton Mello e, ao chegar ao

banheiro, o ralo.

Quadro 64 - 1h33min52s Quadro 65 - 1h34min17s

Depois de agredir o cliente, Lourenço procura a arma que comprou para

tentar incriminá-lo, dizendo que ele o tentou assaltar. Esse é o único momento em

que entramos em seu depósito. O espaço se assemelha a um quartinho entulhado

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de estantes e objetos. Na cena, há a predominância do vermelho – um dos poucos

momentos em que se utiliza essa cor, denotando a tensão do momento.

Quadro 66 - 54min58s

O depósito aparece em outra sequência e contexto do filme. No entanto, as

imagens são de devaneios de Lourenço durante uma vertigem. Nesse caso,

tratam-se de imagens extremamente escuras, com partes em total escuridão,

onde não se pode distinguir nada, e outros pontos de iluminação. A câmera,

novamente na mão, anda trêmula pelo cenário, buscando ela própria causar a

sensação de vertigem no espectador.

No quadro 67, podemos notar um ponto de fuga iluminado, uma construção

que se assemelha à ideia de labirinto, de perda das referências, de sufocamento.

As imagens distorcidas reiteram o incômodo.

Quadro 67 – 44min49s Quadro 68 – 44min54s

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Quadro 69 - 45min03s Quadro 70 - 45min09s

Externas/ Fachadas/ Cidade

Quando não se tratam da fachada da loja, as tomadas externas são

transições em que acompanhamos Lourenço pelo ambiente em que circula: ruas

vazias, solitárias em que se impõem as fachadas de fábricas, galpões, muros

vazios, velhos, pichados.

A cidade ocupa a tela com seu concreto, suas retas, seu asfalto. As cores

predominantes variam entre tons de cinza, azul, bege e marrom: o encontro entre

Lourenço e o ambiente urbano.

As cores frias se remetem, justamente, à frieza da paisagem, à solidão, à

inexistência de sentimentos e de vida. Lourenço passeia sozinho, sempre

caracterizado em variações de marrom. Ele é o esgoto da cidade.

A única intervenção supostamente orgânica na composição são as

silhuetas de dois coqueiros, porém, eles também, pintados em uma parede,

inanimados (quadro 71). Não há vida na cidade.

No geral, os quadros são divididos por uma linha horizontal. Quando não é

um muro que desempenha essa função pelo enquadramento da imagem, o

trabalho de arte dividiu a fachada em duas partes.

Ora a composição horizontal esmaga o personagem (como no quadro 72),

ora serve como limite para a parte baixa da tela e cria a sensação de amplidão

para o plano vertical, em que não há delimitação ou indícios de seu fim (como nos

quadros 73 e 76).

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A cisão da imagem em todo filme se remete à fragmentação presente em

outros aspectos da obra, como os cortes e as construções sintáticas curtas.

As texturas também predominam nas fachadas por onde Lourenço

caminha. São muros chapiscados, tijolos e concreto aparentes, tudo indicando a

aspereza e hostilidade dos ambientes.

A decadência dos locais por onde passa agregam significado à situação de

Lourenço. Sempre de cabeça baixa, o personagem serve como mira do

espectador, ele é observado.

Essas paisagens externas são compostas de duas maneiras. A maior parte

delas é filmada com câmera estática (como grande parte do longa) que enquadra

frontalmente os muros e paredes. O protagonista cruza a imagem da direita para a

esquerda – quando sai de sua loja e se encaminha para outro local, a lanchonete

ou sua casa – ou da esquerda para a direita – quando vai para a loja.

O espectador é, assim, localizado no espaço fílmico.

A segunda forma de composição opta pela utilização de um ponto de fuga

bastante demarcado. São construções imponentes enquadradas em uma

angulação diagonal à câmera (quadros 74 e 75).

A única referência de espaço existente no filme é o logo do clube de futebol

Juventus.

Novamente, assim como no livro, o símbolo só pode ser reconhecido se

compartilhado com o espectador. Para quem não conhece o logotipo, trata-se

apenas de mais uma paisagem, não descartando, é claro, que mesmo assim ela

contém algo que não se repete em nenhuma outra: a referência explícita. Para o

espectador que compartilha esse conhecimento, a localização do filme está dada:

trata-se do bairro da Mooca, em São Paulo.

Em todos os quadros, Lourenço ocupa no máximo metade da tela (em

sentido vertical). O enquadramento procura reforçar a ideia de amplidão, de uma

pessoa solitária e de sua pequenez diante da imensidão da cidade que, apesar de

ter cerca de 10 milhões de habitantes, é representada totalmente vazia durante

todo o filme.

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Quadro 71 – 3min55s Quadro 72 - 4min03s

Quadro 73 - 4min06s Quadro 74 - 4min07s

Quadro 75 - 4min09s Quadro 76 - 9min16s

Quadro 77 - 9min18s Quadro 78 - 37min11s

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Quadro 79 - 38min37s Quadro 80 - 38min39s

Quadro 81 - 44min28s Quadro 82 - 1h07min05s

Quadro 83 - 1h07min10s Quadro 84 - 1h31min34s

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Lanchonete

O espaço da lanchonete, ao contrário dos demais ambientes do filme (como

as tomadas externas ou a loja e a casa de Lourenço), é criado em cores quentes.

Ali várias pessoas se encontram e notam-se elementos inexistentes em

outros espaços, tais como frutas, flores e plantas.

Esse é o espaço “mundano” do filme, onde o protagonista conhece “a

bunda”, uma garçonete cujo nome é “impronunciável” e que gosta de ler a “Revista

dos Astros”.

A presença desses elementos, somado às cores predominantes, dão vida

ao ambiente. Fazem parte do cenário quadros com a imagem de um papagaio e

de uma paisagem (algo semelhante a um cânion).

Nota-se a opção em algumas das tomadas de utilizar as frutas como

elemento de enquadramento da cena. Elas compõem a parte baixa da tela.

Os frequentadores do local, no entanto, também se vestem em tons de

bege. Como grande parte dos personagens, eles se confundem com o cenário. A

mudança de cores é feita apenas no figurino das pessoas que destoam desse

universo pelo qual o filme vaga. A garçonete é identificada com aquele espaço,

com a vida.

Quadro 85 - 4min11s Quadro 86 - 38min41s

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Quadro 87 - 9min25s Quadro 88 -14min26s

Quadro 89 - 14min49s Quadro 90 - 23min55s

Figurinos

Os figurinos são utilizados para caracterizar personagens. Algumas vezes

mais, em outras menos, existem acessórios ou estilos empregados em cada figura

do filme. A forma como cada um se veste é parte da constituição de sua

personalidade.

Em O Cheiro do Ralo, a composição se impõe, em primeiro lugar, mas não

apenas, pelas cores das roupas, que interagem com os ambientes.

O protagonista está o filme todo vestido de tons de bege e marrom, seja em

sua loja, na lanchonete ou em sua casa. São casacos, camisas, camisetas pólo,

calças e (na casa) roupão marrom que sempre se combinam nessas duas cores.

Não há estampas figurativas, exceto quando Lourenço sonha com a bunda. Nessa

cena curta, ele usa uma camiseta pólo em que aparecem dois pássaros (ainda

que marrons).

A escolha de seu figurino tem por finalidade identificá-lo com seu ambiente

e, mais, criar a unidade de sentido que o situa como a personificação daquilo que

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o incomoda: o ralo. A opção por essas duas cores se dá clara e assumidamente

pela equipe como a significação do esgoto.

Na composição dos quadros, Lourenço, assim como grande parte dos

personagens, se confunde com o cenário. É como se não houvesse diferenciação,

como se tudo estivesse contaminado.

Ao mesmo tempo, a homogeneidade de cores se remete mais uma vez à

monotonia, à repetição. As ações, os elementos de cena se alteram, mas, por fim,

continuam semelhantes. É como se instaurassem um ciclo. O filme dá voltas.

A presença insistente do protagonista também colabora com essa

mesmice. Selton Mello atua em todo o filme, em todas as cenas, exceto nas

transições passadas em frente à sua loja, quando apenas chegam ou vão embora

seus clientes. Sua persistência na tela acontece de forma a atrelar a história a seu

narrador. No livro, acompanhamos as descrições feitas pelo protagonista. No

filme, ouvimos seus pensamentos enquanto observamos suas ações.

Quadro 91 - 1min50s Quadro 92 - 17min51s

Quadro 93 - 28min36s Quadro 94 - 29min54s

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Quadro 95 - 47min14s Quadro 96 - 53min38s

Quadro 97 - 1h08min19s Quadro 98 - 9min25s

Os figurinos são utilizados de forma a criar dramaticidade. O segurança, por

exemplo, é um personagem que se destaca nesse sentido. Já em si uma

contraposição à figura que representa, ele é pequeno, magro, franzino. A escolha

do a(u)tor Lourenço Mutarelli se deu justamente com essa intenção, de criar a

contradição entre seu personagem e sua aparência.

Ele é a única pessoa que utiliza roupas vermelhas, aliás, inteira vermelha.

Ora vestido com jaqueta, ora com colete, ele é um elemento de tensão, que figura

como quem faz a mediação entre as vontades de Lourenço e a existência

daqueles que com ele se relacionam. Ele se responsabiliza por tirar da loja quem

desagrade ao chefe.

Durante todo o filme, o personagem age de forma totalmente “leal” ao

patrão, agindo de acordo com suas ordens. Ele se compraz de ser uma espécie

de braço direito de Lourenço, quem satisfaz seus desejos e garante sua

segurança.

No final, quando Lourenço é atacado pelos clientes, é o segurança que

entra em sua sala e os expulsa dando um tiro para o alto. Após essa cena, ele

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aparece vestido de terno e camisa ainda vermelhos, porém num tom mais escuro,

em uma clara referência a uma suposta ascensão social (mesmo que simbólica ou

apenas pretendida). Ele se vangloria por ter salvado a vida do chefe.

Outra personagem que aparece com a cor vermelha é a viciada, como em

uma prenunciação ao ato que vai cometer no final do filme. Ela gera desconfiança

no segurança, demonstrada claramente na cena em que ele é enquadrado de

braços cruzados por cima do ombro da drogada, encarando-a (quadro 99).

Quadro 99 - 32min22s Quadro 100 - 33min28s

Quadro 101 - 20min21s Quadro 102 - 1h18min43s

A garçonete, assim como o lugar que ocupa no filme, se destaca dos

demais elementos. Ela veste figurino com cores vivas, quentes, que variam entre o

amarelo, verde, azul, rosa e vermelho e usa franja de lado, rabo lateral com

cachinhos e presilha em formato de margarida que lhe conferem um ar ingênuo.

Suas roupas possuem estampas figurativas, com barcos, coqueiros, cogumelos.

Ela é pessoa “mundana”, demonstra sentimentos, diferente de Lourenço e

do ambiente que ele cria.

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Depois de se tornar secretária da loja, ela aparece em trajes que misturam

os elementos presentes em suas antigas vestes e no figurino dos demais

personagens (pertencentes ao universo do protagonista). Trata-se de uma blusa

cor de rosa sobreposta por outra de alcinhas marrom, com listras horizontais e

uma âncora no meio (quadro 108).

Ela adentra esse mundo, começa a fazer parte dele, e esse caminho se

demonstra imageticamente por suas roupas.

Assim como ela, a garçonete que a substitui na lanchonete também usa

peças em cores quentes (quadro 107). O figurino as situa para fora das paisagens

predominantes no filme. Elas pertencem a outro ambiente.

Quadro 103 - 4min24s Quadro 104 - 9min39s

Quadro 105 - 14min26s Quadro 106 - 38min50s

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Quadro 107 - 1h19min33s Quadro 108 - 1h32min06s

Sequências Em vários momentos do filme, a montagem privilegia a criação de

sequências em que a transição de cortes acontece de forma a manter alguma

semelhança entre elementos dos dois quadros.

Esses elementos funcionam, semanticamente, como símbolos ou objetos

de significação, além de elaborarem a transição entre uma cena e outra e, em

alguns casos, servirem como elemento de permanência.

Logo a primeira transição é realizada do enquadramento da bunda (primeira

sequência do filme) para a fachada da loja, em cuja composição o círculo marrom

se destaca. Mais uma vez os elementos se relacionam diretamente.

Quadro 109 - 1min52s Quadro 110 - 2min10s

Na primeira visita da viciada, o corte de sua chegada (fachada da loja) é

seguido pelo enquadramento de Lourenço com o objeto que ela lhe oferece em

mãos. É uma caixinha de jóias redonda, num dourado quase marrom, e que se

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posiciona praticamente no mesmo local ocupado anteriormente pelo círculo

(quadros 111 e 112).

Quadro 111 - 11min37s Quadro 112 - 11min45s

Em outra cena, o círculo é enquadrado e, logo em seguida, após Lourenço

entrar na loja e se sentar com o segurança, um objeto redondo e dourado no

centro da mesa ocupa sua posição (quadro 114).

Quadro 113 - 20min02s Quadro 114 - 20min21s

Mais uma vez, o círculo, sempre presente, é substituído, na sequência

seguinte, por outro objeto. Desta vez é o olho, posicionado na palma da mão de

seu vendedor (quadros 115 e 116).

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Quadro 115 - 30min40s Quadro 116 - 31min05s

Outros elementos de mesmo formato compõem os espaços de forma a criar

a identificação de objetos entre cenas diversas. Na parede ao lado da porta de

entrada da sala de Lourenço, dispõe-se uma direção de veículo. Em geral, ela

está enquadrada da mesma maneira como havia, no quadro anterior, outra forma

semelhante.

Assim acontece também com o marcador da balança que fica ao fundo da

sala. Ora ela assume a posição do olho (quadros 120), ora a do círculo marrom da

fachada da loja.

Na parede atrás da mesa de Lourenço também existe esse elemento

circular: um relógio de parede. Em sua casa, um jogo de dardos.

Esses são os pontos de fuga, os olhos que a tudo vêem, o buraco pelo qual

as pessoas, o esgoto, entram ou saem. É a comunicação da parte de dentro com

a parte de fora.

Quadro 117 - 41min02s Quadro 118 - 41min16s

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Quadro 119- 45min46s Quadro 120 - 46min16s

Quadro 121 - 50min34s Quadro 122 - 56min04s

Quadro 123 - 56min39s Quadro 124 - 58min49s

Quadro 125 - 58min52s Quadro 126- 1h04min30s

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Quadro 127 - 1h05min54s Quadro 128 -1h05min55s

Quadro 129 - 1h06min01s Quadro 130 - 1h06min31s

Quadro 131 - 1h16min07s Quadro 132 - 1h16min28s

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TRANSCRIAÇÕES DE CENAS LIVRO-FILME

A compra do olho

• Livro Ele entra. Traz um olho de vidro nas mãos. Esse olho já viu de tudo. Ele diz. Esse olho tem história. De tudo, ele não viu. Penso eu. Não viu a bunda, isso ele não viu. Pego o olho, analiso. É incrível. É perfeito. Injetado. Quero o olho pra mim. A bunda e o olho. Lembro daquela capa de disco. Acho que era do Tom Zé. A bunda e o olho. O olho do cu. Chuto. Quero o olho pra mim. Será o meu amuleto. Ela bate e entra. Ela ainda não sabe que não gosto de ser interrompido. Ela sua, cansada. Traz um pacote. Mais de quatro quilos calculo. Areia, cimento e pedrinhas. Coloca ali no cantinho. Peço desculpas ao homem do olho. Ele diz não se importar. Explico o cheiro e o problema. Ele finge interessado ficar. Ela sai. E então. Não aceita. Diz que o olho vale mais. Esse olho já viu de tudo. De tudo sei que não viu. Digo que dei o máximo que posso dar. Ele levanta e agradece. Espera, me ouço falar. Dobro. Ainda é pouco. Ele diz. Ele sabe que o olho me encanta. Ainda o seguro nas mãos. Quanto? Pergunto. Tanto, ele chuta. Tanto não posso dar. Então fica pra próxima. Ele diz estendendo a mão. Não devolvo. É o meu amuleto. Abro a gaveta e pago. Você sabe negociar. Guardo o olho no bolso. Ele sai. Mesmo com ele no bolso, continuo a alisar. (p.36-37).

“Ele entra”. Como a maior parte das negociações, o trecho se inicia com a

entrada do cliente. A descrição do ato repetidas vezes em diferentes capítulos

explicita a observação contínua do protagonista.

Então começam o diálogo. Não apenas as frases são entrecortadas, mas

também a própria introdução das falas, pontuadas separadamente do que é

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pronunciado pelos personagens: “Esse olho já viu de tudo. Ele diz. Esse olho tem

história. De tudo, ele não viu. Penso eu” (p.36).

A pontuação do texto cria uma ruptura no ritmo da cena ao mesmo tempo

em que encadeia as ações rapidamente, como se cada pequeno trecho fosse uma

peça de um quebra cabeças.

Além disso, as ações, falas e introduções são entremeadas pelos fluxos de

consciência do protagonista, que relaciona diversas referências com o diálogo que

estabelece e com as ideias que lhe vão surgindo:

Pego o olho, analiso. É incrível. É perfeito. Injetado. Quero o olho pra mim. A bunda e o olho. Lembro daquela capa de disco. Acho que era do Tom Zé. A bunda e o olho. O olho do cu. Chuto (p.36).

Como em todo o livro, não há nomes para os personagens nem mesmo

quantificação dos valores tratados. O personagem principal se refere uma única

vez ao interlocutor como “o homem do olho”. Essa ausência de referências causa

o afastamento e uma suspensão da possível concretude dos fatos. O leitor parece

transitar por uma espécie de limbo que é constituído pelo universo imaginário do

protagonista.

Entra em cena a secretária da loja. Mais uma vez, referida apenas como

“ela”. A compreensão da história a partir dessas “não referências” é possibilitada

pelo encadeamento do que acontece, pelo preenchimento que o leitor cria por

entre esses espaços vazios em que os elementos não lhe são explícitos: “Ela bate

e entra. Ela ainda não sabe que não gosto de ser interrompido. Ela sua, cansada.

Traz um pacote. Mais de quatro quilos calculo. Areia, cimento e pedrinhas” (p. 36).

O leitor sabe de quem se trata por acompanhar as ações dessas figuras pela

história.

A negociação também é construída por períodos extremamente curtos. O

autor estabelece a cadência por rimas. As frases são criadas como pequenos

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versos: “Peço desculpas ao homem do olho. Ele diz não se importar. Explico o

cheiro e o problema. Ele finge interessado ficar. Ela sai. E então.

Não aceita. Diz que o olho vale mais. Esse olho já viu de tudo” (p. 36).

Ao final do trecho, uma suspensão da sequência (“E então”), mais uma vez

assinalada por um ponto final, até o cliente negar a expectativa do protagonista.

O “homem do olho” é enfático. Suas ações são curtas e não há hesitação.

Ele nega as ofertas, se levanta para sair, não parece interessado em entrar no

jogo, em se render às propostas do protagonista.

Nessa cena não há brincadeiras e ironias direcionadas ao seu interlocutor.

O comprador faz novamente uma proposta e acaba se rendendo ao que o

cliente pede. O olho lhe causou um impacto e suscitou diversas relações com sua

história, com suas criações imaginárias. Ele se tornará seu amuleto, seu parceiro,

testemunha de tudo o que vê e vive.

Mais à frente o personagem o transformará no “olho de seu pai”, o pai que

nunca teve, seu “pai Frankstein”.

• Filme

A sequência se inicia com a externa do “homem do olho”. A câmera o

enquadra em plano americano. Virado para o lado oposto à loja, ele fuma, se vira

e prossegue em direção à porta com o cigarro na boca. Há um corte e o

enquadramento passa a mostrar toda a fachada.

Essa mesma movimentação é feita pelo segurança em outro momento do

filme.

Quadro 133 - 30min30s Quadro 134 - 30min40s

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O personagem usa calça e jaqueta jeans em mesmo tom azul escuro.

Em seguida, uma cena interna em que a secretária deposita os sacos de

cimento do banheirinho e sai da sala de Lourenço enquanto ele pede para que ela

não faça barulho com o salto. Aqui houve uma inversão da ordem da cena e o

acréscimo dessa última fala, inexistente no livro.

Ao invés de optar pela narração over para demonstrar o aborrecimento de

Lourenço, Heitor Dhalia construiu a cena somente entre esses dois personagens

para depois trabalhar a dramaticidade da negociação apenas com o protagonista e

o “homem do olho”.

O homem chega. A câmera o enquadra num contraplano de Lourenço já

próximo à sua mesa. Ele dá passos largos, duros. Se aproxima com a cara

fechada, enfia a mão no bolso da calça e tira algo com o punho cerrado. Um corte.

A câmera enquadra apenas a mão do personagem, que se abre e mostra o olho.

Quadro 135 - 30min55s Quadro 136 - 31min01s

Quadro 137 - 31min05s Quadro 138 - 31min17s

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Mais um corte e Lourenço olha para o olho, o pega e pede para que seu

interlocutor se sente. Pede desculpas pelo cheiro e chuta: “Cinquenta?”.

Em contraplano, o “homem do olho” diz o mesmo texto que no livro: “É

pouco. Esse olho vale mais”. A câmera o focaliza em close: “Esse olho já viu de

tudo”.

O enquadramento evidencia sua feição. Ele usa um brinco de argola

dourada na orelha esquerda. Sua pele enrugada traz textura e gravidade. Por

debaixo da gola da jaqueta fechada, a gola de uma camisa também azul escuro

fechada (quadro 139). Seus movimentos são severos, enérgicos em contraposição

à hesitação de Lourenço, que dobra a oferta: “Cem?”.

O vendedor nega: “Ainda é pouco”. Ao ser questionado, lhe dá seu valor:

“Quatrocentos”. O personagem principal recusa, seu interlocutor se levanta e

estende a mão para pegar o olho e ir embora, mas Lourenço se rende. Abre as

caixinhas onde guarda o dinheiro e entrega o que lhe foi pedido.

Em pé à sua frente, o homem ainda grave parece satisfeito. Estende a mão

para pegar o dinheiro e a fecha energicamente, pondo o dinheiro no bolso da

calça.

Lourenço diz: “Você sabe negociar”. O homem sai sem dizer nada.

Sozinho na sala, o personagem analisa o olho: “Não. De tudo esse olho

ainda não viu. Ele ainda não viu a bunda”. Ao invés do fluxo de consciência,

optou-se pela fala do personagem em cena, ao invés de uma possível voz over

durante a negociação. No livro mesmo, não existe diferenciação entre essas duas

expressões.

A cena ocorre como na obra literária. O acontecimento é quase o mesmo.

Porém, no filme há quantificação, tratam-se de valores precisos. Ainda assim, a

moeda nunca é citada, apenas o número. Existe uma certa referência, mas que

não precisa época, data.

O enquadramento em close capta a gola da jaqueta e da camisa, mas corta

da imagem parte da testa do personagem, prolongando aquilo que não está em

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cena. Dessa forma, tem-se a impressão de que a cabeça seja maior do que de

fato é (quadro 139).

Heitor Dhalia constrói imagens com uma enorme precisão. Ao se levantar

para pegar o olho, a mão do homem, estendida, é enquadrada na mesma posição

do objeto, que é segurado por Lourenço (quadro 140). A imagem supõe

duplicidade, uma possível transição e a dúvida de com quem o olho ficará.

Quadro 139 - 31min41s Quadro 140 - 31min53s

Quadro 144 - 32min55s Quadro 145 - 32min59s

O figurino do “homem do olho” materializa suas atitudes. Apesar de

simples, a roupa tem corte, é estruturada. A cor forte, escura, também reforça a

dureza do personagem. Seus passos são largos, seus movimentos, enérgicos. Ele

usa um brinco dourado.

A importância desses elementos se evidencia pelos enquadramentos, que

deixam explícitas essas composições.

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Cliente que oferece caneta de ouro

• Livro

Entro eu. O cimento secou. O cheiro cessou. Já não há mais ralo. Tiro o olho do bolso e beijo. Você fará a sorte voltar. Ele entra. Nada tenho que explicar. Traz consigo uma caneta. É de ouro. Chuto. Ele repete. É uma caneta maciça de ouro. Então ela não escreve. Ironizo. Claro que escreve, é só pôr a carga. Mas se é maciça, não há espaço para carga. Ele não entende. Ele desatarraxa e mostra a carga. Eu não quero. Por quê? Porque não gostei da sua cara. Meu senhor, me desculpe minha cara. Não é ela que estou oferecendo. É a caneta. E olha que essa caneta, além de ser de ouro maciço, tem história. Não quero nem de graça. Meu senhor, assim o senhor me ofende. Me desculpe, se minha feição não lhe agrada, mas estou aqui pela caneta. É a caneta o que deve julgar. Não quero. Senhor, te suplico. Eu preciso muito do dinheiro por favor, se o sr. preferir me viro de costas. Assim o senhor nem precisa me olhar. Você precisa mesmo do dinheiro? O senhor nem imagina o quanto. Então você faria qualquer coisa para conseguir? Qualquer coisa também não, afinal sou um homem de princípios. E até onde vão seus princípios? Vão até seus limites. E que limites são esses? Ah, não sei precisar. Mas o que o senhor sugere que eu faça? Nada. Nada não. Pode se retirar. O senhor nem vai fazer uma oferta pela caneta? Já fiz mas retiro. Eu não vou te ajudar. Olha, filho, a vida dá voltas. Um dia pode ser o senhor a precisar. Você está me ameaçando? Não, claro que não. Só estou... Está nada. Você disse que é um homem de bem. E sou. Sou, sim senhor...

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Então se um dia eu precisar de você, sei que vai me ajudar. Vai me ajudar mesmo que eu não compre essa merda. Mesmo que eu não goste dessa tua cara. Não é assim que agem os homens de princípio? O senhor tem razão. Eu não lhe negaria ajuda. E tem mais uma coisa, como você acha que poderia me ajudar? Como eu disse, a vida dá voltas. Sabe, eu ia te mostrar uma coisa mas você não merece. Isso é o senhor quem diz. Vai embora logo, vai. Só quero dizer uma última coisa ao senhor, se o senhor, me permite. Não, não permito. Ele sai. Até a porta se fechar seus olhos permanecem em mim. (p. 40-42).

A cena começa com Lourenço (“Entro eu”). O ralo o incomoda cada vez

mais e isso é evidente pelo pensamento encadeado logo em seguida da entrada

do cliente: “Ele entra.

Nada tenho que explicar” (p.40).

A tensão aumenta conforme o narrador percebe a seriedade e

incompreensão de seu interlocutor para aquilo que diz e ironiza - como no caso da

caneta ser de ouro maciço e, portanto, não haver espaço para carga.

Conforme o diálogo avança, o cliente se coloca em uma posição cada vez

de maior inferioridade. O protagonista estabelece diversos jogos contra os quais o

vendedor não se insurge, tira sarro de sua cara e, ainda assim, ele se desculpa,

diz que pode se virar de costas para que o comprador não olhe para seu rosto. Ele

se submete a humilhações porque precisa muito do dinheiro. Aí mesmo é que o

narrador não lhe ajuda e exerce sobre ele seu sarcasmo e poder sádico.

Sua submissão se demonstra mesmo pelo pronome de tratamento pelo

qual se refere ao protagonista: senhor.

Ao contrário da maior parte do livro, neste trecho os períodos são um pouco

mais longos, mas mesmo assim continuam curtos.

As ideias do protagonista são concatenadas de forma breve e em

contraposição com o que disse anteriormente. Ele propõe e retira a proposta, diz e

desdiz, contradiz as falas de seu interlocutor, tentando confundi-lo,

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surpreendendo-o a cada frase, cortando suas tentativas de explicação. O esforço

do vendedor de o sensibilizar com sua condição apenas o torna mais duro até o

desfecho da cena em que o homem sai da sala sem ao menos poder lhe dizer

“uma última coisa”.

• Filme “É de ouro”, inicia o vendedor tal qual no livro. A cena é aberta com um

close da caneta. O diálogo acontece de forma bastante parecida como na obra

literária, havendo, porém, mais uma vez, valores em jogo. Lourenço lhe oferece

“vinte, máximo”, ao que o homem retruca “mas é de ouro”. O personagem principal

retira a oferta e assim a cena transcorre.

A construção do personagem se dá de forma bastante característica. Trata-

se de um homem na faixa dos cinquenta a sessenta anos. Seus cabelos são

pintados de castanho e possuem uma parte de raiz branca. Ele usa uma calça

bege clara (que só é possível notar quando se levanta para sair), uma camisa

bege escura da qual apenas se vê uma parte da gola por baixo da blusa de lã

larga em tonalidades que variam do bege ao cinza e com motivo geométrico: uma

linha mais escura (preta ou cinza) a divide na horizontal mas de forma irregular,

com espécies de degraus. Na manga, existem fios puxados. Ele usa uma aliança

de ouro na mão esquerda: é casado.

Quadro 143 - 37min15s Quadro 144 - 37min26s

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Sua testa se franze todo o tempo numa expressão de desespero e

submissão. Seus ombros se mantêm tensos, erguidos, enquanto seus cotovelos

se apoiam por sobre a mesa. Sua voz é levemente rouca, expressa angústia.

Diferentemente do “homem do olho”, a roupa do homem da caneta não é

estruturada. É uma blusa simples, sem molde preciso. A combinação desses

diversos elementos dizem sobre o personagem, colaboram com sua construção

para expressar sua situação de submissão a Lourenço.

Quadro 145 - 37min28s Quadro 146 - 38min25s

Última parte / Sequência final

• Livro Ela entra. Ela treme. A cada dia, mais. Balanga. Traz um saco. Um desses sacos de embrulho, de papel pardo. Desses que não se vê mais. Agora tudo se embrulha em sacolinhas de plástico. Essas sacolinhas fazem um barulho irritante. As de plástico. Esses sacos não. Ela enfia a mão dentro dele. Agora até o saco treme. Ela conserva a mão mergulhada. Fala criatura, o que trazes pra mim? Eu trouxe uma coisa que é do senhor.

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Ah, é? É. Trouxe a única verdade. Não brinca? Ela aponta o saco pra mim. O saco treme. A cabeça balanga. A mão trêmula está dentro do saco. Eu trago a sua verdade. Adivinho o que o saco guarda. Eu trouxe uma coisa que só serve em você. Abaixe isso! Não posso. Então o saco faz BUM. E o BUM é tão alto que dói. O BUM rasga o fundo do saco. O BUM me rasga também. O BUM sempre diz a verdade. O saco rasgado revela sua mão. Em sua mão tem fumaça. A fumaça que sai pelo cano. Mas não pelo cano do ralo. Pelo cano da arma. Ela treme. Eu também. Tem um buraco no teto. Tem um furo em mim. É uma dor grave. Quando encosto o queixo no peito, eu vejo. O paletó se tinge de mim. Meu coração agora bate pra fora. Espalhando o meu sangue por tudo. Bate fora do peito. E aí ouço um novo BUM. O cheiro do ralo. Esse era o nome do livro que eu nunca escrevi. Tudo passa por meus pensamentos. Penso em tudo que um dia comprei. Penso em todas as coisas que me colecionaram. A morte é dura. A Morte cura. A Morte cura e machuca. A morte dói. Eu sou dor. Dói. Dói muito. Tudo é dor. Tudo é dor no nada. Por Welles solto um Rosebud.

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Penso no olho de meu pai. Penso em dar um último beijo. Beijaria cada uma das coisas que eu julguei ter tido. Sinto que perco tudo. Tudo o que nunca foi meu. E então eu me perco em mim. Nesse mim que nunca foi eu. Beijaria a bunda, como se fosse a única. Pai. Desta vez, não perdoe! Não há luz. Era tudo mentira. Deste lado ninguém espera por mim. Ninguém me guia. Pois o caminho não dá para errar. Caio. O caminho é a queda. A queda me traga. Como um ralo O silêncio é a língua que eu falo. E então tudo o que não existe surge. Enquanto o que existe se apaga. Eu não quero ir. Mas o abismo me engole. Eu não quero ir. Eu queria ficar (p. 177-180).

É no desfecho que o mundo se rebela contra ele e lhe devolve aquilo que

vinha cultivando em suas relações. A opressão e a humilhação a que submeteu

muitas pessoas fez com que uma delas buscasse a solução de seu problema pela

morte do opressor.

Existe aí, mais uma vez, o deslocamento das ações, a culpabilização do

outro por sua própria situação. No caso, uma drogada que recorria

constantemente ao dono da loja para conseguir dinheiro para comprar drogas e

que poderia resolver essa situação específica simplesmente não retornando

àquele lugar. No entanto, ela opta por matá-lo. Sua revolta se vira contra a figura

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que, supostamente, a colocou naquela condição, eliminando de si mesma a

responsabilidade.

A cena se inicia mais uma vez com o fluxo de pensamento do personagem.

Ele descreve as ações da viciada subjetivamente, observando que treme,

narrando seus atos. Novamente se dirige a ela com desprezo: “Fala criatura, o que

trazes pra mim?” (p.178).

A narração concomitante ao acontecimento permite com que o leitor

acompanhe o sofrimento do protagonista. Ele narra ação a ação, o que acontece,

o que sente.

Nesse último momento, ele parece assumir sua posição fetichista (“Penso

em tudo que um dia comprei. Penso em todas as coisas que me colecionaram”, p.179) e o deslocamento que realiza de si para os objetos:

Beijaria cada uma das coisas que eu julguei ter tido. Sinto que perco tudo. Tudo o que nunca foi meu. E então eu me perco em mim. Nesse mim que nunca foi eu (p. 179).

• Filme

A viciada entra na loja de Lourenço com um saco de pão na mão e diz que

tem algo que pertence a ele. Os tiros que dá perfuram o saco e deixam à mostra o

cano da arma.

A camiseta cavada e larga evidencia o colo e os braços magros,

esqueléticos, enfatizando sua condição física degradada. Seu corte de cabelo

durante todo o filme é assimétrico.

De costas, vemos Lourenço se curvar. Ele coloca a mão sobre o peito e vê

sangue. A viciada atira novamente e sai.

Após ser atingido, Lourenço se joga da cadeira, rasteja até o banheirinho e

cheira o ralo, onde a garçonete (agora secretária da loja) tenta socorrê-lo.

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Os quadros finais do filme são compostos justamente pelas imagens dos

elementos que permeiam o universo de Lourenço: o olho, a fachada da loja

(quando a voz over do personagem diz “e então, ninguém entra e nem sai”) e,

finalmente, a bunda.

Estabelece-se, nesse ponto, a parábola de significação entre esses

“objetos” ou locais. Todos são portais pelos quais os personagens adentram o

universo de Lourenço ou pelos quais ele próprio se lança.

O olho permanece ali, testemunha tudo. A porta agora está fechada,

“ninguém entra, ninguém sai”.

A bunda serve como simbolização de que o esgoto do mundo, o cheiro do

ralo, vem de nós, de nosso interior, simbólica ou literalmente.

Quadro 147 - 1h32min50s Quadro 148 - 1h33min08s

Quadro 149 - 1h33min16s Quadro 150 - 1h33min30s

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Quadro 151 - 1h33min52s Quadro 152 - 1h34min06s

Quadro 153 - 1h34min17s Quadro 154 - 1h34min21s

Quadro 155 - 1h34min31s Quadro 156 -1h34min33s

Quadro 157 - 1h34min53s Quadro 158 - 1h35min14s

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