O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

51
1

description

O acidente que interrompeu a vida de quatro jovens de Camboriú (SC), em 1986, ainda permanece vivo na lembrança dos moradores mais antigos da cidade. Este livro-reportagem reconstruiu parte da história de vida desses personagens, através das lembranças de pessoas próximas a eles. A narrativa foi estruturada utilizando as técnicas do Jornalismo Literário e resultou em um registro documental de um acontecimento histórico do município. A obra também pretende despertar o interesse do leitor que se identifique com o gênero aqui trabalhado.

Transcript of O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

Page 1: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

1

Page 2: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

2

Alan Vignoli

O céu de Ícaro

A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

Foto de capa: Sabrina Pinheiro

Page 3: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

3

Este livro-reportagem é dedicado às pessoas

que contribuíram para que essa história pudesse

ser contada. E a todos que não tiveram tempo

de dizer adeus para alguém que amavam.

Page 4: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

4

Sumário

Os quatro Ícaros................................................................................5

Interrupção........................................................................................7

Cedo demais.....................................................................................10

O poeta em silêncio..........................................................................16

Esse tal anos 80................................................................................22

O domingo que não era para ser....................................................29

Das formas de amor........................................................................34

O último dia.....................................................................................43

Despedida.........................................................................................49

Page 5: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

5

Os quatro Ícaros

Na mitologia grega Ícaro era filho de Dédalo, um talentoso inventor. Quando os

dois estavam presos no Labirinto com o Minotauro, Dédalo construiu asas feitas de

penas e cera de abelhas para que ambos pudessem fugir do labirinto. Antes de dar as

asas para o filho, o pai o advertiu a não voar nem muito alto, perto do sol, onde o calor

derreteria a cera, nem muito baixo, perto do mar, onde a umidade deixaria as asas

pesadas.

Mas Ícaro se sentiu deslumbrado com a beleza do céu, a sensação maravilhosa

de voar, de ser livre e chegou muito perto do sol, fazendo com que a cera derretesse e

morreu afogado no mar. Ele queria ir mais longe, assim como os quatro jovens

sonhadores de Camboriú que não tiveram medo de se aventurar. Jovens que tinham

planos e queriam ser livres, conhecer os céus e as maravilhas do mundo. Os quatro

Ícaros. Este livro conta a história desses quatro Ícaros.

“O céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu”

(Tendo a Lua – Paralamas do sucesso)

Page 6: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

6

Page 7: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

7

Interrupção

Não me leve agora

Eu não quero ir embora

Tenho tanto o que fazer

Tenho um filho prater

Tenho motivos pra crer

Que ainda não é hora

(Epílogos e finais - Agridoce)

Eles se recusaram a ficar para dormir. Era madrugada do dia 20 de julho de 1986

e a cidade de Jaraguá do Sul (SC) foi o local escolhido pelos quatro jovens de Camboriú

para festejar naquele fim de semana. O grupo havia se arranjado com umas garotas da

cidade. Nada fixo. Aos dezenove ou vinte e poucos anos, nada na vida é fixo, para

sempre. E quando é, tem que ser eterno, mesmo que por algumas horas.

O sanduíche, acompanhado de um suco na lanchonete anunciava o fim da

diversão, assim como a conversa calma havia substituído o barulho uníssono formado

pela junção de som alto e o aglomero das pessoas, cada uma disputando com a outra

quem fala mais alto para se fazer ouvir. Na hora de se despedirem das paqueras, o

convite para que dormissem por ali foi reforçado. Não se sabe se por vergonha ou outro

motivo qualquer, eles decidiram seguir viagem. Era hora de voltar para casa.

Os quatro amigos foram embora em um Fusca branco, cortando o silêncio da

madrugada com o barulho típico do motor. Na BR-101, a neblina atrapalhava a visão

dos motoristas e tratava de ajudar a compor um ar fantasmagórico à cena. O inverno

havia começado há pouco mais de um mês e, à medida que o amanhecer do domingo se

aproximava, o frio ficava mais intenso.

O motorista do Fusca era alto demais para um carro tão baixo. Mas ali ele não

tinha o que reclamar, afinal dirigir na BR-101 era muito melhor do que nas estradas

irregulares da área rural de Camboriú, onde os solavancos cada vez que se passava por

um buraco, faziam com que ele batesse a cabeça no teto. Com a Brasília creme, que foi

sua companheira por muitos anos, esse problema não existia. Mas a troca já estava feita

e ainda bem que ele morava no Centro da cidade, perto da praça, onde as ruas eram

pavimentadas.

Eles já estavam no Km 129 da BR-101, na Canhanduba, em Itajaí, quando o

condutor do veículo aumentou a velocidade e tentou ultrapassar. A rodovia, na época,

Page 8: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

8

era de pista simples, sem o luxo da duplicação de hoje, que já mostra desgastes. Uma

luz em meio à neblina dava a impressão de que algo estava se aproximando

perigosamente, mas não havia mais tempo de desistir da ultrapassagem.

***

José Cotrin Filho estava longe de ser a caricatura do caminhoneiro. Nem

barrigudo era. Os cabelos grisalhos denunciavam que ele já passava dos 50 anos. Era

um homem de semblante sereno. Dias atrás, tinha saído de sua casa em Campinas, no

estado de São Paulo, embarcado num Caminhão Mercedes Benz de porte médio, rumo a

Porto Alegre, onde iria entregar uma carga de fogões. Era para ser uma viagem

tranquila, ele já havia percorrido várias vezes o trajeto, mas ainda em São Paulo se

incomodou com os guardas que quase o impediram de seguir em frente.

Agora, com o caminhão já carregado com sandálias de plástico, preparava-se

para fazer a última entrega antes de voltar pra casa. Havia estacionado no posto de

gasolina Irmão da Estrada, localizado às margens da BR-101, em Itajaí. Pernoitou no

local, pois já conhecia os funcionários, o que ajudava a garantir que ele pudesse

descansar com segurança. A volta pra casa é sempre um misto de alegria e ansiedade.

Naquele domingo, iria rever a mãe com quem morava desde que havia se divorciado.

Passava das cinco horas da manhã, quando José virou a chave na ignição e ligou

o motor do caminhão. A chuva havia cessado, mas a neblina mantinha o clima úmido. O

motorista saiu do posto, sinalizou adequadamente e ocupou a pista, indo para o sentido

norte, enquanto o veículo ganhava velocidade a cada instante. E, numa fração de

segundo, sem que José tivesse tempo de assimilar a informação do que poderia estar

acontecendo, um Fusca branco veio na direção dele e se chocou com o caminhão,

enfiando-se quase que totalmente debaixo da cabine do motorista.

José ficou em choque. Numa tentativa desesperadora de salvar os ocupantes do

Volkswagen, ele deu marcha à ré no caminhão, fazendo com que o atrito do pneu no

asfalto, onde havia vazado gasolina, começasse um incêndio. O fogo começou a se

alastrar muito rápido e o motorista teve que sair pela porta do carona, sem tempo nem

de salvar os próprios pertences.

José Cotrin observou os destroços do Fusca, mesclando-se com o da cabine

amarela do caminhão, ambos sendo consumidos pelas labaredas violentas do fogo, que

Page 9: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

9

já começava a atingir a carroceria. Não havia qualquer sinal de vida ali. Por que ali? Por

que com ele? Quem estava no carro? José sentiu o desespero vir em camadas, como um

líquido que penetra na corrente sanguínea e atinge o corpo, até sufocar todos os

sentidos. Todos os ocupantes do Fusca estavam mortos. Não havia mais nada a fazer.

A alguns quilômetros dali, a cidade de Camboriú dormia tranquila e

silenciosamente.

Page 10: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

10

Cedo demais

É tão estranho

Os bons morrem jovens

Assim parece ser

Quando me lembro de você

Que acabou indo embora

Cedo demais...

(Love in the afternoon – Legião Urbana)

Zenildo Saut levantou muito cedo naquele domingo. Era um homem conhecido

em Camboriú. Não que isso fosse uma grande qualidade, numa época em que todo

mundo se conhecia, na cidade que andava a passos lentos rumo ao desenvolvimento. O

relógio marcava sete e pouco quando ele jogou as cobertas de lado e encontrou o ar

gélido da manhã, fazendo com que recuasse por um instante para criar coragem de

seguir até o banheiro.

Alto, com cabelos castanhos sempre penteados para o lado e um volumoso

bigode conservado desde os tempos de solteiro, ele ocupava o cargo de tabelião no

cartório da cidade que levava o sobrenome da família. As ocupações do trabalho

exigiam muito dele durante a semana, por isso aos domingos ficava até mais tarde na

cama para um merecido descanso. Mas não naquele dia.

Ele abriu o registro e a água quente que saiu do chuveiro começou a amenizar o

frio em seu corpo, enquanto uma fumaça branca dançava no ar, umedecendo os azulejos

da parede. Alguém abriu a porta:

- O Kiko e o Fernando estão aqui e querem falar contigo – avisou Márcia, esposa

de Zenildo.

Naquele momento, ele foi tomado por um pressentimento ruim, que o fez

demorar ao máximo no banho. Ninguém iria até a casa de alguém tão cedo, num

domingo, para trazer boas notícias. O que poderia ter acontecido? Zenildo não queria

ouvir a resposta.

***

Pedro Joaquim não era apenas sobrinho de Zenildo. O tio exercia o papel de um

irmão mais velho, ou um segundo pai. Eram melhores amigos, confidentes. Até para

comprar uma roupa ele o consultava antes. E foi assim desde criança. Os primeiros

Page 11: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

11

brinquedos e a corrente de ouro foi Zenildo quem deu para ele. Na juventude, a relação

dos dois ficou ainda mais forte. Agora, Zenildo não comprava brinquedos para o

sobrinho, mas sempre trazia uma lata de cera a mais quando ia ao supermercado, para

Pedro lustrar a lataria do carro, sempre impecável.

Ele, não raro, levava Pedro Joaquim e os amigos para a diversão programada nos

momentos de folga. Zenildo nunca foi piloto de corrida, mas fazia parte da Associação

Automobilística de Camboriú e o grupo sempre ia prestigiar os rallys disputados em

várias cidades do estado de Santa Catarina. Um dos eventos foi em Jaraguá do Sul.

O tio aguardava o início da corrida, contemplando o ponto em que seria dada a

largada, quando viu o sobrinho de 21 anos, já um homem feito, de barba e cabelos

escuros cuidadosamente repartidos ao meio. Pedro era chamado pelos amigos de Taiá.

Por ser muito alto, tinha um jeito particular de andar, meio largado, mas sem perder a

compostura. Ele vinha na direção de Zenildo, acompanhado de três amigos e algumas

garotas.

- Oi, tio! Quero que vocês conheçam o maior piloto de Camboriú – mentiu ele

para as garotas, apontando para Zenildo. Os outros amigos concordaram, como já

combinado anteriormente. Elas, que já tinham caído na deles, ficaram ainda mais

impressionadas com a amizade que os rapazes com quem elas estavam flertando tinham

com o agora piloto.

O tio se limitou a dar um meio sorriso disfarçado, concentrando-se ao máximo

para conter o riso. Taiá e os amigos não desfizeram a mentira, nem ousaram encarar um

ao outro.

***

Após sair do banho, Zenildo se dedicou ao máximo em cada ação enquanto se

vestia, para garantir que o encontro com as duas pessoas que o esperavam na sala

pudesse ser adiado por mais alguns minutos. Então abriu a porta do banheiro e ignorou

o frio que veio encontrá-lo. Enquanto andava até a sala, uniu todas as forças que podia

para pedir – quase implorar – que não fosse uma notícia ruim, mas não adiantava mais

adiar. Ele chegou à sala para finalmente saber o que o Kiko da oficina e o Fernando

Garcia queriam com ele aquela hora da manhã.

Page 12: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

12

- Você demorou muito e eles foram embora – respondeu a esposa,

inocentemente, sem aparentar ter percebido que algo ruim poderia ter acontecido.

- Mas eles não queriam falar comigo? – indagou Zenildo, olhando para a porta

aberta da sala. Antes que a mulher pudesse responder, ele correu para frente da casa,

tentando alcançar os dois amigos, mas eles já tinham sumido de vista. Um carro

estacionou na frente do portão dele e um homem baixou o vidro da porta do motorista.

- Ô Zenildo, tu ficou sabendo de alguma coisa? – o nome do homem era Pedro

Satiro e ele já sabia de muita coisa.

***

Dona Zilma Saut começou a fazer o almoço antes do horário de costume.

Naquele domingo, ela iria participar de um retiro do grupo Apostolado da Oração, na

igreja católica do bairro Rio Pequeno, em Camboriú. Queria deixar tudo pronto o

quanto antes. A filha, Rosane, estava de resguardo, pois havia tido um filho há dez dias

e não poderia ajudar a mãe.

Enquanto preparava uma sopa para a filha e a maionese para o marido Maneca e

o genro Arno, dona Zilma começou a estranhar a demora do filho, Pedro Joaquim, para

chegar em casa. Ela morava no Centro da cidade e havia avisado ao filho que precisaria

do carro para ir até o outro bairro.

- Dona Zilma, o Pedro Joaquim está aí? – perguntou um homem na porta da

cozinha.

- Não, ainda não chegou – respondeu ela, sem parar de cortar os temperos.

A panela borbulhando em cima do fogão exalava um aroma que se espalhou por

toda a cozinha. A maionese já estava pronta e dona Zilma arrumava os pratos e talheres

na mesa, quando foi interrompida mais uma vez.

- O Pedro Joaquim já chegou?

- Ele está pra chegar, vai trazer o carro para eu ir pro retiro.

Ocupada com os afazeres, ela pouco deu atenção para o dia bonito que fazia lá

fora. E não notou nada de diferente na rua, onde a movimentação começava e a

Page 13: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

13

especulação aumentava a cada minuto, pois todos queriam saber o que tinha acontecido

com os quatro jovens que ainda não haviam voltado para casa.

Um homem alto e corpulento entrou na casa de dona Zilma. Ele não fez

nenhuma pergunta, ao contrário, tinha uma notícia para dar.

***

Pedro Satiro olhou para Zenildo escolhendo as palavras certas para sondar o

amigo.

- Teve um acidente feio na BR -101. Parece que morreram todos que estavam no

veículo.

Naquele momento, com a mesma rapidez que sumiram de vista, o Kiko da

Oficina e o Fernando Garcia estavam novamente na frente da casa de Zenildo.

- Tu não sabes se o Pedro Joaquim está em casa? – perguntou Fernando.

- Não, mas posso ir lá ver – respondeu Zenildo. E saiu dali, dispensando

qualquer cerimônia.

A casa em que Pedro Joaquim morava com a mãe dona Zilma, irmã de Zenildo,

o pai Maneca, a irmã Rosane e o cunhado Arno, estava localizada no terreno atrás da

morada de Zenildo. Ele seguiu pela calçada, ao lado da residência, até chegar a um

pequeno portão, que dava na casa do sobrinho. Ao passar, apressado, viu na grande

garagem, a direita da casa, o Fusca verde do Arno estacionado. A mente dele o traiu.

Munido de uma falsa esperança, Zenildo enxergou um Fusca branco, no lugar do

verde e pôde experimentar a sensação de alívio por alguns segundos. Até ser

interrompido pela irmã que o analisava pela janela da cozinha de alvenaria.

- O que você está fazendo aí? - questionou dona Zilma, uma mulher de cabelos

grisalhos, que batia abaixo dos ombros do filho e do marido. Não que fosse tão baixa,

eles que eram altos demais.

- Não é nada! Eu combinei com o Ronaldo que íamos sair agora pela manhã –

mentiu ele, de forma impaciente, para evitar mais perguntas. E saiu apressado, indo em

direção ao portão, deixando para trás uma Zilma encabulada, que o acompanhou com os

Page 14: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

14

olhos, enquanto ele passava pela velha casa de madeira em que morava, abriu o portão e

foi para a casa da frente.

Zenildo estava desnorteado, agindo por impulso, como se estivesse vivendo num

sonho que o impedisse de raciocinar. E a cada passo que dava, as coisas saiam do seu

controle. Mesmo assim, precisava disfarçar para que o resto do mundo não percebesse a

angústia que aquele domingo havia se tornado. Atravessou a rua e estava na frente da

casa de Ronaldo. O homem surgiu, vindo até o portão.

- O que foi, Zenildo? - Num lapso de consciência, as coisas foram ficando claras

para ele, mesmo que não quisesse acreditar, que não tivesse a certeza. E antes de ele ter

tempo para responder, aproximava-se um homem quase tão alto quanto o sobrinho que

ele mais estimava. Tinha um rosto comprido e feições duras que poderiam muito bem se

tornar as de Pedro Joaquim dali quarenta anos. Era o Maneca.

- Eu não posso te contar nada agora, mas acho que aconteceu um acidente muito

grave com o Pedro Joaquim e os amigos dele – sussurrou para Ronaldo, que entendeu a

mensagem e voltou para dentro.

- O que foi? Tu estás meio fora de sintonia! – Maneca estranhou o jeito do

cunhado.

- Não é nada, só vim aqui falar com o Ronaldo. Aliás, ele quer falar contigo. – E

saiu, deixando Maneca sem entender nada. O Kiko da oficina reapareceu e o abordou

com mais uma informação.

- Pela descrição do carburador, parece que o acidente foi com o Fusca do Pedro

Joaquim.

Ele atravessou a rua e cortou caminho pela casa da irmã. Dona Zilma já estava

com um pressentimento ruim que a incomodava, enquanto lavava a louça. Zenildo

passou num vulto. Agora estava ainda mais perto de saber o que realmente havia

acontecido. Chegando em casa, veio a confirmação.

- Eu estive no local do acidente, era o Fusca do Pedro Joaquim, todos morreram

– afirmou Pedro Satiro e entregou a carteira de identidade intacta do sobrinho de

Zenildo nas mãos dele. O choque e a dor da perda podem se manifestar de diversas

Page 15: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

15

maneiras. Mas não para Zenildo, pois um Maneca cada vez mais impaciente se

aproximava e iria exigir uma explicação.

***

O homem que estava na porta da cozinha de dona Zilma era o Carlão, tio de

Adriano, que havia saído junto com o Pedro Joaquim e outros dois amigos na noite

anterior.

- Oi, Carlão!

Era estranho ver um homem grande como o Carlão hesitar em cada gesto, cada

passo, como numa encenação. Na verdade, ele estava escolhendo a melhor maneira de

começar a contar algo que iria mudar para sempre a vida de dona Zilma e seus

familiares.

- Olha Zilma... Parece que houve um acidente com o Pedro Joaquim, o Adriano,

o Maka e o Nico – disse finalmente.

- Um acidente? Por isso ele está com medo de chegar em casa! Ô Carlão, você

mande dizer para o Pedro Joaquim vir logo, que se o carro quebrou ou amassou, não há

nada mais o que fazer. O Maneca não vai brigar com ele – retrucou dona Zilma, tão

decidida em dar o recado que atingiu um tom autoritário. Queria ver o filho o quanto

antes. E as coisas se tornavam cada vez mais difíceis para o Carlão.

- Zilma, o acidente foi mais grave do que a gente pensava.

E num silêncio desesperador, os dois se encararam. A missão de Carlão estava

cumprida, dona Zilma havia entendido perfeitamente o recado. Ela havia acabado de

perder um filho.

Page 16: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

16

O poeta em silêncio

Esse sentir-se cair

Quando não existe lugar

Aonde se possa ir

Esse pegar ou largar

Essa poesia vulgar

Que não me deixa mentir

(Estupor – Paulo Leminski)

Adriano era um rapaz de poucas palavras. Na dele. Aos 19 anos, a paixão pelo

esporte, principalmente futsal, garantia que ele mantivesse a boa forma. Os cabelos

castanhos claros caíam até parte da testa e o rosto fino, onde a barba começava a

aparecer, poderiam muito bem fazer com que as pessoas dessem para ele uns vinte e

poucos anos de idade.

O curso de Agronomia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

exigia cada vez mais. Aluno dedicado, saiu de Camboriú e foi morar em Florianópolis

para correr atrás do sonho de ser engenheiro agrônomo, onde pode contar com a

parceria do primo e amigo de infância, o Beto, que estudava Odontologia também na

UFSC. Eles e um amigo, o Alemão, dividiam uma casa alugada na capital.

Geralmente, nos fins de semana Adriano voltava a Camboriú para rever a mãe

Lulu, o irmão Kau e os amigos. Mas naquele iria ficar em casa, então resolveu escrever

uma carta endereçada à mãe. Para dona Lulu, era uma alegria ver a já conhecida letra do

filho: elegante, fina, inclinada para a direita, quase um itálico, só que manuscrito. Ela

leu com atenção.

Fpólis, 24/10/85

Oi, mamãe!

Eu estou muito bem!

Espero que também estejam. Não vou para casa porque você e o Kau não estarão, daí

fica menos interessante a minha ida. Sem desmerecer a todos que estarão em casa e

que contemplo.

Haverá uma festa da minha turma domingo (o dia todo). Comprei uma mochila preta

muito linda. Custou 95.000 cruzeiros.

Esse dinheiro foi do cinquenta mil que a mãe deu e mais cinquenta que o pai deu e eu

não gastei no final de semana.

Page 17: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

17

Gostaria que a mãe mandasse uns cinquenta mil cruzeiros pelo Beto, porque estive

fazendo minhas contas, e o dinheiro do mês chegará somente pelos dias 3 ou 4, e isso

significa daqui a dois finais de semana. Provavelmente, se a mãe não puder mandar eu

ficarei sem dinheiro para o próximo final de semana, mas não tem muita importância,

eu me viro.

Hoje recebi a nota da prova de estatística. Tirei 6,0. Com relação à turma, foi uma boa

nota. Teve apenas duas notas que superaram o seis, portanto não é muito ruim.

Tirei 6,9 em bioquímica, e 9,4 em química analítica.

A caligrafia está medonha porque tenho pressa.

Espero que tenha um bom final de semana.

Divirta-se bastante e tenha muita saúde!

Um beijo de quem te ama!

Adriano Gandin.

***

- Mãe, mas é um rapaz tolo esse Hudson. Casou tão cedo! – afirmou Adriano

para dona Lulu ao voltarem da festa de casamento. A discussão já havia começado na

igreja com o Pedro Joaquim, até que ambos chegaram àquela conclusão: Que rapaz tolo!

Para a turma da qual o Adriano, o Pedro Joaquim, o Nico e o Maka faziam parte

– sempre mais pessoas se agregavam ao grupo –, qualquer relacionamento sério deveria

ser descartado para não estragar a parceria. Dona Lulu riu. Ela e todos que conviviam

com Adriano sabiam que ele não era de falar muito, contar piadas o tempo todo, mas

quando abria a boca, sempre largava as melhores pérolas, fazendo os outros rirem

facilmente.

A casa de dona Lulu, onde também morava o irmão de Adriano, o Kau, além da

vó deles, a dona Zizi, ficava atrás do bar e restaurante da família, que anos depois se

tornaria uma das pastelarias mais famosas de Camboriú, no Centro da cidade. Kau é

deficiente físico de nascença, o que nunca foi um problema para Adriano, pois sempre

teve orgulho do irmão. Quando Adriano vinha, a família ficava completa.

- Mãe, escuta como o Adriano faz o Kau morrer de rir – disse Lulu para dona

Zizi, enquanto o filho contava as histórias da faculdade para o irmão no quarto ao lado.

Já era tarde da noite quando as risadas de Kau cessaram e eles adormeceram. Dona Lulu

sorriu, com a alegria que só uma mãe pode desfrutar ao ver os filhos se darem tão bem

assim.

Page 18: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

18

***

- Ô mãe, você sabe me dizer se... – Adriano parou de falar ao entrar no quarto e

ver a mãe deitada na cama. Deveria estar dormindo. Dona Lulu imediatamente se virou

para dar atenção ao filho.

- Ai, Adriano eu estou com uma dor de cabeça – queixou-se ela.

- Ah, me deixa fazer uma pajelânça que você já vai melhorar.

- Fazer o quê? – mas ele já estava de joelhos na cama, em cima da mãe,

massageando a cabeça dela. A pajelânça que o filho estava fazendo mais uma vez

provocou o riso em dona Lulu. E a dor de cabeça ia ficando cada vez mais fácil de

suportar...

- Filho, quando tu se formar, tu vai ajudar a mãe. Quando eu ficar velha, ou se

algum dia eu faltar, você cuida do Kau, toma conta dele pra mim. Adriano apenas sorriu

para ela por um instante.

- Não conte comigo, mãe.

***

O dia estava escurecendo e um Adriano solitário, na casa que dividia com o

primo e o amigo, perdia-se em pensamentos e adentrava um universo particular. A

solidão e a melancolia das noites silenciosas eram fontes de inspiração. Ele que tanto

estudava as ciências exatas, também gostava de se permitir transformar devaneios em

coisa escrita, concreta. Ser um poeta de gaveta. Pegou lápis, papel e deixou fluir.

O vento

Foi longa a viagem.

Cambalhotas e intempéries.

Nem o tempo e nem o sol impediu a viagem.

Após muita procura encontrou um lugar

cheio de riqueza e alimento.

Ela foi correndo.

A beleza, a elegância e a bondade,

Page 19: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

19

também cresceram com ela.

Hoje dá fruto e repouso aos pássaros

que nela habitam.

Vento!

Oh, vento!

Choves os céus em homenagem ao seu irmão

que conduziu o feto à tua mãe.

Homens, derramem rios de sangue

a quem perpetua e insemina os frutos da floresta.

Cambalhotas e intempéries.

Nem o tempo e nem o sol impedirão

mais uma “longa viagem”.

Largou o rascunho num canto e esfregou os olhos com as mãos, numa tentativa

de aliviar o cansaço. O fim do semestre estava se aproximando e a carga de trabalhos se

acumulava. O silêncio da casa foi quebrado pelos passos de Beto, vindo em direção ao

quarto de Adriano. Ele precisava passar por lá para chegar ao próprio quarto. Os dois

até dividiam o mesmo guarda-roupa.

À medida que os primos foram crescendo, eles se distanciavam cada vez mais.

Com a chegada da adolescência, Adriano foi estudar no Colégio Agrícola de Camboriú

e fez novos amigos. O Beto já estava focado em ingressar no curso de Odontologia e

sempre foi um rapaz mais reservado. Preferia os livros e os filmes às festas. Mas havia

algo mais forte na relação dos dois. Um laço de infância que não se desmancharia tão

facilmente.

Já em Florianópolis, a rotina intensa de ambos dificultava a convivência. Mas

Adriano gostava de conversar com Beto. Ele indicava bons filmes e bons livros.

- Adriano, você precisa parar de assistir só esses enlatados americanos. Ouvi

falar muito bem de Brazil, do Terry Gilliam. Está em cartaz, vamos?

- Claro! Vamos sim – ele sabia que Beto raramente erraria na escolha e a

película iria render bons diálogos.

Page 20: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

20

Já Beto ficava feliz em saber que o primo se interessava por cinema e literatura.

Eles podiam não ser mais inseparáveis como quando eram crianças, mas bons filmes e

autores como Gabriel García Márquez e seu Cem Anos de Solidão têm o poder de

reaproximar as pessoas.

***

Dona Lulu acordou naquele domingo e foi cuidar dos afazeres da casa. Ela

evitava fazer barulho para não acordar os filhos que gostavam de dormir até mais tarde.

Ainda mais o Adriano, que estava de férias da faculdade e tinha saído com os amigos na

noite passada. Deveria ter chegado tão tarde em casa que ela nem ouviu a porta bater.

Kau abriu os olhos e por um tempo ficou contemplando o teto do quarto.

Quando olhou para o lado, tomou um susto ao ver que a cama do irmão estava vazia.

Alguém abriu a porta. Era dona Lulu, que também ficou surpresa ao ver que o filho não

estava no quarto.

- Mãe, o Adriano não veio dormir em casa – disse Lulu para Dona Zizi, já de

volta à cozinha, sem conseguir esconder a preocupação que aumentava a cada minuto.

- Ah, minha filha. Vai ver ele dormiu na casa de um dos amigos, talvez lá na

casa de praia em Itapema ou em outro lugar – respondeu para a filha, buscando

tranquilizá-la.

Já era hora de começar a preparar o almoço, quando Ione, irmã de dona Lulu,

apareceu para fazer uma pergunta.

- Lulu, o Adriano já acordou?

- Nem me fala, ele nem chegou ainda, acredita? – Ione já sabia que havia

acontecido um acidente. Ela saiu sem dizer mais nada.

Dona Lulu foi até a horta ao lado da casa buscar temperos. E sem que tivesse

tempo de se preparar, de imaginar o que poderia estar acontecendo para justificar a

grande movimentação na rua, um homem se dirigiu a ela.

- Houve um acidente com o Fusca do Pedro Joaquim. Morreram todos que

estavam no carro.

Page 21: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

21

Page 22: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

22

Esse tal anos 80

Não há tempo

que volte, amor

Vamos viver tudo

o que há pra viver

Vamos nos permitir

(Tempos modernos – Lulu Santos)

A Brasília do Pedro Joaquim era o carro mais bem encerado de Camboriú. Dona

Zilma foi uma das primeiras mulheres na cidade a ter carteira de habilitação e ela

dividia o automóvel com a família. Quando o veículo era novo, as pessoas podiam se

espelhar na lataria bem polida, mas depois de um tempo, a obsessão em manter o carro

sempre no brilho ajudava a esconder as imperfeições da tradicional Brasília creme,

placa CB 0490, dos Saut. Pedro tinha o costume de limpar o pneu do carro pelo lado de

dentro e depois, antes de estacionar, virava o volante todo para um lado, evidenciando a

calota limpa, brilhosa, impecável para quem quisesse ver.

Nem sempre o carro estava disponível para Pedro Joaquim e os amigos irem

curtir a noite em Balneário Camboriú ou Itapema. Mas ainda bem que em Camboriú

existia a Disco Laser, refúgio para centenas de jovens da cidade que queriam jogar

conversa fora e beber algo depois da aula, do trabalho, ou até mesmo curtir um som e

encontrar aquela paquera no fim de semana. Ser jovem na Camboriú da década de 80

era bater ponto regularmente na Disco Laser. Depois, a festa podia seguir para outra

cidade, outra danceteria, mas era ali que começava. Existia uma fidelidade ao local.

Durante a quaresma, o estabelecimento que ficava localizado em frente à Igreja

Matriz, no Centro da cidade, fechava. Nesse período, o dono sempre mudava algo, nem

que fossem as mesas de lugar. Já que os frequentadores tão fiéis ao local ficavam

quarenta dias órfãos do point de Camboriú, mereciam ser recompensados com alguma

novidade quando voltassem.

A Disco Laser durante a semana era apenas a “Lanchonete do Ovídio”. Quem

entrasse lá, se deparava com diversas mesas distribuídas pelo salão. No outro extremo

do local, do lado esquerdo, ficava o balcão, com a chapa fritando o hambúrguer ou

frango de algum lanche, dando conta de abafar o barulho suave das várias garrafas de

cerveja ou refrigerante que eram abertas diariamente. Do outro lado, grupos de amigos

passavam horas se divertindo com as mesas de fliperama.

Page 23: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

23

Nos fins de semana, a porta atrás da lanchonete se abria, revelando uma pista de

dança, onde os hits clássicos dos anos 80 e as luzes psicodélicas das discotecas

embalaram madrugadas e histórias de toda uma geração. A Disco Laser mostrava que

não era necessário sair de Camboriú, cidade que ainda conservava ares de vila, para

curtir a juventude em sua totalidade. Sonhar, não ter limites, poder ser e fazer o que

quiser. Mesmo que essa sensação acabasse no amanhecer, quando o som era desligado.

O Leomar, mais conhecido como Maka, era um dos que frequentavam o local.

Apesar de ser um dos mais velhos da turma, tinha 24 anos, também fazia parte do

grupo. Maka trabalhava no banco Bamerindus e era um rapaz de presença. Alto,

mantinha os cabelos sempre bem penteados, alinhados. Durante um tempo foi modelo e

os desfiles em que participou fizeram com que ele criasse uma postura que o

diferenciava dos outros. Ao lado dele, o andar do amigo, Pedro Joaquim, tornava-se

ainda mais desengonçado, ambos tinham quase a mesma estatura, na média de um

metro e oitenta e sete.

Educado e parceiro com os colegas, era atencioso com os pais que já tinham

chegado a uma certa idade e requeriam alguns cuidados. Maka era um dos mais tímidos

do grupo. A convivência fez com que ele e o Pedro Joaquim criassem até uma

semelhança.

- Vocês são irmãos? – perguntou certa vez uma garota, acompanhada da amiga.

- Sim, desde que nascemos – respondeu prontamente o Pedro Joaquim, já

emendando uma conversa e empurrando a outra moça para o Maka que também tratou

de fazer o seu lado com a paquera.

Já passavam das 23 horas quando um rapaz entrou na lanchonete do Ovídio,

acompanhado do amigo. Ambos sentaram e deixaram as mochilas descansarem sobre a

mesa. Um deles era o Vilmar Zonta, que atendia pelo apelido de Nico; o outro era o

Marquinho. Nico foi o irmão que Marquinho não teve. Vizinhos, eles se conheceram

antes do primário e cresceram juntos, estudaram juntos no Segundo Grau do então

Colégio Agrícola de Camboriú (CAC) e depois na Universidade, iam juntos diariamente

para Itajaí. Marquinho estudava Direito e Nico, Economia.

Nico era um jovem com feições de homem. Mas, os cabelos louros muito lisos

acompanhavam o balançar da cabeça, desfazendo o ar sério que ele aparentava à

Page 24: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

24

primeira vista e ajudando a construir uma aparência juvenil, serena. Assim como os

outros amigos, era apaixonado por esportes. Ali, eles continuavam uma conversa que

havia começado quando voltavam da aula, até que mais uma pessoa se juntou à cena.

Era o Paulo Madeira, o futuro administrador da turma que também havia acabado de

chegar da faculdade e veio aliviar o estresse da rotina com os amigos.

- Puxa uma cadeira. E aí, quando vai rolar um joguinho no Ginásio de Esportes?

***

O Baturité foi uma das danceterias mais famosas de Balneário Camboriú, cidade

vizinha de Camboriú, e o paraíso das noitadas de diversas pessoas da região. Localizado

em meio a bares e outras casas noturnas, muitos nem chegavam a entrar na balada – por

falta de dinheiro, ou porque a festa estava mais interessante lá fora – e a noite ia sendo

composta, em meio às garrafas que se esvaziavam, músicas com refrões que ficavam na

cabeça e conversas que evoluíam para uns amassos em algum canto.

Os jovens de Camboriú chegavam em frente ao local e, sem que fosse

programado, uma turma de 20 ou 30 pessoas do município se juntava num grande

grupo. Havia noites em que eles eram maioria no lugar. Quando entravam no salão, os

meninos se serviam geralmente de uísque com guaraná. Elas preferiam algo mais doce,

talvez um Keep Cooler de abacaxi. Canudinho dançando entre os dedos, goles

pequenos, conversas descontraídas, falas ao pé do ouvido. Às vezes, quando a porta se

abria, um domingo ensolarado vinha de encontro a eles.

Eram seis horas da manhã quando o Pedro Joaquim, o Adriano e o Paulo

Madeira voltavam de Balneário para casa na Brasília creme. Enquanto dirigia, Pedro

podia sentir o suor na camisa começar a gelar as costas. Os outros dois ocupantes do

carro se ocupavam em desfrutar do próprio cansaço. De repente, algo chamou a atenção

deles.

- Olha lá o Cássio Garcia sozinho com o Fusca parado. Deve ter dado algum

problema – disse Pedro Joaquim.

Cássio viu os amigos se aproximando e a sensação de alívio durou o mesmo

tempo em que eles reduziram a velocidade e passaram direto por ele, buzinando, sem

nem perguntarem o que tinha acontecido.

Page 25: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

25

- Ei! – gritou Cássio inutilmente, pois já tinham seguido viagem.

Dentro da Brasília, eles esqueceram o cansaço e gargalhavam, relembrando o

semblante do amigo ao vê-los passar por ele sem prestar socorro. Então fizeram o

retorno e voltaram para a avenida a fim de ajudar o coitado do Cássio.

- E aí, irmão, o que houve? - perguntou Pedro.

- Ainda bem que vocês apareceram. Acabou a gasolina, me arruma um pouco –

respondeu Cássio, novamente aliviado.

- Olha, a gasolina eu não consigo, mas se tu quiser nós puxamos o carro pra ti.

- Puxar como? Nem corda nós temos...

Pedro olhou para o Paulo e o Adriano que já tinham entendido o recado e

estavam adorando a ideia. E assim, os dois caronas deitaram no capô da Brasília,

esticaram os pés até encostar na traseira do Fusca e, segurando-se no pára-lama,

continuaram o percurso. Chegando à Avenida Atlântica, uma das mais movimentadas

de Balneário, eles pararam numa padaria, provocando o olhar dos curiosos que ali

estavam.

- Olha só, quando a gente chegar lá na entrada de Camboriú, vai ser na base da

roleta russa. Nós vamos embalar e tu decides: segue direto, ou freia se vier algum carro

– enquanto a atendente buscava o pão, os amigos planejavam os próximos passos da

maratona até Camboriú. Por sorte, não vinha nenhum carro na direção contrária quando

chegaram ao trecho mais perigoso da travessia, permitindo que eles seguissem em

segurança para deixar o amigo em casa. Depois daquele dia, reza a lenda que o Cássio

Garcia nunca mais deixou faltar gasolina no Fusca.

***

Teve o dia em que eles resolveram ir conhecer o bordel de Balneário. O grupo se

espremeu na Brasília e todos seguiram ansiosos para ver os shows de strip-tease que as

moças haviam preparado para aquela noite. O Pedro Joaquim, querendo dar uma de

importante, já na chegada estacionou perto da porta de entrada, na frente de um

triângulo de segurança. Brasília rebaixada, encerada. Estavam com moral.

Page 26: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

26

A turma conversava, quando Marquinho olhou para o lado e viu um carro

importado da época vir a toda velocidade e passar por eles num segundo, fazendo o

triângulo de segurança voar para longe e cair no telhado da casa da luz vermelha. O

susto fez a turma inteira brochar.

Quando o fim do mês se aproximava e o pessoal ficava sem dinheiro, era o

momento de usar a imaginação. Reuniam os amigos e, muitas vezes, iam acampar na

Praia de Quatro Ilhas, hoje pertencente a Bombinhas, que na época era quase deserta.

- Mas a gente veio pra cá e não trouxe nem colchão, só a cabana – comentou o

Paulo Madeira, enquanto ele e os amigos observavam a imensidão do mar se estender à

frente deles.

- Deixa isso pra lá, não tem problema, a gente se vira – respondeu o Nico.

Naquela tarde, eles se ocuparam com várias disputas de cavalo de guerra, onde

um sentava sobre os ombros do outro e tentava derrubar o adversário. Na areia, ao invés

de no mar onde ninguém se machucaria, a rivalidade ficava mais emocionante. À

medida que o dia escurecia, a praia se tornava um breu onde não era possível enxergar

mais nada. A fogueira era acesa e eles ficavam ali, até que o fogo virasse só um monte

de brasas e eles fossem acordados pelo barulho dos turistas, que chegavam para

aproveitar a praia na manhã seguinte.

De vez em quando, um grande grupo ia acampar em Quatro Ilhas. Até o amigo

de São Paulo do Pedro Joaquim, o Renato Faro, marcava presença. Os amigos

convidavam os outros amigos, que tinham amigas que convidavam outras amigas e o

local, antes tranquilo, estava pronto para a festa.

- Ei, vocês viram que na novela eles estavam fazendo contato com os

extraterrestres? - indagou o Marquinho para os outros – Nós podíamos tentar!

E então, eles fizeram uma grande roda, deram as mãos e, na maior concentração,

tentando fazer a entonação que mais se aproximasse, na concepção deles, da fala de um

extraterrestre, fizeram um coro:

- Nós queremos fazer contato com seres extraterrestres!

Silêncio.

Page 27: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

27

- Nós queremos fazer contato com seres extraterrestres!

Os extraterrestres os ignoraram. O jeito foi socializar entre os humanos mesmo.

O som alto das caixas de som da Brasília embalou a madrugada inteira, que durou

tempo bastante para descarregar a bateria do automóvel. E nenhum alienígena apareceu

para ajudá-los a empurrar o carro.

Page 28: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

28

Page 29: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

29

O domingo que não era para ser

Oh, pedaço de mim

Oh, metade arrancada de mim

Leva o vulto teu

Que a saudade é o revés de um parto

A saudade é arrumar o quarto

Do filho que já morreu

(Pedaço de mim - Chico Buarque)

Ainda em choque, Zenildo escondeu a identidade do sobrinho no bolso e olhou

desolado para o Pedro Satiro, como se o amigo pudesse fazer alguma coisa sobre aquilo.

Maneca se aproximou apressado e pôs as mãos no ombro de Zenildo, fazendo com que

ele se virasse para encará-lo.

- O que está acontecendo? Tu estás me escondendo alguma coisa! – esbravejou

Maneca para o cunhado. Zenildo agora tinha duas opções: ou dava a notícia de que

Pedro Joaquim tinha morrido ou, mais uma vez, teria que despistá-lo para se poupar

desse momento. Optou pela segunda opção.

- Eu não estou te escondendo nada, para com isso! – disse da forma mais natural

que conseguiu, evitando novamente dar chances para mais questionamentos. Maneca

voltou para casa visivelmente insatisfeito. E Zenildo tinha agora outra missão.

A mãe dele, dona Titi, como era conhecida, já participava desde cedo do retiro

na Igreja Católica do Rio Pequeno e seria ele quem deveria avisá-la. Entrou em casa,

pegou as chaves do carro e partiu no Gol Chaleira, dirigindo para a cidade vizinha,

Balneário Camboriú, ao invés de ir para a capela no Rio Pequeno.

No percurso, Zenildo imaginou que naquele momento, Maneca já sabia o que ele

realmente estava escondendo. A Zilma, já desconfiada, não iria demorar muito para

receber a notícia. As outras famílias também logo saberiam da tragédia. Uma onda de

horror e tristeza iria atingir Camboriú como uma avalanche. Tão jovens, uma vida

inteira pela frente. Meu Deus, o Pedro Joaquim!

Já em Balneário, estacionou em frente a uma grande casa na 3ª Avenida. No

impulso, assim como já havia agido várias vezes nas últimas horas, ele atravessou o

portão, entrou na casa e sentou na sala de estar, olhando fixamente para a televisão

Page 30: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

30

ligada, sem assimilar o que estava sendo exibido. O dono da casa levou um susto ao

entrar no cômodo e vê-lo ali parado.

- Dr. Delatorre, meu sobrinho teve um acidente fatal e não resistiu. Preciso dar a

notícia para a minha mãe. Como o senhor é medico dela, talvez possa me ajudar -

respondeu ele decidido, dispensando qualquer cerimônia.

O Dr. Delatorre conversou com Zenildo, enquanto se perguntava como o

homem havia entrado ali sem que o cachorro que estava solto avançasse nele. Por fim,

receitou um calmante para dona Titi e o visitante inesperado foi embora. Zenildo

comprou o remédio na farmácia mais perto e seguiu direto para buscar a mãe na igreja.

- Dona Zozima, tira a mãe lá de dentro que eu preciso conversar com ela – pediu

ele, em frente à capela. Alguns minutos depois, ela voltou acompanhada de uma senhora

que o fitava, franzindo as sobrancelhas.

- O que tu estás fazendo aqui, Zenildo? Agora que vai começar, a Zilma nem

chegou ainda...

- Mãe, tu vais ter que ir lá em casa, a Zélia está passando mal, mas não é nada

grave – mentiu ele. Zélia era uma das irmãs de Zenildo e já estava sabendo do ocorrido.

- Me conta essa história direito, o que foi?

- Não é nada, pode até deixar a bolsa com a dona Zozima que eu já te trago de

volta – respondeu , atingindo um ar quase histérico e entregando a bolsa da mãe para a

mulher ao lado. Dona Titi o acompanhou.

Dentro do carro, um silêncio constrangedor tornava tudo ainda mais difícil para

Zenildo. Ele se concentrou no caminho como alguém que dirige pela primeira vez em

uma estrada desconhecida.

- Pode me falar a verdade que eu já sei que é grave! – era difícil enganar a mãe.

Zenildo olhou pela primeira vez para a mãe desde que entraram no automóvel. Deu

sinal e estacionou.

- Primeiro a senhora tem que colocar esse remédio debaixo da língua – ela

obedeceu.

Page 31: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

31

- Agora me conta.

- O negócio é o seguinte, não tem nada a ver com a Zélia, o acidente foi com o

Pedro Joaquim e grave. Estavam ele e mais três colegas, todos estão no hospital. De lá

da casa da Zélia, nós iremos acudir a Zilma.

Zenildo sabia que não havia ninguém no hospital, mas esperou para revelar toda

a verdade quando já estivessem acompanhados da família. Quando chegou à casa da

Zélia, contou tudo para a mãe. E então a adrenalina cessou em seu corpo e ele pode,

enfim, assimilar a tristeza de perder um sobrinho, melhor amigo, um filho, ou tudo isso

em um só.

***

Aos poucos, o Carlão confirmou para dona Zilma que Pedro Joaquim estava

morto. A rua se enchia cada vez mais de pessoas. Por um instante, o mundo parou, ela

sentiu uma espécie de inércia diante da confirmação. Então, as lágrimas brotaram e logo

a casa se encheu daqueles que vieram consolar uma mãe no pior momento de sua vida.

Dona Lulu entrou correndo na casa de Zilma e a abraçou. Ela acabara de saber

do acidente enquanto buscava temperos no quintal. Sabia que o Adriano estava junto,

mas não queria acreditar.

- Meu Deus, Zilma! E o Adriano onde está? – disse para dona Zilma ao deixar de

abraçá-la. Falava, na verdade, para si mesma. Ela entendia o sofrimento que a mulher na

frente dela estava sentindo e não queria passar pelo mesmo. Saiu da casa e viu um

conhecido dentro de um carro estacionado.

- Nino, me leva ao hospital que eu quero saber o que aconteceu com o Adriano –

então embarcou e partiram para Balneário. Ao chegar ao hospital Santa Inês, descobriu

que ninguém com as descrições ou nome do filho havia dado entrada ali. Seguiram para

Itajaí, até o hospital Marieta Konder Bornhausen.

- Os corpos já estão no IML, senhora. Talvez seja difícil o reconhecimento. –

informou a funcionária do hospital. E dona Lulu saiu às pressas, desceu as escadas do

Marieta, embarcou no carro e comunicou ao motorista que eles iriam até o Instituto

Médico Legal. O carro já estava em movimento quando ela avistou um homem

andando, tranquilamente, pela calçada. Reconheceu a fisionomia.

Page 32: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

32

- Olha lá o Dr. Honorato. Para o carro que eu quero falar com ele.

Dr. Honorato era o dentista de Adriano. Naquela manhã de domingo, ele

caminhava por recomendação médica, pois estava se recuperando de uma cirurgia

cardíaca. Adriano era um de seus pacientes mais conhecidos.

***

- Doutor, dá uma pausa que eu estou ficando ruim, acho que preciso ir ao

banheiro – pediu Adriano, já se levantando da cadeira do dentista.

- Que vergonha Adriano, desse tamanho ainda não se acostumou a vir ao

dentista... – respondeu, divertindo-se com o paciente e amigo. Alguns minutos depois,

ele voltou.

- Acho que podemos continuar.

- Fica calmo, Adriano, vamos lá...

***

O carro parou, dona Lulu desceu e o abordou na calçada.

- Dr. Honorato, aconteceu um acidente terrível com o Adriano, talvez o

reconhecimento só possa ser feito pela arcada dentária – ele não precisou fazer muito

esforço para se lembrar de quem a mulher estava falando. E se dispôs a ajudar.

Ela agradeceu e foi direto para o IML. Queria ver o filho de qualquer maneira.

Quando chegou ao local, olhou para um carro estacionado em frente à porta e entrou

direto por um corredor, procurando pela sala em que o Adriano estaria. Eles tinham que

a deixar vê-lo, onde ele estaria? Alguém a puxou pelo braço e indicou uma sala onde ela

deveria ficar. Um homem veio atendê-la e dona Lulu explicou o ocorrido.

- Com que roupa ele estava? – perguntou ele tranquilamente.

- Ele estava usando um casaco quadriculado amarelo e preto... – a informação

tinha sido suficiente. O homem saiu da sala e retornou instantes depois, com um pedaço

de tecido idêntico ao que ela havia descrito, exceto por estar queimado.

Page 33: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

33

- Era esse? – dona Lulu pegou o pedaço do casaco nas mãos e confirmou com a

cabeça.

- Posso levar para mostrar à minha família?

- Sim senhora, sinto muito.

Dona Lulu saiu sem pressa. Acariciando o pedaço de tecido queimado. A tristeza

era tanta que ela não conseguiu chorar. Lágrima nenhuma seria suficiente para expressar

aquela dor.

Em Camboriú, dona Maria Zonta colocava as mãos sobre a boca ao ver um

grupo de pessoas na sua cozinha contarem sobre o acidente com o Fusca. O Nico, um

filho tão amado, não tinha o direito de partir assim. O desespero causou nela uma dor

física. Não podia ser verdade.

Dona Zilma começou a arrastar as cadeiras para o canto, buscando ganhar

espaço na casa para preparar o velório. Não pode contar com a ajuda do marido, o

Maneca, que estava tomado por uma revolta incontrolável. Inconformado. Depois de

algumas tentativas, os familiares a convenceram de velar o Pedro Joaquim na Igreja

Matriz, junto com os outros três jovens, onde tudo já estava sendo arrumado. Ela então

foi escolher uma fotografia dele para colocar em cima do caixão. E, pela primeira vez,

olhou com tristeza para o retrato do filho.

Page 34: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

34

Das formas de amor

Esse foi um beijo de despedida

Que se dá uma vez só na vida

Explica tudo, sem brigas

E clareia o mais escuro dos dias

(Você vai lembrar de mim – Nenhum de nós)

Depois de algum tempo analisando as cartas que estavam postas sobre a mesa, a

cigana olhou fixamente para a moça sentada de frente para ela.

- Você irá conhecer um rapaz que irá chamar a sua atenção pelo olhar. E será

num lugar onde vai haver muitas pessoas.

***

- Oi, o Pedro Joaquim está em casa? – perguntou uma moça, parada à porta.

- Está sim, vou chamá-lo – respondeu dona Zilma, dirigindo-se ao quarto do

filho e voltando instantes depois.

- Olha minha querida, era para ele estar no quarto, eu nem o vi sair de casa –

comentou, tornando visível a chateação da jovem diante da informação.

- OK, obrigada, diga para ele que estive aqui – e foi embora.

Há alguns metros dali, Pedro Joaquim pode, finalmente, diminuir a velocidade

dos passos, desde que havia pulado a janela do quarto para despistar a recém-chegada e

ir para o Ginásio de Esportes. Antes disso, passou na frente da Padaria do Montibeller,

como sempre fazia.

- Ô seu velho, vamos jogar hoje? – disse para um homem alto e corpulento atrás

do balcão. Montibeller riu e afirmou que iria se tivesse tempo. O Pedro Joaquim com

uma bola de basquete ou futsal debaixo do braço, o convidando para praticar alguma

atividade, tornou-se a lembrança mais forte que Montibeller ainda guarda do amigo.

O amor pelo esporte unia os jovens de Camboriú e ajudou a formar grandes

amizades. Assim como a Disco Laser, o Ginásio de Esportes Irineu Bornhausen,

também no centro da cidade, era um ponto de encontro. Teve uma época em que o

Pedro Joaquim resolveu incomodar todo mundo que ele sabia estar ligado ao esporte no

município, para que colocassem uma cesta de basquete no local. E conseguiu.

Page 35: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

35

A única vez que o Paulo Madeira mentiu para faltar no emprego foi numa tarde

em que ele e o Pedro Joaquim haviam combinado de pintar a marcação para os jogos de

basquete, na quadra do ginásio. Alguns optavam por futsal, outros voleibol e a turma

crescia, improvisando disputas e dando vida ao local que se tornava parte da história da

cidade.

Quando o município foi se inscrever para os Jogos Abertos do Estado, a

organização descobriu a obrigatoriedade de cada cidade se cadastrar em, no mínimo,

três modalidades diferentes. Camboriú tinha o time de futsal, bocha e, para completar,

convidaram o time amador de basquete que o Pedro Joaquim e o Paulo Madeira faziam

parte. Cheios de si por vencerem a etapa microrregional, em Itajaí, eles partiram para a

fase regional em Joinville.

Já na abertura do evento, Camboriú era a única delegação de basquete que não

tinha uniforme. Mas isso não os intimidou. Nem quando perderam para o Joinville.

Nem quando perderam para Gaspar. Nem quando perderam para São Bento do Sul.

Nem quando perderam a Kombi que os levava diariamente.

- Como a gente vai agora para o último dia da disputa? – questionou um dos

atletas do time. Mas o problema já estava sendo resolvido, enquanto eles se apertavam

no Fusca do Paulo Madeira e no Chevette do Montibeller, para perder mais um jogo,

com a maturidade e o espírito esportivo dos atletas profissionais.

***

Naquele tempo, o Ginásio de Esportes tinha apenas uma quadra e era ladeado

por arquibancadas. Foi ali que surgiu o time Sarmung. A denominação resultou das

inicias dos nomes de alguns integrantes da equipe: Sebastião, Altair, Rogério, Madeira,

Umberto e o Nico. Já a letra G surgiu de uma brincadeira que os Sarmungs mantêm em

segredo. Depois de conseguirem patrocínio com algumas pessoas na cidade, eles

compraram o primeiro uniforme do time, todo na cor branca: doze camisetas, doze

bermudas e doze pares de meias.

No período de férias, mais pessoas se juntavam às disputas. Um deles era o

Renato Faro. Natural de São Paulo, quando ainda era criança, os pais dele, Ronaldo e

Maria Elisa, compraram uma residência em frente à do Pedro Joaquim e então ele

começou a passar naquela casa todas as férias escolares de julho e também o fim de ano.

Page 36: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

36

Renato e Pedro Joaquim se tornaram grandes amigos, assim como a família de ambos.

Em Camboriú, eles faziam parte da mesma turma e quando Renato estava na cidade, era

no time de São Paulo que Pedro Joaquim jogava.

Renato descansava enquanto ouviu a buzina já familiar da Brasília de Pedro

Joaquim e foi até o portão de casa ver o que ele queria.

- Ei, escuta só! – e levantou ao máximo o volume do som do carro, onde estava

tocando uma música da banda Queen. Renato reconheceu a fita-cassete que ele havia

dado de presente para o amigo.

- E aí, o que vamos fazer hoje? – perguntou Pedro.

- Ganhei um caiaque.

E, contrariando a todos, eles entraram pela primeira vez num caiaque e

desceram o Rio Camboriú até a desembocadura para testar o novo brinquedo.

Conseguiram terminar o trajeto com sucesso. Era hora de descansar e pensar na próxima

aventura.

Numa das muitas noites que curtiram juntos, Pedro Joaquim mal conseguia

conter o riso ao observar as tentativas frustradas de Renato para beijar uma garota.

Horas antes, a havia apresentado oficialmente ao amigo, sabendo que um já estava

interessado no outro. Pedro Joaquim tinha um propósito naquele momento, fazer com

que os dois ficassem juntos. E o negócio estava se tornando mais divertido do que ele

imaginava.

Finalmente, Renato conseguiu beijá-la. E Pedro Joaquim pode sossegar. Afinal,

é para isso que os melhores amigos servem: lutar pelo sucesso do outro, sem perder a

oportunidade de transformar em risadas as tragédias deles mesmos.

***

Aquilo já era uma espécie de ritual. Pelo menos uma vez na semana, o Maka saía

do Banco Bamerindus onde trabalhava, passava no supermercado para comprar um pote

de margarina e um vidro de geléia, depois ia direto para a casa dos Todesco, onde a

dona Lindaura e uma das filhas já estavam esperando para preparar os casadinhos, um

Page 37: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

37

doce em que duas pequenas bolachas eram unidas pelo recheio da geléia, o preferido de

dele.

A casa do Luiz Todesco e da dona Lindaura era frequentada regularmente pelo

Maka. Ele se tornou quase um membro da família e era visto como um irmão mais

velho por algumas da filhas do casal, uma delas era a Cida.

- Pai, a gente vai para a casa de praia em Itapema, dá a chave – pediu Cida.

- O Maka vai também?

- Claro!

- Então está bem, pegue aqui – e entregou a chave sem preocupação.

A casa de Praia em Itapema era o refúgio deles. O Maka sempre acompanhava

as irmãs Cida, Vera e quem mais quisesse ir. Quando estavam lá, ele era sempre o

primeiro a acordar. Gostava de cozinhar e ainda ensinava as meninas a dançarem nas

festas que frequentavam na cidade. Era o conselheiro e confidente das amigas. Por

muitas vezes, elas só reparavam na beleza dele quando iam prestigiar os desfiles que

participava. Até que a Vera Todesco começou a ver o amigo com outros olhos.

Chegaram a namorar por um mês e já estava claro para todos, há muito tempo,

que o Maka era apaixonado pela Vera. E os pais dela ficaram contentes. E tinha tudo

para dar certo. E talvez foi por isso que terminou. Talvez a Vera ainda mantivesse um

amor de irmão pelo cara que estava ao lado dela. Ou talvez a preocupação do Maka em

cuidar dos pais impedisse algo mais sério. A verdade é que, à sua maneira, as mulheres

nutriam cada uma um amor particular pelo Maka. E todas ficaram um pouco viúvas

depois que ele foi embora.

***

Marilise tinha um rosto fino e volumosos cabelos cacheados e castanhos que lhe

cobriam a testa. Os olhos, também castanhos, atingiam uma cor de mel conforme a

claridade do dia e a pintura neles, feita a lápis preto, conferiam a ela um olhar

penetrante, de mulher decidida, apesar de ainda ser uma jovem. Brincos grandes e

roupas estampadas ajudavam a compor o visual de mais uma das diversas mulheres que

se tornaram a caricatura dos anos 80, o reflexo de uma época.

Page 38: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

38

Acompanhada da melhor amiga, a Ivete, ela bebia tranquilamente uma cerveja,

enquanto apreciava o som que tocava na Disco Laser, observando a movimentação do

lugar, ocupado por cada vez mais pessoas que chegavam. Um rapaz veio na direção

delas.

- Oi – disse o Nico para Ivete, dando um beijo no rosto da amiga. E então

direcionou o olhar para Marilise.

- Olá, tudo bem? – por alguns segundos, ou talvez minutos, eles se encararam.

Marilise já havia visto Nico outras vezes, mas nunca tinha reparado nele. Nunca tinha o

enxergado como naquela noite, principalmente no olhar, os olhos meio puxados,

estreitos. Será que a cigana estava certa?

- Posso me sentar?

- Claro! – respondeu ela, finalmente, voltando a perceber o barulho e a

movimentação ao seu redor. E conforme passavam as horas, eles relaxaram e a conversa

fluiu. E as gargalhadas foram espontâneas. E estavam cada vez mais perto um do outro.

Então se beijaram.

Eles passaram dois réveillons juntos. Durante esse período, houve diversas

partidas de boliche no Clube Palmeiras e em Balneário Camboriú, junto com outros

casais amigos dos dois. As conversas na escadaria da Igreja Matriz já haviam se tornado

um hábito deles e de diversos outros jovens da cidade. E quando Nico ia jogar futsal, ou

outro esporte, Marilise e mais outras garotas iam assistir. E ela gostava do jeito meio

torto de ele andar. E adorava o jeito tímido, centrado e, ao mesmo tempo, divertido dele.

E havia festas em Itapema na casa de amigos. E rodas de violão e de baralho. Não

precisava de um lugar específico: eles eram a festa.

- Ainda bem que eu não fui ser seminarista, senão nunca teria te conhecido –

disse Nico certa vez para ela. E Marilise riu ao saber da história, convicta de que o

namorado não tinha a menor vocação para ser padre.

***

- Vamos dar uma volta, a gente precisa conversar – pediu Nico e Marilise entrou

no carro.

Page 39: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

39

Ele dirigiu por um tempo, depois estacionou.

- Eu acho que é melhor a gente dar um tempo, a coisa está ficando séria demais

– a frase pegou Marilise de surpresa, que não entendeu o motivo de ele estar dizendo

aquilo.

- OK, se você acha melhor assim – concordou ela, ainda confusa.

Nico deixou uma Marilise desapontada em casa. Qual seria o real motivo? Eles

se davam tão bem... Alguma pressão da família? A faculdade de Economia? Será que,

assim como ela, ele estava confuso? Ou aquele relacionamento realmente estava ficando

sério demais... Os questionamentos foram suprimidos por uma tristeza que insistia em

tomar conta e atrapalhar os pensamentos dela. Era amor.

***

Duas semanas depois do fim do namoro, Marilise estava com os amigos na boate

Moby Dick, em Balneário Camboriú, quando viu Nico vindo até ela, sem que tivesse

tempo de disfarçar ou desviar o olhar.

- Oi!

- Oi, Nico.

- Podemos conversar?

- Na verdade eu já estava de saída...

- Então deixa eu te levar em casa, a gente precisa conversar – ela sabia que ele

estava arrependido e se aceitasse a carona, eles iriam reatar o namoro. E era tudo o que

Marilise queria.

- Acho melhor não, você preferiu terminar...

- Por favor.

- Não, Nico! – retrucou, dessa vez decidida a não ceder ao próprio orgulho.

- Então eu só peço um último beijo – e os lábios deles já estavam quase se

tocando. Foi um beijo demorado, diferente de todos os outros. E não havia mais

Page 40: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

40

mágoas, nem orgulho, só o que importava era aquele momento, os dois ali, juntos de

novo. A despedida.

- Vamos voltar, a gente dá uma volta, eu te levo em casa – insistiu ele.

- Não. Deixa assim por enquanto e vamos ver como é que fica – Marilise havia

acabado de selar o próprio destino.

Naquela semana, enquanto caminhava pela Avenida Atlântica, Marilise viu Nico

passar de carro com os amigos a caminho da faculdade. Eles se encararam por um

instante e o automóvel seguiu. Foi a última vez que o olhar deles se encontraram.

Page 41: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

41

Page 42: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

42

Page 43: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

43

O último dia

“Sem dúvida, sou apenas um andarilho, um peregrino na Terra!

E vocês são mais do que isso?

(Os sofrimentos do jovem Werther - Goethe)

Foi um sábado frio aquele. A garoa fina tornava o ar ainda mais gélido e

umedecia uma Camboriú de céu nublado e pessoas indispostas. Dias assim podavam a

animação de qualquer um. O clima anulava o efeito típico dos sábados, quando janelas

são escancaradas e mangueiras abertas para lavar calçadas e carros. O volume dos sons

sobe junto com as vozes dos vizinhos, que conversam de onde estão sem interromper os

afazeres domésticos. Em dias de chuva, nem todo mundo tem a agitação e a pressa de

viver dos jovens, que não se deixam intimidar pelo mau tempo e seguem sua rotina

como nas mais bonitas tardes de verão.

Adriano estava em casa aproveitando as férias da faculdade, mas não havia

dormido bem na noite anterior.

- Eu não preguei o olho durante a noite inteira – queixou-se para a mãe. A

família se dividia para cuidar do bar e restaurante enquanto o Carlão descansava. E

Adriano escapava da tarefa sempre que conseguia, mas naquele dia se ofereceu para

cuidar do estabelecimento, permitindo que a mãe almoçasse com calma.

Dona Lulu terminou de comer e foi espiar o filho pela porta da casa que dava

acesso ao local. Ele varria o chão e assobiava despreocupadamente. Por um tempo,

apenas observou, sem que ele a visse. Depois resolveu ir deitar e deixou que Adriano

tomasse conta do comércio por algumas horas. Não era sempre que ele estava disposto

assim.

O Beto também estava em Camboriú e passou pelo bar. Foi quando viu Adriano

andar por toda extensão do estabelecimento, em cima de um skate, enquanto limpava o

balcão. Ele sempre achou o primo um rapaz bonito e isso não era mais algo que

chamasse a atenção dele. Mas, naquele momento, Beto enxergou uma luz em torno de

Adriano, como se um sol emanasse do corpo dele. O primo se virou, encarou Beto e

sorriu. Os olhos de Adriano brilharam, pareciam girar nas órbitas. Aquela imagem era

de uma beleza tão grande, quase celestial, não poderia ser humana.

Page 44: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

44

- Adriano, você cortou o cabelo ou fez algo diferente? – perguntou Beto,

tentando achar uma explicação para aquilo, mas sabendo que tinha visto algo muito

além do proporcionado por uma simples mudança no visual.

- Não, Beto. Não fiz nada – respondeu, ainda sorrindo e voltou ao trabalho.

***

- Eu nunca mais vou à casa do meu pai! – exclamou Adriano para a mãe naquela

tarde.

- Ai, Adriano, não fala assim, um dia tu podes precisar dele – advertiu dona

Lulu. Horas antes, naquela tarde, Adriano havia decidido seguir os conselhos do Pedro

Joaquim e foi até a casa do pai, o Valério, pedir dinheiro para saírem. O pai recusou.

- Nunca mais, escuta o que estou te dizendo, nunca mais!

***

A casa em que Ronaldo Faro passava as férias com a família em Camboriú era

de madeira com uma cozinha de alvenaria. Ele, sua esposa Maria Elisa, o Zenildo e

outros parentes do casal estavam concentrados jogando partidas de baralho numa mesa

redonda na cozinha, quando alguém bateu no vitral da janela, assustando a todos.

- Ô tio!

- O que foi Pedro Joaquim?

- Onde está aquele teu volante esportivo? Me empresta que eu quero colocar no

Fusca.

- Mas tem que ser agora? Eu estou aqui no meio do jogo...

- Tem que ser agora para eu ir lá na oficina trocar.

- Faz o seguinte, vai lá em casa e diz pra Márcia que o volante está no meu

quarto, dentro do guarda-roupa, na parte de cima.

- Tudo bem, valeu – E saiu apressado. Algum tempo depois, Zenildo ouviu o

motor do Fusca anunciar a chegada de Pedro Joaquim que, assim como aconteceu

Page 45: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

45

inúmeras vezes com a Brasília, já deveria estar lavado, encerado, impecável e com o

novo volante.

Por volta das 18horas, Zenildo sentiu que iria ter uma crise caracterizada por

uma forte dor de cabeça que atingia o lado direito do cérebro. Ele sabia que teria de

atacar a dor no início, com escalda pés e outras receitas que aprendeu ao longo dos anos,

antes que ela se tornasse insuportável e ele tivesse que ir ao pronto socorro.

Rapidamente se despediu dos que estavam na mesa e atravessou a rua para cortar

caminho pela casa da irmã. Pedro Joaquim já o esperava encostado na janela da cozinha,

ao lado do Fusca.

- Tio, olha como ficou o volante.

- Já colocasse? Deixa eu ver – e olhou o interior do veículo para não fazer

desfeita ao sobrinho. Zenildo nem prestou atenção no volante, só conseguia se

concentrar na própria dor.

- Entra aí, abre a porta pra ver.

- Não precisa. Ficou muito legal, esse volante é lindo.

- Estás com aquela dor de cabeça, né? – ele tinha entendido o desinteresse do tio.

Zenildo apenas concordou e saiu apressado. Pedro Joaquim entrou em casa.

- Meu filho, tu vai sair hoje? O tempo está tão feio, está chovendo tanto – falou

dona Zilma.

- Vou sim, mãe. Já está tudo combinado.

Dona Zilma pegou um litro de vinagre, um pano e foi até o Fusca.

- O que você está fazendo mãe? – Pedro Joaquim a seguiu.

- Me ensinaram que é bom passar vinagre no vidro do carro para não embaçar.

- Meu Deus, mãe, pára com isso, eles vão pensar que eu estou dentro de uma

salmoura! – era tarde demais e dona Zilma já estava terminando o serviço. Ele foi para o

banho, torcendo para que o cheiro do vinagre evaporasse o mais rápido possível do

Fusca. Depois voltou, pronto para sair.

Page 46: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

46

- Nós vamos lá na casa dos Todescos em Itapema, se demorarmos não fica

preocupada. Tchau, mãe!

***

O Adriano e o Kau assistiam televisão na sala quando dona Lulu passou pelo

corredor e algo chamou a atenção dela. Ela então olhou para o Adriano e sentiu uma

sensação estranha que não soube interpretar. Ele retribuiu o olhar para a mãe que não

soube identificar o que estava acontecendo, parecia que havia algo de diferente nele.

Meio desconcertada, saiu da sala.

- Mãe, não sei se vou sair hoje.

- É verdade Adriano, está tão frio e ainda chovendo...

- Mas os meus amigos vão e se eu não for vou ficar sozinho. Eu vou sim! – dona

Lulu dava liberdade para o filho tomar as decisões dele e não falou mais nada. Ele se

dirigiu ao quarto e voltou com um casaco novo, quadriculado amarelo e preto, que iria

vestir naquela noite. Depois foi para o banho.

- Vamos Adriano, anda ligeiro! Parece uma noiva! – Pedro Joaquim chegou à

casa de dona Lulu preenchendo todo o ambiente com a sua voz alta.

- Deixa o menino se arrumar tranquilo – defendeu dona Zizi.

- Que rapaz para demorar no banheiro. Anda Adriano! – gritou de novo Pedro

Joaquim, na intenção de incomodar o amigo – estou te esperando lá na lanchonete do

Ovídio.

***

A missa da noite na Igreja Matriz já havia terminado e os jovens da cidade

começavam a se aglomerar em grupos para combinar o que iriam fazer. Esta noite não

daria para sentar na escadaria nem na cruz da igreja, estavam molhadas pela chuva de

todo o dia. Alguns entravam na lanchonete do Ovídio. Nico chegou, olhando por cima

dos ombros das pessoas, à procura dos amigos.

Maka vinha acompanhado da irmã, a Lea. Os outros irmãos deles já estavam

casados e os dois eram os únicos que ainda moravam com os pais. Ela era quatro anos

Page 47: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

47

mais velha do que Maka e os dois passavam várias madrugadas juntos assistindo filmes

na sala, até ouvirem o grito da mãe, a dona Francisca, que do quarto ordenava que eles

desligassem a televisão e fossem dormir. Mas ali pertenciam a turmas diferentes e cada

um foi encontrar a sua.

- Vamos com a gente, Renato, tem lugar no Fusca – convidou pela segunda vez

o Pedro Joaquim.

- Não, hoje não vou, valeu! – agradeceu Renato Faro, em frente à igreja, já

saindo de onde estava, porque sabia que se o amigo insistisse mais um pouco ele não

teria como recusar.

O Adriano se juntou ao Pedro Joaquim, o Nico e o Maka e os quatro foram até o posto

de gasolina abastecer o Fusca. Quando pararam no local, Adriano viu o pai conversando

com algumas pessoas. Valério foi até o filho.

- Oi, Adriano.

- Oi pai.

- Tudo bem?

- Tudo – o clima ainda estava pesado entre os dois.

- Pegue esse dinheiro, para você sair hoje.

- Não pai, não precisa. Eu tenho.

- Por favor, eu insisto - e entregou o dinheiro ao filho.

- Muito obrigado, a gente já está indo...

- Leva a minha jaqueta de couro. Está frio, ela é forrada.

- Esta que estou vestindo é bem quente também, valeu – respondeu, mostrando

para Valério a parte interna e forrada do casaco quadriculado.

- Ah, tudo bem.

- Tchau, pai - e o abraçou pela última vez, depois entrou no carro e saíram do

posto.

Page 48: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

48

***

Os quatro entraram pela cozinha onde o Ronaldo Faro, a esposa e outras pessoas

ainda jogavam cartas e bebiam cerveja. Pedro Joaquim na frente gritava pelo nome de

Renato, que por sua vez já estava de banho tomado e com vestes velhas e largas, pronto

para curtir o sábado à noite em casa, na frente da televisão.

- Anda, vai se arrumar, nós viemos te buscar – mandou Pedro Joaquim.

- Dessa vez vou ficar em casa, vão vocês.

- O que foi? A namorada te amarrou no pé da cama? – questionou Pedro

Joaquim, que não poderia deixar de fazer uma piada com o amigo.

- Não é isso, mas está chovendo, frio...

- Ok, então nós vamos. Tchau!

Os quatro entraram no Fusca, Pedro Joaquim ligou o motor e eles partiram rumo

a Jaraguá do Sul, sem se despedirem da Camboriú que estavam deixando para trás. A

noite só estava começando.

Page 49: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

49

Despedida

Eu continuo aqui

Com meu trabalho e meus amigos

E me lembro de você em dias assim

Dia de chuva, dia de sol

E o que sinto não sei dizer.

(Love in the afternoon – Legião Urbana)

Os quatro caixões lacrados foram colocados entre o altar e a primeira fileira de

bancos de madeira na Igreja Matriz. Os corpos chegaram por volta das 14 horas e em

cima de cada caixão havia a foto de um jovem: O Pedro Joaquim, o Adriano, o Maka e

o Nico. A movimentação na rua e as especulações tinham cessado. Agora as pessoas

lotavam os bancos da igreja, alguns estavam de pé nos corredores laterais, aguardando a

sua vez de prestar algum consolo às famílias e dar adeus aos falecidos. Olhos marejados

de lágrimas e lenços apertados em punhos fechados refletiam a tristeza e o

inconformismo que havia tomado conta da cidade.

Dona Lulu estava ao lado do caixão de Adriano. Dona Zilma não ficou o tempo

inteiro perto do caixão de Pedro Joaquim, não adiantava, ele não estava mais ali, nem o

direito de tocar, dar um último beijo ela teve. Dona Maria Zonta achou que não iria

suportar tanta dor que a consumia. Um filho tão amado ali, na frente dela, morto. Os

pais de Maka também chegaram: o filho que cuidou tanto deles, se preocupou tanto com

eles, não iria mais voltar para casa.

Paulo Madeira chegou ao velório amparado pela irmã Carmen Lúcia. Marilise

ficou sabendo da morte do Nico e os amigos quando estava na festa de quatro anos da

irmã e foi para a igreja. O Maneca andava de um lado para o outro, num misto de

revolta e desespero.

- Zenildo, você tem que ir lá e pedir que eles abram o caixão! - pediu Maneca na

escadaria da igreja. Para ele, o cunhado era o único que teria autoridade para isso, pois

sempre aconselhou, esteve perto e exercia influência nas decisões do Pedro Joaquim.

- Eu não posso fazer nada, Maneca. O caixão está lacrado.

Passava das 16 horas quando a missa terminou e os corpos foram levados para o

cemitério do Centro. Um grande grupo seguiu o cortejo e as pessoas se dividiram para

Page 50: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

50

acompanhar os quatro enterros. Aquele foi um dos maiores velórios de Camboriú. A

cidade parou para chorar e viver o luto das quatro mortes.

***

Marquinho estava dentro do avião e o piloto preparava o pouso no aeroporto de

Navegantes. Era segunda-feira, 21 de julho de 1986 e a família dele o aguardava.

Durante a curta viagem que fez de Curitiba até ali, ele ainda tentava assimilar o choque

da perda. Havia arranjado uma namorada, foi passar o fim de semana com ela e se

hospedou na casa de parentes. As lembranças vinham em sua mente como um pesadelo

interminável. A forma como recebeu a notícia das mortes ao descer do ônibus, após

acompanhar a namorada numa visita à irmã dela no hospital, a dificuldade de conseguir

uma ligação para Camboriú, a confirmação dos nomes quando já era tarde demais para

ele chegar a tempo no velório.

Logo que chegou à cidade, foi ao cemitério e lá se encontrou com o Kiko Zonta,

irmão do Nico. Ele estava ali porque Nico havia sido enterrado numa cova provisória

por um problema de documentação e naquele dia seria feita a troca de lugar. Marquinho

viu o caixão, o nome “Vilmar Zonta” escrito à mão numa folha de papel e colado em

cima da tampa. Ali ele pode ajudar a carregar o corpo do melhor amigo, do irmão que

ele não teve. Ali ele pode se despedir.

***

16 de agosto de 2012.

A família de dona Lulu estava reunida no cemitério do Centro para o enterro de

dona Zizi. A mãe de Adriano se tornou uma mulher com poucas rugas no rosto e fala

pausada. As pulseiras, os anéis de ouro e óculos de grau com armações modernas lhe

conferem uma certa elegância. Sorri entre os silêncios de uma fala e outra. Um sorriso

de reflexão, de lembranças de uma época em que o Adriano ainda estava entre eles.

Dona Zizi iria ser enterrada no mesmo túmulo do neto. Enquanto a família e

amigos se reuniam para acompanhar o caixão ser colocado dentro da carneira, dona

Lulu foi até o coveiro.

- Onde estão os ossos do Adriano?

Page 51: O céu de ícaro - A história de quatro jovens que foram embora cedo demais

51

- Ali do lado, em cima daquela sepultura, dentro do saco – apontou.

Dona Lulu foi até a sepultura, abriu o saco e viu os restos mortais do Adriano.

Ela pegou os pedaços maiores, tocou com cuidado como alguém que aprecia uma jóia

valiosa, passando os dedos por toda a extensão dos ossos do braço e da canela do filho.

Então ela abraçou os ossos que segurava e chorou. E foi a primeira vez que ela chorou a

morte do Adriano. Finalmente, depois de tantos anos ela pode tocar nele novamente.

Abraçá-lo. E não havia ninguém que pudesse impedi-la naquele momento. Quanta

saudade ela sentiu. Agora estava feliz, satisfeita. Ela, enfim, se despediu.