O capitalismo em crise histórica e suas tentativas de escapar da depressão

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Gilson Dantas Introdução Diante da mais grave crise econômica desde os anos 30, deflagrada em 2008 no centro do capitalismo, nos Estados Unidos, a reação dos governos centrais foi basicamente uma: resgatar os grandes oligopólios financeiro-industriais em geral. O Estado norte- americano entrou em ação e derramou uma montanha de vários trilhões de dólares nos cofres dos bancos, financeiras e grandes corporações tratando de impedir sua quebra maciça. Ao mesmo tempo tomou medidas de certo estímulo ao consumo. Por essa via, o déficit fiscal e a dívida pública norte-americanos foram às alturas, romperam barreiras históricas mas o objetivo prático imediato dessa intervenção maciça, histórica, na base do dinheiro público, dentro da lógica do governo, foi alcançado. A escalada depressiva foi freada. Este artigo pretende contribuir ao debate sobre o seguinte problema: considerando que a chamada “saída” da crise através da política de ação preventiva do Estado, resgatando as grandes corporações e o sistema financeiro tem suas implicações, seus efeitos, a questão a ser aqui examinada será a das conseqüências, para a economia, dessa política de tentar impedir a queima maciça de capitais. O efeito esperado pelos governos já vimos no amortecimento da marcha para a depressão. Aqui serão problematizados alguns dos demais – e previsíveis – efeitos dessa operação política de tentar impedir a limpeza de capitais, de ativos tóxicos. A crise continua Em primeiro lugar é importante considerar – outros artigos deste número focalizam essa questão - que o sistema não saiu da sua escalada depressiva, não emergiu da sua grande crise. Esta foi freada, ou amortecida momentaneamente, mas os indícios de que o processo depressivo está em marcha são visíveis na vida social e Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília, escreveu EUA: militarismo e economia da destruição, Achiamé, Rio de Janeiro, 2007 e organizou O capital de Karl Marx: resumo (Engels, Lenine, Trotski), Ícone, Brasília, 2008. econômica dos países centrais e, mais agudamente, nos elos mais frágeis da corrente, como a Grécia, a Espanha, Portugal e mesmo a Inglaterra. Analistas comprometidos com a ordem, como Machado (200), depois de constatarem que a recessão perdeu força em vários lados – ou o que PIB parou de cair - reconhecem que persiste total incerteza nos Estados Unidos e na Europa do euro, que respondem por mais da metade do Produto Interno Bruto (PIB) mundial e não por acaso são os principais importadores dos produtos finais das economias emergentes. Admitem que a melhora na economia mundial se deve não à retomada orgânica do consumo, da produção e do investimento mas fundamentalmente aos anabolizantes fiscais, o que prenuncia uma longa temporada de arrocho tributário, corte de gastos públicos e aumento dos juros para restaurar a solvência nacional e prevenir convulsões inflacionárias. Dizem, com todas as letras, que a depressão teria vindo arrasadora se os governos não tivessem “mandado às favas os escrúpulos e entrado com tudo para reverter a insolvência formal do sistema financeiro” (MACHADO, 200). Quanto ao atual crescimento, além de relativo, vem acompanhado de uma Europa vivendo sua maior crise enquanto o pólo imperialista alemão trata de tirar proveito da zona do euro 2 . A Grécia deve 300 bilhões de euros enquanto seu PIB não vai além dos 240 bilhões. E sua economia encolheu 2 % em 2009. A zona do euro (6 países) vive sua pior crise desde a II Guerra com taxa de desemprego média em dezembro e janeiro em 9,9 %, a maior desde 998 (outubro). Na Grécia (dezembro), chegou a 0 %, país que em pouco tempo atravessou duas greves gerais. Na verdade “os superávits da Alemanha se tornaram possíveis por meio dos déficits dos outros países e, por extensão, a estabilidade alemã se tornou possível através da instabilidade dos demais países (...) com implicações 2 Zona do euro: esta zona – também conhecida como Eurolândia ou Eurozona - é composta pelos Estados-membros da União Europeia que adotaram o euro como moeda nacional. Até agora são a Bélgica, Alemanha, Grécia, Espanha, França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, Áustria, Portugal e Finlândia. O capitalismo em crise histórica e suas tentativas de escapar da depressão DOSSIÊ Crise econômica internacional

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Gilson Dantas�

Introdução Diante da mais grave crise econômica desde os

anos 30, deflagrada em 2008 no centro do capitalismo, nos Estados Unidos, a reação dos governos centrais foi basicamente uma: resgatar os grandes oligopólios financeiro-industriais em geral. O Estado norte-americano entrou em ação e derramou uma montanha de vários trilhões de dólares nos cofres dos bancos, financeiras e grandes corporações tratando de impedir sua quebra maciça. Ao mesmo tempo tomou medidas de certo estímulo ao consumo. Por essa via, o déficit fiscal e a dívida pública norte-americanos foram às alturas, romperam barreiras históricas mas o objetivo prático imediato dessa intervenção maciça, histórica, na base do dinheiro público, dentro da lógica do governo, foi alcançado. A escalada depressiva foi freada.

Este artigo pretende contribuir ao debate sobre o seguinte problema: considerando que a chamada “saída” da crise através da política de ação preventiva do Estado, resgatando as grandes corporações e o sistema financeiro tem suas implicações, seus efeitos, a questão a ser aqui examinada será a das conseqüências, para a economia, dessa política de tentar impedir a queima maciça de capitais. O efeito esperado pelos governos já vimos no amortecimento da marcha para a depressão. Aqui serão problematizados alguns dos demais – e previsíveis – efeitos dessa operação política de tentar impedir a limpeza de capitais, de ativos tóxicos.

A crise continuaEm primeiro lugar é importante considerar – outros

artigos deste número focalizam essa questão - que o sistema não saiu da sua escalada depressiva, não emergiu da sua grande crise. Esta foi freada, ou amortecida momentaneamente, mas os indícios de que o processo depressivo está em marcha são visíveis na vida social e

� Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília, escreveu EUA: militarismo e economia da destruição, Achiamé, Rio de Janeiro, 2007 e organizou O capital de Karl Marx: resumo (Engels, Lenine, Trotski), Ícone, Brasília, 2008.

econômica dos países centrais e, mais agudamente, nos elos mais frágeis da corrente, como a Grécia, a Espanha, Portugal e mesmo a Inglaterra.

Analistas comprometidos com a ordem, como Machado (200�), depois de constatarem que a recessão perdeu força em vários lados – ou o que PIB parou de cair - reconhecem que persiste total incerteza nos Estados Unidos e na Europa do euro, que respondem por mais da metade do Produto Interno Bruto (PIB) mundial e não por acaso são os principais importadores dos produtos finais das economias emergentes. Admitem que a melhora na economia mundial se deve não à retomada orgânica do consumo, da produção e do investimento mas fundamentalmente aos anabolizantes fiscais, o que prenuncia uma longa temporada de arrocho tributário, corte de gastos públicos e aumento dos juros para restaurar a solvência nacional e prevenir convulsões inflacionárias. Dizem, com todas as letras, que a depressão teria vindo arrasadora se os governos não tivessem “mandado às favas os escrúpulos e entrado com tudo para reverter a insolvência formal do sistema financeiro” (MACHADO, 20�0).

Quanto ao atual crescimento, além de relativo, vem acompanhado de uma Europa vivendo sua maior crise enquanto o pólo imperialista alemão trata de tirar proveito da zona do euro2. A Grécia deve 300 bilhões de euros enquanto seu PIB não vai além dos 240 bilhões. E sua economia encolheu 2 % em 2009. A zona do euro (�6 países) vive sua pior crise desde a II Guerra com taxa de desemprego média em dezembro e janeiro em 9,9 %, a maior desde �998 (outubro). Na Grécia (dezembro), chegou a �0 %, país que em pouco tempo atravessou duas greves gerais.

Na verdade “os superávits da Alemanha se tornaram possíveis por meio dos déficits dos outros países e, por extensão, a estabilidade alemã se tornou possível através da instabilidade dos demais países (...) com implicações

2 Zona do euro: esta zona – também conhecida como Eurolândia ou Eurozona - é composta pelos Estados-membros da União Europeia que adotaram o euro como moeda nacional. Até agora são a Bélgica, Alemanha, Grécia, Espanha, França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, Áustria, Portugal e Finlândia.

O capitalismo em crise histórica e suas tentativas de escapar

da depressão

DO

SSIÊC

rise econômica internacional

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Contra a Corrente �

profundamente negativas para a economia mundial” (WOLF, 20�0). Um default grego poderia arrastar Irlanda e Espanha. E é importante – como parte do dominó – não esquecer que o PIB da Irlanda teve queda de 7,� % em 2009: é o pior resultado já registrado pelo país (Brasil Econômico 26/03/20�0).

Nos Estados Unidos as vendas de casas novas caiu ��,2% em janeiro, batendo um recorde de baixa; o Departamento do Comércio informou que a queda de janeiro em relação a dezembro reduziu o ritmo anualizado de vendas para 309 mil unidades, o menor nível em quase meio século, ou seja, o setor de casas deu outro grande passo para trás, apesar da ajuda do governo (Valor Econômico 25/2/�0). E enquanto as vendas de casas estão em queda, a retomada de imóveis por falta de pagamento está em alta; isso sinaliza que o setor de construção civil não dará grande impulso à recuperação econômica; o programa do governo Obama para evitar a retomada de imóveis tem sido um fracasso (Valor Econômico, �6/03/20�0). E a capacidade ociosa da indústria americana já se encontra abaixo dos níveis dos anos 60 (MILLER, 20�0).

E mais:

“o volume de mercadorias impagáveis e invendáveis revelados pela crise, são maiores que os de todas as crises passadas; e há, ainda por cima, um endividamento geral das empresas e das famílias. Isso eleva as dificuldades da crise atual a um grau nunca visto. Os bancos não estão apenas com falta de caixa para atender correntistas eventualmente assustados; estão também abarrotados de títulos que representam, além de créditos irrecuperáveis, um enorme capital fictício evaporado. As empresas não estão apenas com vendas inferiores às esperadas, mas também arcando com prejuízos de operações de hedge, fracassadas porque a economia mundial mudou de modo inesperado, além de estarem perdendo os ganhos financeiros “normais”, esperados no sistema de gestão corporativa dominante. E as famílias não estão simplesmente com renda insuficiente para manter seu consumo normal, estão devendo parte de sua renda insuficiente, além de terem perdido grande parte de suas reservas, desfeitas pela crise financeira” (LETIZIA. 2009).

O próprio The Economist (�3/06/09) argumenta que a grande crise no horizonte é a maciça dívida pública, que levará o governo à fome de receita, de fundos, comprometendo crescimento econômico, além do perigo de alta inflação na tentativa oficial de cortar endividamento. E a OCDE reconhece que globalmente a fatura da crise foi de 27 milhões de desempregados a mais desde 2007 com tendência de mais perda de vagas nas economias ricas (MOREIRA, 20�0).

Temos

“empresas em falência mantidas artificialmente em

vida com base em dinheiro público ou de reestruturação com futuro incerto, como CIT, GM, Chrysler, Saab, Opel, Karstad, Quelle, Ibéria, Alitália, e que na aparência funcionam como se tudo estivesse normal, mas em matéria de saúde econômica estamos diante de um amontoado de verdadeiros zumbis; na China também temos as fábricas-zumbis que se mantêm em funcionamento sem clientes graças às subvenções do Estado; todos estes mortos-vivos econômicos representam a passagem progressiva à economia real dos 20 a 30 trilhões de dólares de ativos-fantasmas mundo afora” (OS ESTADOS FACE... 2009).

Este é o quadro atual em meio à reanimação da economia. Afinal, levada a cabo a intervenção dos Bancos Centrais, depois de certo tempo, ao final de 2009, indicadores revelaram uma economia que se reanimava.

Como foi amortecida a marcha para a depressão

No entanto, o próprio Wall Street Journal reconhece o ponto fraco desse crescimento movido, como reconhecem, a estímulo fiscal e monetário mais a ansiedade dos empresários em preencher estoques vazios e ao final argumentam que “pelo padrão de outras recuperações, todavia, o crescimento não é tão veloz. Os consumidores americanos, agora mais parcimoniosos, hesitam em gastar. Os bancos não querem emprestar. As empresas não querem contratar. O governo não quer injetar mais estímulos” (WESSEL, 20�0).

Os pacotes de estímulos econômicos frearam a queda nos estoques – que as empresas vinham liquidando na recessão – e foi assim que recomposição de estoque, que não é propriamente crescimento orgânico, apareceu, nas estatísticas, como crescimento.

No fundo, controlando o euro e controlando o dólar, o imperialismo norte-americano e o alemão tentam proteger seus oligopólios contra os demais, ao mesmo tempo em que deslocam a crise para suas contas públicas. Cada imperialismo trata de proteger-se da concorrência com o rival: Alemanha vem propondo restringir a circulação dos hedge funds “de fora” no mercado europeu, os Estados Unidos se movem com suas medidas protecionistas. Obama, por seu lado, com alto desemprego, vê sua popularidade em queda. O déficit fiscal dos Estados Unidos está em torno dos �� % do PIB e a dívida pública deste tradicional emprestador de última instância já anda nos 85 % do PIB.

Implicações da atual política anti-crise: lucros e investimentos

A crise agora deflagrada em 2008 vinha sendo adiada. As breves ondas de prosperidade continuavam se alimentando de dívidas por um lado e, na base, na extração de mais-valia, desfrutavam da superexploração do trabalho em espaços como a China, e outros como o

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México. Estabelecera-se uma certa divisão mundial do trabalho principalmente com a China funcionando como plataforma industrial para as grandes corporações norte-americanas e, no outro pólo, os Estados Unidos, (e parte dos emergentes) como mercado de consumo.

O dinheiro mundial vem sendo acoplado ao “déficit em conta corrente dos EUA. Tal acoplamento cinde a contradição entre entesouramento e circulação de mercadorias, ao desenvolver uma complementaridade entre o entesouramento negativo dos EUA e o entesouramento hipertrofiado dos países que sustentam esse dinheiro mundial. O resultado disso é que a máxima circulação internacional de mercadorias passa a exigir, nos EUA, um déficit constante em conta corrente e, nos demais países, um superávit, cujo efeito é restringir seu consumo interno e, portanto, gerar um crescimento econômico contraposto ao desenvolvimento real” (LETIZIA, 2009).

Este foi o quadro estabelecido nas últimas décadas, especialmente através da “divisão do trabalho” entre a China e os Estados Unidos. Na crise atual esse equilíbrio começou a ser violentamente rompido: a grande boca consumidora norte-americana começou a encolher com a inadimplência dos portadores de hipotecas (sub-prime).

É, importante considerar, em primeiro lugar que a crise atual estava em desenvolvimento desde longa data, desde a crise dos anos 70, dentro de uma dinâmica estagnacionista, em um processo onde o sistema capitalista se debatia ante a dificuldade arrastada em conseguir levantar a taxa média de lucro. Conseguira alcançar taxas mais elevadas de lucro em nichos (como as plataformas de produção da China e regiões de mão de obra quase escrava, barata) mas não se tratava de um processo global, extensivo aos países centrais como um todo, pelo contrário.

O que se desenvolvia nessas décadas era uma espécie de globalização de nicho.

Prova disso é que a taxa média de lucro que crescia, mais recentemente, após uma longa ofensiva do capital contra o trabalho, se desenvolvia em aberto descompasso com a taxa de acumulação do capital.

Há estudos mostrando (HUSSON, 2008) que a partir dos anos 80 acumula-se mais-valia não investida (“não-acumulada”). Ou em outras palavras, a ofensiva política anti-operária neoliberal, dos anos 80, 90, não resultou em taxas de extração de mais-valia proporcionalmente maiores, correspondentemente maiores, na esfera da acumulação do capital.

Os investimentos globais não acompanhavam a taxa de lucro na produção, nos nichos produtivos. Tinha-se uma situação historicamente nova, onde o sistema fugia à sua regra de fazer acompanhar a taxa de lucro de uma taxa de acumulação à altura. Esta contradição era reveladora das dificuldades do capital para obter rentabilidade,

dificuldade esta que igualmente se manifestava na “preferência” pelos lucros financeiros, pela esfera da especulação, do capital fictício. A financeirização não surgiu por “escolha” ou política de Estado mas sobretudo pela dificuldade de valorização do capital na produção.

“As transformações do sistema financeiro devem ser analisadas com base em duas tendências essenciais que ocorrem desde o Início dos anos 80. A primeira é a alta tendencial da taxa de exploração: em quase todo o mundo, a parte da riqueza produzida que corresponde aos assalariados está em baixa, e os países emergentes não são a exceção a esta tendência. Inclusive o FMI ou a Comissão Européia constam isso. Esta baixa da parte relativa aos salários permitiu uma recuperação espetacular da taxa média de lucro a partir de meados dos anos 80. Mas a segunda tendência mostra que a taxa de acumulação continuou a flutuar em um nível inferior ao que existia previamente à crise. Dito de outra forma, a punção sobe os salários não foi utilizada para ampliar os investimentos. O ‘teorema de Schmidt’ do início dos anos 80 (“o lucro de hoje são as inversões de amanhã e os empregos de depois de amanhã”) não funcionou” (HUSSON, 2009).

Este processo pode ser graficamente perceptível; os ganhos em rentabilidade para o capital, na fase “neoliberal” podem ser vistos no gráfico abaixo, mais claramente nos anos 80 e 90, referente aos Estados Unidos:

Fonte: Seisdedos, Paul Cooney, 2009. A crise atual e o papel do capital fictício, 2009. 6º. Colóquio Internacional MARX e Engels, UNICAMP, Campinas, 3/��/2009

O descompasso entre o crescimento da rentabilidade e a taxa de acumulação já foi analisado mais de uma vez por Husson (2008) que, depois de chamar a atenção para esse processo – de crescente massa de mais-valia não-

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acumulada – como sendo a raiz da financeirização da economia mundial, adverte:

“No entanto, não podemos aplicar ao capitalismo contemporâneo uma leitura “financista” que consistiria em diferenciar uma tendência autônoma para a financeirização que estaria parasitando o funcionamento normal do “boom” capitalismo industrial. Isto viria a dissociar artificialmente o papel das finanças e da luta de classes pela repartição do valor agregado. Deve-se articular corretamente a análise dos fenômenos: a partir do momento no qual a taxa de lucro aumenta graças ao retrocesso salarial sem produzir oportunidades de acumulação rentável, as finanças começam a jogar um papel funcional na reprodução procurando saídas alternativas à demanda salarial: o consumo dos rentistas e o sobre-endividamento dos trabalhadores. A característica principal do capitalismo contemporâneo não reside então na oposição entre um capital financeiro e um capital produtivo, mas na hiper-concorrência entre capitais como resultado da financeirização” (HUSSON, 2009).

A crise atual encontra o sistema, portanto, em um patamar nunca visto de acumulação do capital. Em especial na esfera financeira. É comum que técnicos do sistema falem em empresas “zumbi”, em massas de ativos “tóxicos”, em obsolescência de muitas das grandes corporações frente às novas tecnologias de produção. No entanto, a “saída” do governo à crise foi justamente salvar esses oligopólios ‘grandes demais para se deixar quebrar’. Veremos que isso, no fundo, só aumenta as contradições da situação anterior.

Aqui é preciso lembrar da clássica e atualíssima observação de que, por si mesma, a acumulação capitalista é engendradora de crise. A teoria marxista da acumulação do capital já contém, em si mesma, a teoria da crise do capitalismo, um sistema impossibilitado de qualquer tipo de equilíbrio harmônico (GILL, 2002). Menos ainda em sua fase de declínio (leia-se quando se estreitam as bases históricas de valorizações do capital). O próprio processo de reprodução ampliada do capital engendra o aumento da composição orgânica do capital, da massa de capital fixo, o que, tendencialmente, tende a derrubar a taxa média de lucro. O capital, portanto, em seu funcionamento de conjunto, constrói, necessariamente, dificuldades para sua auto-valorização, independente dos processos na esfera da inflação, dos juros, dos salários etc: reafirma-se aqui sua condição de processo histórico, transitório e, nos dias atuais, destrutivo por excelência, ecocida e reacionário em toda linha.

Essa dificuldade de valorização se concentra e explode em crise: sem a maciça destruição de capitais (bens, equipamentos; desemprego, rebaixamento da força de trabalho etc), o sistema não como tentar reencontrar a taxa de lucro.

Um exemplo histórico: o sistema capitalista

somente conseguiu uma relativa recuperação, na Grande Depressão dos anos 30 (por volta de �933) depois de quatro anos de destruição de forças produtivas, de capitais e de desvalorização da força de trabalho (rebaixamento salarial, desemprego etc) e contando com a vantagem de que os Estados Unidos de então eram uma potência capitalista emergente com amplas reservas de ouro dentre outras bases que se foram.

O capitalismo daquela época, é bom lembrar ainda era relativamente juvenil nos EUA, com um mercado de trabalho há pouco plenamente constituído (a ocupação do Oeste só terminara às vésperas da Grande Guerra de �9�4-�8) e uma base rural importante de pequenos agricultores (LETIZIA, 2009). E, no fim de contas, superar mesmo a depressão só foi possível por meio da carnificina da II Guerra, da aguda e brutal destruição de forças produtivas. E tomando de conjunto, por outro lado, a maciça intervenção do Estado com Roosevelt de um lado e Hitler de outro exprimem o esgotamento de um sistema que já não consegue se safar da crise através do ciclo, dos mecanismos semi-automáticos do ciclo econômico.

A primeira questão da política anti-crise atual pode ser assim formulada: o sistema lançou mão de suficiente destruição de forças produtivas? O grande capital encontra o estímulo para produzir (e realizar sua produção) com base no dinheiro público que recebeu de presente?

Ora, o primeiro problema, portanto, da atual tentativa de resgatar – inchando a dívida pública - essas grandes corporações (industriais/financeiras) encontra-se no fato de que grandes investidores só vão entrar em ação se reencontrarem uma taxa média de lucro à altura do seu porte. O capital-zumbi foi preservado, já sabemos; a questão é se o grande capital irá para a produção. Ora ele não se encontra mais presente na produção pela razão de que não encontrava rentabilidade em produzir. Mais vantajoso era emprestar a juros, sobretudo aos governos, perspectiva que atualmente continua de pé.

A falsa idéia de que irrigando o grande investidor com massas de recursos públicos isso fará com que ele se lance a aplicar capitais na produção ao ponto de superar a tendência depressiva não encontra respaldo. E aqui o argumento de Mandel continua atual:

“Os capitalistas não estão obrigados a reinvestir seus lucros suplementares na produção. Podem optar por entesourá-los ou utilizá-los com fins estritamente especulativos. Mesmo quando os investem pode ser na condição de inversões de racionalização que suprimem empregos em vez de criá-los. Os capitalistas não trabalham para o ‘interesse geral’. O que buscam é aumentar ao máximo seus lucros. Esta conduta é a que acaba por provocar o crescimento periódico da estagnação e as crises econômicas mais ou menos longas. No curso destas crises, o volume e a taxa de lucro caem. A restauração da taxa de lucro é uma prioridade absoluta

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para a burguesia. O aumento da taxa de exploração dos assalariados – em termos marxistas, a taxa de mais-valia – é o meio que utiliza para isso. A política de austeridade se converte em seu programa. A deflação monetarista e a inflação keynesiana não são mais que variantes dessa mesma orientação fundamental” (�992).

Não há nenhum indício concreto, portanto e nem argumento teórico, que sustente a idéia de que essa enorme bolha de dívida pública ou de capitais superacumulados, venha nos marcos atuais, a traduzir-se em investimentos na produção, em reanimação orgânica da economia.

Esta enorme bolha de dívida pública – caso “puro” de capital fictício segundo Marx já que não tem contrapartida alguma em termos de criação real de valor – envolve

“dinheiro barato que não está indo para a economia real. Ao contrário, a maior parte da emissão monetária está guardada nos bancos ou foi para a Bolsa, seja porque os bancos não querem usar esse dinheiro para oferecer créditos, seja porque a indústria não deseja endividar-se. Nestes marcos, não surpreende que os atores econômicos (...) encontrem o crédito escasso e de alto custo. Os diferenciais (spreads) são maiores que antes e mesmo as taxas absolutas são, como regra, mais altas em mercados como o hipotecário onde a FED interveio.

(...) Mas, ao mesmo tempo, as baixas taxas estão permitindo aos bancos fazer dinheiro (certamente não é difícil conseguir ganhos quando se dispõe de dinheiro emprestado pela Reserva Federal quase sem juros e se empresta depois ao Governo a 3,5%), melhorando seus balanços. Esta política busca deliberadamente uma alta dos ativos com a peregrina crença de que isto impulsionará a economia real. As autoridades se opuseram a um saneamento dos bancos como forma de lidar com a crise financeira priorizando, pelo contrário, uma restauração da bolha naqueles ativos nos quais os bancos e firmas do mercado de capitais estão fortemente expostos. Os três ou quatro bancos que dominam o setor nos Estados Unidos, que têm uma posição quase monopólica, estão usando toda sua influência para proteger seus negócios” (CHINGO, 20�0, �7). Grifo nosso.

E não será demasiado lembrar que capitais “sobrantes” e podres não são compartimentos separados da produção se tomamos o capitalismo de conjunto. Não se trata de crise do capital fictício, mas antes de mais nada, do capital. Capacidade ociosa, sobreprodução, sobreacumulação de capital (fixo portanto), desemprego estrutural são expressões concretas da crise, portanto da baixa rentabilidade do capital que acumulou mais-valia movido mais a crédito, a bolhas de empréstimos para consumo, dinheiro barato; aqui se encontra o chão da crise, o substrato ou as razões do parasitismo.

Um dos problemas de fundo que leva a grande

burguesia a não investir (elevar a taxa de acumulação) está justamente dado pelo que a crise expressa: a necessidade de queimar capitais hoje comprometidos – na sua capacidade de auto-valorização – por uma elevada produtividade. “Nas sociedades ricas em capital do centro do sistema, a principal restrição à acumulação não é o fato de a economia não ser produtiva o bastante e, sim, de ser produtiva demais” (FOSTER, 20�0).

A crescente tecnificação (elevadíssima composição orgânica do capital) e a dificuldade em obter lucros na produção em países como os Estados Unidos ou os europeus, o Japão, atingiu a um nível muito elevado (o que tendencialmente joga para baixo a taxa média de lucro) e o que precisa ser levado em conta é que nada disso chega a ser substancialmente alterado por essa política de resgate dos países ricos.

Implicações sobre o Estado Outra dimensão – e grave problema – da atual política

anti-crise é o de que a pirâmide da especulação continua rodando, agora mais que nunca na esfera dos cofres e dívidas públicas. E mais que antes comprometendo receitas e capacidade de investimento público, de empréstimo público.

O consumo de massa crescente, por parte dos Estados Unidos, já era inflado, descolado da produção, alimentado a dívidas. As grandes massas de capitais estavam lucrando na especulação, no crédito, nas seguradoras, nos papéis do governo.

O governo impediu a quebra colossal desses capitais anunciada pela crise. E não apenas se trata de esfera financeira: as grandes corporações industriais estavam e estão metidas até o pescoço com ganhos especulativos (no caso do Brasil quem não lembra do exemplo da Parmalat que ganhava mais especulando que produzindo leite e a Votorantim, salva da quebra pelo governo e que ia à falência também no mesmo processo, em seu engajamento na especulação, com banco próprio?)

A extrema irracionalidade da situação atual, em meio a tamanha sobre-acumulação de capitais, está na volta dos banqueiros “aos negócios como de costume”, nas palavras de Foster (20�0). E a China, como detentora maior de papéis públicos norte-americanos, não está fora desse processo.

Na opinião do ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), “a reação chinesa à recente crise financeira aumentou claramente os riscos de que a China tenha uma bolha alimentada a dívidas na economia” (ROGOFF..., 20�0). Em 2008, a China cortou os juros, começou a implementar um pacote de gastos de 4 trilhões de iuans (US $ 586 bilhões) e aboliu as cotas que limitavam os empréstimos dos bancos, para combater a queda nas exportações. Os valores dos imóveis em Xangai e Pequim descolaram da realidade (ROGOFF... 20�0).

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Ou seja, um dos mecanismos que conduziu à crise está sendo usado como “remédio” anti-crise. O exemplo do crédito ao consumidor é ainda mais patente. E a opção do Estado se lançar à oferta maciça de crédito ao consumidor esbarra nas barreiras criadas no processo tal como ele se desenvolve até aqui:

“A nova versão do crédito ao consumidor levou, com o passar do tempo, à criação de uma grande capacidade de consumo falsa, isto é, não baseada em ganhos reais, a qual foi enormemente facilitada pela expansão dos cartões de crédito, que permitem endividamento instantâneo, sem contrato específico de empréstimo. Essa falsa procura, criada por artifício financeiro, poderia, em tese, permitir o adiamento indefinido da crise de ruptura da barreira do capital, desde que fosse possível expandi-la indefinidamente.Evidentemente, isso não é possível, porque dar mais crédito a consumidores que estão perdendo benefícios sociais e tendo sua renda disponível amputada implica onerá-los cada vez mais com o pagamento de juros, o que tende a desembocar em castelos de dívidas parapagar dívidas e, finalmente, em restrição de consumo.O fato de que, um ano após o estouro da chamada “bolha imobiliária” americana, tenha sobrevindo uma onda de demissões de trabalhadores nos EUA (as crises financeiras precedentes, ou foram setoriais ou não aconteceram nos EUA), cuja população está altamente endividada em cartão de crédito, é significativo da natureza desta crise e explica a ineficácia das medidas de socorro à finança tomadas até agora. Esse tipo de dificuldade aponta para algo pior do que a ‘recessão mais longa’, anunciada pela maioria dos analistaseconômicos” (LETIZIA, 2009).

Mesmo que se conceba explosão da crise e a entrada da dívida pública como mercado de substituição, gerador de demanda, amortecedor da contradição mais profunda da economia, o fato, analisado desta vez por Mandel, é que “a hora da verdade pode ser atrasada mas não indefinidamente. O endividamento crescente alimenta inevitavelmente a inflação. A partir de um certo limiar, em vez de estimular a expansão, começa a estrangulá-la”(�992). E a situação atual norte-americana corresponde a enorme volume de capital ocioso a pesar sobre a economia real, grandes empresas salvas mas em retirada do processo reprodutivo e as famílias ainda endividadas e com sua capacidade de consumo diminuída (LETIZIA, 2009). E a injeção maciça de dinheiro público não melhorou substancialmente a escassez de crédito. Esta continua existindo. Produzir não é tão estimulante como especular ou lucrar com juros que os Estados terão que oferecer, para não serem engolfados pelas dívidas.

Impasses na dinâmica atualEm síntese, a dinâmica atual, com grandes

corporações e bancos sendo salvos, continua tendo como pano de fundo a super-acumulação de capitais em

relação à sua possibilidade real de geração de valor em aberta contradição com uma base ainda menor de auto-valorização.

Em conseqüência tem-se a exacerbação da concorrência por um espaço menor de rentabilidade, assim como os movimentos por parte dos Estados em proteção dos grupos oligárquicos. Em conseqüência tem-se uma piora do comércio internacional (que ano passado sofreu sua maior queda) e isso em uma fase em que o governo norte-americano já vinha depreciando o dólar desde antes, procurando estimular suas exportações por essa via. Aliás mesmo com o dólar sendo depreciado (�3 % na década passada) os Estados Unidos não conseguem reduzir o déficit comercial (foi de 2,8 % do PIB em �999 para 4,8 % em 2008).

Outros efeitos lógicos são a onda de fusões e aquisições de empresas mais vulneráveis pelas maiores e mais fortes, assim como a pressão dos setores mais fortes do imperialismo sobre os elos mais fracos, sobre países como a Grécia, a Espanha mas também sobre a China para que se “abra” à produção dos países imperialistas aumentando seu consumo interno de elite.

Ao mesmo tempo, a tentativa de escapar da depressão através do deslocamento dos problemas da esfera privada para a da dívida pública e crise fiscal tem como seqüela o fortalecimento dos mais poderosos grupos financeiro-industriais, das forças imperialistas dos Estados Unidos e Alemanha, por exemplo, enredadas com a China, o que desemboca em acirramento da concorrência entre os gigantescos centros do capital. O resultado é maior fricção e tensão entre esses grupos imperialistas e os Estados que os sustentam, para ver quem paga o custo da escalada da crise.

De �996 a 2008 o superávit comercial da Alemanha com os demais membros da Europa passou de 20 bilhões de euros para �00 bilhões por ano. E a Alemanha, mesmo dando passos adiante na produtividade, consegue manter 20% do emprego total na manufatura, enquanto os demais países da zona do euro não chegam aos �6% e em processo de queda (BELUZZO, 20�0). Esse processo é a expressão acabada de uma fase – “o equilíbrio” capitalista anterior – onde se desenvolveu um processo de espoliação imperialista dos países mais débeis pelos mais fortes, também em plena Europa, na zona do euro; com industrialização relativa de um pólo (Alemanha) às custas do enfraquecimento (colonização) do outro.

A Alemanha segurou os custos da mão de obra tornando suas exportações capazes de concorrer em preço a despeito de um euro valorizado, segundo Blackstone (20�0). E, de toda forma, não se trata de um processo onde a Alemanha ou o conjunto dos países imperialistas viessem desenvolvendo aumento da massa salarial.

Trata-se de uma fase do capitalismo na qual, como explica Letizia, pôde até ter havido aumento salarial em números brutos, porém

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O capitalismo em crise histórica e suas tentativas de escapar da depressão �

“na fase atual do capitalismo, mesmo salários crescentes se traduzem em renda líquida disponível decrescente, uma vez que boa parte dos anteriores ganhos indiretos em produtos subsidiados de empresas estatais (que foram privatizadas) e em serviços sociais (que deixaram de ser gratuitos) desapareceu. E não poderia haver aumentos salariais que compensassem tais perdas, porque esta fase capitalista é a da pressão permanente pelo rebaixamento dos trabalhadores do mundo ao nível dos min gong da indústria chinesa” (2009).

Quando se leva em conta que a necessidade premente do sistema é levar adiante o processo de rebaixamento e precarização da força de trabalho, destruir forças produtivas, queimar capitais, ao mesmo tempo em que pressiona os elos mais fracos, pode-se deduzir que a depressão está no horizonte.

Eles mesmos reconhecem o dilema: o Finantial Times, dirigindo-se à China e Alemanha em editorial intitulado Líderes mundiais estão escolhendo a recessão, argumenta que “o mundo enfrenta uma escolha: ou os exportadores em série podem optar por consumir mais e reequilibrar a economia mundial através do crescimento ou podem sentar sobre suas mãos e permitir que a demanda desabe e reequilibrar a economia mundial através da estagnação” (22/3/20�0).

Declínio de um sistema Em outras palavras – e voltando a uma questão de

fundo - não queimar capitais na magnitude necessária para o sistema significa ter que arcar com: - taxa média de lucro que não retorna a um nível capaz de dar fôlego ao capitalismo; - manter o Estado sufocado com dívida pública (e menor capacidade de investimento, de crédito, de demanda); - significa também que a tendência depressiva é apenas contornada, maquiada e que continua contida a capacidade de gerar emprego na produção.

Na outra ponta do dilema: destruir capitais significa ter que criar a correlação de forças políticas para isso, para uma empreitada de magnitude histórica de devastação da força de trabalho e do capital acumulado. Cabe observar o quanto esse dilema reflete decadência: incapacidade de desenvolver, historicamente, as forças produtivas a não ser como forças destrutivas.

O processo de fundo é de declínio histórico de um sistema ou decadência. Quando certos autores marxistas mencionam esta condição estão querendo dizer que o sistema enfrenta crescente disfuncionalidade diante da sua lei básica, que rege seu funcionamento, que o mantém de pé: a lei do valor (MERCATANTE, 2007, �47). O sistema pode ter momentos de crescimento, de equilíbrio relativo (como a fase anterior, onde se estabeleceu a ponte ou “divisão mundial do trabalho” Estados Unidos-China) mas invariavelmente trata-se de um processo que reflete aquela crescente dificuldade para valorização do

capital. Temos um sistema que, de relativamente reacionário

passa a ser “absolutamente reacionário”, mesmo que atravessando bolhas de crescimento. “O declínio do capitalismo tem a ver com o fato de que as de relações de valor possuem uma base mais estreita. A lei do valor, a lei básica do capitalismo, encontra crescentes dificuldades para desenvolver-se automaticamente. É isto que declina e o que está por trás dos esforços cada vez mais custosos do capitalismo para sua sobrevivência” (MERCATANTE, 2007, �47).

Na China (ou na Alemanha) houve crescimento relativo, parcial, de forças produtivas, mas como parte de um processo mais amplo, histórico, do declínio de um sistema, do não desenvolvimento histórico das forças produtivas. Cada fase ou foco de crescimento tornou-se parte de um processo de decadência, decomposição. Basta examinar o peso dos gastos militares em épocas “de paz”, o gigantismo das dívidas - o porte histórico da dívida pública -, ou o a escala astronômica alcançada pela especulação e pelo parasitismo sob todas as suas formas.

Setores como o ponto.com e imobiliário foram parte de um momento de crescimento. Mas basta focarmos seu aspecto de bolha para se ter claro o que se quer dizer por decadência; especialmente se consideramos aquele argumento anterior de que toda essa sobre-acumulação de capitais não vem lado a lado com uma elevação, à altura, da taxa média de lucro.

Ao tratar de impedir a queima de capitais, os Estados Unidos terão que tomar medidas para favorecer suas grandes corporações na busca de rentabilidade; no espaço-mundo isto significa forçar a compra de mercadorias norte-americanas, forçar toda medida que melhore a posição dos capitais dos Estados Unidos no mundo. Certamente tensionar a China3. E, de uma maneira geral, os agentes do sistema necessitam avançar sobre o patrimônio público que seja capaz de gerar lucros.

O sistema precisa, ao mesmo tempo, aumentar o consumo interno sendo que nos Estados Unidos temos o consumidor em potencial endividado ao extremo – como foi argumentado antes - e parte dele sob ameaça de desemprego ou de hipoteca da casa. E o dilema dos Estados Unidos vai mais longe: “se as famílias aumentam sua taxa de poupança, o consumo se reduz e o crescimento não poderia voltar a deslanchar. Se o gasto público toma seu lugar, o déficit comercial exterior vai aprofundar-se outra vez, e o fluxo de capital necessário para seu financiamento pode converter-se em um problema”

3 A ilusão de muitos “de que estaríamos diante de uma divisão internacional do trabalho harmoniosa, em que a China funcionaria como provedora de manufaturas e os Estados Unidos como consumidores em última instância, começou a ruir a partir do advento da crise capitalista” (ISHIBASHI, 2009, 46).

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Contra a Corrente �

(HOUSSON, 2009).Em suma, se é certo que o governo norte-americano

tenta a jogada de buscar evitar a plena e aguda depressão econômica que estava na pauta ano passado (já que não via condições políticas e econômicas de suportar a ampla queima de capitais e seu impacto político-social) é igualmente verdade que o resgate das finanças e grandes corporações – sua política atual – revela não apenas a miséria de um sistema mas também que a descarga plena da crise será dirigida contra os que vivemos apenas do nosso trabalho. O próximo lance está com a classe trabalhadora. Neste momento, com os gregos, os espanhóis e o proletariado europeu sobre quem as forças imanentemente destrutivas do capital esperam buscar sua válvula de escape.

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“O caso argentino nos demonstra que, ao contrário do que afirmaram alguns autores que decretaram o fim da classe operária ou do trabalho, o cenário dos

anos noventa expressou grande debilitamento da classe trabalhadora, pois sua força social foi atacada ao

jogar para fora da produção milhares de assalariados. Mas mesmo neste cenário,

encontramos a sobrevivência e o resgate de métodos de luta da tradição operária,

do classismo, no interior do movimento de desempregados. (...) O resultado da luta em Zanon,

a sua gestão operária, é fruto do resgate das concepções classistas. É uma pequena experiência

de luta da classe trabalhadora que contou com grandes lições para o seu conjunto. Ela foi a

prova evidente de que os trabalhadores, mesmo num contexto em que sofreu profundos ataques,

continuam vivos enquanto sujeitos sociais e políticos da transformação social”.

(Ricardo Festi, tese mestrado sobre a ocupação operária da fábrica de Cerâmicas Zanon, na Argentina

intitulada ZANON, FÁBRICA SEM PATRÃO:um debate sobre classismo e controle

operário, Unicamp 20�0).

“A propriedade privada nos fez tão cretinos e unilaterais que um objeto somente é o nosso

[objeto] se o temos, portanto, quando existe para nós como capital ou é por nós imediatamente possuído, comido, bebido, trazido em nosso corpo, habitado por nós etc., enfim, usado. [...] O lugar de todos os sentidos físicos e espirituais passou a ser ocupado,

portanto, pelo simples estranhamento de todos esses sentidos, pelo sentido do ter”

(Karl Marx, Manuscritos Econômico-Filosoficos).