o Cabrito Beija-flor

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O CABRITO BEIJA-FLORO gatinho branco se esfregou no porto empoeirado. Os brinquedos ficaram inquietos. Jlia parou de costurar as roupas de papel, afastou as flores de plsticos e saiu a andar como uma felina at as grades que a separavam do animal. Os bigodes brancos do felino ficaram acinzentados com a sujeira que caa solta do porto. Mas tudo isso aconteceu em poucos segundos. - Jlia, no pegue nele. Est sujo, sujo!Ela olhou-me. O silncio e a lentido com que voltou rea dos brinquedos assustaram-me. Fiquei desconcertado. Propus: vamos brincar de nomes com o vov? Ela sorriu. Pensei: porque a memria da criana est no presente.- Gato?- Gata.- Pato?- Pata.- Coelho?- Coelha.- Bode?- ???Os olhinhos encheram-se de dvida. Insisti abrindo as palmas das mos como quem pergunta pela resposta no dada. Ela revidou.- Uma pista! com joelhos e olhos arregalados.- Uma pista? Bem, bem. O vov te chama de...- Cabrita! Cabrita! batendo palmas. Entretanto, a testa enrugou e os joelhos ficaram em posio de Buda Mas cabrita no de cabrito?- No, no disse, rindo Cabrita uma cabra que ainda no cresceu. Uma cabra criana. A cabra adulta a mulher do bode.A brincadeira fez-me voltar infncia. Revi o mato fresco e verde, o arame farpado que um dia me serviu de corda-bamba, a areia do terreiro que consumia a gua da pia que mame jogava fora, o jardim, o sol que distribua arco-ris pelo quintal, o beija-flor. Meu beija-flor, que alegria lembrar dele! Era meu melhor amigo, o beija-flor. L em casa cada um dos nove filhos tinha tarefas a cumprir durante o dia: Marluce enchia as garrafas boca do pote de barro, Nicodemus e Damio tiravam o leite, Isaas e Patrcio limpavam o curral, Maria Aparecida e Maria de Ftima ajudavam mame nas tarefas domsticas, Davi cuidava dos assuntos da casa juntamente com papai, e eu, o pequeno Joo, cuidava da criao e das galinhas. Os bodes davam mais trabalho que as galinhas, por isso no conseguia evitar que alguns fugissem no comeo. Papai brigava comigo. Um dia tive que esconder o machucado de um cabritinho safado que gostava de pular a cerca. Quer voar, ?, eu disse. Ele se debateu at ser solto e correr pelo quintal. Peguei areia molhada e esfreguei nas patinhas traseiras: no outro dia estavam curadas. O bichinho era bonitinho e tinha as cores do meu time: preto e branco. Eu alisava o focinho, pisava nos cascos: ele corria. Eu corria atrs, ele pinoteava. A o tempo foi passando e a gente brincou de bola, de cavaleiro, de corrida eu at esquecia de pr a comida dos outros animais. A mame reclamou uma vez, outra e mais outra, at falar pro meu pai:- Jos, Joo no est alimentando direito a criao e as galinhas.- Vem c, Joo! eu fui.- Senhor? - T brincando de novo com os animais? No j falei sobre isso! Gosto por animal s na panela, entendeu?- Sim, senhor.Papai era um homem bom, mas muito duro. Meu tio contava que um dia ele saiu pra caar pre e cobra com ele. Dormindo debaixo de uma rvore, rede armada, a noite em silncio, meu tio saiu h alguns metros. Ouviu-se um barulho abafado e depois era como se houvesse lenha pegando fogo. Meu tio voltou, armou a espingarda, deitou na rede ao lado e fumou o cigarro de palha. De dentro do corredor da fumaa, ascendeu uma voz indignada: - Oh, Jos, no vai perguntar por que eu sa?- No.E foi assim. Meu pai era um homem bom, mas no gostava de abrao e de conversa. Mas, com o tempo, eu esqueci as recomendaes do meu pai e corri e cacei no lombo de beija-flor; at peguei uma ona com minha espada de galho de cajueiro. De vrias outras vezes, tirava feijo escondido da dispensa para alimentar beija-flor: porque ele precisava repor energias depois de tantas aventuras. At que um dia tive que no mais esquecer as palavras de papai. Foi duro. Chorei por dentro e, depois, sozinho, chorei por fora. Acordei, tomei caf e fui limpar o galinheiro. Ento, vi meu beija-flor: ele estava pendurado e com os olhos abertos no alpendre do oito, parecendo um manchado de corpo cheio de moscas. Meu beija-flor estava morto. Sozinho. Morto. Meu corpo doeu. Papai saiu de dentro da casa e mandou que eu trouxesse sal grosso. Eu no tinha autoridade para desobedec-lo. Os brinquedos de Jlia tambm quedaram por toda a sala. Levantei da poltrona para saber o que a menina fazia to silenciosa pela casa.