O Buraco

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o buraco

Transcript of O Buraco

  • i O N V O C I V I X V X 3 I I - 1

    O V J V - I a A X X O I V N v

  • prso j estava mesmo desgraado para o resto da vida,

    no tinha pena, tinha nojo do resto, de tudo aquilo

    que estava ali sua frente, ao seu redor, tda aquela pa-

    lhaada ridcula e miservel ento, tendo guardado o

    leno no blso, o promotor, relanceando os olhos pela

    *assistncia, que num segundo cessa os rudos e o

    zum--zum que ia nascendo das conversas meia-voz,

    relanceando os olhos agora com as duas mos pousadas na

    tribuna, recomea a falar: "senhores jurados; no quero

    mais prender-vos a ateno nem tomar o vosso precioso

    tempo, depois que acabastes de ouvir tda a verdade,

    crua e insofismvel, sbre o mais hediondo dos crimes

    que vieram abalar a nossa cidade, um crime que s de

    imaginar a nossa mente repugna."

    o sei como nem quando comeou o buraco. A

    lembrana mais antiga que tenho de mim coin-

    cide com a mais antiga que tenho dle: eu ca-

    vando-o com os dedos. Mas ento le j existia e no sei

    se era eu quem o havia comeado, ou outra pessoa. Ou

    talvez estivesse ali por simples acidente da natureza.

    De qualquer modo -me impossvel saber como foi antes

    dessa lembrana, nem adiantaria perguntar s pessoas

    mais velhas que eu, que estiveram ao meu lado nesse

    tempo: como iriam lembrar-se disso?

    Nessa poca eu devia ter trs anos, e o buraco era

    um brinquedo, um modo de fazer alguma coisa que en-

    contrei quela hora. Devo nessa mesma idade e depois

    nos quatro e cinco anos ter cavado muitas vzes, ora

    porque no achava outra coisa para fazer, ora porque

    me cansava das outras coisas, e ora enfim porque era

    aquilo mesmo que eu queria fazer. Depois, j mais cres-

    cido, lembro-me do buraco tomando a forma arredon-

    dada, mas ainda raso, de poucos centmetros: encobriria

    no mximo os tornozelos. Mas nessa poca eu ainda no

    havia entrado nle, ficava apenas cavando-o. Mas j

    pensava nle como algo que pertencesse s a mim e a

    mais ningum, e como algo secreto, embora ficasse ali

    no quintal vista de todo mundo e as pessoas passassem

    ao seu lado e mesmo sbre le; mas nem por isso deixava

    de ser meu e de ser secreto.

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  • As vzes Mame me via cavando-o e dizia: "Meu filho, deixa sse brinquedo, vai brincar na rua com os outros meninos." Mas s vzes tambm via e no falava nada, no se importava, e de certo modo at parecia achar bom: "assim le no vai pra longe", ela dizia. Dizia tambm, para os outros: "le gosta de brincar s-zinho." Eu gostava tambm de brincar com os outros meninos na rua, brincava de pique, de bomba, de esconder, de bola, de soltar papagaio, de corrida, de biloca, de tudo; mas s vzes deixava tudo isso e ia mexer com o buraco. Achava bom ficar ali szinho, longe de todo mundo. At que chegava um ponto em que tambm me cansava do buraco, sentia-me triste, e tinha vontade de voltar para as pessoas, conversar, falar, ouvir. Uma vez aconteceu uma coisa estranha: tive como que uma viso de algo pavoroso surgindo do buraco, sa correndo feito doido para dentro de casa; mas depois eu no conseguia saber o que me dera tanto mdo, no conseguia ter nenhuma imagem. Mesmo assim foi uma sensao to horrvel que fiquei algum tempo sem voltar l.

    Fui crescendo e o buraco tambm, que eu cavava com certa regularidade. J com meus onze anos, le no era bem um brinquedo: eu no sabia porque o cavava. Talvez fsse apenas hbito, o buraco estava ali no ter -reiro e desde pequeno eu o vinha cavando.

    E ento foi como se de repente eu o visse pela pri -

    meira vez como se le nunca tivesse existido antes

    dsse dia, quando fiz quinze anos. Foi uma sensao

    empolgante, mas tambm assustadora, fiquei maravi -

    lhado e ao mesmo tempo com mdo; na manh dsse

    dia eu estava alegre, mas de tarde no sabia se estava

    alegre ou triste, e de noite estava triste. De qualquer

    modo uma coisa era certa: aqule buraco existia e era

    meu, inseparvelmente meu, to meu que era como se

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    ao 4c"

    estivesse no ali fora mas dentro de mim. Eu podia ig-nor-lo que le estaria ali, continuaria ali como estava. Ignor-lo foi o que tentei de vez em quando nesses anos da adolescncia: s vzes em casa, ou na casa dos outros, entre pessoas, conversando, rindo, jogando, danando, bebendo, eu me esquecia dle, ou se me lembrava achava-o to estranho que no podia acreditar que le existisse. Mas chegava em casa e bastava ficar um pouco isolado dos outros e em silncio que le surgia dentro de mim, como uma serpente se erguendo no escuro. Isso me deixava to desconsolado que tinha vontade de morrer. Mas outras vzes, em situao idntica, era eu

    mesmo quem invocava sua lembrana como um ltimo socorro, e ento ficava contente por le existir. Acon- tecia tambm de lembrar-me dle quando estava rodeado de pessoas, e essa lembrana era to forte que apagava a presena das pessoas como se elas ento que se tornassem lembrana. Houve ocasies em que eu escondia dos outros o buraco, numa espcie de mdo e pudor; ou, se me sentia muito triste por le existir, mostrava-o para les na esperana de que dissessem ou fizessem alguma coisa para diminuir minha tristeza; uns nem ligavam, outros davam conselhos, e alguns acabaram se oferecendo para me ajudar a tap-lo; algumas vzes aceitei essa ajuda, mas na hora de tapar o buraco eu recuava assustado: no, como que aquela pessoa, por mais que eu gostasse ~ela, e ela de mim, poderia me ajudar a tapar o buraco que eu tinha feito szinho e que s eu conhecia perfeitamente? No daria certo, ficaria um dsses terrenos movedios onde de uma hora para outra eu poderia me afundar e s vzes comigo essa pessoa. Eu a abandonava, ou ela me abandonava, com lgrimas nos olhos; queria tanto aquela ajuda e ela no poderia me valer. Isso custou-me muitas incompreenses: disseram que eu era orgulhoso, que eu desprezava

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  • dida que caminha e que 'as brumas vo se dissipando

    que o castelo a sua prpria casa, onde le deseja estar.

    Minha cabea estava apenas a alguns palmos ,m -&o

    tn-vel da terra. Mais um pouco e o buraco me encS=ria. Esse pco eu cavei no ela seguinte. Depois que

    cavei entrei dentro. Nessa hora uma pessoa me procurou orno quintal chamando por meu nome. Eu permaneci

    quieto e em silncio no buraco, com a mesma sensao

    de quando em criana me procuravam pela casa cha- mndo-me e eu estava escondido debaixo da cama. No

    gostava dessa pessoa, e resolvi no responder; ela acabou indo embora. Repeti a experincia depois com outras

    pessoas: sempre dava certo. A verdade que, das pessoas que me cercavam, com quem lidava todo dia, a maioria

    me aborrecia, me desgostava, me cansava; me cansa- varo so re u o o por causa e uma coisa: e as a avaro e-

    mais; por que no conseguiam ficar em silncio? Depois

    de estar com elas como era bom entrar no buraco e ficar ali naquele silncio.

    Mas ainda era um silncio muito frgil e qualquer

    barulho mais forte l fora vinha trinc-lo. Era preciso

    tornar o buraco mais fundo. Alm disso, as pessoas que me procuravam j o haviam descoberto e ento chega-

    vam na beirada e pediam para eu sair, e se eu me re-

    cusava, insistiam, ameaavam jogar coisas dentro; no

    tinham o menor respeito pelo buraco e isso me dava

    mais vontade ainda de ficar dentr-ale, e de no encon- trar-me com essas pessoas. "Voc est parecendo tatu,

    tatu que fica cavando buraco assim; dsse jeito um

    dia quando voc menos espera voc est a virado num

    tatu; olha a suas mos, sujas de terra..." Tatu, pensei,

    e se eu virasse mesmo um tatu? Aquelas pessoas me dei-

    xariam em paz no meu buraco, no viriam molestar-me,

    eu no precisaria mais procur-las nem elas sentiriam

    minha falta: quem iria sentir falta dum tatu? Aquela

    os outros ou que eu no me importava com les, e at

    que os odiava. Quanta incompreenso. Havia tambm

    os que diziam: "Deixa, deixa le; le no tem jeito..."

    Esses pelo menos eram mais compreensivos.

    O buraco, smente eu poderia ench-lo. Porque a

    essa concluso eu havia chegado: o buraco estava ali e

    no adiantava querer ignor-lo, o que eu tinha de fazer era ench-lo. Foi o que tentei, j rapaz, e no pude: cada

    p de terra atirada dentro do buraco era como sefUsse

    atirada dentro da minha boca. Eu no podia fazer aquilo,

    era como se eu estivesse me assassinando. Ento de-

    sisti. Deixei a p no cho e fiquei olhando desolado para o buraco e nesse estado escorreguei e ca dentro dle. No primeiro instante tive um pavor horrvel, como se eu

    estivesse cara a cara com a coisa de que eu naquele dia da infncia tivera a viso; ali estava ela, visvel e invis-

    vel, palpvel e imaterial. Meu primeiro impulso foi o de fugir, mas no fugi, porque fiquei paralisado, ou porque

    me dominei, no sei; mas no demorou o pavor foi su-

    mindo e dando lugar a uma espcie de familiaridade

    com a coisa. Notei ento o escuro de ali dentro, o frio

    das paredes. e isso que talvez fsse o que me apavorou -de incio, passou a me 'agradar no exatamente a me agradar, mas a despertar minha curiosidade, a interes-sar-me. Ainda com um certo receio apalpei as paredes:

    eram frias, midas; cheguei at 'a cheir-las: era o mesmo cheiro, mais forte, que eu j estava sentindo no

    ar ali dentro, cheiro de terra, um cheiro bom. Depois de

    alguns minutos a sensao de pavor havia desaparecido

    por completo, e eu sentia-me bem ali dentro _perf eita

    mente vontade, como se fsse ali realmente o meu lugar, o meu habitat. Era como um homem que perdido

    na escurido v de repente I surgir sua frente um pa-

    voroso castelo mal-assombrado e empurrado 1 por fra estranha caminha em sua direo, descobrindo me-

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  • il

    hora eu desejei de fato ser um tatu, mas nem de longe

    estava pensando nas coisas que iriam acontecer. Pensei

    apenas que devia ser bom viver szinho no escuro, e no

    sLilnci~q,ng~e das pessoas,

    Para conseguir pois maior silncio,e menos clari-

    dad', continuei cavando o buraco. As vzes levava gua

    e comida e passava o dia inteiro cavando-o. Quando

    cansava, parava de cavar e ficava l toa sem fazer

    nada, apenas sentindo o silncio, o escuro, o cheiro da

    terra, aqule cheiro que eu achava to bom. As vzes

    acontecia de chegar gente me procurando; curvavam-se

    sobre o buraco mas j estava muito-fundo para que pu-

    dessem enxergar, ento gritavam: "Z, voc est _2P?"

    Eu no respondia. "Z, Z, sou eu, Maria." Maria era

    minha noiva. Eu no respondia, mesmo com ela. Ento

    havia um silncio que eu percebia ser o da pessoa espe-

    rando ainda que chegasse l em cima algum som de

    baixo mas eu ficava bem quieto. Ento o silncio

    voltava a ser o de antes, a pessoa tinha ido embora. No

    como, sse silncio era de um tipo, depois ficou de

    outro (eu estava virando especialista em silncios, dis-

    tinguia milhares de tipos diferentes): no como era o

    silncio de quem espera, apenas espera um som e depois

    pensa: ", le no est a mesmo no." Mas depois,

    quando ficaram sabendo que eu passava ali quase o dia

    inteiro, quando sempre me viam indo para ali, sse si-

    lncio era o de quem espera desconfiando e pensando:

    "le est a, sei que est a, e no quer responder." E

    ento eu quase respondia, principalmente quando essa

    pessoa era Mame ou Maria. Quando saa do buraco, a

    primeira coisa que fazia era ir procur-las. Mame um

    dia disse: "Meu filho, voc no est exagerando? A gente

    pode gostar de ficar dentro dum buraco e de cavar, mas

    tanto assim? Na vizinhana j andam falando; um dia

    dsses eu vinha na rua quando escutei uma ma atrs

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    de mim falando com outra: aquela ali a me do tatu.

    Voc acha que isso uma coisa agradvel para uma me

    ouvir? Voc meu filho, no quero que te chamem de

    tatu, voc no tatu, voc gente, no tatu" e ela

    disparou a chorar. Tive tanta pena dela sse dia que

    prometi no voltar mais ao buraco. Mas a promessa du-

    rou pouco, eu no podia mais ficar fora do buraco, sen-

    tia-me desambientacl, doente, tudo me feria, me inco-

    modava, a luz do sol queimava meus olhos como se fsse

    fogo, os sons abalavam meus ouvidos, e alm disso,

    quando saa rua havia risinhos de todos os lados: `7

    tatu... o tatu... % cochichavam, mas eu escutava como

    se estivessem gritando em meus ouvidos. Riam sobre-

    tudo por causa de minha corcunda, que me viera

    fra de cavar todo dia, e de meu rosto que fra escure-

    cendo e afinando. E por isso que eu s andava com as

    mos enfiadas nos bolsos, mesmo em casa, e na hora

    de us-las para alguma coisa, como por exemplo para

    c o m e r , e u E l a s j q u a s e n o ,

    lembravam mos humanas, eram negras, grossas, com-

    pridinhas e com unhas for es e pontudas eram mos

    de

    Num dsses dias em que, ao sair rua, ouvira as

    pessoas falando e rindo de mim, cheguei em casa to

    deprimido que sem reparar comecei a andar de quatro.

    Mame deu um grito e s ai percebi a coisa. "Meu filho!"

    ela gritou e veio correndo me abraar: ao levantar-me

    para ela que percebi que estava de quatro; tive de -fazer um esfro enorme para isso e para depois man-

    ter-me de p. "Que mal fizemos para merecer essa des-

    graa?" ela chorava me apertando em seus braos. Como

    explicar para ela que_ nem eu, nem ela, nem ningum

    __Yr tinha culpa daquilo, que aquilo acontecera porque havia

    comeado um dia, e havia comeado por um simples

    acaso? E que tudo era assim porque havia comeado

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  • assim e que se tivesse comeado de outro jeito teria sido de outro jeito, mas que ningum podia saber porque uma coisa comeava dsse ou daquele jeito e que mesmo se soubesse isso no adiantaria nada porque a coisa j havia comeado? Mas isso era muito difcil para ela en-tender e eu fiquei em silncio deixando simplesmente

    que ela me abraasse. Era doloroso, ela pressentia que4~ era a ltima vez que me abraava assim. De noite ela fz um blo de chocolate, que era o blo de que eu mais gostava; tudo como se soubesse que era a ltima vez. Eu comi para que ela se sentisse feliz, mas j no achava mais graa em comer blo, e alm do mais tinha de comer aos pedacinhos para passar na garga nta e no me engasgar. O mais duro foi na hora de deitar; ela queria me dar a bno, mas eu no queria tirar as mos dos bolsos para ela no ver em que tinham se transformado; eu tambm queria fazer-lhe um carinho de despedida, mas tive que me conter; e ela contentou-se com

    quarto dela, saltei da cama e deslizando de quatro j no

    , conseguia ficar nas duas pernas atravessei a

    casa, fui para o quintal e entrei no buraco.

    De manh Mame veio. Comeou a falar qualquer

    coisa, mas de repente se interrompeu, houve um silncio, e

    ento ela caiu num chro desatinado. No compreendi

    ilogo aquela mudana sbita, depois que percebi: eu

    devia ter deixado rastro na terra e por le Mame devia

    ter visto as minhas transformaes, que eu vinha ocul -

    tando dela e dos outros. Aqule chro me doeu no co

    rao,fqas eu fiquei -quieto_ no fundo. Qu que eu po-

    deria fazer? No poderia aparecer para ela, o que alm de no adiantar nada s iria piorar a situao . No po-dia fazer nada. "Volta, meu filho, sou eu, sua me, vem pra casa, a to escuro e to frio, voc vai resfriar, pode ficar doente, vem pra fora... " Me mesmo uma coisa: nem virando tatu ela deixava de me querer, at pelo contrrio, parece que me queria mais ainda, como que-rem as mes aos filhos doentes. E se eu tivesse me

    '_FEsformado numa lesma decerto ela me amaria mais ainda. Mas era estranho o que eu ia sentindo enquanto ela me falava: ao mesmo tempo que sentia d dela, eu ia pensando: seu filho? sim, seu filho, porque nasci dela; mas o qu que 'ainda tenho de comum com ela? sou um a ~ , g o s t o n o e scu r o e n o f r i o , s zi n h o; sou diferente dela, meu mundo diferente, no tenho mais nada a ver com seu mundo, s a memria me liga a ela. Sentia quase irritao: "voc vai resfriar" res-friar como, Me, eu sou tatu, tatu resfria?

    Depois foi Maria: chorou tambm, pediu que eu sasse, que no podia viver sem mim, que ia se matar, etc., todos sses lugares-comuns das mulheres apaixona-das. Eu tinha vontade de gritar bem alto: "Eu sou tatu, Maria, vai embora, me deixa em paz, tatu vive no buraco, aqui que meu lugar, vai embora, no tenho nada com vocs, vocs so gente, eu sou tatu'" Tinha vontade de gritar isso bem alto, mas era tatu, no tinha mais voz. Continuei quieto no fundo, at que Maria, de-pois de prometer tudo, inclusive entupir o buraco (era desespro de amor, ela no faria isso), e depois de chorar muito como se eu estivesse morto (e para les eu estava realmente morto e o buraco era como se fsse o meu tniu. o , oi embora.

    Nos dias seguintes, Mame e ela, e depois meus

    amigos mais chegados, sempre vinham ao buraco e di-

    me abraar apenas -- no perguntava o motivo ds mos nos bolsos com mdo de magoar-me. Apertou-me contra ela : "meu filho, vai dormir em paz, o mundo 1 1

    pode te voltar as costas, mas sua mae nunca e aban-donar.

    11 Pobre Mame, eu quem a abandonei.

    Nessa mesma noite, to logo escutei o ressonar no

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  • i

    ziam tda espcie de coisas para me tirar dle, mas era intil. Fazer no podiam fazer nada. Se quisessem, por

    exemplo, alargar at o fundo o buraco com mquinas

    o que seria um servio monstruoso para que pudes-

    sem me pegar, seria trabalho perdido, porque eu poderia

    em pouco tempo furar outro buraco, penetrar pela terra

    em outra direo . les devem ter pensado isso. Alm do

    que seria um negcio absurdo: tanto trabalho para pegar

    um tatu? S a dor de uma me inconsolvel ou o deses-

    pro de uma noiva abandonada poderiam fazer isso., mas

    Mame foi se consolando com o fato de saber que eu

    ainda estava vivo, e Maria, por razes que depois vim a

    saber, foi deixando de vir.

    A essa altura, devido fome, eu havia cavado um

    pequeno tnel cuja sada dava para um lugar abando-

    nado do quintal, longe do buraco. Saa de noite pro-

    cura de alimento. Mame deve ter visto meus rastros e

    calculando o que se passava, e ento comeou a deixar

    tdas as noites um prato de comida no fundo do quintal.

    As mes entendem tudo: ela escolhera o fundo do quin-

    tal porque entendera que eu no queria ser visto mais

    por ningum nem mesmo por ela. Ainda assim o filho

    que ela amava estava ali e precisava dela; s que ela

    no podia toc-lo com as mos, nem v-lo, e menos ainda

    ouvi-lo.

    As visitas comearam a se espaar. Maria no vol-

    tou mais. S Mame vinha. Vinha e ficava na beirada

    do buraco, muda, olhando para dentro. As vzes senta-

    va-se no tronco velho ao lado e ficava horas assim olhan-

    do . Do fundo, quieto, eu a via, mas ela no podia me

    ver; talvez sentisse que eu estava vendo-a e ficasse ali

    para isso, para que eu a visse e no me sentisse szinho-

    Depois que as pessoas deixaram de vir, comecei a

    sentir muito a falta de uma coisa que eu no sabia o

    qu; depois descobri: a voz humana. Era dela que eu es-

    tava sentindo falta; no para falar, mas para ouvir,

    tinha saudades de ouvi-la, e quando a ouvi de nvo foi

    como se ouvisse o som maisbelo do mundo. Isso 'acon-

    teceu numa noite em que, levado por essa saudade, apro-

    ximei-me sorrateiramente da rea lateral da casa, para

    onde do as janelas da copa, fiquel-n.o escuro escutan-

    do. Estavam l vrias pessoas conversando, rindo, con-

    tando casos. Tive ento uma- insuportvel saudade -w1

    quele mun1~_Mas depois refleti que eu s senti isso

    porque no pertencia mais a le, mas que se pudesse

    pertencer de nvo, se pudesse virar gente outra vez, e

    estar ali entre aquelas pessoas, desgsto e cansao o

    que eu sentiria, e talvez sentisse tambm saudades do

    tempo em que era tatu.

    Fiquei ali muito tempo, at que as pessoas se despe-

    diram e Mame ficou s. Ento voltei para o buraco.

    Depois disso sempre rondava a copa de noite para ver

    se tinha gente conversando, e se tinha, ficava ouvindo

    at que a ltima palavra fsse dita por algum. E no

    era mais s a voz que me encantava, mas tudo o que

    falavam, mesmo coisinhas como "hoje est quente", "o

    cafzinho est gostoso", "amanh tem feira".

    Foi numa dessas noites que fiquei sabendo porque

    Maria no voltara mais: tinha ficado noiva de um tal

    Joo no sei do qu. Quando escutei isso senti uma pon-

    tada no corao e uma enorme tristeza. Mas logo voltei

    a mim e pensei: diabo, qu que eu quero? por acaso

    queria que ela continuasse minha noiva? Acabei achan-

    do a idia divertida, e pensei numa manchete de jornal

    assim: "Mulher apaixonada por um tatu mata-se." Seria

    engraado.

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