O brinquedo misterioso - WordPress.com · O cãozinho vermelho com jeito de salsicha estranhou....

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Contracapa: Pela manhã, Mari e Juliana acordaram e viram pela janela do

quarto nada menos que um robô. De onde teria surgido? Seria um simples

brinquedo? Quem podia ser seu dono? Até as meninas e seus amigos descobrirem

a resposta destas perguntas, muita confusão vai acontecer na pequena cidade em

que vivem. Aventura, trapalhadas e mistério são a base deste livro emocionante

de Luiz Galdino.

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TEXTO

Editor

Fernando Paixão

Assessora editorial

Carmen Lucia Campos

Suplemento de trabalho

Maria Helena Teixeira da Silva

ARTE

Editor

Ary A. Normanha

Ilustrações Capa e miolo

Bilau

Editoração eletrônica

Antonio U. Domicncio

Composição

Carlos Augusto Fernandes

1994

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UM ROBÔ, DOIS AMORES E MUITA CONFUSÃO

Quem é que não gostaria de ter um robô em casa? Mariana e Juliana tiveram

essa sorte. Um dia, ao acordarem pela manhã, deram de cara com um robô em seu

quintal. E, deixando de lado todas as dúvidas que a estranha aparição provocava,

resolveram ficar com ele.

A partir daí, são muitas as aventuras e confusões em que esse trio vai se

meter. Afinal, Teleco — como as duas irmãs batizaram seu amigo androide — não

é aceito com tanta tranquilidade pela família das meninas e pelos habitantes da

cidade onde vivem. De onde teria vindo aquela estranha criatura e por que tinha

chegado ali?

Você pode fazer suas suposições, como muitos personagens do livro. Mas

prepare-se para surpresas: são muitas as reviravoltas na história deste brinquedo

misterioso. Venha descobri-las, travando contato com Mariana, Juliana, Teleco e

toda a turma. Você não vai conseguir parar antes de chegar ao fim deste livro

sensacional. Boa leitura.

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A amizade, a solidariedade e os problemas no relacionamento entre as

pessoas são alguns dos temas presentes nos livros de Luiz Galdino, como você

vai ver em O brinquedo misterioso. Gostava tanto de livros que por volta de 1956,

aos 16 anos, já era bibliotecário em Caçapava, sua cidade natal. Mas foi em 1979

que teve seu primeiro trabalho publicado, ao vencer um concurso de contos. A

partir daí, passou a escrever mais e veio a constar com frequência nas listas de

premiações, com livros para jovens e adultos. Além de dedicar-se à literatura,

Galdino viajou três anos por todo o país, pesquisando a arte indígena

pré-histórica. Formado em Comunicação Social, trabalhou com publicidade em

São Paulo, onde mora atualmente, embora já tenha residido em Minas Gerais, Rio

de Janeiro, Goiás e Mato Grosso.

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SUMÁRIO

1. A COISA

2. ROBÔ SEM DONO

3. GAROTOS, NÃO

4. BRINQUEDO PERIGOSO

5. SINTONIA FEMININA

6. UM TELEGUIADO

7. ACHADOS E PERDIDOS

8. NOITE DE PESADELO

9. O INTRUSO

10. ATRAÇÃO PELO MAR

11. O LUNÁTICO

12. O BANHO

13. O CONVITE

14. UMA CONVERSA SÉRIA

15. CONTRARIANDO A FÍSICA

16. PANCADARIA

17. UM MARCIANO

18. O PERIGO VEM DO ESPAÇO

19. NA PRAIA

20. LAVA-PRATOS

21. LAR DOCE LAR

22. BURRO MUITO BURRO

23. TRISTEZA

24. DESOLAÇÃO

25. MÊS DE ANIVERSÁRIO

26. SONHO OU REALIDADE?

27. ADEUS

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1. A COISA

Como faziam toda manhã, deixaram o despertador tocar até o final da

corda. Em seguida se levantaram. Juliana espreguiçou-se e Mariana bocejou

longamente. Quando abriram a janela do quarto, ainda tontas de sono, tiveram a

maior surpresa de suas vidas.

— Olhe lá, Mari!

— O que é aquilo? — perguntou a irmã menor, estreitando os olhos na

direção do objeto.

Juliana não respondeu. Permaneceu de boca aberta, sem conseguir desviar

a vista. “O que seria aquilo?”, perguntava-se em silêncio. Por fim, as duas se

recobraram de tanta admiração, desceram a escada e correram para o quintal,

rápidas como dois foguetes.

— Que correria é essa, meninas? — interrogou dona Olga, quase atropelada

pelas filhas.

As duas passaram pela cozinha, tropeçando nas cadeiras, não se deram

sequer ao trabalho de responder à interpelação da mãe ou de cumprimentá-la. E,

no quintal, o cãozinho, que abanava a cauda fazendo festa, por pouco não foi

pisoteado pelas apressadas garotas.

— Sai, cachorro!

— Cala a boca, Pitoco!

O cãozinho vermelho com jeito de salsicha estranhou. Afinal, todos os

dias, ele constituía o alvo das atenções delas. Tão logo se levantavam da cama,

desciam e abriam o portão da cozinha para que ele entrasse. Ao adivinhar a

intenção das garotas, correu para cima do objeto não identificado latindo

ruidosamente. E as coisas só pioraram para o seu lado.

— Sai, cachorro! Onde já se viu atacar um visitante tão simpático?! —

repreendeu Mariana.

— Visitante simpático? — estranhou Juliana, entortando a boca. E

acrescentou, em seguida: — É apenas um robô!

— Quem disse que é um robô?

— E precisa, Mari? É só olhar pra ver que se trata de um robô!

Juliana falou e passou a conferir o conjunto. O que mais poderia ser além

de um robô? Tinha cabeça, tronco e membros, tudo feito de metal. Exatamente

como os robôs da televisão, do cinema e das grandes lojas, embora seu tamanho

fosse bem maior que os robôs conhecidos.

As duas se achavam agora muito próximas do suposto robô, porém

limitavam-se a observar sem tocá-lo. Aliás, ele devia pesar muito porque tinha

quase a altura de Mariana.

— Como será que ele veio parar aqui? — perguntou Juliana, como se falasse

consigo mesma.

A irmã girou a cabeça pelo quintal à sua volta e arriscou um palpite:

— Alguém jogou ele aqui! Talvez o Beto ou o Cacá.

Duvido! Esse tipo de brinquedo deve custar caro. Só um louco jogaria fora.

Mariana ficou sem saber o que dizer, a outra corrigiu-se:

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— Pensando melhor, até pode ser... Afinal, quem ia querer uma porcaria de

robô que não anda, não fala, não tem graça nenhuma?...

— Eu quero! — retrucou, enfática, a irmã menor.

Juliana esqueceu por um instante o objeto e se pôs a examinar o alto muro

que dividia o quintal das casas pegadas. E ficou ainda mais intrigada, pois

conhecia Beto e Cacá, os garotos das casas vizinhas, e não se recordava de ter

visto jamais qualquer robô nas mãos deles.

— Sniff... Sniff...

A garota foi despertada de seu raciocínio pelo som abafado, quase um

gemido, e dirigiu-se à irmã:

— O que foi isso, Mari?

— O que foi o quê? — desentendeu a outra.

— Eu ouvi uma espécie de... de...

Antes que Juliana terminasse de falar, ouviu novamente. E, pela reação da

irmã, desta vez ela também ouvira. O que ficou claro pela sua pergunta:

— Ju... O que... O que foi isso? Você ouviu?

As duas ficaram encafifadas com aquilo. Com a intenção de certificar-se, a

maior questionou:

— Você tem certeza de que também ouviu, Mari?

— Será que foi ele? — devolveu a irmã, olhando disfarçadamente para a

misteriosa figura.

— É claro que foi! Quem mais poderia ser?

— O Pitoco? — tentou Mariana, apontando para o cão.

— Que Pitoco, que nada!

Ao ouvir o nome pronunciado, o cão salsicha tentou reconquistar o

interesse das garotas. Inútil. Elas só tinham olhos para o estranhíssimo

personagem. E foi então que recomeçou o sniff-sniff. E, desta vez, Mariana

identificou a fonte:

— É ele. Ele está soluçando!

— Essa não, Mari! Os robôs não têm sentimentos! E, se não têm

sentimentos, não podem soluçar!

Os soluços soavam roucos e metálicos como a voz normal dos robôs, mas

dava para perceber que aquele espécime em particular estava muito sentido. A

impressão era de que ele chorava. Mariana observou mais um tanto, procurando

certificar-se e, então, pulou de alegria:

— Ju, ele funciona!

A outra balançou a cabeça sem muita convicção. Sua reação mos- trava-se

muito distante do entusiasmo da irmã.

— Funciona em termos, né? Isso mais parece disco tocando em rotação

errada.

— Talvez a bateria esteja fraca...

— Ou vai ver que esse tipo de robô só sabe chorar!

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Deus me livre! Já pensou ter que aturar um robô chorão? Seria um

desperdício! Ele deve fazer outras coisas.

Alheio ao diálogo, o visitante se debulhava em lágrimas. Lágrimas

invisíveis, naturalmente. Em poucos minutos, ele estava rouco, rouco. E elas não

sabiam se ele ficara rouco de tanto chorar ou se era a bateria falhando. Sem

remédio, tentavam consolar, alisando-lhe a cabeça chata.

— Coitadinho do meu robozinho...

— Não chore... Nós vamos cuidar de você...

As palavras repetidas tantas vezes acabaram surtindo o efeito desejado.

Devia ser isso, pois logo ele se recompôs e elas passaram à próxima questão.

— O que faremos com ele?

— Antes de mais nada, vamos levá-lo pra dentro.

— Será que ele é pesado?

— Vamos experimentar. Se não der, chamamos a mamãe pra ajudar.

Experimentaram e — surpresa! — ficaram maravilhadas.

— Nossa! Como ele é leve!

— É o robô mais leve que eu já peguei!

— Ora, Mari... E você, por acaso, já pegou outro robô desse tipo?

— É mesmo. Acho que não.

Levantaram-no do chão, sem a menor dificuldade, e o conduziram para

dentro de casa. De passagem pela cozinha, a mãe sobressaltou-se:

— O que é essa coisa horrível?

— Ora, mamãe, é um robô! — respondeu Juliana.

— De quem é?

— Não sabemos. Apareceu aí, no quintal.

A mulher mal olhou para a coisa porque estava atrasada e mal-humorada. O

marido se levantara tarde e saíra correndo, de maneira que ela precisava

providenciar o café. E, ainda, deixar as meninas na escola, antes de seguir para o

trabalho.

— Vocês precisam descobrir a quem pertence esse treco e devolvê-lo ao

dono.

— E se esse treco não tiver dono?

Dona Olga virou-se na direção de Mariana e avisou:

— Menina, não alimente ilusões, viu? Esse tipo de brinquedo custa muito

caro! E tem dono!

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2. ROBO SEM DONO

Na escola, as irmãs sondaram Beto e Cacá, os amigos que moravam nas

casas ao lado delas. Por sinal os amigos com os quais conviviam mais.

— Beto, por que você não disse nada sobre o robô? — iniciou Juliana.

— Que robô? — estranhou o garoto. — Do que você está falando?

Mariana repetiu o jogo com Cacá:

— Já sei. O robô é do Cacá.

— Bem que eu gostaria de ter um robô... Um daqueles bem brilhantes... Mas

não tenho.

— Quer dizer que você não tem um robô?

— Claro que não! — reforçou o garoto. — Mas tenho alguns jogos incríveis!

Se quiserem...

Juliana interrompeu-o, voltando a questionar:

— E você, Beto... Pense bem... Você não tem um robô?

— Ora, ora... Você está cansada de saber que eu não tenho nem nunca tive

nenhum robô.

As irmãs se entreolharam caladas. A mais velha retomou:

— Por acaso vocês conhecem alguém que tenha um robô?

— Eu não! — negou Beto.

— Nem eu — enfatizou o outro.

Diante das reações dos jovens, Mariana virou-se para a irmã, questionando:

— Como é que se explica isso, Ju?

— Não sei.

Os amigos nem sequer disfarçavam a curiosidade.

— Que história é essa de robô? — quis saber Beto.

E Cacá apoiou o companheiro:

— Por que tanto mistério sobre esse tal robô, hein?

Então Mariana decidiu por fim à expectativa:

— Acontece que nós temos um robô! Um robô lindo! Maravilhoso!

— Um robô de verdade? — admirou-se Cacá.

Mariana hesitou e consultou a irmã:

— O nosso robô é de verdade ou de brinquedo?

— É de verdade! Acho que é!

Os garotos trocaram olhares desconfiados. E Beto botou para fora a dúvida

estampada no rosto:

— Se vocês têm um robô, como é que nós nunca vimos?

— Nem podiam! Ele só apareceu hoje!

Cacá dirigiu-se ao companheiro em tom de deboche:

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Elas estão tentando passar um primeiro-de-abril na gente. Não percebeu,

não?

Juliana estourou:

— Se não quiser, não acredite! Não é obrigado!

Diante de tanta decisão, encabularam os dois, meio sem graça.

— Está bem — recuou Beto. — Depois das aulas podemos ir conhecer esse

robô misterioso?

As irmãs fizeram luxinho, dificultaram ao máximo, antes de ceder.

— O que você acha, Ju?

— Não sei, não. Bom... Não custa nada, né.

— É... Afinal, o Beto e o Cacá têm sido nossos amigos.

Ao contrário do hábito, a mãe veio recebê-los no portão da rua. E uma

olhada ligeira bastou para perceber que ela estava furiosa com alguma coisa.

— Oi, dona Olga...

— Bom dia, dona Olga. Nós...

Bastante ressabiados, os garotos cumprimentaram. Ou tentaram pelo

menos. Ela, porém, interrompeu, em tom de desabafo:

— Até que enfim! Eu não suportava mais!

E, levantando as mãos para os céus, interrogou, na direção dos vizinhos:

— São vocês os donos daquela coisa sinistra?

Ficaram todos apalermados, diante da recepção quase rude. Por fim,

Mariana recobrou a voz:

— Que coisa sinistra, mamãe? Do que a senhora está falando, hein?

— O que aconteceu, mamãe? — perguntou a outra, visivelmente

preocupada.

Muito encabulados, Beto e Cacá só faltavam se afundar no chão. Então ela

revelou de que se tratava:

— Acontece que aquele robô diabólico não me deu um minuto de sossego,

desde que cheguei! Estou ficando maluca!

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3. GAROTOS, NÃO

— Afinal, é de vocês ou não é? — repetiu dona Olga, com ar de desânimo.

— A senhora está falando do robô? — perguntou Beto, confuso. Cacá

completou, esclarecendo:

— O robô não é nosso, não, dona Olga. Pensei que fosse da Mari e da Ju.

— Ainda não entendi o que ele pode ter feito de tão terrível assim —

considerou Juliana, avançando em direção ao interior da casa.

— Nem eu! — secundou Mariana, acompanhando os passos da irmã mais

velha.

— É uma criaturinha tão simpática...

— Criaturinha simpática? — admirou-se a mãe. — Subam a escada e ouçam

os apitos.

Diante das palavras da mãe, fizeram silêncio por alguns segundos, mas não

conseguiram ouvir nada.

— Coitadinho! — falou Mariana, no pé da escada. — Vai ver que ele sentiu

falta da gente... Queria companhia...

A mãe, porém, estava enfezada e não se emocionou:

— Não suporto tanto ruído, tanto apito, tanto...

Onde ele está? — perguntou Juliana, já no terceiro degrau da escada.

— Está no quarto de brinquedos. Eu o prendi lá.

— Prendeu? A senhora teve coragem?

— Coragem precisa pra aturar aquele tormento! — retrucou a mãe,

agitadíssima.

Beto e Cacá acompanhavam o diálogo da mãe com as filhas pouco à

vontade. Ao mesmo tempo esticavam os olhos curiosos para o alto da escada,

mas as garotas fechavam completamente o acesso. Enquanto isso, dona Olga

seguia reclamando:

— Para completar, o Pitoco queria avançar sobre aquela lataria. Dá pra

aguentar um barulho desses?

Ela interrogou, pedindo a complacência dos vizinhos. Eles assentiram com

um gesto de cabeça. Era um gesto de respeito à mãe das amigas e também à sua

fúria quase incontrolável. Em seguida, as duas terminaram a subida aos saltos. E

os dois desapareceram, no encalço delas.

No pé da escada, a mãe ainda decretou:

— Não quero ver esse moedor de carne solto pela casa! Entenderam bem?

No andar superior, os jovens ignoraram a advertência da senhora e

correram para a porta do quarto de brinquedos. Quando Juliana botou a mão na

maçaneta, ouviram com nitidez os apitos intermitentes e um som semelhante ao

dos brinquedos eletrônicos movidos a bateria.

— Parece a batedeira lá de casa — caçoou Cacá.

Beto riu a valer e corrigiu:

— Eu acho que lembra mais uma panela de pressão!

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Nem precisa dizer que as irmãs, de comum bastante geniosas, ficaram

furiosas com as brincadeiras.

— Vocês pensam que são muito engraçadinhos, não é? — repreendeu

Juliana. E juntou, ameaçando: — Pois eu acho que vocês vão embora sem

conhecer o nosso robô!

— Isso mesmo! Podem descer! — acrescentou Mariana, apontando na

direção da escada.

Os dois mudaram de cara no ato, esconderam o riso e mudaram de tom:

— Foi só uma brincadeirinha, Ju...

— Uma brincadeirinha muito sem graça, viu, Beto!

— Vamos entrar? — tentou o garoto, ruborizado. — Ele pode estar se

sentindo sozinho aí dentro...

A tática deu resultado. Pelo menos com Mariana.

— O Beto tem razão. É melhor abrir logo a porta.

— Abra, Ju — pediu Cacá. — Ele pode estar passando mal.

— Ah, é, é? Onde é que você já viu robô passar mal, hein?

Eu assisti um filme de ficção científica em que os robôs sentiam tudo que

as pessoas sentem.

— Essa não! — discordou Beto. — Robôs são objetos. Eles não sentem nada.

Essa tal de ficção científica devia ser muito furada.

Depois de considerar por alguns instantes, Juliana opinou:

— A maioria dos robôs são objetos que nada sentem... Mas o nosso pode

ser diferente.

— Pois é... O robô pode estar sofrendo — apoiou Cacá, aproveitando a

oportunidade para tentar voltar às boas com as meninas.

Mariana encarava a irmã, implorando com os olhos. A outra capitulou:

— Tudo bem. Vamos entrar.

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4. BRINQUEDO PERIGOSO

Abriram a porta e se puseram a observar, um mais deslumbrado que o

outro. O robô caminhava a passos lentos pelo quarto, desviando-se com

segurança dos jogos e brinquedos espalhados pelo chão. Quando Juliana se

adiantou, o amigo segurou-a pelo braço.

— Cuidado, Ju... Pode ser perigoso.

— Você ficou bobo, Cacá? Por que um simples brinquedo seria perigoso?

— É que... que... Esse robô é meio esquisito. Ele é muito grande... Não tem

jeito de brinquedo, não.

— Ah, não? E tem jeito de quê, hein?

— Sei lá. Tem jeito de... de... Tem jeito de robô perigoso! É isso: um robô

muito perigoso!

Ao ouvir as vozes, o robô parou um instante e voltou-se revirando os olhos

e emitindo um som que lembrava uma máquina registradora. Extasiado, Beto

avançou um passo, colocando-se ao lado de Juliana.

— Puxa! Eu não acredito!

Cacá, pelo contrário, mantinha-se apreensivo. Alguns passos atrás, por

segurança.

— Será que essa coisa não fugiu do laboratório de algum cientista maluco,

não?

Que bobagem! — censurou Mariana. — Ele não passa de um brinquedo! Um

brinquedo maravilhoso!

Quando o objeto retomou a marcha, Beto puxou as amigas.

— Olhem... Ele... Ele está vindo na nossa direção.

O robô caminhava lento, com passos pesados, mas já não emitia nenhum

ruído. Apenas de vez em quando, girava os olhos com alegria.

— Não é uma graça? — comentou Mariana, radiante.

Cuidado, Ju... Ele pode estar com más intenções — tornou Cacá.

Puxa, Cacá... Será possível que você não consegue diferenciar realidade de

fantasia, não? — estourou Juliana. — Até parece criança!

Ah, e o que é que nós somos? Por acaso somos adultos? — devolveu o

amigo, nervoso.

Beto corrigiu, antes que as meninas caíssem em cima do outro:

— Nós somos adolescentes...

— Eu acho que a Mari e o Cacá são pré-adolescentes — interveio Juliana.

— Pode ser. Eu não entendo direito esse negócio de adolescente,

pré-adolescente...

Na verdade, Mariana e Cacá contavam dez anos. Juliana tinha onze. E Beto,

quase doze. Mas a discussão logo cessou, vencida pelo interesse inusitado que o

misterioso visitante despertava. Muito intrigados, os jovens viram o irascível

robô tranquilizar-se, como se a presença deles lhe fizesse bem. A coisa só faltava

rir de felicidade. Aliás, ria. Ou o que significavam, então, aqueles malabarismos

com os olhos?

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— Oi, lindinho — cumprimentou Mariana.

— Oi, queridinho — secundou a irmã.

Não havia dúvida. Quando Mariana beijou-o no rosto de lata, novamente

reviraram-se os olhos dentro das órbitas, emitindo o som de caixa registradora.

Agora, com uma intensidade maior. Estava evidente que ele se alegrava com a

companhia dos jovens. Pelo menos com a companhia das meninas.

Beto e Cacá, por via das dúvidas, mantinham-se arredios. Guardavam

distância. Se aquilo era de fato um brinquedo, tratava-se do brinquedo mais

perfeito que já passara pela cidade. Nem na capital, para onde viajavam com

frequencia, lembravam-se de ter visto algo semelhante. Os robôs das grandes

lojas pareciam filhotes acanhados daquele que tinham pela frente.

— É... Esse robô é meio esquisito mesmo... — comentou Beto, como quem

não quer nada.

— Esquisito? Ele é muito assanhado! — corrigiu Cacá. — Você reparou como

ele vira os olhos por causa da Mari?

— Foi isso mesmo o que eu quis dizer. Veja como ele se derrete para o lado

da Ju.

— Será que não é algum robô espião, não? Talvez a gente devesse avisar o

quartel... o comandante...

— Poxa, Cacá... Robô espião é demais, não acha, não? Daqui a pouco você

vai dizer que ele é teleguiado... — reprovou o companheiro.

Enfim, as irmãs se cansaram de tanto mimo com o robô e se deram conta

dos amigos, ainda ressabiados, junto à porta do quarto.

— E então? Vocês não queriam conhecer o nosso robô? — perguntou

Juliana, com indisfarçável orgulho.

Os dois mantiveram-se imóveis, sem reação. Mariana convidou:

— Venham conhecer o nosso novo amiguinho.

Após um momento de indecisão, Beto colocou a mão sobre o ombro do

amigo e iniciaram a aproximação.

— Vamos lá, Cacá. Ele não morde — tentou encorajar o companheiro.

Como o outro não se animasse com a ideia, Beto passou à frente. Quando já

se encontravam bem próximos do estranho personagem, a simples menção de

tocá-lo provocou a reação inesperada. O robô escapou-lhe do alcance das mãos,

ao mesmo tempo que libertava seu incrível acervo de silvos, apitos e ruídos

estranhíssimos.

— Xiii... Ele não gosta de estranhos... — comentou Mariana, segurando a

coisa.

— Que estranhos? — repreendeu Cacá. — Nós somos seus amigos, já

esqueceu? Seus melhores amigos!

— Vocês são nossos amigos. Mas ele não sabe disso.

— Sabe o que eu acho? — perguntou Beto, mal-humorado. — Que ele está

azedo desse jeito por falta de lubrificação! Acho que ele está precisando de um

óleo quarenta!

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5. SINTONIA FEMININA

Incrível! Não dava para acreditar! Bastava um gesto para a coisa se

descontrolar e fugir para o canto oposto. Com a proximidade das meninas, no

entanto, a criatura acalmava-se e tornava à paz. Era a única maneira daquela

máquina infernal interromper a diabólica composição de ruídos e apitos

desagradáveis. Enfim, ficou evidente que a reprovação atingia apenas os garotos.

Juliana e Mariana eram colírio para aqueles olhos soltos girando nas órbitas de

lata.

— O que foi, queridinho... Você não gostou dos nossos amiguinhos?

— Empatou! Nós também não gostamos dele! — retrucou Cacá, bastante

contrariado.

O robô ignorou a intervenção do garoto e correspondia alegremente aos

carinhos das irmãs. Nisso se mostrava incansável. Depois de alguns minutos,

Juliana convidou os amigos para tentarem uma nova aproximação.

— Venham devagar... Com jeito... Talvez ele tenha estranhado... Agora já

deve ter percebido que vocês são nossos amiguinhos...

— Mas se ele repetir aquela zoada de gritos e apitos é porque ele não quer

mesmo saber de vocês! — contrapôs a irmã.

Cacá não se moveu do lugar. Sentia-se ofendido. Beto, porém, tentou uma

nova aproximação. Apesar de caminhar na ponta dos pés, como se pisasse em

ovos, foi logo surpreendido. E o alarme foi imediatamente acionado, libertando

uma série incrível de estranhos ruídos e apitos estridentes que deixariam

qualquer um doido.

— Pelo amor de Deus! Desliguem essa máquina infernal! — gritou a mãe. E,

em seguida, no pé da escada, completou: — Venham almoçar! A comida está

esfriando!

— Mamãe, isso não é jeito de falar com o nosso lindinho! — censurou

Mariana, do alto da escada.

— Nós já vamos descer! — gritou a mais velha, sobre o ombro da menor.

Os amigos se mostravam mais frustrados do que nunca. Beto estava com

cara de quem perdeu o dinheiro do chiclete. E Cacá, com jeito de quem deixou

cair o último pedaço de sorvete na terra.

— E... Pelo jeito, ele não se entusiasmou muito com a gente... — considerou

Beto.

— Não se entusiasmou? Ele não quer saber da gente! — retrucou o

companheiro.

Foi a conta dos jovens abrirem a boca, a coisa acionou de novo o alarma

estridente. Cacá tampou os ouvidos e pediu:

— Não dá pra fazer essa batedeira parar, não?

— Cacá... Por que você não se olha no espelho, hein? — respondeu Juliana,

indignada.

O garoto engoliu a língua e ficou quietinho. Beto tentou por outro caminho:

— Vocês estão se divertindo às nossas custas... Onde é que desliga essa

ratoeira eletrônica?

— Olha o respeito, hein, Beto! — cobrou a menor.

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— Não se trata de brincadeira. Eu nem sei se ele tem alguma chave de

liga-desliga. Eu acho que não tem. Afinal, ele reage do jeito que quer,

independente de ser acionado ou não — explicou Juliana.

Mariana apoiou:

— Nós pensamos que ele estivesse com a bateria gasta porque, quando

encontramos de manhã, ele não andava.

A explicação da menina foi interrompida pela aparição abrupta da mãe, que

se admirou com a cena:

— Como é que vocês conseguiram? — perguntou ela.

— Conseguimos o quê?

— Que ele parasse com aquela barulheira infernal.

— Com um pouco de carinho se consegue tudo. Não é o que a senhora

sempre diz? — retrucou Mariana.

— Ah, pois sim. E eu tenho tempo para me preocupar com os caprichos de

um brinquedo neurótico?

Cacá, que se mantivera calado por um bom tempo, aprovou as palavras da

mulher:

— A senhora acertou em cheio, dona Olga. Esse robô só pode estar

neurótico.

— Neurótico é a...

— Mariana!... — repreendeu a mãe, antes que a filha completasse o

pensamento.

No entanto, quando a mulher se aproximou, o personagem emitiu, sem

qualquer aviso prévio, um daqueles apitos ensurdecedores. A mãe levou as mãos

às orelhas e retrocedeu até a porta. Só então ele tornou às boas com as meninas.

— E assim que ele faz, dona Olga... Ele só fica bem com elas — revelou

Cacá, com uma ponta de despeito na voz.

A mãe voltou a tentar e, de novo, o alarma soou.

— Que coisa horrível! Por que ele não age assim com elas?

Mas desistiu de entender e iniciou a descida. No meio da escada, ordenou

com voz severa:

— Desliguem essa coisa maluca e venham almoçar!

Mais uma vez soou o apito. Sem se importar, ela desceu os degraus

restantes, falando consigo mesma. Na cozinha ainda resmungava entre dentes:

— Não suporto esses brinquedos eletrônicos! Se não descobrir logo o seu

dono, acabo ficando louca!

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6. UM TELEGUIADO

A esperança se depositava no marido, que deveria chegar no início da noite

para o jantar. Aquilo tinha que ser coisa dele. Só podia ser coisa dele. E, se não

fosse, ele tinha jeito com esse tipo de coisa e providenciaria para que aquele

moedor de carnes tivesse sossego. Assim pensava dona Olga, que se frustrou com

a chegada do marido. Ele não sabia de nada. Não conseguia, ao menos, imaginar

de onde saíra aquela coisa.

— Juro que não fui eu! E nada sei de nenhum robô!

— Você tem certeza de que não quis nos fazer uma surpresa? — insistiu a

mulher.

— Olhe... Se alguém preparou tudo isso, foi surpresa também para mim!

O pai ouviu toda a história desde o princípio: o achado no quintal, a reação

diante da mãe e a profunda irritabilidade frente aos amigos. Ao contrário do

esperado, porém, quando o pai se colocou à sua frente, foi saudado apenas por

um apito rápido e curto. Quem sabe, tinha sido poupado por causa da

apresentação formal.

— Esse é o nosso papai, viu? Ele se chama Otávio — falou Mariana.

O robô observou-o em silêncio e o pai brincou:

— Pode ser que ele não fale, mas presta muita atenção!

— Que estranho! Eu imaginei que ele ia fazer o maior carnaval com a sua

chegada. Acho que ele não gosta é de mim — estranhou a mulher.

— Claro que ele não gosta, Olga. Objetos não gostam nem desgostam de

ninguém.

— Aí é que você se engana, meu caro. Essa coisa adora as meninas e não

pode nem ver a cara do Beto e do Cacá, além da minha, é claro — considerou a

mulher, bastante frustrada.

Juliana tinha outra teoria para explicar a reação:

— Ele viu quando o papai entrou da rua e nos abraçou. Deve ter entendido

que nós gostamos dele e ele de nós.

— Ah, e eu não gosto de vocês... É isso que você está dizendo, Juliana?

— Não é isso, mamãe. Só estou dizendo que ele não assistiu a nenhuma

manifestação de afeto entre nós.

— Pois eu continuo achando que a explicação é outra. Sou capaz de apostar

que ele entraria em erupção se visse Beto ou Cacá entrando e abraçando vocês

duas.

Enquanto elas discutiam, o pai passou ao exame. E, contra toda

expectativa, não encontrou nenhuma resistência. Não só se aproximou da coisa

como a examinou de cima a baixo, em busca de chaves ou interruptores. Não

descobriu nada, o que o deixou um tanto desconcertado.

— E... Realmente não tem nem sinal de chave, botão ou interruptor... Vai

ver que se trata de um teleguiado...

— Teleguiado? O que é isso? — perguntou Mariana.

— O senhor acha que ele é igual àqueles carrinhos que são controlados à

distância? — propôs Juliana.

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— Isso mesmo. Seria uma explicação.

A filha maior parou para pensar um instante e tornou:

— Nos teleguiados que eu conheço, a pessoa que maneja os controles

precisa ficar perto...

— A tecnologia nessa área está muito desenvolvida. A cada dia esses tipos

de brinquedo vêm mais aperfeiçoados. Quem sabe esse é um protótipo que pode

ser controlado a centenas de metros ou quilômetros de distância?

— E por que escolheriam o nosso quintal? E por que em segredo? Bastava

que falassem sobre o tal teste e nós aceitaríamos de coração.

A mãe acompanhou a discussão das hipóteses e, ao final, deixou bem claro

o seu pensamento:

— Bem... Por hoje ele fica aqui... Não tem outro jeito mesmo. Mas amanhã

vamos localizar o seu proprietário de qualquer maneira, custe o que custar. Vocês

estão ouvindo?

As filhas, muito sérias, ouviram em silêncio. Quase tristes.

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7. ACHADOS E PERDIDOS

A partir do dia seguinte, o pai começou a correr inutilmente atrás do dono

do objeto. Ninguém havia perdido nenhum robô. Aliás, pouquíssimas pessoas

haviam visto um, antes.

— E então? — indagava a mulher, a cada tentativa.

— Nada — respondia o homem, confuso.

— Não é possível! Tem que haver um dono! — ela estrilava, sem conseguir

se habituar à presença daquela coisa na casa.

— Não tem, mamãe! — teimavam as filhas, com indisfarçável satisfação. —

Já procuramos por toda a cidade!

De fato, a busca do proprietário se iniciara pelas casas vizinhas. Daí,

estenderam para as ruas próximas e o bairro inteiro. Verdade que surgiram

alguns candidatos a proprietário, porém não passavam de espertalhões que nada

sabiam sobre o objeto perdido. Seu Otávio anunciou na seção de achados e

perdidos do jornal e mandou anunciar na rádio local. Os resultados se mostraram

absolutamente nulos.

— Por incrível que pareça, um troço desses que deve custar uma pequena

fortuna não tem dono! — aceitou o homem.

— O pior é isso... Essa coisa deve custar um dinheirão! Já imaginou se, de

repente, aparece o dono, querendo cobrar por algum estrago?

— Se existe um proprietário, por que não apareceu, não se identificou?

Se ele não entendia, a esposa entendia menos ainda.

— É um verdadeiro mistério. Eu só consigo pensar numa hipótese...

— É? Que hipótese é essa? — interessou-se o homem.

— É que nem o próprio dono suporta mais essa geringonça! E resolveu dar

um fim nela!

O marido riu.

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8. NOITE DE PESADELO

Na escola, o assunto predominava em todas as rodas, na entrada e durante

o intervalo para recreio.

— Vocês já viram o robô que a Ju e a Mari ganharam?

— Um robô? Ganharam de quem?

— Do pai delas, ora! O seu Otávio.

— Elas não ganharam nada! Elas acharam no quintal da casa delas! —

revelou Beto.

— Acharam no quintal? Essa história está mal contada!

Ao final da primeira semana, toda a escola havia passado pela casa das

garotas e examinado a insólita figura. E as reações se repetiram. Todos se

maravilhavam diante do personagem, mas concordavam que na cidade jamais

existira um objeto como aquele. Nada igual.

E o drama na casa continuava.

— Otávio... Essa coisa está me deixando de cabelos brancos! — reclamava

dona Olga.

Os primeiros dias haviam se constituído num verdadeiro pandemônio. A

mulher cismara que o robô devia passar as noites no antigo quarto de

brinquedos, agora transformado em sala de jogos e de estudos. Bem que ela

tentou.

Na primeira tentativa, o irritado personagem varou a noite apitando e

chiando, a ponto de despertar a atenção do recém-contratado guarda-noturno.

Pitoco latia no quintal e os cães da vizinhança faziam coro. Dona Olga bateu o pé,

manteve sua decisão e ninguém conseguiu dormir.

Na segunda noite, ela teimou e tudo se repetiu. Os vizinhos próximos só

faltaram chamar a polícia. Então, na madrugada seguinte, as garotas não

suportaram. Sem fazer barulho, levantaram-se e carregaram- no para o quarto

delas. Assim, todos conseguiram, finalmente, dormir em paz.

De manhã, na mesa do café, a mãe exibia um ar vitorioso. E botou para fora

a razão do seu orgulho:

— Viram como eu estava certa? Deu um pouquinho de trabalho, mas aquela

coisa descobriu o seu lugar!

As garotas se entreolharam indecisas, quase rindo. Então Juliana

encorajou-se e contou:

— Não foi bem assim, mamãe... Nós o carregamos para o nosso quarto.

— Vocês o quê? — arrepiou-se a mulher.

O pai riu até se engasgar, cuspindo café com leite para todos os cantos. E a

mãe ficou uma fera:

— Até você, Otávio? Cada vez me convenço mais que se trata de uma

conspiração! Não há dúvida: vocês querem é me enlouquecer!

Acompanhando o pai, as garotas riram com descontração. Até que,

desanimada, a mãe rendeu-se:

— Está bem. Só me digam uma coisa: vocês puseram aquela lata velha na

cama?

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— Não, ele dormiu no tapete! — esclareceu Juliana.

— E não reclamou nem um pouquinho — completou Mariana. Era só o que

faltava! Aquela lata de sardinhas reclamar do tapete!

— A gente achou que ele podia ter algum tipo de alergia — explicou

Mariana. — Mas, como ele dormiu bem, não deve ter.

Como a mãe se mostrasse calma, Juliana perguntou:

— Quer dizer que de hoje em diante ele pode dormir todas as noites no

tapete do nosso quarto?

— Vou fazer o quê? O Pitoco fez barulho quando era pequeno, mas acabou

se acostumando fora. Essa coisa perturba até os vizinhos! Daqui a pouco, vão

fazer um abaixo-assinado para tirar a gente do bairro!

— Viva! — aprovou Mariana.

— Boa, mãe! —juntou a outra filha.

Após a festa das filhas, a mãe deixou bem claro:

— Mas se eu pegar aquela coisa enfiada debaixo dos lençois limpos, vai

sobrar pra todo mundo! Entendido?

Antes que ela terminasse, a filha chamou-lhe a atenção, sinalizando com os

olhos, na direção da porta.

— Mamãe, olhe...

A mãe virou-se e constatou. A coisa se encontrava de pé, junto à porta que

dividia a sala da cozinha, revirando os olhos de felicidade.

— Você viu, Ju? Ele entendeu tudinho o que a mamãe falou!

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9. O INTRUSO

Foi assim que o robô, que não tinha dono, de repente encontrou dois. Ou

melhor: duas donas. E, na medida em que ele estabelecia seus hábitos, a dona da

casa via sua rotina de anos ir para o beleléu.

Antes da sua aparição, a família se reunia após o jantar para assistir à

televisão ou algum filme no vídeo. Todos juntinhos, inclusive o Pitoco, que tinha

lugar reservado num dos cantos do sofá. Agora, o intruso, como dona Olga o

chamava, sentava-se no centro do sofá maior e só permitia a proximidade das

garotas. Qualquer presença estranha — e isso incluía a própria dona da casa —

abalava o seu sistema nervoso, provocando uma irritante sessão de ruídos e

apitos intermináveis.

Os pais tinham de ocupar o sofá menor, de dois lugares. E o cão, coitado,

teve de se contentar com a poltrona no canto da sala, de onde mal conseguia ver o

aparelho de televisão. O pior de tudo é que o novo membro da família detestava

novelas. Ou talvez adivinhasse a preferência da mulher, o que o levava a

remexer-se o tempo todo, desviando a atenção dos demais assistentes.

— O que será que deu nessa coisa que se remexe tanto? — perguntou o pai,

interessado.

— Ele faz de propósito! Sabe por quê? Porque ele percebeu que eu gosto de

novela! — respondeu a mulher, furiosa.

— Não exagere, Olga. Daqui a pouco você vai dizer que essa coisa é

inteligente.

A esposa reclamava, mas não adiantava nada. A coisa erguia os braços,

como se fizesse exercícios, girava a cabeça até as costas, não conseguia se

aquietar por um segundo sequer.

— Coitadinho... Deve estar com coceirinha... — comentou Mariana,

encostando seu rosto no dele.

— Coceirinha? Onde é que você já viu robô sentir coceira, minha filha? —

indagou o pai, quase rindo.

— Vai ver que ele está com sarna! Nem banho toma! — castigou a mãe.

Juliana contrariou no ato:

— Mamãe, onde é que a senhora já viu robô tomar banho, hein? Pode me

dizer?

— Não vi nem quero ver! Mas é uma pena...

— Uma pena? Por quê?

— Quem sabe ele se afogava na banheira!

— Credo, mamãe! — protestou Mariana. — Como a senhora pode desejar

uma coisa dessas para o Teleco?!

— Teleco... — bufou a mãe. — Tem mais essa. Já sabia, Otávio?

— A Mari me contou.

— Agora, a senhora não precisa mais chamar de coisa, de robô... Agora, ele

tem nome — complementou Juliana.

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De fato, o nome viera com tal intenção. De tanto a mãe chamá-lo de coisa,

robô, lata de sardinhas, moedor de carne e outras coisas desagradáveis, as

garotas decidiram batizá-lo. E Teleco foi o nome escolhido.

Juliana, porém, havia retomado o tema do banho. Concordava com a irmã

que a mãe fora muito cruel.

— A Mari tem razão... Eu também acho que a senhora não devia dizer uma

coisa dessas do Teleco.

Ora, minha filha... Deixe de ser bobinha. Onde é que você já viu brinquedo

se afogar? Não se lembram do tempo em que viviam dando banho nas bonecas?

Bastou ela falar, todos ouviram o som inconfundível.

— Glub-glub... Glub-glub... Glub-glub...

Não havia dúvida, Teleco imitava o som das borbulhas formadas na água,

enquanto o seu corpo escorregava do sofá, como se afogasse de verdade.

— Otávio, você ouviu isso? — perguntou a esposa, de olhos arregalados. E

acrescentou, a seguir: — Quando eu falo, vocês não acreditam.. . Aí está a prova...

Essa coisa tem parte com o capeta! Só pode ser!

Como o homem se mantivesse calado, ela insistiu:

— E então? Você não diz nada?

Também as filhas se mantinham em silêncio, muito admiradas com o que

acabavam de ver. Apenas o cão ensaiara um latido, mas desistiu da continuação

diante do olhar severo de Juliana. E a mulher, inquieta por natureza, não se

continha:

— Otávio, essa coisa entendeu tudo o que nós falamos. E eu não duvido

nada que ela adivinhe até os nossos pensamentos!

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10. ATRAÇÃO PELO MAR

Dona Olga levava cada susto que só vendo! Aliás, ela e o cão já não

assistiam mais à televisão. Passavam a maior parte do tempo observando o

inoportuno visitante. E, por mais que ela examinasse, negava-se a crer. Aquilo

assustava. Nada tinha de um brinquedo comum. Ele tinha vontade própria e, se

não gostasse da programação, não adiantava teimar.

A família se recordava perfeitamente do sábado à tarde em que o pai se

sentara no centro do sofá para assistir a uma partida de futebol. Teleco não

gostou nem um pouquinho de ver o homem sentado no seu lugar, no meio das

garotas. Durante alguns minutos ele ficou apenas observando, como se não

soubesse reagir diante da cena inusitada. Em seguida, porém, o seu interesse foi

dirigido para o vídeo.

Pelo jeito, as regras do futebol não entravam na sua cabeça. Depois de

acompanhar por algum tempo aquele bando de marmanjos correndo atrás de

uma bola, ele se pôs a imitar. De olho na tevê, corria para a direita, para a

esquerda, conforme a bola era esticada para o ataque ou rebatida pela defesa

adversária. Corria é modo de dizer. Ele não dispunha de agilidade para

acompanhar a partida, mas deixava muito clara sua intenção de participar das

jogadas.

O pai e as filhas se divertiam com a pantomima, quando o juiz apitou uma

falta perigosa na entrada de uma das áreas. O robô mostrou-se surpreso e, logo,

apitou também. Foi o único momento em que ele se aproximou do vídeo.

— O que será que ele está imaginando? — perguntou Juliana.

— Não sei, não. Sua cabeça deve estar prestes a explodir porque entender

futebol não é fácil, não — devolveu o pai e juntou, em seguida: — Imagine alguém

que nunca viu uma partida de futebol e, de repente, se defronta com vinte e três

barbudos correndo atrás da coitada da bola.

— Eu acho que o Teleco está preocupado com os chutes que a bola leva —

opinou Mariana.

O trio ainda discutia, quando a câmera deu um close da bola sendo chutada

com violência para o alto das arquibancadas. Alvoroçado, Teleco apitou,

correndo de um lado para outro. De repente, no auge do nervosismo, caminhou

até o aparelho e o desligou. Então foi se sentar no canto do sofá, dando a

sensação de estar muito cansado.

— Era só o que faltava! — esbravejou o pai. — Esse sujeito, agora, vai

escolher até o programa que eu posso assistir?

— O jogo não estava muito bom, papai... Deixe o aparelho desligado.

Juliana pedira porque vira o pai se levantar. A intenção dele, porém, era

outra. Em vez de se encaminhar para a televisão, partiu em direção ao robô.

— Venha aqui que eu quero dar uma olhada em você.

Como ele falasse sério, as filhas trataram de ajudá-lo no seu intento.

— Fique quietinho, viu, Teleco, que o papai quer examiná-lo. Não tenha

medo.

Teleco não mostrou qualquer reação contrária e o homem examinou-o

demoradamente, como já o fizera de outras vezes, mas nada constatou de novo.

O robô compunha-se de um corpo retangular com o peito ligeiramente abaulado

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para a frente, de onde saíam os braços e a cabeça, na parte superior, e as pernas,

na porção inferior. Afora isso não havia qualquer sinal de emenda, acesso a

aberturas, nem sinal de encaixes para pilhas ou baterias.

— E incrível! Não existe nada que possa ligar ou desligar essa coisa

estranha!

Numa variação que soava intencional, Teleco começou a assoviar como

uma panela de pressão.

— Pronto! Ele se cansou de brincar de chaleira e virou panela de pressão —

brincou o homem, ainda confuso.

Dona Olga, que acabara de entrar na sala, a tempo de presenciar a etapa

final do exame, falou, com desânimo:

— Você ainda brinca com isso, Otávio?... Depois de tudo que nós temos

visto? Eu sinceramente estou assustada. Não consigo ver com bons olhos essa

ligação com as meninas.

— Até agora ele não causou nenhum prejuízo nem fez mal a ninguém,

certo? Afora os apitos, até que ele tem uma figura simpática... Comporta-se

direitinho...

— Eu também acho! — apoiou Mariana.

— E eu concordo plenamente! — secundou Juliana.

— O remédio é esperar... Quando se esgotar a carga da bateria, ele se

aquietará — decretou o pai.

Cessada a discussão, a mulher apontou em silêncio. O marido acompanhou

a direção do dedo e viu. Alheio a tudo, Teleco se sentara no sofá, após religar o

aparelho de tevê, e assistia interessadíssimo a um filme.

— É só ver filme de mar que ele fica quieto — falou Juliana, que observara a

reação em outras oportunidades.

— Esses brinquedos modernos são esquisitos mesmo.

— Ponha esquisito nisso, Otávio! Às vezes, eu chego a duvidar que ele seja

um brinquedo.

— E o que poderia ser senão um brinquedo, Olga?

A mulher piscou seguidas vezes sem dizer nada. Seus olhos saltavam do

marido para a coisa e do robô para o marido. Por fim, encorajou-se:

— Sei lá. Às vezes, eu penso que essa coisa pode ser um... um... um

marciano!

O riso do marido tomou conta da sala, ao mesmo tempo que Teleco se

manifestou, rolando os olhos nas órbitas.

— Ora, Olga... É claro que ele não é um marciano...

— Ah, não? E como você pode ter tanta certeza?

No mesmo tom, risonho e franco, ele revelou:

— Todo mundo sabe que Marte é habitado por homenzinhos verdinhos.

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11. O LUNÁTICO

Dona Olga pensava, meditava e encabulava, sem chegar a nenhuma

conclusão.

— Devo estar ficando velha... No meu tempo de criança, só brincava com

bonecas. Vai ver que não acompanhei as mudanças, como devia.

As meninas, pelo contrário, viviam numa alegria de causar inveja. Até

Juliana, que era mais mocinha e começava a deixar os brinquedos de lado. E como

faziam sucesso, desfilando a atração pelas ruas do bairro! Os garotos é que

desgostavam, principalmente Beto e Cacá, que nutriam mais que sentimentos de

amizade pelas irmãs. Beto gostava de Juliana, enquanto Cacá se perdia em sonhos

por Mariana.

— Ô, robozinho antipático! — resmungou Beto, no meio da roda.

— Eu acho uma gracinha! — retrucou Bebel.

O jovem não se importou. Prosseguiu, dirigindo-se aos companheiros:

— Vocês já repararam como ele vira os olhos?

— Só quando vê menina! — corrigiu Cacá.

— E verdade! Se tiver garoto na parada, o latinha fecha a cara! — concordou

o amigo.

— Não topo esse robô! Desde o primeiro dia, venho reparando no jeito que

ele olha pra Mari.

Nicinha caiu na pele do colega:

— Vocês não se envergonham, não? Onde já se viu ficar com ciuminhos de

um brinquedo?!

Beto defendeu-se, atacando:

— Vocês viram? As meninas estão sempre defendendo o latinha! Só porque

ele revira aqueles olhos de idiota pra elas!

E Cacá emendou, acrescentando:

— Se a gente chega perto, ele fica logo de mau humor. Dá pra entender um

brinquedo desses?

— E se desligasse? — sugeriu alguém.

— Desligar o quê, se ele não tem bateria? Também não tem pilha nem nada!

— Não é possível! Deve ter!

Cacá desistiu, desabafando:

— Eu estou com tanta raiva desse tampinha que não quero nem olhar pra

cara dele!

— Nem eu! — apoiou Beto. — Se não fosse pela Ju, metia-lhe um belo de um

chute no traseiro, que o mandava de volta pra Lua!

— Será que ele veio da Lua? — indagou Bebel, com os seus olhos negros

brilhando.

— Cara de lunático ele tem! — aprovou Cacá.

Chateado, Beto contrariou:

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— Ora, deixem de bobagem! Na Lua não há vida e, se não há vida, não há

brinquedos! Muito menos brinquedos eletrônicos!

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12. O BANHO

O tempo passou e as férias se aproximavam. Mal perceberam e o ano letivo

estava muito próximo do final. Para as irmãs Juliana e Mariana, isso significava a

possibilidade de dedicação em tempo integral ao novo companheiro.

Ao contrário das temporadas passadas, elas nem se preocupavam com o

programa das férias. A iniciativa partiu da mãe:

— Eu pretendo passar pelo menos uma semana na praia. E o Otávio quer ir

para o sítio, quando voltarmos...

— O que você acha, Ju? — perguntou a irmã.

— Por mim, está ótimo!

— Por mim, também! Desde que levemos o Teleco!

— Levar um robô na praia? — estranhou a mãe.

— O que tem de mais? — insurgiu-se Juliana. — As pessoas levam tantos

badulaques!

— É que pode entrar água ou areia e enguiçar os mecanismos — tornou a

mãe, mudando de tom, enquanto subia para o seu quarto.

Mariana preocupou-se com o argumento:

— O que você acha, Ju?

— O que eu acho é que não há muita alternativa...

— Como assim?

— Ou a gente leva o Teleco e corre o risco... Ou sai de férias e deixa ele em

casa.

Mariana não se mostrou muito entusiasmada. E, de fato, logo estralou os

dedos no ar, como se tivesse descoberto uma solução melhor.

— Tudo resolvido! Nós levamos o Teleco, mas avisamos que é perigoso ir à

praia!

— E você acredita que ele vai nos obedecer?

— Tem razão, ele não é muito obediente, não...

De repente, as duas procuraram à volta e se deram conta da ausência.

— Cadê o Teleco?

— Não sei. Ele estava agorinha mesmo sentado no sofá.

— Teleco! Teleco!

Juliana foi até a cozinha, embora soubesse que ele não gostava de circular

por lá. Mariana subiu a escadaria que dava para o pavimento superior e encontrou

a mãe, no quarto, pondo ordem no guarda-roupa.

— Mamãe, você viu o Teleco?

A mulher estranhou:

— Eu pensei que ele estivesse no banheiro com vocês...

— No banheiro? Nós estávamos lá embaixo, decidindo sobre as férias!

— Então, quem é que está tomando banho?

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— Tomando banho?

— Sou capaz de jurar que ouvi o chuveiro ligado. Aliás, acho que ainda

está.

Mariana saiu em direção ao banheiro e a mãe atrás. Na porta, toparam com

Juliana, que subira a escada em poucos saltos. Não havia dúvida, o chuveiro

escorria e alguém até cantarolava.

— O que aconteceu? — perguntou.

— Escute — pediu a outra.

— Quem está no banheiro?

— Mãe, ele está cantando a sua música! — reconheceu Mariana. — A música

que você canta quando toma banho!

— Só que eu não canto com essa voz de lata amassada!

As três riram e, quando abriram a porta, depararam-se com a cena mais

inusitada. Teleco encontrava-se praticamente recoberto por uma espessa camada

de espumas e manejava o escovão de costas com rara maestria. Assim que

percebeu a entrada da família, interrompeu o canto.

— Cuidado, Teleco! Pode entrar espuma nos seus olhos! — preocupou-se

Mariana.

— Os olhos são de menos. Só espero que toda essa água não enguice os

seus mecanismos.

— Ju, mamãe!

— O que foi, Mari? — voltou-se a irmã, preocupada.

— Ele fez isso de propósito!

— Claro que fez! — interveio a mãe. — Essa coisa é muito exibicionista!

A menina sacudiu a cabeça em sinal de negativa. E, virando-se para a irmã,

questionou:

— A gente não estava discutindo sobre os perigos da água para ele?

— É verdade!

A mãe não entendia nada.

— Vocês querem me fazer o favor de falar claro para que eu possa

entender?

— A Mari tem razão — antecipou-se a irmã. — A gente discutia sobre os

riscos de levá-lo à praia por causa da água e da areia...

Mariana interveio, atropelando a explicação:

— Ele ouviu a nossa discussão e veio tomar banho pra mostrar que não tem

perigo!

— Ele pode ir à praia conosco! — resumiu a mais velha.

A mãe examinou-o por um instante e aceitou.

— Ótimo! Agora, tirem esse negócio do banheiro e tratem de enxugar o

chão.

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As duas se divertiram a valer, secando as juntas do robô. E ele revirava os

olhos de alegria. Gastaram um bocado de talco e, como ele não contrariasse,

aplicaram também água-de-colônia e desodorante.

— Nossa! Que robô mais cheiroso!

— Humm... Está cheirando melhor que o Cacá!

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13. O CONVITE

Assim que terminaram de jantar, ouviram bater na porta da rua. Seu Otávio

foi atender, eram os amigos.

— Beto e Cacá estão aí na sala — comunicou ele às filhas, que saboreavam a

sobremesa.

— O que eles querem?

— Conversar com vocês, ora!

— Diga que já vamos.

Enquanto as duas terminavam a sobremesa, Teleco levantou-se e foi espiar

da porta da cozinha.

— Oi, tampinha...

— Oi, latinha...

Teleco manteve a seriedade diante dos cumprimentos irônicos e voltou

para junto das irmãs.

Eles já estão se engraçando com o Teleco — comentou Mariana,

contrariada.

— Deixe estar — prometeu a outra.

Quando elas entraram na sala, os garotos se levantaram e cumprimentaram

solícitos:

— Oi, Ju...

— Oi, Mari...

— Não vão cumprimentar o Teleco, não? — indagou Mariana.

Cacá reagiu com indisposição:

— Ora, ele é apenas um brinquedo! Não sabe nem falar!

— Ele não fala, mas entende! E sabe até cantar! — informou Juliana.

— Você está dizendo que essa coisa aí canta? — tornou Beto, fazendo

careta.

— Canta durante o banho, como todos nós!

— Banho? Ele toma banho? — estranhou Cacá.

— Pra você ver como ele é civilizado — retrucou Mariana.

Enfim, acataram as sugestões das garotas.

— Oi, Teleco... — cumprimentou Cacá, contra a vontade.

— Oi, Teleco... — repetiu Beto, sem esperar pela resposta.

O primeiro aproveitou-se da impassividade do robô para reclamar: Eu não

disse? Cumprimentar esse... esse... E o mesmo que nada.

Mariana ignorou e cobrou:

— Vocês queriam falar com a gente?

— Fale, Cacá — pediu Beto.

— Fale você! — devolveu o outro, chateado.

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— Não é aquela história de namorar, é? — adiantou-se Juliana.

Os dois afastaram um passo. Beto negou, com veemência:

— Não, Ju! Não é nada disso, não!

— Então, por que tanto mistério, hein?

— Sabe o que é... E que... que...

— Como podemos saber de que se trata, se vocês não falam?!

— A gente... Eu e o Cacá viemos... Quer dizer, viemos convidar vocês pra...

pra...

Juliana estourou:

— Pare de gaguejar e fale de uma vez, Beto! Convidar pra quê? Ele tentou

recomeçar:

— É que vocês não gostam muito de futebol...

— Nem um pouco!

— Pois é... Vai ser um jogo muito importante, sabe...

— Que jogo? — intrometeu-se Mariana.

— É entre o time do colégio e o time da Federal...

Diante da revelação, Juliana transformou-se:

— Contra o timinho da Federal?

Ninguém desconhecia a rivalidade entre os dois colégios. Daí que Beto

tocara no ponto certo.

— Cacá é o goleiro do nosso time e eu o centroavante... A gente queria

contar com vocês na torcida...

— Pode contar!

— Comigo também! — respondeu Mariana, completando: — Pra ver a

Federal por baixo, somos capazes até de assistir futebol!

Beto finalmente se mostrava aliviado:

— Puxa! Legal, hein, Cacá!...

Em vez de corresponder, o companheiro abriu a boca para contrariar:

— E é claro que levarão o Teleco...

— Por que não? Embora ele também deteste futebol!

— Se fosse futebol feminino, tenho certeza que ele ia adorar!

Foi a gota d’água.

— Cacá, sabia que você é um chato de galochas? — investiu Mariana.

— Chato, eu? Chato é essa lata de salsichas que vocês adotaram!

— Calma, crianças — pediu seu Otávio. — Vocês sempre se deram bem, por

que estão brigando agora?

— Que tal assistirmos à novela juntos, pessoal — sugeriu dona Olga,

contemporizando.

Diante do convite educado, os jovens aceitaram. No entanto, ficava claro

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que nenhum se sentia à vontade. Como de hábito, Teleco ocupou o centro do

sofá maior, mantendo uma garota de cada lado. E as pontas foram ocupadas

pelos visitantes. O casal de adultos, para variar, teve de se contentar com o sofá

menor.

Nem assim Teleco comportou-se. Afinal, todos sabiam que ele detestava

novelas. E, como se isso não bastasse, ele se preocupava com a presença dos

garotos. Daí que passou o tempo todo se remexendo, se coçando e vigiando as

atitudes dos intrusos. Quando terminou o capítulo, os jovens se retiraram.

Da porta, Beto pediu confirmação:

— Quer dizer que podemos contar com vocês?...

— Contar pra quê? — estranhou Mariana.

— O jogo da Federal, Mari. Já esqueceu?

— Ah, é mesmo! Eu vou!

— Claro que iremos — confirmou Juliana. — E faremos um barulho danado!

Cacá saiu na frente sem dizer nada. Visivelmente contrariado, limitou-se a

um aceno de mão na direção de seu Otávio e dona Olga.

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14. UMA CONVERSA SÉRIA

Assim que as meninas subiram para o quarto, a mãe deu uma piscadela

significativa para o marido e subiu atrás.

— Queria bater um papinho com vocês... Pode ser?

— Claro, mãe. Sente aqui na minha cama.

— Trata-se de uma conversa particular, Mari... — esclareceu a mulher,

mirando na direção do desconfiado robô.

— A senhora está se referindo ao Teleco? — perguntou Juliana.

Antes que a mãe respondesse, Mariana interrogou, um tanto ressabiada:

— Quer que eu o ponha pra fora?

— Só enquanto conversamos. Está bom?

A garota levantou-se e conduziu-o até o corredor. Ele até ameaçou apitar,

mas desistiu. Há algum tempo, percebera a ascendência que a mulher exercia

sobre as filhas e acabara por também acatar as decisões dela.

— O que houve, mamãe? — indagou Juliana. — A senhora parece tão séria.

— De fato, ando um tanto preocupada — começou a mãe. E acrescentou: —

Às vezes, nós magoamos outras pessoas sem perceber... até mesmo sem

intenção... E isso me preocupa porque pode se tornar o responsável por sérios

problemas de relacionamento...

Ao ouvir a palavra, Mariana associou:

— A separação entre a tia Alba e o tio André foi por causa de

relacionamento, não foi?

— Exatamente! Eles não conseguiram superar os problemas e o

relacionamento deles acabou se tornando ruim...

— Por que eles não tentaram resolver o problema juntos? — sugeriu

Juliana.

A mãe precisou tomar fôlego:

— Bem que tentaram, mas eles foram fracos, talvez, e acabaram perdendo a

batalha. Não tiveram forças suficientes para manter o relacionamento que já

durava muitos anos...

Mariana olhou para a porta e cobrou:

— Pensei que você queria falar sobre o Teleco...

— Tem a ver com o Teleco.

— Então fale, mamãe.

Ela abriu um intervalo, enquanto escolhia as palavras, e propôs:

— O problema é que vocês andam muito apegadas a essa coisa... Ao

Teleco...

Nenhuma conseguiu esconder a decepção. Mariana baixou a cabeça, a outra

ficou observando a porta.

— Vou tentar explicar... — tomou a mãe. — Eu não tenho nada contra o

Teleco. Acho-o até divertido...

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— Então, qual é o problema? — quis saber Juliana.

— Lembram-se do que falamos sobre magoar as pessoas, mesmo sem

intenção?

— Claro. A senhora acabou de falar.

— Pois bem... Desde que o Teleco apareceu aí no quintal, vocês vivem

apegadas a ele e ele a vocês... E com isso vocês passaram a conviver menos com o

Beto, o Cacá, a Bebel, a Nicinha... Quanto tempo faz que a Bebel não vem aqui em

casa?

Juliana piscou duro, engoliu em seco e concordou:

— A senhora tem razão. A Bebel e a Nicinha não têm vindo como antes.

Mariana, entretanto, não se convencia. E refutou:

— Se o Teleco aparecesse no quintal de qualquer um, eles fariam a mesma

coisa!

A mãe levantou o queixo para observá-la melhor.

— Você não percebeu que o Cacá estava triste esta noite? Aliás, não é a

primeira vez que eu o vejo assim jururu...

— Triste? Ele estava chato! — reagiu a filha rebelde.

Juliana ouvia a tudo atentamente. A mãe acariciou o rosto de Mariana e

recomeçou:

— Pois eu acho que ele reagiu daquela maneira porque está se sentindo

excluído.

— Excluído por quê? Nós até aceitamos o convite para o futebol! — investiu

Juliana saindo da sua quietude.

A mulher balançou a cabeça e pediu:

— Vamos falar a sério... Vocês acreditam mesmo que está correto tratar

dessa maneira os seus amigos? Beto e Cacá são amigos de vocês há anos! Teleco

apareceu há alguns meses...

— As filhas não encontraram palavras para contrariar.

— E se o Teleco fosse um astronauta de outras galáxias? Um objeto deixado

na Terra para colher informações... Um dia passa uma nave e o leva de volta para

o seu mundo. Já pensaram o que seria de vocês sem os seus amigos?

Mariana abraçou-se à mãe. Sua voz era quase um gemido:

— Eu não quero que o Teleco vá embora!

— É só uma suposição... uma suposição boba... Mas mostra a importância

de ter amigos, principalmente nas horas difíceis.

— A senhora tem razão — concordou a outra. — Nós temos usado o Teleco

pra chatear os garotos.

Dona Olga sentiu que era o momento de mudar de estratégia.

— O Teleco faz tudo o que vocês querem, não faz?

— Faz.

— Pois então... Basta que vocês o ensinem a conviver bem com os garotos.

E que dividam o seu tempo com os amigos...

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O conselho valeu. Juliana só tinha uma dúvida:

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— Será que ele é bom aluno?

— Não sei, não — riu a irmã. — Ele tem a cabeça muito dura. E pelo peso,

deve ser vazia.

A mãe riu e despediu-se das filhas. Porém, assim que abriu a porta,

surpreendeu-se com a descoberta:

— Juliana! Mariana!

O que foi, mãe? — assustaram-se as filhas, levantando-se da cama.

— Venham ver!

As duas se aproximaram da porta e viram Teleco se levantando do chão.

— O danado estava olhando pelo buraco da fechadura!

— Não acredito! — reagiu Juliana.

— Você fez isso, Teleco? Você fez essa coisa feia? — interrogou Mariana.

E, ao contrário das vezes em que as meninas se dirigiam a ele, a figura

manteve-se em silêncio, com os olhos fixos no chão. Só faltava mesmo confessar

de viva voz.

— Que vergonha, Teleco! — censurou Juliana.

— Pode deixar, mamãe... Ele nunca mais vai fazer isso!

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15. CONTRARIANDO A FÍSICA

Na véspera do jogo, ficaram indecisas entre levá-lo ou não. Acabaram

decidindo pelo sim. Seria um excelente teste. Uma oportunidade rara para

observar seu nível de aprendizado e de sociabilidade.

Não havia dúvida de que Teleco se sentia à vontade em meio à intensa

movimentação, já que as torcidas constituíam-se quase exclusivamente de

meninas. E, nesse meio, o danado do robô se dava realmente muito bem.

Ele circulou incansável, de um lado para outro, exibindo-se para as

meninas, que se derretiam com seus olhares rotativos. Sentou-se no círculo

central do gramado e ensaiou números acrobáticos. A assistência é que não

variava os comentários.

— Não é uma gracinha?

— Olha só que lindinho que ele é.

Atrás das traves dos gols, os garotos faiscavam de raiva. Se aquilo

demorasse muito, o robô ainda sairia de campo chamuscado. E, para completar,

alguém chamou a atenção:

— Por que será que as duas torcidas se reuniram no mesmo lugar?

— Adivinhe — desafiou Cacá.

— Qual é o motivo? Diga.

— É lá que o latinha vai ficar com a Ju e a Mari.

— Só podia ser aquela lata de sardinhas enxerida! — acusou Beto.

— Não demora nada e até as meninas da Federal mudam de lado!

Nem a chegada dos professores conseguiu transferir o centro de interesse.

Aliás, apenas os professores de física e de artes compareceram para prestigiar o

evento. Gersão era o famoso papa-festa. Se o convidassem para ver a chuva cair,

ele iria, ainda que não chovesse. E o Valdemar fazia a maior média com as alunas.

Mal chegaram e se renderam aos encantos do famoso robô. Ajudaram inclusive a

retirá-lo de campo, pois os times já faziam sua entrada triunfal. E, aí, o Gersão

arregalou os olhos e deixou cair o queixo.

— Não é possível! Não é possível! — repetia com cara de bobo.

E continuaria, não fosse a intervenção das meninas:

— Deixe o Teleco com a gente, professor. O jogo já vai começar.

O professor soltou o objeto, mas não conseguiu se recuperar da surpresa.

— Você viu isso, Valdemar?

— Está se referindo ao Teleco?

— Não é possível um objeto com aquelas dimensões pesar tão pouco!

— Vai ver que é de alumínio!

— Se fosse, pesaria pelo menos o dobro!

Então os papéis se inverteram.

— Não é possível! — contrariou o professor de artes.

— Claro que é! Estou-lhe dizendo!

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— Então deve ser algum material mais leve.

— Que material, Valdemar?

— E eu sei? O professor de física é você!

— Não existe nenhum material com tal leveza na superfície da Terra!

O professor de artes riu com todos os dentes.

— Ah, o que é isso, professor?...

— Você ainda não percebeu, Valdemar?

— Percebi que o jogo já começou e nós não podemos decepcionar as

meninas. Vamos prestigiar a torcida.

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16. PANCADARIA

— Ju, você reparou uma coisa? O Gersão e o Valdemar não param de falar

no Teleco.

— O que é que tem de errado nisso? — perguntou Juliana à irmã. E disse

mais: — O Gersão nunca tinha visto o Teleco e é natural que fique impressionado.

— Não sei, não. Ele olha pro Teleco de um jeito muito esquisito...

— Impressão sua. É melhor prestar atenção no jogo, em vez de ficar

olhando pra trás.

Pouco atrás do grupo de garotas que se agitavam na torcida, o professor de

física gesticulava, tentando convencer o companheiro.

— Poxa, Valdemar... Será possível que você não entende? Nós estamos

diante de uma probabilidade praticamente impossível em vista do atual

conhecimento tecnológico!

— Gersão... Você tem certeza de que não está exagerando um pouquinho?

— Eu queria ver pelo menos uma probabilidade... Mas não vejo! Aí é que

está o drama!

Diante de tanta insistência, o professor de artes cedeu:

— Tudo bem. Eu faço uma proposta... Após o jogo, conversamos com as

meninas e levamos o tal de Teleco para o laboratório do colégio...

— Laboratório do colégio? — estranhou o outro.

— Ora, Gersão... Você conhece lugar melhor pra gente fazer uma ficha

completa daquela criatura? Lá tem balança, aparelhos para teste de resistência,

para medição...

— Ótima ideia! Ótima ideia, Valdemar! — Após o entusiasmo, parou para

pensar e propôs: — Você acha que as meninas vão concordar em levar aquela

coisa para o laboratório?

— Claro que vão concordar. Até o final do jogo, nós inventamos uma boa

história.

— Tudo bem. Vamos esperar.

Diante da concordância, Valdemar foi se juntar às meninas. O professor de

física, pelo contrário, não sentia o menor interesse pelo jogo. Por mais que

parafusasse o pensamento, não encontrava uma explicação lógica.

A disputa entre os times do colégio e da Federal seguia acirrada. As

torcidas inflamavam-se de um lado e de outro, repetindo refrões e cantando com

disposição. Se o jogo continuava empatado, sem abertura de pontos, o mesmo

não sucedia com as garotas, que proporcionavam um espetáculo à parte nas

arquibancadas.

E o entusiasmo era tão intenso, que as torcidas já não se contentavam em

gritar e cantar. Também puseram-se a pular, fazendo a terra tremer. E foi aí que,

num descuido das garotas e principalmente das irmãs, aconteceu o incidente.

Sentindo-se livre, Teleco saiu de mansinho e correu em direção ao centro do

gramado.

— Olha lá! Pega o latinha! — gritou alguém.

— Teleco! Volte, Teleco! — gritou Juliana ao perceber.

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— Teleco! Teleco! — repetiu Mariana, sem nenhum resultado.

E as duas se puseram a rezar porque sabiam que os garotos não

perdoariam a invasão do campo. Ainda mais pelo Teleco. Juliana levantou- se

primeiro. Depois, Mariana. E, quando o professor Valdemar entrou em campo, os

demais acompanharam. Imaginando que os adversários tentavam tumultuar a

partida, a torcida da Federal invadiu pelo lado oposto. Pouco além do meio de

campo, os garotos se engalfinharam. E, na retaguarda, as meninas se puseram a

trocar ofensas e a puxar cabelos.

Valdemar gritava com os longos braços levantados, tentando apaziguar os

ânimos, mas ninguém o ouvia. No momento em que tentava apartar o grupo de

briguentos, levou uma sapatada na testa que lhe arrancou os preciosos óculos.

Não lhe restou senão cair de quatro e escarafunchar o chão à procura dos olhos

postiços. Enquanto procurava, abanava a cabeça. Não seria fácil pôr fim àquela

confusão. Então lembrou-se do colega e chamou:

— Gersão! Professor Gérson!

Onde teria se enfiado o professor? Com os olhos míopes, demorou a

localizar os próprios óculos, no meio de tantas pernas e pés que se chutavam.

Menos mal que uma das lentes sobrevivera ao terror daqueles átilas mirins.

Ajeitou os óculos sobre o enorme nariz vermelho e conseguiu, enfim, localizar o

colega de escola, que corria na direção oposta. Nos braços, o professor de física

carregava o robô, que apitava desesperadamente, tentando escapar do seu raptor.

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17. UM MARCIANO

No dia seguinte, as mães trocavam desculpas. Como era possível que tudo

aquilo tivesse ocorrido numa cidade tão ordeira? Um escândalo! — esbravejavam

os mais velhos. E o alarde só perdia terreno diante das declarações

rocambolescas de Gersão. O pacato professor invadira os estúdios da emissora

local, agarrando-se ao microfone, para lançar o incrível alerta à população:

— Meus cidadãos, minhas concidadãs... Nossos jovens convivem com o

perigo! Um perigo terrível, que se disfarça sob as feições inocentes desse

personagem macabro!

De início, alguns pais julgaram que ele protestava contra a luta corporal

travada durante o jogo. Na sequência, desabaram todos. O professor não se

referia ao ato de selvageria dos jovens, mas a uma hipótese estapafúrdia.

— Pais desavisados deixam nas mãos de seus filhos um brinquedo

perigoso, cujas consequências declinamos de enunciar, a fim de que não se

estabeleça o pânico...

Na pensão de dona Berenice, o professor Valdemar comentava, de ouvido

pregado no aparelho de rádio:

— O Gersão endoidou!

A dona da pensão desentendeu:

— Do que ele está falando, que eu não entendi nada até agora?

— É do robô que a Ju e a Mari ganharam do pai.

— Nossa! Você já viu, Valdemar? Aquela coisa parece gente! Dizem que até

adivinha pensamento! — comentou a mulher; porém, percebendo que fugia do

assunto, retomou: — Mas espera aí... O que é que o Gersão tem contra o

brinquedo das garotas?

— E eu sei? De repente, ele começou a achar que o robô era muito leve...

— Muito leve? E se fosse muito pesado, o que tinha de mais?

— O que eu sei é que, após dominar o robô e levá-lo à força para o

laboratório da escola, ele examinou, mediu, pesou e concluiu que não é possível

um objeto daqueles pesar tão pouco. Portanto ele deve ser feito de algum

material desconhecido aqui na terra.

A mulher sentiu-se ofendida:

— Valdemar, você está me chamando de burra, é?

— Que isso, dona Berenice?

— Como é que o material pode ser desconhecido, se fabricam até

brinquedos com ele?

— Aí é que são elas... O Gersão afirma que aquilo não é um brinquedo!

— O que é, então? Um satélite espião?

— Mais ou menos.

Diante da confirmação, o espanto da mulher transformou-se numa

estrondosa gargalhada.

— Pensando melhor, em vez de robô, aquela coisa podia ser um ET...

— ET? O que é isso, dona Berenice?

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— Valdemar, faça-me o favor... ET é a abreviatura de extra-terrestre! Você

não viu o filme, não? Os ETs são os tripulantes dos discos-voadores.

O professor ficou muito sério diante da explicação. Então aproximou-se e,

baixando o tom da voz, perguntou:

— Dona Berenice... Quer dizer que... que... A senhora acredita que a teoria

do professor Gérson pode estar certa?

A dona da pensão meditou por um instante e, ao contrário da expectativa,

voltou a rir. O professor de artes teve que aguardar pela sua conclusão.

— Bobagem! O Gersão é que anda batendo os pinos.

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18. O PERIGO VEM DO ESPAÇO

Gersão andava longe de ser um professor brilhante, desses que empolgam

os jovens com suas explanações originais. Também não era do tipo que

despertasse suspiros nas alunas. Até pelo contrário. Resumindo, ninguém o levou

a sério. E seu veemente discurso serviu apenas para argumentar em favor do que

muitos suspeitavam.

— Sempre achei que ele tinha um parafuso de menos! — confidenciou a

mãe de Beto, de pé, na porta da casa.

— Ele vai continuar lecionando no colégio? — quis saber dona Clarice, a

mãe de Cacá.

— Que remédio?! Não tem ninguém pra substituir.

A consequência mais drástica de tanto leva-traz foi a pichação no muro de

dona Olga. Em letras hesitantes, mas perfeitamente claras, haviam gravado a

acusação

FORA ESPIÃO

Diante do fato consumado, Juliana rebelou-se:

— Quem será o porco que sujou nossa parede?

— Eu acho que foi um burro! — opinou Mariana. — Porque o Teleco não é

nenhum espião! Ou... Ou será que é?

— Claro que não! — contrariou a irmã, com veemência.

Dona Olga desinteressou-se logo e botou-se a caminho:

— Isso não tem a mínima importância, meninas. Se alguém se aproveita da

noite para acusar, é porque não está seguro das próprias acusações.

— Será que não foram o Beto e o Cacá? — tentou Mariana. Afinal, eles não

suportam o Teleco...

— Nós não sabemos quem foi o autor, minha filha. Por isso não podemos

acusar ninguém.

As três andaram pouco mais de uma quadra e toparam com o grupo de

colegas. Antes que conseguissem cumprimentar, um dos garotos interrogou:

— E o espião, onde está?

— Espião? Do que você está falando?

— Ora, Mariana... Todo mundo tá careca de saber que o Teleco é um

perigoso espião interplanetário!

— Espião interplanetário? — surpreendeu-se Juliana. — Quem... Quem

inventou tamanha idiotice?

— Idiotice? O professor Gérson falou na rádio! Você não ouviu, não?

Cacá aproveitou-se para desforrar do despeito que guardava no peito

magoado.

— Isso nem é novidade... Eu sempre desconfiei daquele espiãozinho de

lata.

— Espiãozinho de lata, é? Pois eu vou lhe mostrar...

Juliana só não bateu no colega porque a mãe segurou-a no momento em

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que ela tomava impulso para o ataque. Mas o que não pode com as mãos libertou

pela boca:

— Sabem de uma coisa?... Vocês são uns ridículos! Uns bobalhões! Uns

chatos!

Conduzidas pela mãe, as duas seguiram, em pé de guerra.

— Eu quero mudar de colégio! Não quero mais amigos nem colegas desse

tipo! — rebelou-se a menor.

— E eu vou falar com o Gersão! Ele vai ter de se explicar direitinho! —

prometeu a irmã.

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19. NA PRAIA

Pena que o pai tivesse de trabalhar e só dispusesse dos fins-de-semana

para viajar e encontrar a família. Por outro lado, a reserva do apartamento para as

férias fora confirmada. As férias vinham mesmo a calhar. Antes da partida,

porém, surgiria ainda um novo empecilho.

Dona Olga decidira viajar de ônibus porque o carro apresentava problema

de partida e o marido o levara ao mecânico. E o impasse surgiu no terminal

rodoviário, no momento do embarque. O bilheteiro examinou Teleco com

indisfarçável antipatia e falou com maus modos:

— A senhora pretende levar essa coisa no ônibus?

— Nós... Nós pretendemos — confirmou a mulher, surpresa.

— Tem de pagar taxa extra! Bagagem especial.

— Bagagem? — estranhou Juliana.

— Essa coisa ocupa muito espaço! Também precisa fazer um pacote

bem-feito, porque a companhia não se responsabiliza por estragos.

— Ele não vai no bagageiro! — insurgiu-se Mariana.

A mãe pediu calma e tentou explicar:

— Nós pretendíamos levá-lo dentro do carro...

— Não dá, madame. A empresa não permite.

O funcionário observava a fila e batia com as mãos impacientes sobre o

tampo do guichê. Dona Olga ainda tentou:

— O senhor não compreende... Teleco não é uma coisa que se possa

empacotar e atirar no bagageiro do ônibus, junto com malas e volumes. Ele pode

ir dentro conosco.

— Não pode! A empresa não permite! Agora a madame vai me dar licença,

que a fila está encompridando e eu preciso fazer o meu trabalho.

— E se pagar a passagem dele? — Consultou Juliana.

— Não pode! Quer dizer... Preciso consultar o fiscal...

— Onde está o fiscal?

— Ah, isso eu não sei, não! Deve estar por aí.

A mãe cansou-se de tanta má vontade e desistiu:

— O senhor não precisa consultar ninguém! Vamos, meninas.

— Não vai dizer que mixou a viagem? — indagou Mariana.

— Mixou nada. Eu vou pedir ao seu Candinho que apresse o conserto do

carro e, assim, nós viajaremos até de pernas para o alto, se quisermos.

As garotas aplaudiram a decisão e Teleco revirou os olhos de satisfação.

Ninguém duvidava que teriam uma temporada de verão inesquecível. E assim foi.

O sol ajudou com muito calor e a família contribuiu com alegria. O próprio

Teleco mostrava-se mais sociável. Apesar de se manter junto das irmãs, já não se

preocupava com a eventual aproximação de estranhos, nem ameaçava com seus

apitos estridentes. Aliás, quem é estranho numa praia em férias?

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Os novos amigos se divertiam a valer com as traquinagens do Teleco. E, tal

como haviam desconfiado por ocasião dos primeiros banhos, a água não lhe

causava nenhum prejuízo. Ele pegava ondas, mergulhava e flutuava com um

facilidade incrível. Naturalmente, a leveza do corpo ajudava.

— Será que não vai enferrujar? — preocupou-se Mariana.

— Desconfio que não. Aliás, nunca o vi tão à vontade — opinou a mãe,

espantando as preocupações da filha.

E Juliana recordou-se de um detalhe:

— Vocês não se lembram como ele fica grudado nos filmes de mar?

— E verdade... Vai ver que a lata dele é diferente — concordou a mãe.

— Em todo caso, não custa dar uma boa enxugada nele — aconselhou

Mariana.

Sob o guarda-sol, as três observavam as estripulias do robô, circulando à

vontade no meio de jovens, adultos e crianças. Vez em quando, voltava-se,

procurando o guarda-sol colorido das garotas. Ficava pouco tempo fora da água e

logo mergulhava, para alegria dos veranistas.

— Nunca vi ninguém se sentir tão bem na água — comentou Juliana.

— Vai ver que no planeta dele só tem água — retrucou Mariana.

— Que planeta, Mariana? — exaltou-se a outra. — Será possível que até você

entrou na conversa do Gersão?!

A irmã não se perturbou:

— É claro que não entrei na conversa do Gersão. Ele nem tinha o direito de

ir à rádio e fazer aquele tipo de acusação... chamar de espião... Mas está na cara

que o Teleco não é um brinquedo!

— Teleco é um brinquedo, sim! Um dia vai acabar a sua bateria e ele não

será capaz nem de girar os olhos!

— Ora, Ju... Você está sendo muito ingênua para a sua idade. Não existem

brinquedos como o Teleco. Será que você não percebe?

— Quem lhe disse essa besteira?

— Ninguém. Eu sei porque sinto que é assim.

Sob o guarda-sol, em silêncio, a mãe ouvia a discussão das filhas e

observava a estranha criatura, indo e vindo, incansável, saltando, mergulhando,

boiando, nadando, relacionando-se com os banhistas como se fosse gente. Às

vezes, imaginava que tudo não passava de um sonho. Outras, afligia-se,

pensando que o sonho podia acabar. E acabar mal.

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20. LAVA-PRATOS

Quando o pai foi buscá-las na praia, no final de semana, brincou, ao topar

com a criatura circulando pelo apartamento:

— Essa geringonça ainda está funcionando?

— Teleco não é uma geringonça! — retrucou Mariana, em pé de guerra.

O pai desarmou-se num segundo:

— Estava só brincando... Até já reservei uma caminha para ele lá no sítio.

— Verdade?

— Ele não vai dar trabalho — apoiou Juliana.

Enquanto abraçava o pai, Mariana perguntou, divertida:

— Adivinhe quem é que água as plantas do jardim?

— Deixa ver... O Teleco?

— Acertou!

Após ouvir o relato em detalhes, ele sugeriu:

— Por que a gente não usa o Teleco pra lavar pratos?

Todos riram às gargalhadas. Inclusive a mulher.

— Por que você não tenta? — desafiou ela, com ar maroto.

— Qual é o problema? O que eu disse de tão engraçado? Se ele água as

plantas, por que não pode lavar pratos?

Juliana explicou o que o pai já adivinhava:

— Esse é o tipo de trabalho em que ele não se dá bem. Suas mãos não

conseguem segurar os pratos ensaboados...

— Eu posso imaginar...

— Ele quebrou metade dos nossos pratos. Mamãe proibiu-o de mexer na pia

— completou Mariana.

Todos riram e Teleco correspondeu girando os olhos.

— Bem... Diante disso, continuaremos lavando nossos pratos. Fazer o

quê?...

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21. LAR DOCE LAR

A família retornou do litoral no fim da tarde. E, tão logo anoiteceu, bateram

na porta. O pai foi atender, era Beto.

— Oi, seu Otávio...

— Oi, você é o Cacá... Certo? — perguntou ele, brincalhão.

O garoto riu sem vontade e retrucou:

— O senhor sabe muito bem que eu sou o Beto!...

— Ah, tem razão... O Cacá é mais alto, mais magro...

— Não, seu Otávio... Ele é mais baixo e mais gordinho.

— Muito bem. Finalmente, desfiz as confusões da minha cabeça. Entre...

— Com licença...

Quando o garoto entrou, o dono da casa perguntou:

— E então? Está aproveitando bem as férias?

— Que nada!

— É por isso que você está meio desanimado?

Beto não respondeu, seu Otávio insistiu:

— Você está meio jururu, não está?

— Mais ou menos.

— Mais mais ou mais menos?

— É que não vai dar pra viajar. Meu pai precisa procurar emprego e a minha

mãe não conseguiu férias no trabalho.

— Puxa, que chato!

Já na sala, Beto dirigiu-se às garotas:

— E o Teleco... Ele gostou da praia?

— Ele adorou! — retrucou Mariana.

— Você precisava ver — acrescentou a outra.

Enquanto os jovens conversavam na sala, o pai chamou a mulher para a

cozinha. E se pôs a falar cochichando para que eles não ouvissem. Pela porta

aberta, as filhas viam apenas os gestos. Ao final, o pai tornou à sala, enquanto a

mãe chamava pelas filhas:

— Juliana... Mariana... Venham aqui um instante.

Elas se desculparam com o amigo e seguiram para a cozinha, enquanto o

pai puxava assunto.

— E o time de futebol do colégio, como vai indo?

— Meio parado. O senhor sabe... Época de férias, ninguém quer saber de

futebol, nem de ficar na cidade...

Foi um minuto, se tanto, e as meninas retornaram, irradiando alegria por

todos os poros. Juliana tomou a iniciativa de convidar:

— Beto... Você quer ir pro sítio com a gente?

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O garoto ficou sem reação. Em seguida, interrogou com a voz rouca,

carregada de emoção:

— O convite é pra valer?

— É pra valer, sim! — confirmou Mariana.

— Se os seus pais concordarem... — acrescentou dona Olga.

— Posso ir falar com eles agora?

O pai voltou-se para as filhas e comandou:

— O que estão esperando? Vão lá ajudar o Beto!

Mais não foi necessário; saíram os três aos saltos. Teleco tentou

acompanhá-los, mas não conseguiu. Na entrada da casa vizinha, Beto parou um

instante e propôs:

— Eu desconfio que não vai haver problema... Creio que meus pais

permitirão que eu viaje...

— Então o que estamos esperando?

— Eu só queria uma coisa de vocês... Se for preciso...

— O que você quer? — indagou Mariana.

— Se eles perguntarem se foi o seu Otávio e a dona Olga que convidaram,

vocês confirmam...

— Claro! Foram eles que tiveram a ideia.

— Ah, e digam que eles insistiram pra eu ir... Está bem?

— Combinado! — os três levantaram as mãos e bateram palmas contra

palmas.

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22. BURRO MUITO BURRO

Ninguém desconhecia o carinho que seu Otávio devotava ao sítio. Durante

anos sonhara com aquele cantinho de mato e agora sentia-se realizado. Não o

trocaria por nada. De um lado e de outro da estradinha, os morros verdinhos

acotovelavam-se. E num dos vãos da serra abria-se a porteira, encimada por um

arco florido de primaveras. A casinha era baixa e espaçosa, além de arejada.

Dentro, sentia-se um frescor repousante. E, na cozinha, num fogão à lenha,

Doraci, a mulher do caseiro, preparava um almoço cheiroso.

No início, Teleco estranhou os ares. Depois, ambientou-se à nova realidade.

Quem estranhou mesmo foi Doraci, que manejava as panelas sem desviar a vista

daquela coisa esquisita. Só se mostrou aliviada depois que o marido chegou,

tangendo Florisa, a vaquinha pintada que garantia leite e queijo.

Após o almoço, confortavelmente instalados nas redes da varanda, o

caseiro criou coragem e considerou:

— Eu já tinha ouvido falar desse tipo de brinquedo... Mas nunca imaginei

que fosse tão perfeito. Parece gente!

Os jovens divertiam-se com a admiração do homem, enquanto os adultos

faziam de conta que o robô era a coisa mais corriqueira do mundo. E Teleco

girava os olhos, contribuindo para a alegria geral.

— Que coisa, seu Otávio! Se me contassem, eu não acreditava. Deve ter

custado muito caro...

— Até que não. Pra falar a verdade, saiu de graça. Ele apareceu lá no quintal

de casa.

— Seu Otávio tá brincando, não tá não, dona Olga?

— Está, Doraci. Claro que está.

Foram quase duas semanas de alegria contagiante, embora Teleco tivesse

de enfrentar duros testes até se ambientar naqueles morros que lhe dificultavam

a locomoção. O caseiro inclusive chamou a atenção:

— É melhor deixar ele em casa... Pode estragar o brinquedo...

No viveiro de aves também não se sentia muito à vontade. Logo aprendera

a debulhar o milho da espiga, porém, como o fizesse muito devagar, as galinhas

voavam sobre seus braços, provocando-lhe grandes sustos. Afora isso, ele

apreciava a paisagem. Maravilhava-se com o canto dos pássaros, examinava

demoradamente a lua cheia e gastava horas observando a represa. No caminho de

volta, colhia florezinhas, que distribuía entre Juliana e Mariana.

Então, na tarde anterior à volta, aconteceu. O desconhecido atravessou a

porteira, puxando o animal pela rédea, até o poste em frente à casa, onde o

amarrou. Pelos comprimentos ficaram sabendo que se tratava de um irmão de

Doraci. Percebendo o assanhamento de Beto, o homem preveniu:

— Não chegue perto, não... Esse burro é arisco pra danar!

O garoto engoliu a vontade e tornou à conversa com as irmãs, que se

embalavam nas redes.

— Você queria dar uma voltinha? — perguntou Juliana, percebendo a

decepção do amigo.

— Bem que eu queria... Mas se o irmão da Doraci disse que ele é arisco...

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— Se fosse mansinho, até eu topava! — interveio Mariana. — Aliás, não sei

por que o papai ainda não comprou um cavalo bom pra gente montar.

Juliana não se entusiasmou com a ideia.

— Eu não faço questão nenhuma de montar. Só se fosse pra puxar uma

charrete.

— Por falar no seu pai, onde é que ele foi com a dona Olga, hein?

— Poxa, Beto, você faz cada pergunta!... — recriminou a maior.

— Eles foram namorar! Será que você não percebe, não? — completou a

outra.

Mariana falou e quando levantou a cabeça da rede viu Teleco muito

próximo do animal, engatinhando de quatro imitando a montaria. O burro bravo o

estranhava, acompanhando com o rabo do olho. Ela pensou em gritar, mas não

deu tempo. Mal abriu a boca, a violência do coice atirou o robô querido a alguns

metros de distância.

— Teleco! — gritou Mariana.

— Meu Deus! Não! — pediu a irmã, de mãos postas.

Os três saltaram ao mesmo tempo das redes e se deram conta de que a

apreensão se justificava. O coice violento acertara em cheio na altura do

abdômen, fazendo com que o corpo se dobrasse para a frente. Os antigos olhos

gaiatos se mostravam agora frios, parados, mortos. Em todo o conjunto não se

vislumbrava qualquer sinal de vida.

Doraci e o irmão correram apavorados para fora.

— O que aconteceu, menino? — perguntou o homem, preocupado.

Percebendo o sucedido, a irmã agradeceu aos céus:

— Graças a Deus! Foi só o brinquedo.

— Que susto danado! — suspirou o dono do animal.

Os jovens encaravam-nos, indignados. Embora tivessem razão, preferiam

não ter ouvido os comentários que transformavam o robô amigo em pouco mais

que nada. O irmão, atônito, ainda se justificava:

— Eu avisei que o burro era arisco... Eu avisei...

Distantes daquelas palavras vazias, Beto e Juliana remexiam o corpo

metálico, na esperança de algum sinal. Sacudiam com força e encostavam os

ouvidos no peito de Teleco, como se ele tivesse coração. Depois de tanto esforço

inútil, desistiram. Sentaram-se no chão e ficaram ostentando sua decepção.

Mariana segurava a mão do robô amassado e chorava sem nenhum pudor.

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23. TRISTEZA

Uma semana após o sucedido, o sentimento de perda ainda dominava a

casa das meninas. Juliana mostrava-se um pouco mais conformada e entendia

agora o que a mãe quisera dizer, naquela noite, meses atrás, sobre a importância

de se contar com amigos. Principalmente, nas horas difíceis. Mariana continuava

abatida. Nem era para menos. A própria mãe não ficara chocada diante do corpo

inanimado? Justo aquele corpo que irradiara tanta alegria.

A dedicação de Beto se tornara exemplar naqueles dias de tristeza. Colegas,

amigos e conhecidos haviam mostrado solidariedade, o tempo todo. Ele, porém,

fizera questão de emprestar sua presença, seu ombro e seus braços, para tentar

amenizar tanta dor. Não houve fórmula que ele não tentasse para reconfortá-las.

E Cacá se sentia culpado por ter chamado o robô de espião. Não sabia como se

desculpar. Desajeitado como ele só, foi quem acabou chegando a uma possível

solução.

— Olha, Mari... Se eu fosse a sua mãe, levava o Teleco no seu Candinho, pra

fazer uma funilaria...

— Funilaria? — espantou-se Beto. — Você ficou louco?

Entretanto, ao contrário de toda expectativa, a garota aplaudiu a ideia:

— Como é que não pensamos nisso?

— O que o seu Candinho poderia fazer pelo Teleco? — perguntou a irmã.

— Ora, Ju... Se ele desamassa carros amassados e recupera carros

trombados, qual é a dificuldade em devolver ao Teleco a sua forma original?

Dona Olga conversou com o mecânico sobre o estranho serviço e o amigo

da família ficou com o Teleco na oficina, prometendo fazer todo o possível.

— Na primeira folga, dou um jeito nele.

Vieram então dias de muita ansiedade. E também de esperanças renovadas

para as meninas e seus amigos.

— A senhora acha que ele ficará bom?

— Estou torcendo, minha filha... Mas é bom nos prepararmos também para

possíveis decepções...

— Não seria melhor a gente ir até a oficina?

— Não, Mari. O melhor que fazemos é deixar o seu Candinho trabalhar em

paz.

— Ele é a nossa última esperança — interveio Juliana. — Se ele não

resolver...

— Só nos restará aceitar — sentenciou a mãe.

Mariana não queria se convencer:

— Ele vai conseguir! Tenho certeza!

A mãe apertou-a contra o peito, não conseguiu dizer nada. Juliana, apesar

daquela dor incômoda no peito, tentava amenizar a ansiedade da irmã:

— A gente sabia que um dia a pilha acabaria. E nós não sabemos nem que

tipo de pilha ou de bateria ele usa...

Mas Mariana reagiu contrariada:

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— Teleco não é um brinquedo! Quantas vezes preciso dizer isso?

— Claro que é um brinquedo, Mari... — tentou a mãe.

— Não é! Teleco não é um objeto qualquer! Nunca foi! E a senhora sabe

muito bem disso!

Desabafou e subiu a escada correndo, em direção à cama.

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24. DESOLAÇÃO

Dona Olga sempre alimentara dúvidas sobre a verdadeira natureza do

objeto-criatura. Muitas vezes, confundia-se, sem saber se estava diante de um

simples brinquedo ou de algum sofisticado artefato tecnológico. E o marido,

embora fingisse indiferença com a questão, não raro era surpreendido pelas

filhas examinando o personagem com uma atenção incomum.

Por fim, acabou-se a agonia da espera. Numa segunda-feira, no final da

tarde, seu Candinho estacionou a velha camioneta na frente da casa e

descarregou a encomenda.

— Sinto muito, meninas. Não deu pra fazer muita coisa, não.

A poder de muito esforço, o mecânico reduzira um tanto o ângulo da

dobra, de maneira que Teleco conseguia se manter de pé. Apesar de ligeiramente

curvado para a frente, como se ainda sentisse a violência do golpe.

Decepcionado pelo mutismo das irmãs, seu Candinho tentava justificar o

fracasso:

— Não tem jeito, dona Olga. Tentei de tudo.

— Nós temos certeza de que o senhor fez tudo que estava ao seu alcance,

seu Candinho.

O mecânico aproximou-se do objeto e pôs-se a explicar, apontando ora

para um lado, ora para outro.

— Pra esticar a lata e deixar certinho, precisava abrir a carcaça e bater por

dentro...

— E não deu para abrir?

O homem pôs as mãos na cabeça e levantou os olhos.

— Por Deus, dona Olga. Tentei de tudo e não deu. Está vendo esse

chamuscado no pé dele?

As três examinaram com curiosidade incontida.

— Usei maçarico e chama capaz de derreter a lata de um automóvel! Veja a

senhora mesma... Não fez uma bolha, um único arranhão, nada!

— Eu só não entendo como é que o burro conseguiu desmantelá-lo desse

jeito...

— Olha, eu não sei. Tenho mais de vinte anos de oficina e nunca vi nada

igual.

A mãe silenciou. Já que o caso estava perdido, preferia que o homem se

fosse embora, que as poupasse de explicações. Ele, porém, apontava e

prosseguia, como se se sentisse ferido no seu orgulho por não realizar o serviço a

contento.

— O Valadão, que trabalha comigo, disse que era só acertar na emenda...

— Nem na emenda deu certo? — interrogou Juliana.

— Emenda? Me mostrem onde é que tem emenda!

Ninguém jamais vira o homem tão excitado. Ele se calava um segundo,

passava as mãos no macacão sujo de graxa, encarava o objeto inerte e repetia o já

dito:

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— Eu não entendo! Nunca vi nada igual!

A mulher mexia-se sobre os pés, inquieta, com Mariana soluçando entre

seus braços. E pedia, no íntimo, que o mecânico as poupasse dos detalhes e se

fosse.

— Está bem, seu Candinho... Sexta-feira, passo pra acertar com o senhor.

— A senhora não deve nada! — falou ele, subindo na cabine da camioneta.

— Eu não fiz o serviço!

— Então, muito obrigada... Agradeço muito o esforço...

Antes de se ir, ele ainda falou:

— Peça ao seu Otávio pra levar na loja onde ele comprou. Pode ser que

tenha garantia, assistência técnica...

— Obrigada, seu Candinho. Eu vou falar.

O homem engatou a primeira e deu a partida. E, antes que mãe e filhas

conseguissem fechar a porta, chegou Cacá.

— Então não deu mesmo.

— Não deu — confirmou Juliana.

— A gente já sabia... A turma passava todo dia na oficina pra ver como ia o

conserto...

— Seu Candinho tentou de tudo. Não tem como abrir.

— Eu estive pensando... Será que ele experimentou abridor de latas?

Quando viu os olhos das irmãs fixados no seu rosto fofo, Cacá percebeu a

besteira que havia dito.

— Puxa... Vocês me desculpem... É que eu estou meio nervoso com tudo

isso... eu...

Ele esfregava uma mão na outra, completamente desajeitado. Juliana quase

riu com a imagem. Quando ameaçavam voltar ao marasmo de antes, dona Olga

pediu atenção:

— Bem, minhas filhas... Como vocês viram, não há mais o que fazer. Foi

uma alegria, enquanto durou...

— A senhora tem razão — concordou Cacá. — O negócio agora é bola pra

frente, não é, dona Olga?

— Exatamente, Cacá. Bola pra frente, que a vida continua.

E já saindo em direção à cozinha:

— Quem me ajuda com a louça do almoço?

Encabulado, Cacá ofereceu-se:

— Eu posso enxugar... Se a senhora não tiver nada contra.

— Absolutamente nada! Pode vir!

— Vamos, Ju? Vamos, Mari? — convidou o amigo.

Quando o pai chegou, viu o Teleco abandonado no canto da sala e imaginou

que o ânimo do pessoal devia estar em baixa. Botou, então, a cara na porta da

cozinha e cumprimentou:

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— Oi, gente... Boa noite para todos.

— Oi, professor — respondeu Cacá.

— Boa noite. Como foi o seu dia de serviço? — perguntou a esposa.

Sentindo o clima pesado entre as filhas, o pai tratou de disfarçar:

— Onde estão aquelas meninas simpáticas que sempre me recebem com

um beijo? Você sabe por onde andam, Olga?

Juliana enxugou as mãos no avental e partiu para o abraço. A irmã seguiu-a

de cabeça baixa e, envolta pelos braços do pai, perguntou:

— Você viu o Teleco?

— Vi.

— O seu Candinho disse que não tem jeito.

— Bom... se o seu Candinho disse, é porque não tem mesmo — devolveu o

pai.

Como a garota estivesse prestes a romper-se em lágrimas, o pai reiterou:

— Nós conversamos sobre isso várias vezes... Vocês sabiam que um dia a

pilha, a bateria ou sei lá o que ele usa ia acabar...

— Não foi por isso que ele parou! Foi por causa daquele burro! — desabafou

Mariana.

— É verdade que o burro antecipou a hora... Mas a hora ia chegar de uma

forma ou de outra... Não é verdade?

Mariana agora soluçava, enquanto Juliana escondia o rosto no seu peito.

Ninguém dizia nada, ele mudou de tom:

— De qualquer forma, nós fizemos uma troca vantajosa. Vocês não

concordam comigo?

— Troca?

— Que troca? Do que o senhor está falando?

O pai apontou para Cacá, de avental, enxugando pratos, e brincou:

— Olhem lá... O Cacá anda, fala, ri, é amigo de vocês e tem uma grande

vantagem sobre o Teleco...

— O Cacá? — perguntou Mariana, com cara de descrédito.

— Que vantagem? — quis saber Juliana.

— Ele é capaz de lavar louça sem quebrar os pratos.

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25. MÊS DE ANIVERSÁRIO

Demorou um pouco, mas a tristeza pelo destino de Teleco arrefeceu um

pouco com o passar das semanas. Quando em vez, permitiam-se subir ao quarto

de jogos para vê-lo e se divertiam à sua volta, como nos velhos tempos. De

repente, não passava pela cabeça de ninguém que aquele objeto pudesse ter sido

qualquer coisa que não um brinquedo.

Afora o amassado da barriga, ele permanecia tão lustroso como no dia em

que surgira no quintal. Incrível que depois de tantos meses e tanta água não

mostrasse o menor sinal de ferrugem. Todo o trabalho consistia em tirar o pó.

— Oi, latinha... — brincavam os garotos, agora com afeição verdadeira, sem

nenhuma ironia.

As irmãs aceitavam com naturalidade e aplaudiam. Então, uma tarde, os

jovens se propuseram a gravar seus nomes no corpo metálico.

Seria uma forma de homenagem. Com um pedaço de batom, Mariana

desenhou um coração bem caprichado no lado esquerdo do peito, atravessou-o

com uma flecha e sobre ele escreveu: DA MARIANA COM AMOR. Juliana desenhou

um segundo coração e escreveu dentro, com letras de forma: SAUDADE. JULIANA.

Beto registrou UM GRANDE ABRAÇO. E Cacá fez uma frase: VOCÊ É MUITO LEGAL!

O corpo ficou praticamente recoberto de mensagens.

— Olhem só pra ele — apontou Juliana. — Ele não parece mais feliz hoje?

— É claro que ele está feliz. Ele está no meio da sua turma! — aprovou

Mariana.

Para completar, dona Olga serviu sucos gelados e biscoitos fresquinhos,

recém-saídos do forno.

— Nossa! O que vocês fizeram com o Teleco?

— Ah, nós resolvemos gravar algumas mensagens que é pra ele saber que

não o esquecemos.

— Será que ele não vai enjoar com o cheiro do batom?

— Não vai, não, dona Olga... Ele gostou!

— Ora, Cacá... Como você sabe que ele gostou, hein?

— Porque ele não reclamou!

A mulher olhou enternecida para o objeto mal desamassado e, de repente,

colocou o dedo indicador na fronte, como se tentasse recordar-se de algum

esquecido. E, em seguida, saiu com a novidade:

— Sabem que sem querer vocês acertaram?... De certa forma, o Teleco

merecia mesmo uma festa...

— Claro que ele merece! O Teleco merece muito mais que uma festinha! —

aprovou Mariana, aplaudida pelos amigos.

— Não é isso... — retrucou a mãe. — Eu estou tentando dizer que existe

uma razão especial...

— Razão especial? — perguntou Juliana.

— Que razão? — quis saber Beto.

— Ora, ora... Que memória vocês têm!...

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De repente, Juliana deu um salto e falou:

— Eu sei! Eu sei!

E correu a beijar o robô.

— Foi neste mês que ele apareceu, não foi?

— Exatamente! — concordou a mãe. — Não me lembro ao certo do dia, mas

foi na primeira semana do mês.

E aí começou a festa de verdade. Uma alegria como há muito não viam, não

sentiam.

— Viva o aniversariante!

— Viva o Telecooou!

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26. SONHO OU REALIDADE?

No meio da noite, Juliana despertou com a sensação de que alguém a

chamava.

— Quem... Quem me chamou? — perguntou, sem se levantar.

O quarto encontrava-se mergulhado na escuridão e Pitoco latia lá fora. A

garota aguardou inutilmente pela resposta. Talvez Mariana a chamasse

dormindo. Aliás, não seria a primeira vez que tal acontecia.

— Mari? Você está acordada?

A irmã não respondeu. Quem sabe, ela mesma sonhasse. Puxou a coberta

até a altura do nariz e abandonou-se à preguiça. De olhos semicerrados, o sono

rondando muito próximo, ela percebeu a claridade invadindo o quarto. Piscou e

pensou: aquilo acontecia de verdade ou era apenas um sonho?

A lâmpada do abajur mantinha-se apagada. Se já amanhecia, por que os

galos e os passarinhos não cantavam? Voltou-se para o lado da cortina e

confirmou a escuridão da noite. E só então percebeu a claridade azulada entrando

pela porta aberta.

Estranho! Será que a mãe entrara no quarto e, na saída, se esquecera de

fechar? Lembrava-se nitidamente de tê-la fechado antes de se deitar. De repente,

descobriu a fonte de onde brotava tanta luz. Seu coração disparou e os olhos

transbordaram de alegria.

— Teleco... Como é que pode? Você tá novinho!

Imóvel junto ao batente da porta, o robô observou-a por um instante. Então

seguiu a passos lentos na direção da cama. O amassado havia desaparecido sem

deixar vestígio. De fato Teleco estava novinho em folha.

— Teleco, quem fez o conserto? O seu Candinho disse que não dava... que

não tinha jeito...

Perguntou e já se sentou na cama. Queria estar certa de que não sonhava. A

luz irradiava-se de todo o corpo, mais intensa junto à massa metálica,

difundindo-se depois num azul transparente e calmo.

— Oi, Ju... Gostei muito de conhecer você, viu? Muito, muito mesmo!

— Teleco! Você fala!

Em vez de responder, ele curvou-se e beijou o rosto da garota. Antes que

ela pudesse recobrar-se, ele virou-lhe as costas e encaminhou-se para a cama da

irmã.

Mariana despertou com a sensação de que alguém a chamava. Pensou em

levantar-se e acender a lâmpada, mas desistiu. O único sinal de vida eram os

latidos do Pitoco, no quintal. Por que será que latia tanto? Provavelmente

surpreendera algum gato mexendo no seu prato de comida.

As pálpebras já pesavam, prontas para retomar o sono interrompido,

quando notou a claridade projetada na parede. Estranhou, teriam esquecido a luz

do abajur ligada? Virou a cabeça para conferir e sentiu o coração explodir de

alegria.

— Teleco! Que lindo que você está!

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Então ouviu a voz da irmã:

— Você viu, Mari?... O Teleco voltou a ser como era antes. Enquanto ele se

aproximava a passos lentos, Mariana sentou-se na cama. Ela quis falar com a irmã,

mas não conseguiu afastar os olhos maravilhados daquela criatura

extraordinariamente resplandecente.

— Telequinho querido... Você... Você tá consertado! Como é possível?

Como aconteceu isso?

— E agora ele fala! — tornou a irmã. — Você viu, Mari? Ele fala! O robô

chegou até a borda da cama, segurou as mãos da garota e levou-as à altura do

coração.

— Nunca me esquecerei de você, Mari... Nunca, nunca, nunca, viu?

— Teleco! Você falou! Você viu, Ju?

Enquanto Mariana dava vazão à sua alegria, ele aproximou o rosto de lata e

beijou-a na face. Antes que ela pudesse recobrar-se, voltou-se em direção à porta.

— Teleco... Aonde você vai? — gritou Juliana.

Então ele olhou para as irmãs e girou os olhos dentro das órbitas, como

fazia sempre que se sentia feliz. Em seguida, o quarto escureceu.

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27. ADEUS

— Vamos, meninas! Hora de ir pra escola!

As duas puxaram as cobertas, descobrindo o rosto ao mesmo tempo, e

ficaram se interrogando sem palavras. Já trocada para o trabalho, a mãe circulava

de um lado para outro, ajeitando as roupas nos cabides e guardando-as no

armário.

— Oi, mamãe... — cumprimentou Mariana, decepcionada.

— Bom dia, mamãe — lembrou-se de cumprimentar Juliana.

Depois de vistoriar o armário das filhas, a mulher parou no centro do

quarto, com as mãos na cintura, e seus olhos ficaram saltando de uma para outra.

— Nossa, que desânimo! O que vocês têm? Não dormiram bem?

— Estava pensando no Teleco — falou Mariana, com voz fraquinha. — Ele

veio visitar a gente de noite.

— Mari! Você... Você se lembra? — indagou a irmã, surpresa. — Você se

lembra que nós falamos com ele?

— Ora, Ju... Claro que me lembro.

— Então... Então é verdade? Ele veio mesmo falar com a gente?

— Veio sim. E estava muito bonito, depois do conserto que lhe fizeram.

A mãe ouvia o diálogo entre as filhas, mas não conseguia entender. E,

assim, decidiu botar tudo em pratos limpos.

— Como é que o Teleco podia vir até o quarto de vocês se ele parou de

funcionar?

— A senhora não ouviu, mamãe? Ele foi consertado! Está novinho e até fala,

não é, Ju?

Juliana, que permanecera estática por um bom tempo, despertou. E, num

tom de incredulidade, falou:

— Então o encontro aconteceu de verdade... Não consigo acreditar. Ainda

acho que foi somente um sonho.

— Que sonho, Ju? Deixe de besteira. Ele veio até o nosso quarto, bonito e

reluzente, como no dia em que surgiu no quintal. Ele falou comigo, com você e

nos beijou.

— Depois saiu pela porta... — completou Juliana.

— Isso mesmo — concordou a outra.

Evitando dar muita importância ao que ouvia, a mãe continuou a

arrumação no armário. Quando o intervalo se apresentou, ela falou:

— Se vocês têm dúvidas, é só olhar no quarto de jogos... Se o Teleco estiver

amassado e sem vida, tudo não passou de um sonho.

Mais não foi preciso. As garotas saíram em disparada. Juliana na frente,

Mariana logo atrás. No quarto de brinquedos, examinaram demoradamente o

espaço vazio entre os almofadões. Só então a mãe se deu conta.

— Cadê o Teleco? O que vocês fizeram com ele?

— Ele sumiu — constatou Mariana.

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— A senhora não se encontrou com ele lá embaixo? — interrogou Juliana,

apreensiva.

— Lá embaixo ele não está! Se isso é uma brincadeira...

Antes que a mãe terminasse, Juliana desceu a escada correndo. A irmã,

pelo contrário, derrubou o corpo sobre os almofadões, enquanto os olhos

marejavam.

— Não fique triste, minha filha. O Teleco deve estar por aí... enfiado em

algum canto...

Preocupada, a mãe aproximou-se e aconchegou o rosto da filha junto ao

seu peito. Após alguns instantes, ouviram Juliana subindo a escada aos saltos.

— O Teleco desapareceu! Não está em lugar nenhum!

Dona Olga não queria acreditar:

— Vocês têm certeza de que não o esconderam?

— E o papai? — perguntou Juliana, com os olhos brilhando. — Será que ele

não levou...

— Não. Eu o acompanhei até a porta, quando ele saiu há quase meia hora.

Ele não levou o Teleco nem nada parecido. E vocês? Ainda ontem estavam

brincando com ele...

Juliana balançou a cabeça e declarou:

— Isso foi à tarde. Depois do jantar, não vi mais o Teleco. Só no sonho.

— Não foi sonho! — protestou a irmã. — Nós falamos com ele! Nós duas!

Como a mãe a examinasse sem muita convicção, ela interrogou:

— Como se explica que eu tenha sonhado o mesmo sonho que a Ju? Dois

sonhos iguaizinhos?

— Isso é verdade, Juliana? — perguntou a mãe, pedindo confirmação.

— É verdade, mamãe. Nós vimos o Teleco consertado. Ele falava e revirava

os olhos, como fazia antes do coice. E nos beijou. Primeiro eu, depois a Mari.

A mãe ficou sem saber como reagir, Mariana falou:

— Eu já sei o que aconteceu...

— O que aconteceu? Fale, Mariana.

— Foi uma despedida. Ele veio nos ver e depois foi embora.

— Foi embora pra onde? — questionou a mãe.

— Ele não falou.

Juliana se aproximou, com os olhos vermelhos, prestes a explodirem, e

opinou:

— Acho que a Mari está certa... Ele... Ele foi embora...

As três se abraçaram chorando. De repente, tinham certeza de que o

haviam perdido. Talvez, para sempre. E, por mais que a mãe procurasse uma

palavra para suavizar aquela perda, não encontrou.

FIM