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O BRANCO QUE NINGUÉM QUER SER: REFLEXÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE RACIAL BRANCA NO
CONTEXTO BRASILEIRO Daniara Thomaz1 Palavras-Chave:Branquitude, Identidade Racial, Racismo.
Resumo: O presente artigo traz como proposta uma análise acerca do conceito de branquitude e seus
efeitos na sociedade brasileira, tendo como referência a construção simbólica e material da identidade
racial dos sujeitos brancos. Tomando o conceito de branquitude enquanto um conglomerado de
fenômenos históricos e sociais que atribuem aos indivíduos brancos a passabilidade no que diz respeito
à cor da pele, pretendemos trazer à tona a discussão sobre os efeitos da construção da identidade racial
branca dentro das relações raciais em solo brasileiro.
Levando em consideração as premissas do teórico Oracy Nogueira que compreendeu o racismo
brasileiro como um tipo de preconceito baseado na cor da pele, ou seja, um preconceito de marca;
buscamos identificar quais os efeitos de tal fenômeno racial e racialista no âmbito de constituição da
identidade sociorracial dos sujeitos brancos.
INTRODUÇÃO
Analisando o repertório nacional no que tange os significados atribuídos ao
conceito de branquitude, verificamos um vasto campo de atribuições ao termo que se
estendem desde a tradução literal de whiteness (WARE, 2004), apropriada dos estudos
raciais desenvolvidos nos Estados Unidos a partir da década de 90, até as derivações
do termo encontradas nos estudos da Psicologia Social que podem ser exemplificados
pelos conceitos de branquidade e brancura. Por conta da ínfima produção cientifica
acerca da temática, o significado de branquitude não se consolidou de forma exata
para que pudéssemos tratá-lo com uniformidade dentro das áreas das ciências
humanas. Contudo, cabe ressaltar que neste texto o termo branquitude será utilizado
para designar o conjunto de privilégios concretos e simbólicos outorgados à população
branca, e, derivados do processo histórico de escravização e subalternização da
população negra e afro-descendente que se estendeu durante quase quatro séculos
em terras brasileiras. Logo, a idéia de branquitude está totalmente atrelada aos
acontecimentos históricos nacionais – e, portanto, à formação do próprio Estado
nacional – que conferiram aos indivíduos brancos o status quo de seres universais e 1 Acadêmica do curso de Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros (NEIAB-UEM) pelo Programa Universidade sem Fronteiras, integrante do Coletivo da Juventude Negra Maringaense Yalodê-Badá.
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arracializados2, cuja cor da pele não seria elemento importante na construção de sua
localização social ou mesmo econômica.
Vale ressaltar, ao tratarmos do termo branquitude, a negligência por parte
das Ciências Sociais ao abarcar o conceito como aspecto importante dentro de suas
áreas de estudo. Com a ressalva de poucos trabalhos3, as Ciências Sociais como um
todo não atribuiu ao estudo do branco brasileiro a relevância necessária para que a
discussão acerca da posição ocupada pelos indivíduos brancos nas relações raciais
fosse encarada enquanto componente importante para compreensão do tipo de
racismo que ocorre em nosso país. Neste sentido, o racismo no Brasil sempre fora tido
como um problema único e exclusivo do negro, sendo, também, sua resolução de
responsabilidade apenas da população negra. Os efeitos de tal concepção das
interações sociorraciais construíram um tipo de pacto narcísico (BENTO, 2002) entre
os indivíduos brancos, no qual o silêncio acerca de sua condição racial é mantido e
propagado de geração em geração, sem que as vantagens concretas e simbólicas
derivadas do processo de supervalorização da população branca sejam mencionadas,
ou, sequer evidenciadas por eles mesmos.
A ausência de discussão acerca do lugar do branco dentro das relações
raciais, por parte das áreas das Ciências Sociais, conferiu à Sociologia das Relações
Raciais certa insuficiência enquanto disciplina que ocasionou um imaginário que
concebe os estudos das relações sociorraciais, não como uma ciência consolidada,
mas como uma discussão rasa, cujos objetivos se dão somente dentro do aspecto
pessoal dos indivíduos negros. Tal pensamento desloca, mais uma vez, o racismo da
posição de problema estrutural para o campo da individualidade dos sujeitos negros.
Pois, se a temática racial não atinge relevância suficiente para ser lida como um campo
de estudo sociológico, político ou antropológico, então, esta só pode ser compreendida
2 Utilizo este termo como uma analogia ao conceito de desracialização usado pela teórica Lia Vainer Schucman. Neste sentido, o termo arracializado seria uma recusa à racialização dos indivíduos brancos e não um fenômeno de desfazer-se da raça, uma vez que esta nunca fora constituída no contexto de tais indivíduos. 3 Como exemplo, podemos citar os estudos de Guerreiro Ramos (1982), Florestan Fernandes e Roger Bastide (1959) que apesar de não utilizarem o termo branquitude em si, ocuparam-se em compreender o local social do branco brasileiro por meio da Sociologia.
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enquanto um tema exclusivo de negros e negras que visam à discussão do problema,
uma vez que sua solução envolve diretamente a posição social destes indivíduos.
Nota-se, portanto, que mesmo quando a discussão racial atinge a produção científica,
ela ainda é mantida como um problema do negro, haja vista a recusa de pesquisadores
brancos em tratar do tema e a ausência de estudos que contemplem o branco como
partícipe das relações raciais.
Com isto, a posição sociorracial dos indivíduos brancos nunca foi
questionada a nível estrutural, em razão de que o fenômeno da racialização nunca foi
atribuído a estes mesmos indivíduos. Dentro deste contexto, o que se deu fora uma
desresponsabilização do branco pelos atos racistas cometidos em solo brasileiro, e de
forma totalmente esquizofrênica, o Brasil se torna um país racista, cujo racismo não é
visto como responsabilidade daquele que o comete, mas sim como responsabilidade
daquele que o sofre. A não-localização do branco dentro do campo das relações e
interações raciais deu início a um processo de apagamento da história colonial e
escravagista brasileira, cuja memória é totalmente distorcida no que diz respeito à
participação dos sujeitos brancos no sistema de escravização e subalternização da
população negra. Desta forma, ao encararmos nosso passado escravista nos
deparamos com uma forte tendência de amenização da participação do branco
enquanto senhor de escravos, ao mesmo tempo em que verificamos um forte
movimento de ancoração dos indivíduos negros na posição de escravizados. Este
fenômeno à longo prazo produziu certo modo de lidarmos com as relações raciais no
Brasil que tende sempre a colocar o branco como elemento neutro e sem quaisquer
influências no jogo das discriminações raciais. Neste sentido, Maria Aparecida Silva
Bento argumenta que:
Na verdade, o legado da escravidão para o branco é um assunto que o país não quer discutir, pois os brancos saíram da escravidão com uma herança simbólica e concreta extremamente positiva, fruto da apropriação do trabalho de quatro séculos de outro grupo. Há benefícios concretos e simbólicos em se evitar caracterizar o lugar ocupado pelo branco na história do Brasil. Este silêncio e cegueira permitem não prestar contas, não compensar, não indenizar os negros: no final das contas, são interesses econômicos em jogo (BENTO, p. 3, 2002).
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Sendo assim, o silêncio acerca do legado da escravidão para o branco se
tornou um mecanismo de manutenção dos privilégios conferidos a esta parcela da
população que tende a recusar-se a adentrar o debate sobre as questões raciais, visto
o apagamento histórico da atuação do branco enquanto algoz e maior beneficiário do
sistema escravagista.
A Cegueira da Brancura
Ma Négritude n’est pás une bierre, as surdite rueé contre la clameur du jour
Ma Négritude n’est pás une taie d’eau morte sur l’oeil mort de La terre
Ma Négritude n’est ni une tour ni une cathédrale
Elle plonge dans la chair rouge du sul
Elle plonge dans la chair ardent du ciel
Elle troue l’accablement opaque de sa droite patience
(Aimé Césaire)
Lourenço Cardoso (2014) em seu estudo sobre pesquisadores brancos que se
ocupam com a temática negra, ou o negro-tema, argumenta que os indivíduos brancos
não são capazes de se enxergarem racialmente. Tal fenômeno ocorre, segundo
Cardoso, por conta da condição dada ao branco de ser humano por excelência, ou
seja, o sujeito branco torna-se incapaz de se reconhecer racialmente, pois ao pensar
em racialização vislumbra exclusivamente os não-brancos. Neste sentido, o conceito
de raça se torna funcional apenas para os indivíduos que não compartilham da
brancura, uma vez que a população branca não adentra as classificações e
enquadramentos raciais atribuídos aos não-brancos. Embora os estudos raciais
produzidos recentemente venham tentando incluir o sujeito branco como ator e agente
das relações raciais, a ideia de arracialização da população branca ainda é forte,
excluindo-a das interações sociorraciais por meio de movimentos que atribuem ao
branco à condição única e exclusiva de humano.
Desta forma, o sujeito branco não sente ao longo da vida a racialização que um
sujeito negro sente antes mesmo de constituir-se dentro de alguma categoria
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sociorracial. O que gostaríamos de propor aqui é uma análise que se debruce sobre o
fenômeno de produção dos indivíduos brancos enquanto seres humanos sem raça e
sem a necessidade de se racializarem, visto que o conceito de raça se encaixa
somente àqueles que deste precisam. Em outras palavras, não é necessário ao branco
reivindicar-se racialmente, pois a sua raça compõe os padrões de normalidade da
sociedade, sendo assim, o branco não é visto como um sujeito racializado, mas
somente e simplesmente como um sujeito. Logo, ao enxergar-se em termos raciais, o
branco não se vê, contudo, vê ao Outro, o negro ou o indígena que por não adentrarem
as classificações da brancura, são concebidos como sujeitos raciais.
Cardoso afirma que este fenômeno ocorre pelo fato da condição de humano
não ser atribuída aos indivíduos não-brancos, pois “o branco ao atribuir somente a si a
humanidade, ao não enxergar o Outro como humano, evidencia que possui uma
imagem distorcida do Outro, e de si mesmo” (CARDOSO, P. 35-36, 2014). A
contribuição do autor nos auxilia a compreender os modos pelos quais os indivíduos
brancos rejeitam a noção de raça e tornam-se cegos em relação à própria raça.
Gostaríamos, entretanto, de complementar o raciocínio de Cardoso, inserindo neste
contexto a noção de hipervisibilidade que é dada aos sujeitos brancos. O branco se
torna cego racialmente não somente por lhe ser atribuída, naturalmente, a condição de
humano, mas também por conta do fenômeno de hipervisibilidade que é dado à
população branca. Os grupos raciais que se posicionam sócio e politicamente, no
intuito de abandonarem a posição de Outro para ocuparem a posição de Eu, assim o
fazem, pois a invisibilidade acerca de sua raça é um dos instrumentos que
potencializam a discriminação racial. O branco não sente esta necessidade, visto que
ele é o próprio Eu, e à sua raça é dada uma visibilidade demasiada; isto significa que o
branco não irá se posicionar dentro das relações raciais, pois sua posição já é
previamente estabelecida dentro dos padrões de normalidade sociorraciais. O branco é
humano, e não branco, sequer é um sujeito racial, apenas humano. Os Outros não-
brancos e não-humanos objetivam, por vias políticas e culturais, sua condição de
humano através da reivindicação racial.
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Neste contexto, a cegueira da brancura diz respeito não somente à posição de
humano atribuída à população branca, mas também, e principalmente, à posição de
norma atribuída à categoria racial – ou melhor, não-racial – branca. Como se a
categoria branca fosse completa demais para adentrar as classificações raciais, o
branco não vê em si mesmo uma raça, vê, contudo, uma norma, uma regra, cujos
aqueles que se apresentam divergentes a tal norma enquadram-se nas classificações
essencialistas de raça. O branco, sujeito complexo e racional demais, não caberia nos
moldes raciais; enquadrar o branco em uma categoria racial seria dar visibilidade a algo
que não necessita de visibilidade, uma vez que o branco enquanto norma é visto
regularmente. A cegueira da brancura, ou, a auto-cegueira da brancura é efeito da
normatização da categoria branca; afinal qual a necessidade de enxergar aquilo que já
é visto por todos?
Localizar o sujeito branco em uma categoria sociorracial depreenderia a
essencialização, ou seja, a ancoração de uma raça, aqui considerada como a “raça
humana”, em moldes raciais que limitariam o branco a determinadas características e
ações que diriam respeito à sua raça. Portanto, o branco enquanto humano seria
complexo demais para adentrar uma classificação limitada, cujas fronteiras se dão na
restrição de movimentos que perpassam processos históricos. Em outros modos, o
negro manteve-se ancorado em sua posição de escravizado, e o índio em sua posição
de selvagem, mas o branco teve capacidade de sobressair-se de sua posição de
escravizador. Assim o fez, pois não há nada no branco que apresente características
essencialistas, sua capacidade racional lhe propicia habilidades para a superação da
condição de algoz; logo, o branco de hoje de nada se assemelha ao branco que
escravizou índios e negros no passado. Neste sentido, ancorar o branco em uma
classificação racial demandaria a localização deste sujeito no processo de
escravização, e ainda, evidenciaria os benefícios oriundos deste processo que até hoje
são mantidos. O branco é mais do que isso, mais do que uma categoria racial baseada
em características fenotípicas, ele se sobrepõe a ideia de raça dado ao negro ou ao
índio, pois ele é humano e sendo humano, ele não precisa ter raça.
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O Branco Que Produz Também É Produzido: Reflexões Sobre A Construção Da
Identidade Branca
O processo de racialização brasileiro, como nos informou Nogueira, tem como
base a cor da pele, neste sentido, o nível de discriminação racial sofrido pelos
indivíduos negros está, intrinsecamente, ligado ao nível de melanina manifestado por
tais indivíduos. De outro modo: quanto mais retinto for o indivíduo, mais potente será o
racismo aplicado a ele. Oracy Nogueira expõe em relação ao preconceito de marca
que:
Assim, no Brasil, a intensidade do preconceito varia em proporção direta aos traços negróides; e tal preconceito não é incompatível com os mais fortes laços de amizade ou com manifestações incontestáveis de solidariedade e simpatia. Os traços negróides, especialmente numa pessoa por quem se tem amizade, simpatia ou deferência, causam pesar, do mesmo modo por que o causaria um “defeito” físico. Desde cedo se incute, no espírito da criança branca, a noção de que os característicos negróides enfeiam e tornam o seu portador indesejável para o casamento. [...] Em todas essas situações, sob o poder de sugestão da hilaridade, incute-se, sub-repticiamente, no espírito tanto das crianças brancas como das de cor, a noção de “inferioridade” do negro ou de indesejabilidade dos traços negróides (NOGUEIRA, p. 296, 2006, grifo nosso).
Portanto, as noções de beleza que envolve o fenótipo de raça são todas
construídas tendo como substrato a inferiorização da raça negra e a supervalorização
da raça branca. É nítido que tal distinção não se restringe aos padrões de beleza e
perpassam, também, todos os nossos constructos sobre intelectualidade, honestidade,
integridade, sagacidade, etc. Não à toa, os estereótipos que envolvem a raça negra
são todos baseados na ideia de depreciação, ainda aqueles que consideramos como
positivos, por exemplo, o estereótipo da mulata sensual, ou, do negro malandro, que
não tem significado outro que a hipersexualização da mulher negra e a criminalização
do homem negro.
Segundo Homi Bhabha (1998), o estereótipo é “a principal estratégia discursiva
do colonialismo” (BHABHA, p. 105, 1998). Neste sentido, o estereótipo age de maneira
que consegue fixar o elemento estereotipado dentro de suas categorias, ao mesmo
tempo em que se utiliza da repetição para que a comprovação daquilo que o
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estereótipo informa seja tida como desnecessária. Em outras palavras, o estereótipo
articula entre a manipulação de algo que já é dado e a repetição desta condição para
sua conformação. O que nos interessa aqui é compreender os meios pelos quais o
estereótipo constrói uma sentença imutável acerca do sujeito e como transforma tal
sentença em uma condição a priori do mesmo sujeito. Isto é, de que maneira
conformamos a noção de que mulheres negras são mais aptas ao sexo do que
mulheres brancas? Ou, ainda: de que maneira concebemos a idéia de que mulheres
negras são mais aptas ao sexo do que mulheres brancas como um dado pré-
estabelecido? Os modos de articulação da prática de estereotipagem atuam de tal
forma que o questionamento acerca da sentença dada se torna inválida ou
desnecessária, uma vez que a condição suposta pelo estereótipo é concebida como
uma condição a priori, ou seja, como algo que sempre esteve lá.
O fenômeno de inferiorização da população negra encontra na estereotipagem
os subsídios necessários para que concebemos como natural algo que fora
socialmente produzido. Vale destacar que na medida em que o polo negro é
inferiorizado, o polo branco é supervalorizado, isso significa que no contexto deste
binômio racial, ambas as partes são produções sociorraciais que encontram na
representação a articulação e manutenção das desigualdades raciais. Neste sentido,
compreendemos a construção da imagem positiva do sujeito branco como resultado da
identidade racial constituída por meio de valores e ideais que propagam a ideologia
racista amplamente propagada no século XVIII, que entre outras premissas tem como
principal a noção de que quanto mais branco, melhor.
Logo, para entendermos a identidade branca como uma construção social e
política tal qual a identidade negra, é necessário ater-nos às condições nas quais esta
identidade fora construída. Para isso, precisamos compreender o processo de
branqueamento em solo brasileiro como um processo histórico, cujos fins estavam,
declaradamente, no clareamento da população brasileira, e, por conseguinte, na
ascensão da mesma, seja em aspectos intelectuais ou culturais. Mais do que um
acontecimento histórico, o processo de branqueamento da sociedade brasileira fora um
projeto articulado por cientistas e pensadores da época que viam no
embranquecimento de nossa população a oportunidade de conferir aos padrões de
sociabilidade nacionais os moldes encontrados em terras européias. Neste sentido, os
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hábitos, os padrões comportamentais, as formas relacionais, as organizações
sociopolíticas consideradas boçais e selvagens encontradas nos povos originários e
nos povos africanos que foram compulsoriamente trazidos para cá, perderiam seus
traços primitivos e arcaicos na medida em que fossem se integrando a civilização
europeia e absorvendo seus padrões de socialização.
Desta forma, não podemos tirar de vista a ideologia racista de branqueamento
pela qual se consolidou a sociabilidade brasileira para tratarmos de nossas identidades
raciais. O que queremos propor aqui é uma reflexão sobre a construção da identidade
racial branca por vias totalmente estruturadas em moldes socioculturais de
discriminação e inferiorização acerca da população negra. Isto é, se internalizamos por
meio de ideias, conceitos e até mesmo por dados ditos científicos – e aqui podemos
citar as ciências do século XVIII que se ocupavam com a comparação entre as raças,
como a craniologia e frenologia – que o negro é inferior, internalizamos, também, as
premissas que pintavam o branco enquanto sujeito suprido de superioridade em
relação a outras raças. Sendo assim, o branco como é visto em nossa sociedade é
constructo de um conjunto de noções, ideologias, conceitos e processos
demarcadamente racistas que compõem a história e formação de nossa sociedade.
Isolar o branco do processo de construção e consolidação da sociabilidade brasileira é
um erro grave, cujos efeitos podem ser verificados na ausência de localização do
sujeito branco como ator e atuante das relações sociorraciais. Conceber os indivíduos
brancos como elementos a parte e paralelos ao processo escravagista e colonial, e
consequentemente aos efeitos de tal processo, é uma forma de distorção da nossa
história nacional, uma vez que se não tivermos em mesa todos os aspectos da história
de nosso país, e por sua vez, todos os partícipes desta história, não teremos subsídios
suficientes para construirmos uma análise honesta e condizente com a realidade sobre
nossa história; produzindo, desta maneira, conhecimentos vazios e cheios de lacunas
no que diz respeito aos processos de formação e consolidação da ordem social
brasileira.
Nota-se, portanto, que ao mesmo tempo em que o branco produz o negro, índio
e mulato enquanto seres desprovidos de poder cultural e intelectual, ele, também,
constrói a si mesmo como sujeito munido de capacidade pensante, ou seja, munido de
razão. Com isto, os não-brancos são realocados em uma posição sumariamente
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biológica, na qual a negação da razão é a primeira ferramenta de inferiorização destes
indivíduos, transformando aspectos biológicos (como a cor da pele, textura de cabelo,
traços faciais) em critérios para a apreensão e interpretação acerca do outro e de sua
efetividade no que tange a ideia de cidadania, isto é, os indivíduos a serem
considerados aptos para a integração à ordem social estariam nivelados por sua
condição biológica. É neste sentido que a ideia de raça deixa de se limitar apenas ao
âmbito biológico e passa a ocupar, também, a esfera social, uma vez que a posição
social daqueles indivíduos estaria totalmente atrelada à sua condição racial
biologicamente determinada. A ideologia de branqueamento fixa tais premissas e eleva
para a prática algo que até então se mantivera na teoria dos ensaístas nacionais da
época, assim, a miscigenação se torna o mecanismo mais efetivo para o clareamento
da população brasileira. A miscigenação não seria um método de embranquecimento
apenas físico, mas também – e talvez, principalmente – intelectual e cultural, desejava-
se não apenas o extermínio dos traços negróides e/ou indígenas que manifestavam
fisicamente a inferioridade humana, mas também a desintegração dos hábitos culturais
e comportamentais de tais povos que eram tidos como subumanos e primitivos. A
integração de tais povos à cultura europeia significava, na realidade, o apagamento, ou
melhor, a aniquilação das contribuições culturais dessas organizações sociais. A
desintegração dos padrões de organização social, cultural e política de tais grupos, fora
um dos instrumentos mais eficaz no genocídio e epistemicídio dos povos originários e
dos povos africanos.
Vislumbramos, portanto, a inserção dos estudos raciais importados da Europa
no Brasil como um mecanismo racista para a consolidação da raça branca enquanto
núcleo biologicamente superior aos demais grupos raciais. Os estudos raciais no Brasil
durante o século XIX não tiveram objetivos outros que a comparação entre raças e a
comprovação de que a raça branca seria o ápice da civilização e superioridade
humana. Amparados pela neutralidade da ciência, os estudos raciais provocou uma
cisão entre a humanidade, na qual as capacidades físicas, intelectuais, culturais,
políticas, econômicas de seres humanos demograficamente distintos passariam a ser
julgadas tendo como critério único a raça. É necessário, portanto, perceber a idéia de
raça utilizada em tais estudos como um instrumento político articulado dentro da
disputa de poder em um contexto de colonialismo europeu. Em outros modos, o
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significado atribuído ao termo raça dentro dos estudos que abarcavam a análise
comparativa entre populações localizadas em diferentes pontos do globo, fora
articulado de maneira totalmente conveniente àquilo que interessava à população
branca europeia. Então, diferenças culturais, organizacionais e sócioestruturais que se
davam muito menos por motivos raciais e biológicos do que por condições geográficas
e culturais distintas, passaram a ser encaradas enquanto fenômenos naturais
determinados pelo conceito de raça. A antropóloga Lilia Schwarcz expõe que:
Assim, interessa compreender como o argumento racial foi política e historicamente construído nesse momento, assim como o conceito de raça, que além de sua definição biológica acabou recebendo uma interpretação sobretudo social. O termo raça, antes de aparecer como um conceito fechado, fixo e natural, é entendido como um objeto de conhecimento, cujo significado estará sendo constantemente renegociado e experimentado nesse contexto histórico especifico, que tanto investiu em modelos biológicos de analise. [...] É nesse sentido que o tema racial, apesar de suas implicações negativas, se transforma em um novo argumento de sucesso para o estabelecimento das diferenças sociais (SCHWARCZ, p. 24, 1957).
Interessa-nos analisar aqui, a maleabilidade no conceito de raça e sua
negociação no que diz respeito seu significado para tratarmos das diferenças
sociorraciais, e ainda, sua legitimidade dentro da produção do conhecimento cientifico,
bem como o seu uso. Pois, se a ideia de raça era utilizada de determinada maneira e
para determinado fim na ciência durante os séculos anteriores, o que se sucedeu para
que o mesmo conceito passasse a ser ignorado, ou no mínimo, menosprezado por esta
mesma ciência atualmente, que pouco se dedica a entender raça em seu sentido
sociológico?
A questão que pretendemos lançar luz neste texto se encontra na formação de
uma classe racial por meio da subjugação de outros grupos raciais. Para
compreendermos tal fenômeno de construção desta identidade racial, precisamos nos
debruçar sobre os processos de significação pelos quais o conceito de raça tem
trespassado no campo da produção científica. O conceito de raça chegou ao nosso
país totalmente alinhado às premissas positivistas e racionalistas que concebiam os
moldes de civilização europeia como o ápice da superioridade humana, neste sentido,
a ideia de raça utilizada para a análise dos povos não-europeus tinha como substrato
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noções extremamente deterministas e que em nada se assemelham com o conceito de
raça empregado nos estudos sócioantropológicos produzidos atualmente; Segundo
Guerreiro Ramos (1954) “o negro tem sido estudado, no Brasil, a partir de categorias e
valores induzidos predominantemente da realidade europeia”; isto significa que a
condição social negro esteve sempre enfocada por um viés eurocêntrico – e ainda,
brancocêntrico –, tendo sua caracterização, composição e construção social e racial
totalmente vinculada às ideias europeias de sociedade, humanidade e cultura. Com
isto, o negro antes fixado em sua posição de escravizado adentra o campo da ciência
enquanto um objeto de estudo absoluto apropriado pelo branco, e, utilizado, mais uma
vez, para fins de promoção da superioridade branca, ainda que por um discurso
diferenciado.
Neste cenário, evidenciamos a construção da representação do negro dentro do
contexto de produção científica como um mecanismo potencializador da assimetria de
poder das relações raciais. O que não devemos descartar de nossa análise é que
assim como a idéia de negro e negritude foram produzidas por ideais racistas e
racialistas, a representação do branco e da branquitude também foram construídas
dentro deste campo. As noções de universalidade e racionalismo que envolvem a
branquitude são efeitos dessa produção do conhecimento unilateral que construiu a
identidade racial branca, ainda que de forma latente, como um fenômeno que dispensa
análise e reflexão, uma vez que esta compõe o conceito de normalidade imposto pela
própria branquitude. Assim, cria-se um ciclo vicioso – que começa a ser questionado
somente com a introdução dos estudos sobre branquitude nos anos 2000 no Brasil –,
no qual a efetividade da representação positiva da população branca é conformada e
reafirmada na medida em que a própria branquitude se mantém ausente das
discussões raciais e da localização racializada.
Considerações Finais
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Por fim, concluímos este artigo compreendendo a identidade racial branca como
resultante de um processo de racialização histórico, cujos efeitos na população branca
foram ocultados como forma de manutenção e preservação dos benefícios simbólicos e
materiais conferidos aos indivíduos brancos durante o sistema escravista nacional.
Ademais, entendemos por branquitude a condição sociorracial experienciada pelos
sujeitos brancos, que envolve uma série de elementos que vão desde nossa apreensão
sobre o fenótipo da raça branca até os aspectos mais concretos expressos pelas
posições socioeconômicas mais favorecidas ocupadas pelos indivíduos brancos.
Atribuir ao branco à condição de humanidade que é negada aos não-brancos
tem sido um mecanismo de privilegiamento sociopolítico que encontra na arracialização
da população branca os instrumentos necessários para a manutenção das
desigualdades raciais. Conceber o sujeito branco como fruto da assimetria de poder
racial diz respeito á compreensão da identidade branca como agente nos processos de
articulação do racismo, isto significa que a representação vigente do branco em nossa
sociedade, assim como do negro, surge de uma série de elementos oriundos do
sistema hierárquico de racialização que vislumbramos em nosso país. O branco
apenas humano e sem raça somente é assim concebido, pois no processo de atribuir
raça ao Outro, excluiu a si próprio dos efeitos do sistema racialista.
Compreender a identidade racial branca como constructo sóciohistórico,
agenciado pelos processos colonialistas de escravização é abrir espaço, dentro do
campo das relações raciais, para debatermos o local ocupado pela população branca
no cruel jogo de desigualdades étnico-raciais. Além disso, tal constatação possibilita,
também, o questionamento acerca das análises que concebem o racismo como
problema de responsabilidade exclusiva do negro. Portanto, tratar da branquitude,
ainda que de forma atrasada e sem bases sólidas o suficiente para um conceito
fechado, enquanto um fenômeno racial produzido através de posicionamentos
científicos e ideologias eurocêntricas é o percurso mais honesto que vislumbramos
para atribuir à sociologia das relações raciais a seriedade e legitimidade científica dada
a qualquer outra vertente de estudo dentro das Ciências Humanas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN Consócio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros – CONEABs Universidade Federal de Uberlândia – (UFU)
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila; Eliana Lourenço de
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