O Biscateiro

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  APRESENTAÇÃO   GUIDA NUNES NESTA OBRA, o autor não apenas expõe seu pensamento, mas também interroga a si  mesmo, aos outros e a Deus. O que ele quer?  Soluções para o desnível  económico, beneficiando não apenas a ele mas a todos os trabalhadores que, como ele, ganham a vida com o suor do rosto e esgotamento físico.  Abdias José dos Santos não quer ascender socialmente  é o que se depreende  e isso pode parecer um paradoxo em relação ao que pretende. Mas não é. Sua dedicação ao trabalho e à classe trabalhadora o obriga a querer continuar nela até o fim. Mas é justo que pense , assim. Para ele, os trabalhadores devem ser pagos  pelo que fazem e não tratados como simples acessórios da sociedade. Em certo  momento, o autor explode e afirma que nada existiria, não fosse o trabalho dos operários. E por que eles devem sujeitar-se aos minguados salários que lhes são oferecidos?  Em cada parágrafo de O biscateiro está manifesto o verdadeiro operário que o autor  sempre foi e com certeza será. A obra é resultante de uma prolongada experiência de  quase dez anos em que o trabalhador ativo nas grandes indústrias e sindicatos é obrigado a afastar-se de seus companheiros. Evidentemente, ele poderia ter escolhido muitas outras formas de ganhar a vida e sustentar seus filhos, mas preferiu ser trabalhador autónomo, o popular biscateiro. E cada dia desta nova vida foi analisado com senso crítico e ironia. O trabalhador está diante de um novo mundo  não o seu mundo e o de seus companheiros, mas o mundo dos patrões. A cada dia um novo  patrão e um problema a enfrentar. Como fazer? A vida vai ensinando, mas não parece  fácil. O biscateiro t em momentos de revolta contra os que zombam de seu trabalho, os que contratam e não pagam, os que adiam o pagamento, os que acham o orçamento elevado. Talvez, por isso, a primeira parte do livro é um alerta para os outros biscateiros: a revelação de dois mundos completamente diferentes  o mundo dos trabalhadores e  o mundo dos não-trabalhadores. Mas esta não é uma forma idealista de ver a realidade porque ele também cita  e com mais desprezo os biscateiros desonestos e traidores da classe, os que ele chama de biscateiros carreiristas. São aqueles que almejam deixar de ser empregados, contratando alguém a quem possam dar ordens.  A leitura da obra revela não ter sido escrita de forma linear e sim de acordo com o estado de espirito do autor. Por isso estão presentes a revolta, amizade, amor, ironia. No auge da revolta contra as injustiças humanas, Abdias José dos Santos afirma querer ser um indigente, pois não há diferença entre o indigente comum, oficial, ou o indigente segurado do INPS, ou seja, o indigente anónimo. Logo adiante, reanimando- se, diz ainda ter fé. E lembra que seus companheiros precisam descobrir que Deus não é aquele que lhes foi apresentado, mqs está sempre ao lado dos homens. É só  descobri-lo. Há muito o que fazer para salvar o mundo, e Abdias José dos Santos tenta dar a sua contribuição não só aos trabalhadores autónomos? como ele foi durante tanto tempo, mas a todos os que vivem da força de seu trabalho, seja braçal ou intelectual. Seu objetivo é salvar o homem, o trabalhador e o não-trabalhador, acabando com essa diferença. A obra é uma contribuição, valiosa, acima de tudo, para os operários. Mas não pode ser desprezada pelos sociólogos, psicólogos ou qualquer pessoa interessada pelos problemas sociais. Ela revela a mente operária e muitos se identificarão com o 

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 APRESENTAÇÃO  

GUIDA NUNES 

NESTA OBRA, o autor não apenas expõe seu pensamento, mas também interroga a si mesmo, aos outros e a Deus. O que ele quer?  —  Soluções para o desnível económico, beneficiando não apenas a ele mas a todos os trabalhadores que, como ele, ganham a vida com o suor do rosto e esgotamento físico. 

Abdias José dos Santos não quer ascender socialmente  —  é o que se depreende — e isso pode parecer um paradoxo em relação ao que pretende. Mas não é. Sua dedicação ao trabalho e à classe trabalhadora o obriga a querer continuar nela até o fim. Mas é justo que pense , assim. Para ele, os trabalhadores devem ser pagos pelo que fazem e não tratados como simples acessórios da sociedade. Em certo momento, o autor explode e afirma que nada existiria, não fosse o trabalho dos operários. E por que eles devem sujeitar-se aos minguados salários que lhes são oferecidos?  Em cada parágrafo de O biscateiro está manifesto o verdadeiro operário que o autor sempre foi e com certeza será. A obra é resultante de uma prolongada experiência de quase dez anos em que o trabalhador ativo nas grandes indústrias e sindicatos é obrigado a afastar-se de seus companheiros. Evidentemente, ele poderia ter escolhido muitas outras formas de ganhar a vida e sustentar seus filhos, mas preferiu ser trabalhador autónomo, o popular biscateiro. E cada dia desta nova vida foi analisado com senso crítico e ironia. O trabalhador está diante de um novo mundo — não o seu mundo e o de seus companheiros, mas o mundo dos patrões. A cada dia um novo patrão e um problema a enfrentar. Como fazer? A vida vai ensinando, mas não parece fácil. O biscateiro tem momentos de revolta contra os que zombam de seu trabalho, os 

que contratam e não pagam, os que adiam o pagamento, os que acham o orçamento elevado. Talvez, por isso, a primeira parte do livro é um alerta para os outros biscateiros: a revelação de dois mundos completamente diferentes — o mundo dos trabalhadores e o mundo dos não-trabalhadores. Mas esta não é uma forma idealista de ver a realidade porque ele também cita  —  e com mais desprezo  — os biscateiros desonestos e traidores da classe, os que ele chama de biscateiros carreiristas. São aqueles que almejam deixar de ser empregados, contratando alguém a quem possam dar ordens. A leitura da obra revela não ter sido escrita de forma linear e sim de acordo com o estado de espirito do autor. Por isso estão presentes a revolta, amizade, amor, ironia.No auge da revolta contra as injustiças humanas, Abdias José dos Santos afirma 

querer ser um indigente, pois não há diferença entre o indigente comum, oficial, ou o indigente segurado do INPS, ou seja, o indigente anónimo. Logo adiante, reanimando- se, diz ainda ter fé. E lembra que seus companheiros precisam descobrir que Deus não é aquele que lhes foi apresentado, mqs está sempre ao lado dos homens. É só descobri-lo. Há muito o que fazer para salvar o mundo, e Abdias José dos Santos tenta dar a sua contribuição não só aos trabalhadores autónomos? como ele foi durante tanto tempo,mas a todos os que vivem da força de seu trabalho, seja braçal ou intelectual. Seu objetivo é salvar o homem, o trabalhador e o não-trabalhador, acabando com essa diferença. A obra é uma contribuição, valiosa, acima de tudo, para os operários. Mas não pode ser desprezada pelos sociólogos, psicólogos ou qualquer pessoa interessada pelos problemas sociais. Ela revela a mente operária e muitos se identificarão com o 

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biscateiro e outros, infelizmente, com seus patrões não tão honestos. Vale como reflexão.

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INTRODUÇÃO 

TENTAREI, NESTE LIVRO,  descrever algo que sirva como contribuição para elevar a capacidade dos trabalhadores, no sentido de uma maior afirmação, maior 

conhecimento de seus problemas, melhor visão social em torno dos fatos narrados e também como nós, os tabalhadores, nos situamos na escala social. 

Gostaria de obter todas estas respostas. Por isso escrevo e pergunto a mim mesmo:   —  Quem somos nós?  — Oque fazemos? —  Como nos sentimos dentro da sociedade?  —  O que os outros pensam de nós?  

Seria muito bom que eu e outros trabalhadores tivéssemos, pelo menos,algumas destas respostas. 

Muitas coisas aconteceram na minha vida desde os 12 anos, quando comecei a trabalhar como aprendiz de carpinteiro numa cidade pequena do Nordeste. Depois vira para o Rio e, aos 17 anos, comecei a procurar um emprego, enquanto eu e minha família nos acomodávamos numa favela. A seguir, participei do movimento de associação na favela e da Federação das Associações de Favelas. Tenho a mencionar, principalmente, a minha participação como operário sindicalizado, no período de 1953 a 1965, e meus 10 anos de biscateiro. 

Todas estas experiências me levam a escrever para ser criticado e descobrir novos rumos. 

Do passado guardo a experiência. Dedicarei maior parte deste trabalho para falar do momento que estou vivendo, agora, pois envolve coisas que, às vezes, acho engraçadas,estúpidas e imbecis, ao mesmo tempo. 

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DOIS MUNDOS DIFERENTES

ANTES,  eu tinha um tipo de experiência, convivia com outros trabalhadores e sabiamuito a nosso Despeito. Passava 4 ou 5 anos apenas com um patrão e alguns chefes.

Hoje, tenho um freguês por semana e ele se assemelha a um patrão. Como o

ramo de madeiras em que trabalho — fazer armários em apartamentos — é um troçosó para quem é rico ou tem pinta de rico, passei a conhecer patrões e patroas detodos os tipos. Cheguei até a admitir que existe patrão bom desde que...

Mas, também existem as exceções. São aqueles fregueses com que se podedialogar com lealdade, sem que pretendam tirar nada da gente ou fazer seutransplante de personalidade.

Este livro tem o objetivo de ajudar os trabalhadores a alcançarem seusobjetivos, é uma espécie de autodefesa. Não é minha intenção descarregar tudo emcima dos patrões, quero apenas defender o nosso lado. Será que não podemos fazerisso? Afinal, tem tanto intelectual aí defendendo os interesses deles...Não parece, mas, na verdade, existem dois mundos: o mundo do freguês (patrão) e omundo do trabalhador.

Querem provas?—  A entrada no prédio. O elevador do patrão é um, e o do trabalhador é outro,onde está escrito «entrada de serviço».— A entrada no apartamento. O patrão entra pela porta social, e o trabalhador pelacozinha.

—  O modo de pisar no chão — tapete ou sinteco. O patrão pisa livremente. Otrabalhador pisa em cima de jornal, com muito cuidado para não machucar o chão.—  Caso  tenha que esperar, é sempre o trabalhador que chega primeiro e espera empé, na garagem.—  A hora de acordar. O trabalhador levanta às 3, 4 ou 5 da manhã para chegar aoapartamento e esperar o patrão ou patroa acordar às 10, 11 ou meio-dia.—  O uso do banheiro. Em qualquer apartamento, por menor que seja, há sempreum banheiro exclusivo para os trabalhadores. É o banheiro da empregada.—  Quando o patrão é bom, oferece uma refeição que é servida após a sua, emvasilha diferente e em lugar também diferente — cozinha ou área de serviço.—  O meio de transporte. O patrão viaja em ônibus especial, carro particular,táxi e avião. O trabalhador anda nos trens e ônibus superlotados ou a pé.—  A moradia. O freguês mora em apartamento de luxo ou mansão. O trabalhadorvive em lote, vila ou favela. O freguês mora no Centro, Botafogo, Flamengo, Copaca-bana, Leblon, Grajaú, Tijuca. O trabalhador fica nos subúrbios da Central, Leopoldinaou alguns morros do Centro, zona Norte ou Sul.—  A alimentação. O freguês tem uma dieta alimentar, faz as refeições completas nas

horas certas. O trabalhador não tem dieta, come quando tem e o que aparece.—  O modo de trajar. O freguês veste uma roupa adequada ao clima, ao momento, aoambiente. O trabalhador usa a mesma roupa em qualquer tempo, qualquer lugar,qualquer momento ou qualquer clima.A educação. O freguês tem uma educação para si e seus filhos que é apropriada paraelevar e afirmar sua posição, ampliando-a. O trabalhador não tem uma educaçãoprópria e sim ditada pelo patrão que dá todas as regras, esquecendo-se dos meiospara alcançá-la. É como se fosse formar uma equipe de futebol sem dar a bola e ocampo para treinar, dando apenas as regras do jogo e o juiz.— O ambiente de trabalho. O freguês trabalha em salão iluminado, sem poluição, comar refrigerado e equipamentos adequados (isto quando trabalha). O trabalhadortrabalha enjambrado, em cima dos joelhos, sem iluminação suficiente, em ambiente

fechado e quente, com poeira ou fumaça e é obrigado a trabalhar todos os dias paranão morrer de fome.

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Estes são apenas alguns dos muitos aspectos que caracterizam a existênciade dois mundos: o Mundo do Trabalhador e o Mundo dos que não são Trabalhadores.Ora, com estas diferenças todas é claro que há também uma diferença na maneira dever as coisas, de encarar os fatos e interpretá-los. É possível dafr uma resposta quesirva para os dois, ao mesmo tempo?

Agora entendo por que pessoas bem intencionadas que querem fazer algumacoisa pelos trabalhadores fracassam. É porque estão vivendo fora da realidade, ouporque querem fazer um transplante do que aprenderam. Por isto, afirmo: coisa detrabalhador é com trabalhador, pois é tudo diferente.

É pena. Não fomos nós que criamos ou estabelecemos esta diferença. Nãofomos nós que separamos as coisas, mas não é justo que os outros se separem denós e não nos preocupemos em reconhecer esta separação. Isto para mim é questãode vergonha. Eu sei que Cristo não aceita a divisão, mas a divisão será maior, maismassacrante e vergonhosa se nós, trabalhadores, não nos impuser-mos, nãolevantarmos a cabeça e não elevarmos a nossa personalidade.

Ora, quem vai nos ensinar as coisas? Quem vai nos dizer que os outros, quenão trabalham, estão errados e se separam de nós? Eles próprios? É claro que não.

Eles nunca vão dizer que são errados, embora se separem cada vez mais de nós.Apoderam-se cada vez mais das coisas que podem servir para nós, querendo nosconvencer de que somos nós que não procuramos vencer na vida.

Se as nossas oportunidades, na vida, não forem bem aproveitadas, vamos demal a pior. Cada dia ficamos sujeitos a trabalhar mais e mais barato, gastar mais ener-gias, comer menos e morrer mais cedo.

É, companheiros... eu descobri uma coisa muito importante, nós temos umrecurso que nenhum patrão tem: a nossa faculdade não exige matrícula, não temhorário para começar as aulas, não tem férias ou qualquer outra interrupção. Nossovestibular começa no momento em que descobrimos que somos trabalhadores e o quepassa pelas nossas mãos é o produto material que serve toda a humanidade: pobres ericos.

Sabem, meus amigos? É a maior felicidade e realização quando se sente estaconvicção: todas estas grandezas passaram pelas nossas mãos, apesar de sentirmosque somos nós os que menos usamos os produtos de nosso trabalho. Por issocostumo rir com satisfação e dizer comigo mesmo quando vejo um daqueles quegostam de humilhar o trabalhador: «Palhaço, o que tu fizeste para ter tudo isto? Eu, noteu lugar, me sentiria com vergonha como se estivesse vestindo uma roupa que não éminha».

Por isto volto a afirmar: nossos recursos são imensos e poderosos. Nossaescola é a vida, os livros são os fatos refletidos e analisados. Não devemos ter medoda vida, não temos mais nada a perder. Nossa constante é lutar por um prato de bóiadiariamente. Vamos salvar o que há de mais importante para nós: a nossa moral e a

nossa personalidade de trabalhador. O mais é «dar uma banana» para estes quequerem se impor diante de nós. Lutar para salvar nossa reputação de homem, paranão sermos trapos ou simples objetos de uso dos que querem que sejamos seusservidores apenas. É um dever de cada trabalhador e uma condição para serreconhecido como um verdadeiro ser humano, filho de Deus.

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 COMO O FREGUÊS VÊ O BISCATEIRO

QUEM É o biscateiro?Para a maior parte dos fregueses a figura do biscateiro é a de um tipo

explorador, sem personalidade, «enrolão», que trata e não cumpre. Por isso deve sertratado com reservas, e para se confiar em um biscateiro é preciso que ele sejaapresentado por pessoas de confiança, e mesmo assim deve ser observado, como umanimal.

O biscateiro pode ser urn ladrão ou um malandro qualquer, mas como é umtipo que serve para prestar serviços mais baratos e melhores do que os que são feitospor firmas ou empresas estabelecidas, ele ainda é aceito e, de acordo com suaatividade profissional, tem um bom mercado de trabalho.

As profissões mais comuns para um biscateiro são: bombeiro hidráulico,ladrilheiro, marceneiro, pedreiro, vidraceiro, calafate. É o tipo quebra-galho que faz detudo um pouco, não tendo uma profissão definida.

O biscateiro logo se adapta ao ambiente. Inicialmente é um homem tímido,humilde, sempre sabe dizer sim. E este é o tipo mais procurado e aceito pelafreguesia. Primeiro porque é o mais fácil de ser enrolado pelo freguês que acha queele pode ficar à sua disposição, fazer o serviço por um preço baixo, cumprindo todasas exigências. Em segundo lugar porque todos pensam que este tipo inspira maiorconfiança, pode ficar na casa do freguês sem muito perigo de que algum objetodesapareça.

Como o biscateiro logo se adapta ao meio, ele consegue ficar tão espertoquanto o patrão, embora não tenha armas tão fortes. Por exemplo: o freguês marca

para lhe dar uma certa quantia em determinado dia e hora e empenha sua palavra.Neste momento, o biscateiro toca a campainha, a empregada olha pelo visor e diz:— Um momento.Vai lá dentro, volta e diz:— A madame está dormindo. Volta depois.— A que horas?, pergunta o biscateiro.— Daqui umas duas horas, diz a empregada.Até aqui já houve uma falha, mas, passadas as duas horas, volta o biscateiro e

toca novamente a campanhia. Volta a empregada e diz:— Ela agora foi à praia. Só depois do almoço.A esta altura, o saco do biscateiro já está abaixo do joelho, mas ele ri, dá um

«até logo» para a empregada e sai. O dia de trabalho já se foi.

Depois do almoço, ele volta e é recebido pela madame. Ela olha para ele e diz:— Olha, eu não vou pagar o senhor hoje, porque não tenho talão de cheques.

Volte amanhã.O biscateiro dá aquela risadinha e diz:— Está bem, madame.Ora, naquele dia, ele havia marcado com outro freguês para terminar um

serviço, com o seguinte esquema de trabalho: «Saio de casa às quatro horas, apanhoo trem das quatro e meia, ônibus das seis e meia na Central, para Copacabana. Àsoito horas teria de apanhar o dinheiro e sair para terminar a outra obra». Com a faltade palavra do freguês, ficou furado todo o plano e no dia seguinte se repetiu a mesmaestória. Com isto, o biscateiro ficou em falta com outro freguês, dando as desculpascabíveis. Mas seu orçamento sofreu um desfalque de dois dias de trabalho.

Com esta jogada ele vai ter de dar uma desculpa à mesma altura ao freguêsque ele deixou em falta; mas não cola ele dizer que estava dormindo às nove horas,

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não cola dizer que foi à praia, não cola dizer que o outro freguês «sacaneou» ele. Épreciso botar a cabeça para funcionar, com prudência. Para isto, a gente tem de estarligado aos fatos da cidade. Só cola um atraso de trem quando, de fato, algum trematrasou (fora do normal). Podemos ver, também, se, no nosso trajeto, houve algumabatida ou engarrafamento. Caso não haja nada disso, vem aquela desculpa de levar amulher ao médico, socorrer o vizinho, pagar o Imposto de Renda, e muitas outras. De-vemos ser sempre acreditados, pelo menos aparentemente, diante do freguês. Esta éa tática aprendida no meio ambiente.

Companheiros, a mesma desculpa para um mesmo freguês não vale. Não éaconselhável pichar o outro freguês para se defender. A desculpa é a maior arma.

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QUEM É O BISCATEIRO? 

EM GERAL,  é um sujeito aposentado pelo INPS ou um tipo que não quer assumirresponsabilidade com emprego, não se adapta ao sistema patronal, não gosta de sermandado ou vigiado. Pode ser também um bom profissional que se sente injustiçado

com o salário de empregado. Pode ser um elemento que está tentando subir na esferapatronal, sendo hoje um biscateiro que trabalha sozinho, depois pega um serviçomaior, arranja outro colega e se faz seu patrão. Pode ser um tipo gozador que perdeua confiança em tudo e em todos, em relação ao mundo do trabalho e à própriasociedade em que vive. Ele acha que não vale a pena fazer nada do que estáestabelecido para salvar a classe operária. Ser empregado para quê? Produzir para opatrão em troco de um salário merda que não satisfaz nem metade de suasnecessidades? Depois está submisso a uma legislação que não contribui para que elepossa adquirir seus direitos e possa ter a cabeça erguida, como trabalhadorconsciente de seu legítimo papel.

Não há um órgão de classe em que ele possa se afirmar. Os sindicatos atuammais como pontos de encontro para promoções de ordem social e recreativa. Assim,

fora dele, está livre de ser preso por qualquer bobagem que fale em defesa de seusdireitos e de sua moral de homem trabalhador. Sendo biscateiro, ainda acredita quepossa prestar algum serviço para o bem dos demais trabalhadores, embora não estejanuma fábrica ou numa assembleia sindical. Mas ele é operário, conserva seu espíritode trabalhador e seu maior desejo, sua maior aspiração é ver, um dia, todos ostrabalhadores serem homens de cabeça erguida, com sua barriga cheia, livres dosproblemas que os afligem, nos nossos dias. Esta, acredito eu, é a maior aspiração detodo trabalhador brasileiro.

Biscateiro de carreira:  Há, no nosso meio, com muita frequência, o tipo docarreirista, o biscateiro que tem de ser patrão a qualquer custo, ou tem as mesmasaspirações dos fregueses. Seu grande desejo é ter as mesmas coisas, viver o mesmopadrão e educar os filhos na mesma linha de seus fregueses. Este tipo é o que maisescandaliza e anarquiza a categoria dos biscateiros e dos trabalhadores, de modogeral.

Sua constante é querer imitar o patrão. Cria, logo, em si uma falsa aparência,concentra seu maior esforço para comprar um carro velho, mas este já lhe dá asatisfação de dizer, como o patrão: «meu carro». E dispara a se endividar e secomprometer com o comércio, querendo desenvolver uma dinâmica de um homem denegócios. Pega vários serviços, ao mesmo tempo, e vai pingando em cada um.Começa a requisitar outros trabalhadores e faz o seu quadro de pessoal aproveitandoos companheiros inexperientes, envolvendo-os em pequenas vantagens como: pagaruma pinga, de vez em quando; um prato feito, no dia em que ele não traz marmita; e ovale quase diário. Estes são os elementos-chave para amarrar um operário sem

experiência ou que está meio na sarjeta. Este, além de quebrar o galho fazendo oserviço, ainda recebe o pagamento em vale pingadinho de até um cruzeiro.Em pouco tempo, este biscateiro se considera meio-patrão e se refere aos

outros assim: «meu empregado». De fato, este cara tem de se transformar numgrande trambiqueiro, senão ele se arrebenta todo, em pouco tempo. Mas, para ser umtrambiqueiro de classe, o meio ambiente lhe dá uma boa ajuda, lhe fornece ascoordenadas principais.

Ele abre uma conta bancária para usar o talão de cheques no bolso com umaparte para fora da carteira, só para ser visto. Para o freguês, isto é importante. De-monstra que tem transação bancária. Depois consegue uma vaga de telefone e mandaimprimir cartão comercial, de boa apresentação. Outra segurança para o freguês.Passa a desprezar a ferramenta e a administrar os outros. Troca a camisa

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diariamente, faz a barba também diariamente. Em conversa com o freguês se refereaos trabalhadores usando a expressão «eles».

Para este biscateiro carreirista uma desculpa comercial, no caso de uma falta, já é bem cabível. Por exemplo: o dinheiro do freguês foi gasto em outro compromisso;o material foi comprado, mas não foi entregue; ou o material está em alta, o queacontece frequentemente. Este biscateiro também pode dizer que foi passar o fim desemana fora, ou foi para São Paulo. Ou então, seu empregado adoeceu e ele estáprocurando outro. Ainda funciona dizer que o carro enguiçou; foi a uma festa eacordou muito tarde; estava esperando uma visita; foi ao aeroporto esperar um amigoe o avião atrasou.

Nesta linha, ele tem um vasto campo de justificativas, as mais adequadaspossíveis. Só tem uma coisa: ele tem de ser muito seguro para não dizer a verdade.Se um dia um biscateiro carreirista der pinta de «duro» ou contar seus fracassos aofreguês, ele perde a confiança imediatamente.

Pode crer, biscateiro carreirista, mania de grandeza não muito exagerada émentir sobre os fatos que podem ser reais. Mas cuidado, mais uma vez advirto, averdade nunca, se não você não se mantém nesta posição e não será nunca um bom

trambiqueiro, o posto mais alto que um operário que nega seu meio ou que abandonasua classe pode atingir.Surge aqui a grande interrogação para mim: Em que ponto da escala social

está este elemento? Ele poderia ser um patrão, mas não tem os recursos materiais,apesar de saber negar o valor e o direito dos que trabalham com ele. Mas também nãopode ser considerado um operário porque um operário não pode ser um tipodescarado. Para ser um operário, de fato, é preciso que o homem tenha as mínimasqualidades, que pelo menos tenha orgulho do seu «eu», mesmo que muitas vezes nãopossa explicitar isto, mas, pelo menos, guarde esta convicção dentro dele para dartestemunho, no momento mais próximo e oportuno. Por que é tão importante para mimsituar uma pessoa na escala social? Porque se eu não sou um perito no assunto, pelomenos sou gente, sou operário, sofro as consequências de tudo que acontece na

sociedade, e sinto que 99,9% das deturpações, da falta de pudor, da degradação dahumanidade, vem da faixa de gente que não se compõe de trabalhadores ou que nãoestá ligada à produção.

Biscateiro tímido: Ha companheiros que têm muita dificuldade em se relacionarcom o freguês. As causas são a diferença de cultura e meio ambiente. Mas, acima detudo, atua um elemento muito forte: a boa-fé. Na verdade, o trabalhador, dentro de suasimplicidade, usa a sua sinceridade, não tem maldade e acredita que um freguês ésempre um homem ou uma mulher honestos, mas nem sempre as pessoas são aquiloque a gente pensa. Eu mesmo já levei trambiques de quem não esperava.

Bem intencionado, o biscateiro passa a tratar o freguês de uma forma que lhedá a condição de pagar o que quer por um serviço feito. A intenção é apelar para aconsciência do freguês, na hora da justiça. Ora, estas palavras: justiça e consciência,são muito relativas. Há sujeitos que acham justo o outro trabalhar para ele, o tempotodo, de graça e ainda exigem. Sentem-se merecedores e acham que são pessoas desorte. Outros pensam que quem trabalha não sente as mesmas necessidades; nãosente fome, não dorme, não veste, não anda na rua, não paga impostos, não sentenecessidade de se divertir etc. Por isto, qualquer bobagem paga o seu trabalho, não épreciso uma importância X equivalente ao trabalho que foi feito. Outros têm umapéssima maneira de avaliar o trabalho, que é realmente uma aberração. Fazem umaclassificação de valores que bota abaixo de merda a força de trabalho humano. Bastadizer que a empregada doméstica, uma das forças de trabalho mais presentes, nãotem o merecido valor. Desde o momento em que o indivíduo acorda, já é servido pelaforça de trabalho da empregada. Isto se repete por toda a sua vida. Depois, no

momento em que aparece um sujeito com um pedaço de papel pintado, ele pagamilhares de vezes mais que o serviço da empregada. Pendura o papel na parede, umpapel que vale mais que todas as empregadas do mundo, que lhe servem diariamente.

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Assim, está desgraçado o biscateiro tímido que deixa a critério do freguês avalorização de seu trabalho, pois a maneira de avaliar é esta de que falei. Para estagente a força de trabalho é um troço assim como ar e água. É indispensável à vida,mas não tem valor. Guarde bem este pensamento: por mais caro que você cobre porsua força de trabalho, você ainda não está cobrando o seu valor real.

Nossa força de trabalho é uma fração de nossa vida que, quando gasta, nãomais voltará. Ó dinheiro que recebemos nada representa como compensação. O quenos satisfaz é a convicção de que transformamos a natureza, mudamos um ambienteque passou a ser diferente depois que empregamos, nele, a nossa força de trabalho.Conscientes desta verdade, passamos a enfrentar o trabalho de um modo que nos dásatisfação, e não da maneira como nos é apresentado. Sem isto, o trabalho seriahumilhação, castigo, uma coisa vergonhosa. Para os outros, quem trabalha é sempreum sujeito sujo, grosso, sem boas maneiras. Por isso, é sempre renegado, tem deficar de lado, em seu mundo diferente.

É a partir daqui que vem a vontade imensa de muitos trabalhadores, de um diadeixarem de ser trabalhadores, e também que seus filhos nunca sejam trabalhadores.Dai vêm as deturpações: em vez do trabalhador aspirar para seus filhos a  sua

condição: operário, profundo conhecedor de sua causa, defensor de seus direitos, elepassa a desejar que seus filhos sejam doutores, passa a defender as coisas dosdoutores e nega a sua origem, a sua gente.

Por que, muitas vezes, não confiamos na verdade? Não tenho dúvidas que amaior verdade que Deus deixou no mundo foi a força do braço do homem. Foi nestaforça que Deus confiou para ampliar sua obra e aperfeiçoá-la.

Companheiros, a nossa timidez ou a nossa boa-fé nos coloca no lugar de umidiota. Custe o que custar, é nosso dever, não só como biscateiro, mas em qualqueroutra função, fazer valer a força do trabalhador, para que seja recompensada com justiça. Muitos valorizam e reconhecem a força de trabalho, sua utilidade para asociedade, mas não passa pela sua cabeça que o trabalho foi feito pelo trabalhador.Às vezes, pessoas com senso humanista, querendo fazer justiça, até contra a

crescente desvalorização do homem, passam a defender e valorizar o trabalho comoúnica fonte de vida para a humanidade, mas esquecem de elevar ao mesmo valor oprincipal agente do trabalho que é o operário.

É claro que qualquer afirmação que venha de alguém que não vive no mundodo trabalho é incompleta. Por isso, afirmo: não espere que os outros dêem o valor quequiserem a uma obra feita por você. Procure ser justo, mas, antes de >cobrar aofreguês, faça uma paradinha diante dele e, mentalmente, faça seu raciocínio: suasnecessidades são iguais às do freguês. Para ser justo, é preciso ver o mundo em quevocê está, porque, para quem está no mundo dos trabalhadores, a justiça é vocêcobrar por sua força de trabalho o suficiente para sua manutenção e dos seusdependentes. Já no mundo do freguês, justiça é outra coisa. É ele pagar pelo seutrabalho o mínimo que puder. Se conseguir um jeitinho de não pagar nada, a justiçaainda será maior.

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OS FATOS SÃO PROVAS

ESTAS CONCLUSÕES são tiradas dos fatos que encaro, no dia-a-dia. Para vocêssentirem o drama, o que é a mentalidade do freguês, vou citar alguns fatos:

No dia 2 de julho de 1974, fui solicitado para dar um orçamento, relativamentepequeno, que me levaria uns 20 dias de trabalho. Dei o preço verbalmente. Sendo omaterial fornecido por mim, implica que 50% deste valor já são destinados à comprade material. Expus as minhas condições, o freguês estava de acordo, mas exigiu umaproposta por escrito. A transação somava um total de dois mil e novecentos cruzeiros,quantia que representava para ele sete meses do salário de sua empregada. Elaarrumava seu apartamento de três quartos, duas salas, três banheiros, dependênciasde empregada, cozinha, área de serviço; cozinhava e lavava para o casal, dois filhos eum cachorro, sendo que o cachorro dava-lhe o trabalho de, de duas em duas horas,levá-lo ao terraço do edifício ou ao jardim para tomar sol e fazer suas necessidadesfisiológicas.

Mas, entregue a proposta, logo a seguir recebi o sinal de 50% e iniciei otrabalho. Corria tudo às mil maravilhas, eu fazia tudo conforme estava escrito.Faltando uma semana para terminar o prazo da entrega e três dias para concluir aobra, o dono da casa me pediu alguns detalhes que alterariam o trabalho tratado, mascomo não me custaria muito e a obra estava indo bem, concordei, para agradar ofreguês. Mas, a troco disto e para fazer sentir a barra, fiz uma retirada de dinheiro,deixando na mão dele o suficiente para cobrir três dias de trabalho, ou seja, trezentose cinquenta cruzeiros. Ele não chiou. Atendeu, no ato, causando até uma boaimpressão.

Finalmente, dei por concluída a obra e apresentei o recibo para levantar osaldo final. Neste dia, ele não me pagou e fez mais uma exigência de retoque' na parteque havia me pedido antes. Voltei no outro dia com as ferramentas e atendi sua

exigência. Neste dia, ainda, a dona não me pagou, pois era o marido que deveria fazero pagamento.Voltei, no terceiro dia. Novamente, o marido não estava, mas deixava um

recado: havia mais uma ressalva em relação à obra. Voltei, no quarto dia, atendi aressalva feita e este não me pagou. Pediu que mandasse o lustrador para um retoquefinal. Mandei o lustrador, no quinto dia. Ele fez o retoque exigido e me trouxe o recadopara que fosse receber. A esta altura, o tempo gasto depois da conclusão da obra jánão representava nada para mim em relação à importância e eu estava agindo emfunção de um dever moral. Mas, comigo mesmo, eu disse: «Finalmente terminou anovela». Mas me enganei. Chegando lá, o freguês me chamou e disse: «Olha, aindahá um ris-quinho aqui, mande o lustrador mais um vez para tirar este e eu mando odinheiro». Com aquela aparente delicadeza, eu disse: «Está bem» com a boca, mas,

no coração, eu explodia: «Filho da puta».Mandei o lustrador pela sexta vez, mas fizemos a seguinte combinação: ele ia,levava o material e espalhava tudo no meio da casa, para despistar, mas não farianada. Deixaria passar um tempo e depois chamaria a madame e perguntaria se estavabom. O lustrador, um amigo meu, tarimbado, armou muito bem a coisa. O que ele fezfoi molhar o algodão no verniz, sujar as mãos e passar o resto na sola do sapato, paragastar e sujar o algodão. Deu o tempo suficiente e chamou a madame. Ela olhou edisse: «Ah, agora sim!» Depois é que ele lembrou que pelo menos deveria ter tirado apoeira, mas como não precisou...

Ora, para este freguês, aquela importância nada valia. Só daria para pagar ummês de trabalho de sua empregada doméstica, mas era uma arma para dominar umtrabalhador, para trazê-lo a seus pés. Por outro lado, ele havia atendido uma

satisfação pessoal: a de ter feito um bom negócio, e um bom negócio acontecequando ele tem lucro e o outro, prejuízo. Para um banqueiro, um industrial ou um

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negociante, o prejuízo é quando o negócio dá menos lucro que o esperado. Mas, parao trabalhador, qualquer prejuízo, por pequeno que seja, vai cair direta-mente naalimentação dele e de seus familiares e em cima dos objetos indispensáveis à suasobrevivência.

Aqueles trezentos e cinquenta cruzeiros, pagos na hora, dariam direito acomprar um saco de arroz e outro de feijão, elementos básicos na alimentação demeus sete filhos e demais dependentes, por um período de 55 a 57 dias. Da formaque foi pago, anulou por completo seu valor e ainda me tirou a possibilidade de ganharoutros, no período que estava ocupado em função deste.

Outro detalhe não pode ser esquecido. Na quarta vez em que estive naqueleapartamento para receber o dinheiro, a madame me perguntou quantos filhos tinha,quando eu já estava de saída.

— Sete, respondi.— Coitado, o senhor deve trabalhar muito, não é? perguntou, levantando-se.—  Bem, madame, dou o meu durozinho.— Pois é, educação hoje ríão é fácil. Nós temos dois e já é difícil educá-los.— Bem, a educação não é lá tão difícil, respondi, pois na vida da gente

acontecem muitas coisas e cada fato é uma experiência que ganhamos, e estasexperiências podemos transmitir aos nossos filhos sem gastar nada. É sóconfiar neles e criar um clima em que eles possam nos ouvir e nos aceitar,respeitando-nos, na fase em que estão.

— Pois é, a dificuldade está em criar este clima de diálogo, porque a juventude de hoje é «pra frente», os pais são cafonas, não estão na deles, é o quedizem.

— Bem, para um homem de negócios ou de muitas preocupações com seusbens materiais isto deve ser difícil mesmo, e sei que eles não vão conseguir. Mas paranós é fácil. Quando chegamos em casa; eles já nos esperam para ver se trazemoscomida, algum dinheiro para a compra do livro que falta, porque a professora já estáchateando em pedi-lo todo dia, ou para o caderno que já acabou, para a meia que está

rasgada, o sapato que está furado; enfim, as necessidades do dia-a-dia nosaproximam, e como não podemos resolver tudo de uma só vez, todos os dias temosassunto, isto é o mais importante para nós. Tem mais, madame. Nós discutimos ascoisas destacando cada tema e dando a estes a atenção devida. Por exemplo: faltadinheiro, discutimos aspectos financeiros. Aí entra a desvalorização da mão-de-obra, alei da oferta e procura, mais trabalhadores,, e menos trabalho. Entram os aspectossociais e políticos. Se o dinheiro não dá para comprar o que necessitamos, surge aportunidade de discutir com os filhos a inflação, suas causas, a desvalorização damoeda, as emissões do governo fazendo mais dinheiro sem ter a quantidade deobjetos produzidos equivalente ao dinheiro circulante. Com isto, podemos mostrar, naprática, para os nossos filhos que só a força do trabalho é que cria objetos para uso dohomem e só objetos produzidos pela força de trabalho é que valem dinheiro (ouro).Para se fazer isto, madame, não precisamos de uma técnica sofisticada, de altasnoções de economia política, nem de sermos peritos no assunto. Basta mostrar umgarfo, um pacote de açúcar, uma cenoura, um caroço de feijão, por exemplo.Conhecemos bem todos estes objetos. Sabemos qual foi a sua origem, o caminho quepercorreram, o ponto em que estacionaram, quem pôs as mãos neles em cada umdestes estágios e, finalmente, por que chegaram às nossas mãos ou por que nãochegaram. Isto é difícil, madame? Para um brasileiro que sabe quanto o Pele ganha,quantos gols foram feitos na última copa etc. Já viu como não é preciso sereconomista? É só estar com o pé na terra, não se ligar muito ao futebol, samba eoutros ópios. Assim, educamos nossos filhos sem muito dinheiro e eles serãoequilibrados, no futuro.

É—

disse ela.—

Qual é a idade de seus filhos?— De 16 a 5 anos.— Espere aí que eu vou dar uma coisinha para o senhor levar para eles.

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Saiu e voltou com sete cofres plásticos. Um para cada um de meus filhos. Eurecebi, agradeci e quando ela fechou a porta, abri a tampa da lixeira e joguei os cofreslá dentro.

Sete cofres com propagandas das mais achatadoras de um grupo que impõe,por meio destes instrumentos, a troca de força de trabalho por papel pintado e dão aisso o nome de caderneta de poupança. Filha da puta. Que mentalidade! É, sãomesmo dois mundos. Então, lavem suas roupas que nós lavamos a nossa. Senti, maisum vez, com este diálogo, que somos iguais à água e ao óleo. Os dois são líquidos,mas não se misturam. Somos a mesma espécie, a mesma carne e o mesmo sangue,mas rico é rico e pobre é pobre.

Sinceramente, não estou satisfeito com isto. Não podia ser assim, tenhocerteza que Deus não está de acordo com isto e a prova que Ele quer tirar com estasdiferenças é esta: eu e outros trabalhadores estamos sendo inspirados para descobriresta verdade, ampliar esta mensagem e transmiti-la aos demais trabalhadores. Esta,eu tenho certeza, é uma inspiração de Deus. Ele foi sempre pela justiça e, hoje, omundo está cometendo uma grande injustiça com os trabalhadores, transformandosua força de trabalho em instrumento de destruição, de corrupção da humanidade, de

escândalo, anarquizando a sua obra.

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O BISCATEIRO E SUAS FASES

O BISCATEIRO,  como todo trabalhador, tem suas fases. Há bons momentos, mastambém há horas negras. Por esta razão é que não vale a pena ter muitas ilusões a

respeito de acumular bens materiais. É, acima de tudo, uma falsa ilusão o trabalhadorter como aspiração melhorar de vida com a sua força de trabalho. Já está mais do queprovado que quem trabalha não consegue algo mais que a comida indispensável. Sefoffhos tirar da comida para adquirir outras coisas, a título de pensar no futuro,antecipamos a nossa morte.

Mas, como não podemos acumular bens materiais, títulos, imóveis, fundobancário etc. Então vamos dizer, com isto, que a nossa vida é vazia e vegetativa. Háum tesouro pelo qual lutamos. E ele nos garante o futuro de trabalhadores, filhos edescendentes. É só aplicarmos nossa força e inteligência criando e produzindo ascoisas que embelezam e engrandecem o mundo, aperfeiçoando ainda mais a obra deDeus. Este é o nosso maior tesouro, pelo qual devemos lutar. Ele nos liberta, fazcrescer nossa consciência e nossa afirmação de sermos, verdadeiramente, os agentes

diretos e legítimos donos de tudo que passa pelas nossas mãos.Não somos nós quem merecemos as migalhas do produto de nosso trabalho. É

preciso que haja justiça no mundo, e nós, trabalhadores, somos, hoje, os responsáveispor esta justiça. Chega de ver nossa força de trabalho transformada em fumaça noscampos de batalha, ceifando a vida dos nossos semelhantes. Chega de ver nossaforça de trabalho transformada em objetos, dinheiro e fortuna acumulada nas mãos depoucos homens, para que estes a usem atendendo.a seus caprichos, orgulhos evaidades, sem se lembrarem que sua fortuna é a miséria de milhões de pessoas.

Com esta convicção nós vamos desconhecer os dias negros. Para mim, no diaem que não tenho dinheiro para o pão das crianças, e a mulher tem de fazer água defubá para as crianças, no café da manhã, é um dia negro. Também é quando só háarroz e feijão, no almoço e na janta; no dia em que não tenho o dinheiro da passagem;no dia em que trabalho trancafiado num apartamento sentindo o cheiro de comida boa,vendo a geladeira carregada de frutas, legumes etc., e eu das seis da manhã às cincoou seis da tarde apenas com o cafezinho. São dias negros...

Posso passar um dia sem comer nada e até uma, duas ou mais semanascomendo qualquer coisa. Isto tem se passado tanto na minha vida, principalmente nosúltimos dez anos, e eu sei que isto se repete com milhaltes de trabalhadores. Ora, afalta de comida não me afronta, não me leva à angústia ou ao desespero tanto como ahumilhação que sofremos pelo simples fato de sermos trabalhadores. A falta decomida eu consigo superar assim: No momento em que eu recebo um dinheiro, minhaprimeira atitude é comprar as coisas para comer, que estão em falta e, como nós nãonos preocupamos em guardar dinheiro, o que sobra vamos usando e preenchendo as

outras necessidades mais imediatas. Tomo uma cervejinha, compro refrigerantes paraas crianças, vamos ao cinema, à praia e libero uma gra-nazinha para cada garoto paraeles aprenderem a usar a força do meu trabalho transformada em dinheiro.

Isto compensa um pouco o que sofremos nos dias anteriores e o que vamossofrer nos próximos. Visto por outros, este fato é encarado como desorganização, umacaracterística de um desajustado, o certo seria colocar o dinheiro na caderneta depoupança. Mas, para mim, não vale a pena botar trocadinho na caderneta depoupança, porque ele não vai ser útil para mim, serve mais para os bancos e opessoal que transa com ele, do que para mim que o deposito.

Para mim, a satisfação de um momento, como tomar uma bebida que me dáprazer, uma diversão, ver uma criança saindo com o seu trocadinho na mão paracomprar uma bala ou um picolé serve mais à vida do que juntar dinheiro pensando no

futuro. Futuro... Que futuro? Nós, trabalhadores, pensando em bens materiais nãotemos a menor chance de futuro. Se insistirmos em pensar nisto ou acabamos no

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hospício ou morremos primeiro que o previsto, por falta de capacidade de resistência.Alguns chegam a se preocupar com sua velhice. Mas vejam o meu ponto de vista: Asociedade tal qual está organizada precisa de uma boa porção de gentedesamparada, isto é, indigente. É indispensável a figura do indigente e eu comopretendo dar o mínimo de apoio a sociedade em que vivo, para aplaudi-la, vou lhefazer este grande favor — vou prestar-lhe um grande serviço sendo um de seusindigentes, figura indispensável a uma sociedade como a nossa.

Ora, sem o indigente como é que as pessoas que vivem em conflito com a suaconsciência, por viverem solapando a força de trabalho dos outros sem dar nada emtroca, vão viver? Uma esmola a um indigente é, para elas, uma caridade, um alíviopara sua consciência, principalmente para os que se dizem cristãos. De mais a mais,não há muita diferença em ser um indigente comum ou ser um indigente «segurado doINPS». O tamanho da fila é o mesmo. O tipo de atendimento não é diferente. O tempoque você leva para ser atendido também não é muito diferente e você como indigentecomum tem uma vantagem: não leva esporro de médico, nem nome de preguiçoso.Você só vai até lá se está realmente doente e eles atendem sem a preocupação de

pensar que você está fingindo uma doença.

E tem mais: não acho que estou recebendo favores se cair na rua e mesocorrerem, dando-me um leito de hospital. Isto não é nada, em relação a tudo que jáfiz na minha vida em função da espécie humana. Trabalho desde os seis anos, comferramentas de marceneiro e carpinteiro. São 28 anos fazendo mesas para ossenhores comerem, escreverem, se reunirem etc.; cadeiras para vocês se sentarem;armários para guardar suas roupas e objetos; camas para vocês dormirem, e umainfinidade de coisas que passaram pelas minhas mãos. Dai, qual o favor que estão mefazendo? Estão apenas retribuindo um pouco do que me tiraram e do muito quevão,tirar dos outros trabalhadores. Por isto, não preciso mais contribuir com nada alémdo que já contribuo porque passa a ser excesso de contribuição.

Pode parecer gozação ou cinismo um homem sonhar com o futuro pensandoem ser indigente. Mas se colocarmos os pés na terra e quisermos ver a realidade defrente, o que está escondido é ,apenas uma questão de identidade, rótulo diferente namesma mercadoria. Por exemplo: um trabalhador que levou toda a sua, vidaganhando uma migalha de salário que nunca deu para ele satisfazer nem a décimaparte de suas necessidades vitais vive à margem de quase tudo que existe para o usodas pessoas. Às vezes, desconhece até um determinado objeto útil para sua higiene,alimentação, saúde, cultura etc. Este homem tem o título de trabalhador e ele é,realmente, um trabalhador, mas é um marginalizado que não tem sequer coragem deestender a mão à caridade pública para pedir auxílio aos outros, para adquirir osobjetos necessários à sua vida. Então, ele acaba na /serjeta do mesmo modo. Só não

é um indigente oficial, mas é um indigente anónimo.O que representa, hoje, um salário mínimo? Um auxílio doença ou até mesmouma aposentadoria do INPS? É apenas o preço para o trabalhador se ocultar, nãochamar a atenção e continuar sendo um indigente anónimo. Ora, no pé em que estãoas coisas e no pé em que continuam a caminhar é preciso muito esforço dostrabalhadores para descobrirem como e quando estamos sendo indigentes, oficiais ouanónimos. Olhe, eu não sou um indigente oficial, ainda, mas quantas vezes não tenhoo dinheiro para comprar o pão do café da manhã? ^ Quantas vezes não tenhoalmoçado? Quantas vezes não tenho o dinheiro para a passagem? Quantas vezesficamos acumulando doença, eu e minha família, esperando a/ maré melhorar parapoder comprar os remédios? Quantas vezes as crianças perdem aula porque nãoposso comprar um caderno ou o livro pedido e a professora não tolera mais? Tudo isto

acontece com um indigente anónimo.Bem, deve haver outra saída a não ser a de me transformar num indigenteoficial, mas estas saídas não serão dadas por quem criou e alimenta a situação

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presente. As saídas só serão encontradas pelas próprias pessoas implicadas, no casoos próprios trabalhadores tomando consciência de tudo isto e se negando cada vezmais a se prestarem como instrumentos, e quem quer que seja. De alimentar suasfontes de prazer, de vaidade, suas taras, ambições, orgulhos.

Deus deixou o homem dotado de inteligência, mas deu a este homem os meiospara ele desenvolvê-la. Hoje, está mais do que provado, pela ciência, que oselementos fundamentais que Deus deu ao homem para desenvolver sua inteligênciasão: alimentação, descanso proporcional à sua jornada de trabalho, possibilidade depensar, condição de criar amizades e bom ambiente.

Então, o homem desenvolve sua inteligência e, com ela e a força física dosbraços, resolve todas as dificuldades que surgem. Deus foi muito bom e generoso, deuao homem poderes imensos. Já pensaram? O homem domina a natureza.

Mas os homens se prostituíram e, na ambição de tirarem proveito uns dosoutros, fizeram uma covardia muito grande: bloquearam a consciência dostrabalhadores para poder mante-los aos seus pés, como escravos. Contudo, como aHistória tem mostrado, é uma constante a exploração de uns e as tentativas delibertação dos outros. E tal qual o mundo está hoje, podemos dizer que quem explora

é do grupo explorador e quem trabalha é do grupo oprimido que tem de se defenderdos opressores. Cada um defende interesses diferentes. Os opressores se aliam unsaos outros para oprimirem mais. É necessário, então, que os oprimidos utilizem amesma arma-, unindo todos os trabalhadores, todos aqueles que vivem d£ um salário,seja ele qual for. Todos ficarão de mãos dadas com o propósito de se defenderem dosambiciosos e dos homens que causam tanto mal ao mundo, daqueles quedesrespeitam a Deus. Já não é mais estranho para nós que um homem, para manter-se numa posição de mando, levantar mais sua fortuna ou para acumular maiorquantidade de bens, mais riqueza, é capaz de tudo. Todos nós estamos cansados dever estes fatos. Em 1970, um sujeito matou pai, mãe e avó para ficar com a fortuna.Os grilheiros e senhores de terra matam, em grande escala, trabalhadores, posseirosou qualquer outro que teme pôr em risco suas propriedades. No campo industrial e

comercial, os assassinatos variam muito em suas modalidades, mas sabemos quetodos os meios são usados para que quem é rico fique mais rico e quem é pobre fiquemais pobre.

Isto cresce dia após dia, ano após ano. A fome e a sede de ter se alastra etoma conta do mundo. E quem é a fonte de fazer riquezas? A única fonte de riqueza éo trabalhador. Riqueza não vem no vento, não nasce espontaneamente na terra. Nãose obtém em sonhos. Não é transformada dentro de nós, como o mijo e a merda. Ri-queza é algo feito pelas mãos de alguém que foi trocado por outro objeto ou foitomado de quem o fez. Nenhum homem, na face da Terra, tem capacidade de, comsuas próprias mãos, criar uma quantidade tal de objetos que dêem para ele ficarpossuidor maior que os outros, milhares e milhares de vezes.

Pela lógica, não é válido ninguém ficar rico, mas é merecido ter as coisas.Principalmente quem as cria e as constrói com as próprias mãos. Se um pescador vaiao mar e pesca muito peixe, quando chega da pescaria ele come peixe, dá peixe aosamigos e troca o que sobrou por objetos que ele precisa. Mas, se o pescador chega dapescaria com seu peixe e tem um sujeito na beira da praia que lhe toma o peixe,mesmo lhe dando alguma coisa em troca, o pescador já não fica tão satisfeito, não fezo que gostaria de fazer.

O mesmo acontece conosco, os trabalhadores. Tomam o nosso trabalho, dãoum salário em troca e vão fazer com nosso trabalho coisas que não são do nossoagrado e que são contra nós, e o que é contra os trabalhadores é contra Deus. Sim,

está escrito: «Tudo que fizeres a um dos meus é a mim que o fazes». O trabalhador éo braço de Deus. Por conveniência, muitos não querem acreditar nisso.

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Com isto, vimos que o biscateiro, como todo trabalhador, tem suas fases, masestá claro que é inteligente e, quando sua mente não está bloqueada, ele é capaz dedemonstrar sua capacidade, sua inteligência, em qualquer circunstância, mesmo nãocontando com aqueles fatores básicos: alimentação, repouso, escola etc. Otrabalhador só não deve querer entrar na onda do patrão, querendo se transferir para

o lado dele ou se julgar um fracassado, entregando-se à bebida ou outro vícioqualquer.

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A FÉ NA VIDA

AINDA TENHO FÉ. Depois de chegarmos a uma situação merda, em que um trabalhadorprecisa trabalhar três dias para se alimentar em apenas um, mesmo assim ainda tenho

esperanças.Sim, partindo do princípio de que um trabalhador, hoje, ganha como saláriooficial Cr$ 12,00 por dia, ele pode fazer as seguintes despesas diárias:

— Café da manhã: 1 copo de café com leite e pão na manteiga, pagando aimportância igual a 1 hora e 15 minutos de trabalho (Cr$ 2,00, aproximadamente).

— Passagem: ida e volta estaria entre Cr$ 2,50 a 3,00, ou seja, duas horas detrabalho.

— Almoço: um prato feito da pior espécie, no restaurante mais ordinário quehouver na cidade, a Cr$ 5,50, o que representa quatro horas de trabalho.

— Na janta, ele precisa gastar mais quatro horas de trabalho para outro pratofeito.

— Aluguel de Cr$ 210,00 por mês é igual a Cr$ 7,00 por dia,

aproximadamente cinco horas de trabalho por dia.É esta a situação concreta que estamos vivendo no Rio de Janeiro. Em

setembro de 1974, para um trabalhador comer dois pratos feitos de ícomida, um copode café com leite, pagar suas passagens e morar numa casinha de subúrbio tem detrabalhar 16 horas por dia, sem faltar um só dia, durante o ano. Mesmo assim, terá deandar totalmente nu, descalço, não adoecer nunca, não comer nada além do que foiespecificado acima, não ter família, não se divertir, não ir a lugar algum a não ser parao trabalho, não pode tomar banho com sabão. Roupa, ele não lava porque não tem.Não pode varrer a casa porque não tem vassoura.

Mesmo assim, a situação ainda seria boa, se o trabalhador pudesse trabalhar16 horas por dia. Apesar dos pesares, ele comia todos os  dias dois pratos feitos e to-mava café. No momento em que resolvesse fazer outra coisa, deixaria de comer efaria com aquele dinheiro outras compras. Contudo, com a jornada de trabalho deapenas oito horas ou algumas horas de serão, ele terá de reduzir tudo pela metade.Se tomava um copo de leite e dois pães, terá de tomar meio copo de leite e um pão.Se comia dois pratos feitos, passará a comer apenas um. Se pagava aluguel, passoua morar na favela.

Como vimos, uma situação concreta. Não estou inventando nada e nem o quepresentei é um estudo de alto nível. Qualquer pessoa pode chegar a esta conclusão.Vimos que faltam muitas e muitas coisas na vida de um homem que trabalha e estassão substituídas pela fé. Ele consegue satisfazer todas as suas outras necessidadescom a fé, que faz com que ele esqueça que o mundo existe, e ele faz parte dessemundo. Mas o pior de tudo é que, às vezes, ele não tem fé em Deus. Isto é que é

difícil de entender. Mas a verdade é que o trabalhador tem muita fé, que faz com queele esqueça que existe, que é homem e que tem uma vida igual à dos outros homens.Por incrível que pareça, os homens de poder conseguiram uma coisa que Deus

não conseguiu ainda. É fazer com que os trabalhadores acreditem nele, totalmente. Sebem que Deus não usaria e nem vai usar métodos tão baixos e degradantes para sefazer acreditar. Os trabalhadores ainda acreditam em promessas, em estatísticas, nosslogans da propaganda que o desafia e vence em quase todos os momentos. Acreditanuma forma de desenvolvimento abstra-to que nunca vai atingi-lo. Acredita em metase planos que nunca chegam a concretizar-se. Tudo isto são coisas que valem para otrabalhador como se fossem comida, roupa, diversão, saúde e moradia. Ora, Deusganharia com facilidade a confiança do trabalhador, se usasse estes métodos citados.Mas Deus tem muita moral para não fazer um troço destes. Se, por acaso, tem algum

homem que, em nome de Deus, entra neste esquema, aliando-se aos poderosos, estátraindo seu mestre do mesmo modo que Judas.

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Bem, afinal, é o homem quem precisa confiar em Deus. Mas, como há umagrande inversão das coisas, é bem provável que Deus esteja estudando uma melhorforma de ajudar os homens. Nisto eu acredito. Sei que Deus vai mudar radicalmenteas coisas, aproveitando muitas experiências do passado. Ele confiou nos homenspequenos do passado e se deu bem; procurou os humildes, os pescadores, oshomens simples, como Moisés, que lhe prestou um grande serviço. Com aqueleshomens ele orientou o mundo, numa fase difícil, mas com certo equilíbrio e muitoêxito. Por isto, sem querer entrar no pensamento de Deus, mas com. a franqueza quehá entre nós e com a confiança que fènho nele, sei perfeitamente que Deus estáconfiando nos trabalhadores para que seja corrigido tudo que há de errado no mundoe para dar equilíbrio à sobrevivência da humanidade. Em todas as fases que otrabalhador atravessa, ele sempre consegue se adaptar e dar um jeitinfto para cadauma delas. Mas há uma que não é superada com facilidade: quando conseguimosdescobrir que somos gente e que todas as riquezas do mundo são produto das nossasforças; quando sentimos que apesar deste infinito poder que temos sobre a criaçãodas riquezas; quando sabejnos que somos os últimos a sermos ouvidos ou nuncasomos ouvidos; quando sentimos que não temos nada, não somos nada, o que passa

por nossas mãos não ç nosso mérito e é transferido aos outros o valor do que é nossoe do que fazemos, quando chegamos a este ponto é difícil uma adaptação a esteestágio. Então, só há duas saídas: ou a fuga — o homem se esconde na bebida ououtro ópio qualquer — ou enfrenta a situação correndo todos os riscos e entregandoseu pescoço à guilhotina. São dois extremos e ambos condenam o homem a umisolamento quase total do resto do mundo. É, realmente, um momento difícil, pois nãoconseguimos acender uma vela a Deus e outra ao diabo. Isto, para nós, é traição, masé preciso viver e, no momento de acender esta vela para o diabo (este é o preço davida), temos o maior sofrimento para nós.

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A INSEGURANÇA DA SEGURANÇA

QUANDO SOMOS SOLICITADOS por um freguês para fazermos um serviço, já sabemosque foi feito um bom levantamento da nossa vida. Eu, para penetrar na casa de um

ricaço qualquer, sei que ele precisa saber quem sou, realmente. Tudo é feito commuito cuidado. Mesmo que tenha sido apresentado por um amigo que já lhe disse deonde me conhece, se sou ,ou não de confiança e até que ponto ele pode confiar emmim. O freguês precisa saber se posso ver as coisas à vontade sem. tentar roubá-las,se costumo pegar o dinheiro combinado para fazer o serviço e sumir; se costumo ficarmuito tem po com o serviço sem terminar; se sou de ficar olhando mimo para o quetem no apartamento; se sou de receber todo o dinheiro antes de terminar a obra; sesou assaltante, se moro em favela, e muitas outras coisas.

Dependendo do grau de confiança que tenha pelo seu amigo que meapresentou e da impressão que eu tenha causado, passo a trabalhar no apartamentosob um regime de vigilância disfarçada. Alguns chegam a nos testar deixando jóias debaixo valor e até dinheiro em lugares de fácil acesso, ou seja, na nossa vista, fingindoesquecimento. E, por trás, observam as nossas reações. Após constatarem quesomos de confiança, passam a entregar-nos as chaves da casa ou saem de casa,deixando-nos trabalhando, mas sempre que, acontece algo de anormal, o primeirosuspeito somos nós. Veja o exemplo: Conheci um casal que me foi apresentado porum padre muito conhecido que parece acreditar em mim. Trabalhei para este casal nadecoração de seu apartamento, fiz muitas obras e o considero um cara bom. É,realmente, um homem de caráter, tem boa visão social e esta  por dentro de todosestes problemas da sociedade de classes e parece até preocupado. Mas, como jádisse, tem outra vivência, é um engenheiro, professor universitário que, apesar de suapreocupação, está em outra posição social e o seu meio não é o de um trabalhador.Por isso, tem suas marcas que o caracterizam como um burguês qualquer.

Já o conhecia há bastante tempo, este acreditava em mim, me apresentava amuitos outros fregueses, passamos até a ter uma relação de amizade. Só que, mesmoneste caso, faço questão de frisar bem — ele é doutor e eu sou operário. E, em maiode 1974, este amigo me pede que lhe arranje uma empregada e eu tenho disponíveluma pessoa de minha confiança, por sinal uma menina que foi criada comigo. Levei-aa ele e ela passou a trabalhar como sua empregada doméstica. Certo dia, precisandode entregar um objeto em-ysua casa, mandei minha filha mais velha, de 14 anos,e'como ela não o encontrou entregou o objeto à empregada, conversou um pouco,pois eram amigas, e voltou, por volta do meio-dia. O casal trabalhava fora e sóchegava à noite. Ao chegarem em casa, foram avisados que minha filha estivera lá e,neste momento, deram por falta de 100 dólares que haviam chegado da Europa. Amadame alegava ter deixado o dinheiro em cima da mesa da cabeceira.

Faltavam dez minutos para a meia-noite quando bateram lá em casa para mecomunicar que a empregada havia roubado os seus dólares. Mas, como meconsideravam muito e como minha, f ilha havia ido até lá eles preferiram abafar o casoe perder o dinheiro, mas estavam muito decepcio-jiados. Senti quase um choqueporque não esperava isto deles, mas logo me situei: «Puxa! eles não são traba-lhadores, não sentem o que eu sinto, têm outra mentalidade». Daí passei a ouvi-los eassegurei que eles não perderiam o dinheiro, pois tinha certeza absoluta que, se nãoentrara outra pessoa em seu apartamento, o dinheiro não havia sido roubado. Demanhã cedo, iria até lá falar com a moça que apresentara como empregada. Mesmoassim, havia uma sugestão dada por eles — que eu verificasse a bolsa da minha filhaque poderia ter guardado o dinheiro «por engano». Houve também a sugestão dopadre, amigo da família, que os acompanhava — que eu ameaçasse entregar a

empregada à polícia para sentir suas reações, enfim, fazer uma tortura psicológica.

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Tive muita pena dos três. Pensei comigo? «Em que fossa está essa gente».Senti tanta pena que tentei levantá-los dando possíveis justificativas que poderiam terlevado a moça a cometer tal atitude, mas sempre admitindo a hipótese da madame terguardado o dinheiro em outro lugar.

Voltaram para casa e, ao chegarem, a primeira coisa que encontraram foi odinheiro. Estava no fundo de uma caixa de xarope, bem dobrado, num lugar discreto,para não ser roubado. Tudo isto foi feito com o máximo de sigilo para que aempregada não soubesse, como não sabe até hoje. No dia seguinte, quando chegueilá para falar com a empregada, o casal já me esperava para pedir desculpas. Fez suaautocrítica e se justificou da melhor maneira possível.

Ora, este fato já é bem rotineiro, mas ainda não havia se passado comigo. Mas já estou bem familiarizado com ele. O que me chamou ímais a atenção foi sentir queaqueles dois são pessoas de cultura, ele europeu, e vivem neste estado. Faça ideia osoutros que estão por aí com maior carga de frustração. Em que merda não anda estagente? Para este casal, este fato serviu muito porque, como são pessoas conscientese preocupadas, pararam e até se beneficiaram mais do que se' tivessem ido a umpsicanalista. Mas a maioria não reconhece ter cometido um engano, não dá a menor

importância ao fato. Não vêem que os maiores erros ocorrem no seu meio.Por exemplo: onde mais se consomem entorpecentes? Nos apartamentos eambientes frequentados por pessoas de maior poder aquisitivo. Onde está o maioríndice de prostituição? Exatamente nos escritórios de luxo e também nosapartamentos. A baixa prostituição não representa nada diante do escândalo e dapouca vergonha que vemos dentro dos edifícios, nos bancos de automóveis, nosrecintos isolados aos quais só eles têm acesso. Enquanto isso, nós estamostrabalhando. Vai daí o meu voto de louvor à prostituta livre, aquela que encara defrente a sociedade, seu corpo é sua ferramenta de trabalho. Esta merece o meurespeito, ela luta pelo mínimo indispensável: morar, vestir e comer.

Por outro lado, sinto que são este tarados toxico-maníacos que, no futuro,serão os mandantes do povo e, se hoje já vemos a violência desenfreada em nome da

Lei e da Justiça, com este índice crescente de viciados e desajustadospsicologicamente, quem vai sofrer são os trabalhadores do futuro. Bem sei que amaior preocupação em se repelir o crime não é neste campo de degradação humanaque começa ;na classe média e sobe, mas não deixa de ditar o escândalo para aclasse mais pobre. A maior preocupação é acusar, reprimir e matar os assaltantes àmão armada, alegando serem estes o maior perigo para a sociedade. Ora, oassaltante de esquina é um pobre diabo. E eu ainda o considero o mais honesto, eleestá arriscando sua vida para arrochar um trabalhador, sabendo que não leva maisque o suficiente para uma comida.

Agora pergunto: qual a diferença em ser roubado por um assaltante que usacomo instrumento um revólver, e outro que usa uni escritório, uma loja, umsupermercado, um banco etc.? Os instrumentos são diferentes mas, na verdade, anossa força de trabalho é sugada escandalosamente.

É gozado. Aparentemente, as pessoas são de uma segurança incrível. Elaspróprias chegam a se reconhecer fortes, os fracos somos nós, os pobres, como falam,os incultos e ignorantes. Mas eu digo: O que seria destes ricaços se, pelo menos umdia, se vissem com metade dos problemas de um trabalhador? O que fariam estescaras se, um dia, não tivessem um tostão para comprar o pão? Isto nós tiramos deletra. E quando uma pessoa de casa adoece? Claro que os ricos buscam os recursosaté de uma forma dramática, fazendo empréstimos nos bancos ou recorrendo aamigos e familiares. Nós não temos estes recursos, mas não somos insensíveis- aestas coisas. Bem que gostaríamos de buscar todos os i recursos para salvar a. vidade um dos nossos ou amenizar seu sofrimento, mas, como não temos outro jeito,

admitimos a perda ou o sofrimento.Lamentavelmente, muitos trabalhadores admitem isto de forma errada,alegando a sorte, o azar ou a vontade de Deus. Eu já penso de outra forma. As coisas

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que não posso dominar, que não posso resolver materialmente é porque não estão aomeu alcance, foram retiradas de mim, mas existem e estão em poder de outros que,de uma forma ou de outra, se apoderaram do produto de minha força de trabalho.Pois, pela lei natural, a verdadeira lei de Deus, o homem é um só, com ,jgualdade dedireitos e deveres. Sei que sou homem e tenho a mesma capacidade de qualqueroutro homem. Isto é a maior fonte de descoberta da existência do criador do Universo,Deus. As coisas que levam à demanda, na relação entre os homens, são produto dopróprio homem— uns querem engolir os outros— e nada têm a ver com a vontade deDeus. A verdade é esta: todos merecem, todos vivem, todos morrem.

O homem, tão logo esgote sua capacidade física de resistência, morre, sejarico, seja pobre, dominado ou dominador. Ele não foge à morte. Mesmo assim, atentação é grande. O homem quer fugir da morte, mesmo sabendo que não consegue,mas, com sua inteligência, consegue um jeitinho de transferi-la, para um tempo maisprolongado. Só que para fazer isto ele terá de antecipar a morte de outros. O homemdescobriu que, se ele for mais alimentado, se trabalhar menos, se tiver os objetosessenciais à sua existência, ele pode prolongar sua vida. Mas quem vai trabalhar paraproduzir o que ele vai consumir é o outro. Conseqiientemente, quem vai, se gastar

primeiro também é o outro. Vem daí a pergunta e a resposta: por que, em umasociedade, existem dois grupos de pessoas: um que tem média de vida de 44 anos(segundo a Fundação Getúlio Vargas) e outro que tem a vida mais prolongada?Também se explica por que existe nação pobre e nação rica, povo desenvolvido epovo subdesenvolvido. Estas coisas são armadas pelas mãos dos homens. É umquadro bem montado e jogado pedra por pedra como se fosse um xadrez, para quetudo dê certo, mas é tudo artificial. Os homens se articulam e se organizam. Hoje, jáhá um plano mundial para poupar energias de uma porção e prolongar seu tempo devida e antecipar a morte de muitos outros.

É engraçado como os homens jogam com um descaramento tão grande e commeios tão requintados que chegam até a inverter os papéis aos olhos dos outros. Háuma aparente preocupação, por parte de muitos, no sentido de melhorar a vida dos

trabalhadores, em combater a fome no mundo e fazer justiça. Ora, o que se sente nofundo de tudo isto é a insegurança. Por um lado, os que já têm fortuna, com medo deperdê-la e em busca de melhorias individuais, já que não podem se livrar da morte,pelo menos, a transferem para outros, por mais algum tempo. Então, vem toda aquela jogada que é simplesmente para justificar suas intenções, como alegar sorte, destinoe, principalmente, Deus. Com isto, os homens conseguem dominar a mente dos quetrabalham, pois todos sabem que, quando uma coisa não pode ser feita, não se tentamais fazê-la. Se é dito para nós que as coisas que acontecem são por culpa da sorte,aí já bloquearam toda a nossa possibilidade de imaginarmos e nos libertarmos delas.Quem é a sorte? Onde ela mora e que forma tem? Como se pode agarrá-la? Omesmo acontece com Deus. Ele nos foi revelado de uma forma que passamos a vê-locomo um poderoso que castiga e depois quer que todos se rendam a seus pés lheagradecendo o castigo com medo de outro maior. Também passamos a acreditar queEle tem o direito de fazer suas injustiças: matar, dar o castigo a uns e boa vida aoutros, sem que ninguém reclame.

Com a mente dos trabalhadores bloqueada desta forma, eles se acomodam aofatalismo e os outros passam a mandar neles, decidir por eles e dar-lhes apenas osuficiente pára que se mantenham vivos por uns tempos, só enquanto eles possamprestar serviços.

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CAMINHO DA LIBERTAÇÃO

JA NÃO TENHO QUASE NADA a dizer, acho que já disse tudo. Também não souromancista e isto não é estória retirada da minha imaginação. Isto é a vida da gente e

por isso não se encerra aqui. Depois de pensar muito no que escrevi, estou certo deuma coisa: os trabalhadores têm muita possibilidade de saírem da miséria em quevivem e darem ao mundo um aspecto diferente, uma apresentação mais digna ehumana. Mas, para isto, o trabalhador terá de conhecer toda esta montagem e sabermudar as peças do xadrez. Isto é trabalhoso e difícil, mas é possível. Já foi feito umavez, para que fôssemos dominados, pode funcionar para a nossa libertação.

Companheiros biscateiros e trabalhadores, em geral, ainda é tempo de salvaralguma coisa. Nossos filhos ainda estão a uma certa distância da pouca vergonha queexiste por aí. Graças a Deus que nosso baixo salário não dá para comprar carro egasolina, moto, não dá para comprar cigarros de maconha. Nós ensinamos os nossosfilhos a trabalhar e todos sabemos que o trabalho cria grandezas. E, se a nossaaspiração for a de sermos trabalhadores, daremos aos nossos filhos a nossa formação

do trabalho, isto é, uma ocupação que é para eles também uma educação. Se asatenções estiverem voltadas para o trabalho, raramente eles darão atenção ao vício eà degradação.

Faço apenas uma ressalva: sou partidário do trabalho, mas não para sofrer porele e sim para me realizar com ele. Reconheço o trabalho como meio de salvação dohomem, não como meio de sofrimento e castigo. Trabalhar sim, e ser beneficiado com justiça, com o produto do trabalho. Isto quer dizer trabalhar e lutar para ser beneficiadopor isto.

Todo trabalhador que consegue descobrir que a sorte não existe, que Deus é ocontrário do que lhe foi apresentado— existe, tem poderes, mas não para humilhar ostrabalhadores e trazê-los a seus pés, nem é o protetor dos ricos— já está caminhandoem direção da libertação. Ele já quase libertou sua mente. Sua libertação material sóse dá com a libertação de toda a classe.

Libertar nossa mente é uma tarefa muito árdua. Ela está de todo bloqueada.Não somos nós que pensamos, não somos nós que fazemos as coisas por nós, nãosomos nós que temos o gosto do que gostamos. São os outros que nos revelam ascoisas e só revelam o que é do seu interesse e o que lhe serve. Mas nós somos amesma espécie e temos a mesma inteligência e vamos descobrindo as coisas semque nos sejam reveladas. Para isto basta que cada trabalhador se sinta forte, capaz econfiante. Basta que ele não se entregue à bebida, ao máximo; não se abata com oque acontece e tente entender as coisas sem querer resolvê-las a passe de mágica,ou com uma simples revolta. A revolta não vai além de um desespero e, às vezes, nãoleva a nada. É mais uma perda de energias. Cada trabalhador deve ser um homem

preocupado, atento a tudo e a todos, convicto de que temos uma missão. Há ummundo em decadência e os poderosos não terão condições de o levantar. Eles já ofizeram cair. E só a força do trabalho é capaz de dar um testemunho de paz, amor efraternidade.

Vamos transmitir para o mundo aquela solidariedade que existe entre nós — quando, dentro da seção na fábrica ou na oficina, temos todos o mesmo pensamento,o primeiro que avista o chefe ou mestre faz logo o sinalzinho para os outros a fim deque ele não os pegue em flagrante. Vamos transmitir toda a nossa alegria em face àsituação arrochada em que vivemos — na hora do almoço ou lanche, ficamosagachados em grupos pequenos ou grandes ouvindo uma piada ou uma estóriaengraçada do companheiro que nos proporciona sempre um sorriso. Vamos transmitir,também, para esta gente que zomba de nós a confiança que temos no colega que

está ao nosso lado, muitas vezes segurando a alavanca pesada de uma máquina ouacio-nando um botão. Dele depende à nossa vida e estamos sem o menor receio de

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que nosso companheiro venha a errar e a máquina venha a nos atingir. Quantas vezesentramos debaixo de uma lingada de muitas toneladas ou em uma ponte giratóriacarregando enormes pesos e sabendo que, às vezes, é até um servente que estáoperando, mas temos confiança nele e não na máquina. Se ele se descuidar, amáquina não nos salva.

Contudo, devemos reconhecer muitos fracassos de companheiros nossos, nostraindo e dando mais ouvidos aos patrões do que às experiências vividas no seu meio.Mas isto é uma fase do indivíduo e, quanto mais ele puxar o saco do patrão, maiscedo vai descobrir que traiu seus colegas.

Há, realmente, momentos agradáveis, no nosso meio de trabalho, que causaminveja e os patrões até tiram proveito disto, em seu benefício. Quase sempre, no setorde trabalho, temos colegas em quem confiamos nossos problemas mais íntimos, quenão temos coragem de contar nem mesmo a um parente. Mas com o colega nóstemos esta afinidade, que nos alivia. Isto também se passa comigo. Já me desabafeimuito com colegas e já ouvi muitos companheiros angustiados. E, graças a estaconfiança mútua, muita coisa se modifica dentro de nós. Quando a gente não visa,

com as nossas amizades, tirar proveito de qualquer coisa do companheiro, estaamizade passa a ser pura, desinteressada, leal. Passamos a sentir o outro como sefosse nós mesmos. Isto não é raro, dá-se com muita frequência com as pessoassinceras, que não visam explorar nada do outro. Há aí um clima de segurança e duplasatisfação.

Estas reações para terem, realmente, seu valor são naturais. Quando sãoartificiais ou representadas, não significam nada. Os patrões, usando a modernatécnica de comunicação de massa e outros instrumentos, tentam, artificialmente, sernossos amigos. Dispondo dos recursos que têm, procuram instalar meios derecreação (grêmios), torneios de futebol e outras competições. Só que isto tem outro

sentido. É o outro lado da medalha. Às vezes, é um sujeito realmente bom, temespírito esportivo e é sincero. Mas o que ele está querendo ser é isto mesmo: umpatrão bom, um patrão amigo, um patrão sincero. Isto, para ele, traz muitas vantagens.Não é o caso da nossa solidariedade como trabalhadores. Nós não estamos pre-parando nosso colega para fazer mais horas extras. Não estamos conquistandonossos colegas para eles não fazerem greve quando nos pagarem salário baixo. Nãoestamos querendo encobrir as coisas para os nossos colegas não reclamarem seusdireitos.

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O BLOQUEIO DA MENTE

DESCOBRI QUE o HOMEM é comparável a um barco, só que o barco se governa peloleme e o homem pela cabeça. Quando se quer uma coisa de uma pessoa basta atingi-

la pela cabeça e ela faz o que s,e quer. É nossa cabeça que recebe toda a influênciapara sermos bons ou maus, para aderirmos às coisas ou rejeitá-las. Sabendo disto, osinteligentes procuram concentrar seus recursos para mentalizar e dominar aconsciência dos trabalhadores para que desconheçam, por completo, os seus valores,o valor do seu trabalho e como devem .dirigir sua vida.

Às vezes, uma coisa é ruim de ser usada, é incomoda, prejudicial, mas comuma boa lavagem cerebral o sujeito passa até a gostar. Só que é um gosto apenasaparente. Certo dia, vi uma moça vestida em um biquini, peça que ela mesmacomprou, escolheu com suas próprias mãos. Mas, quando saiu à rua, ficou tãodesajeitada, que não sabia onde se colocar. A única saída foi uma revista que levavana mão. Ela tentava algum recurso para disfarçar e encobrir algum lugar que estavaaparecendo. Se ela não fosse levada por uma influência qualquer não o teria com-prado. Ela revelou isto no momento em que o vestiu. Disse, com seu gesto, que nãogostou, mas se uma pessoa perguntasse se o biquini estava bom, ela diria que estavaótimo. E, na verdade, seria capaz de comprar outro igualzinho. Para mim, esta moça éuma pessoa mentalizada para usar tudo o que os outros quiserem que ela use e nãousar nada do que ela goste e do que lhe serve.

Este mesmo bloqueio existe na mente de todos os trabalhadores. Só que é deforma muito sofisticada e bem implantada, de tal maneira que aceitamos as coisas eajudamos para que elas pesem mais sobre nós. Para atingir a mente do trabalhador,toca-se primeiro no essencial e, cuidadosamente, se vai penetrando e dominando amente do homem. Tomando-se por base a comida e o vestuário, coisasindispensáveis, o primeiro ponto é dominar na seleção e escolha do que se vai comer

e vestir. No momento em que se consegue mentalizar a escolha do que comer evestir, o resto é fácil. Consegue-se, com facilidade, determinar onde o sujeito vaimorar, onde vai se divertir, que tipo de diversão vai escolher. Tudo é feito de forma sis-temática e nós não percebemos.

Por exemplo: todos sabem que uma banana, principalmente para filho detrabalhador, tem maior valor nutritivo que um chiclete ou uma bala. Mas quem é queleva uma criança ou até mesmo um adulto a fazer esta opção livremente? Ele sócompra a banana no lugar do chiclete, se for obrigado. Uma laranja tem valor nutritivomuito maior que um refrigerante qualquer, mas quem trocaria uma coca-cola por umalaranja? Tudo isto acontece na faixa de pessoas subnutridas que têm, no seuorganismo, grande carência de vitaminas, sais minerais e todos os outros com-ponentes que estabilizam a saúde e prolongam a vida.

Este não é o pecado mais grave. Nós temos o caso do cigarro, por exemplo;que é muito mais sério. Todos sabem que uma porcentagem muito alta dosadolescentes de hoje fuma e, para facilitar as coisas, já temos em quase todos osbares, botequins e tendinhas os cigarros a varejo. Isto .é para que o sujeito possamanter o seu vício dentro do seu padrão financeiro. Não é qualquer fumante quedispõe de três ou quatro cruzeiros para dar em um maço de cigarros, mas ele podeconseguir vinte ou cinquenta centavos e fumar, da mesma forma.

Isto não acontece por acaso. Tudo está dentro de uma lógica e obedece a umalei. Por que meu filho deixa de chupar uma laranja para tomar uma coca-cola? Isto éuma estória muito longa e comprometedora. Eu a entendi, mas não consigo transmiti-la. É muito complicada, envolve detalhes técnicos e tem dimensão muito ampla.Envolve aspectos económicos de caráter internacional e muitas outras complicações

que eu não tenho gabarito para levantar. Assim, vou tentar uma síntese. Primeiro, nós já vivemos com a cuca fundida e a visão cansada de ouvir e ver projetada a imagem

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do referido produto e as vantagens que este nos oferece. Daí, nossa mente já estárelachada. Nós vamos repetir, simplesmente, o que vimos no carta? da rua, noanúncio da televisão ou o que ouvimos no rádio.

Todos sabem que para bolar um desses cartazes de rua dá um trabalhoenorme, exige técnica e são feitos por firmas especializadas e muito bem situadas nocomércio, com luxuosos escritórios, nos mais luxuosos e bem montados edifícios doscentros do Rio e São Paulo. Os anúncios de televisão — não tenho ideia do valor — sei por alto que um minuto de anúncio na televisão ultrapassa a vários saláriosmínimos, depejídendo do horário e do índice de audiência. Quanto ao rádio, tambémnão tenho ideia, mas sei que os jornais e revistas cobram, também, uma nota muitoalta. Existem também as promoções que ficam numa nota para a firma. Existem ascomissões de vendedores, gratificações etc. Existem as propagandas volantes quesão feitas através de letreiros nos veículos, lenços de papel, chapéus, leques,camisas.

Veja que aí se gasta uma nota, só para quê? Apenas para você, seus filhos,seus amigos consumirem o produto. Gasta-se mais dinheiro na mentalização paravocê consumir o produto do que mesmo na fabricação do próprio. Isto acontece com

qualquer produto. Por que se gasta esta di-nheirama toda, se mobilizam estesrecursos todos? Será que é, simplesmente, para vender o produto? A quem vaibeneficiar esta venda? Será que é apenas aos propagandistas? Ou será o cara quecompra? Que beneficio você sentiu quando acabou de fumar seu último cigarro? Equem ficou com seus três cruzeiros? Será que, juntando com os milhares de outrostrês cruzeiros que são queimados todo dia, dá para fazer alguma coisa?

Só aprendi até aqui. O resto é com você. Veja se consegue ir além de mini, euestou muito burro para estas coisas. Só sei que quem fabrica, quem distribui, quem re-vende e quem faz a propaganda é mais beneficiado do que eu que uso o produto e doque o companheiro que trabalha na fábrica, nos caminhões de entrega, e do que osque ralam o umbigo nos balcões. Não é meu propósito ser contra os fabricantes decigarros ou outras beberagens que, por si sós, não garantem seu consumo e exigem

este potencial de mentalização para poderem ser consumidas. Meu objetivo é chamara atenção dos trabalhadores para o bloqueio que estão tendo na sua mente. Quempode pagar pelo produto propagado que pague, mas não é justo que um homem quetem milhares de necessidades vitais vá, por meio, da propaganda, deixar de usar osobjetos que são mais benéficos à sua saúde, sua cultura e sua vida, para usar o queos outros querem que ele use, apenas em proveito de seus interesses.

Isto é bastante difícil: romper esta cortina que está vedando nossa mente. Nosdias de hoje, recebemos doses tão acavaladas e nem percebemos o estágio em quenos encontramos e embarcamos na canoa que eles querem. É muito fácil a gente sementalizar com o que existe, se um grupo afirma, com força, que a mentira é a ver-dade. Aceitamos e passamos a confundir as coisas. Tenho visto muita gente repetir oque os outros dizem, mesmo sem entender. Percebo, com clareza, que estamos naépoca da inversão das coisas. Se tomarmos por base o trabalho, logo veremos quequem menos participa na elaboração de um serviço é quem mais, valor tem, é apessoa elogiada, é o que mais tira lucro e, finalmente, é o que aparece e usufrui,sozinho, das maiores vantagens.

Na verdade, para se conseguir a inversão do valor de uma coisa, para que semude o irreal para o real, é só dar a ele o valor de real. Isto só se consegue apagandoa nossa mente, tirando tudo o que há de real e não deixar nascer nada de real, porqueaí o que for jogado pega com facilidade. Infelizmente, esta máquina está montada nomundo inteiro, transformam-se as coisas de modos diferentes, de acordo com ointeresse de quem está com a máquina de mentalização nas mãos e pode usá-la,livremente. A consciência humana, hoje, é igual a uma peça de roupa que a costureira

faz, maior ou menor, mais apertada ou mais larga, enfim, de acordo com o gosto dequem vai vestir.

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Acredito que são raras as partes do mundo em que não se conseguemanipular, totalmente, a consciência humana. Mas a máquina preparada pelo homemvai tentar até o fim destruí-la, pois penetra, em princípio, sistematicamente, masdepois ela se impõe e conclui seu trabalho impondo a força bruta. Geralmente, quempossui as máquinas de mentalização pbssui também outros poderes, às vezes aplicaum antes do outro e, às vezes, agem os dois ao mesmo tempo. A máquina dementalização penetrou na humanidade e descarrega seu poderio das mais variadasformas, em qualquer povo, em qualquer civilização. As que já estão em um estágio deequilíbrio mental (cultura) mais adiantado resistem por mais tempo. Mas onde o povo émenos culto ou enxerga pouco, a máquina deita e rola. As consciências sãomanipuladas, com facilidade, para os mais variados fins. Do 'mesmo modo que sementaliza para vender um produto, invertem-se os valores das coisas, se dá valor aquem não tem e se tira o valor de quem tem. Dá-se força a quem não tem força e tira-se a força de quem a tem. Quem é forte se sente fraco. Quem é fraco se sente forte.Enfim, ela é espetacular. Parabéns a quem pode usá-la!

Esta máquina não é identificada por um substantivo. É invisível e, em cadauma de suas ações, tem um nome diferente, parece até mágica. Mas, se juntarmos

todos os seus movimentos, ela acaba formando um corpo só.

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A DEPENDÊNCIA DA INDEPENDÊNCIA

POR INCRÍVEL QUE PAREÇA,  as pessoas que vão adquirindo mais fortuna, mais bensmateriais e vão se julgando realizadas e independentes são, na verdade, as mais

dependentes. Esta independência só é sentida por elas. Para nós, que estamos dolado de fora, observando, elas se assemelham a uma máquina, não a uma pessoa. Senão houver os acessórios e combustíveis, as máquinas não funcionam. O mesmoacontece á estas pessoas que dependem das mínimas coisas. Não sei se é hábito deser servido, não sei se é a acomodação, não sei se é a preguiça ou se é propósito dehumilhar mais os empregados ou trabalhadores que, na escala social, estão em planoinferior. Só sei que, no fundo no fundo, são mesmo é parasitas. Vou colocar algunsfatos para que possamos ter a ideia da vida inválida de alguns dos meus fregueses-ricos ou quase ricos ou candidatos a ricos.

É muito comum estas pessoas acordarem e solicitarem à empregada suaprimeira refeição, isto é, um chá ou café. Isto só para não se darem ao trabalho de ir

ate a copa ou até a sala de refeições. Então, são servidas na cama como seestivessem impossibilitadas de andar ou como se estivessem sob recomendação deum médico, se restabelecendo de uma doença grave. São solicitadas, também, suasvestes, seus calçados. É preciso que tudo chegue às suas mãos, desde o papelhigiénico, toalha, sabão, aparelho de depilação, de massagem, mais de mil ingredien-tes de maquilagem e produtos de beleza. Dependem, ainda, da empregada riscar umfósforo para acender o aquecedor, se não houver instalação de água quente.

Depois de feita a sua toilete matinal, dependem da empregada para dar adescarga no vaso sanitário, recolher papéis, algodão etc., que ficam espalhados nochão, juntar as roupas servidas que ficaram espalhadas no banheiro, apagar o

aquecedor, enxugar o banheiro.Quando se dirigem para a mesa de refeições, sua preocupação é uma só — acampainha ou sininho que chama a empregada. Ela tem de fazer a comida, pôr amesa, puxar a cadeira, colocar o café ou suco e adoçá-lo a gosto do patrão ou patroa,colocar a comida e os talheres nos pratos, bem próximo de quem vai ser servido. O te-lefone tem que vir aos pés de quem vai atendê-lo — o parasita ou a parasita. Se yaisair à rua, não é bom nem pensar. Depende de uma pessoa para abrir a porta doelevador, a porta do carro, outra para dirigi-lo.

Em sintese, veja em que risco de dependência vivem estes riquinrtes.Dependem da empregada doméstica a cada instante, do faxineiro, do porteiro, doascensorista, do padeiro, do leiteiro, do açougueiro, do jornaleiro, do garagista, domotorista, da manicure, da costureira, da lavadeira e do cabeleireiro. Se não houver

este exército de gente, o pessoal passa apuros, pois nem uma refeição são capazesde tomar. Certo dia, eu observava uma madame que estava sentada à mesa. Aempregada colocou a bandeja com a refeição, distribuiu os pratos, talheres e copos evoltou para a cozinha, pois também era cozinheira. A madame começou a tomar arefeição, mas como um dos objetos não estava ao alcance de suas mãos, ela se erguepara pegar a sineta e chamar a empregada. A sineta estava a uma distância maior queo objeto de que precisava. Outro dia, trabalhando em outra casa, conheci umamadame que estava sem empregada há uma semana. Todos os dias, às duas horasda tarde, ela saía para almoçar fora e, em sua casa, havia tudo em matéria de gênerosalimentícios. A empregada deixou o emprego sem avisar, mas antes fez as compras.Eu vi batatas e cebolas apodrecendo, mas a jovem senhora só fazia reclamar. Nemsequer um café dava-se ao trabalho de fazer e o pior é que, antes de sair paraalmoçar, recebia a manicure e cabeleireira para fazer seus penteados e unhas pois

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esta pobre pessoa não tinha iniciativa para pentear seus próprios cabelos, nos diasúteis e de rotina.

Estou frisando apenas o aspecto doméstico da dependência porque não queroentrar no mérito da questão, no lado mais profundo das coisas. Como j á, disse antes,tudo que existe em matéria de objetos que servem a vida humana é produto da forçado trabalho. Riqueza, fortuna, dinheiro e bens não nascem da terra, nem caem com achuva. Só existem estas coisas se a mão do homem funcionar. Sem a transformaçãoda natureza pela mão do homem nada existe na face da Terra que possibilite asobrevivência da humanidade. Como só o trabalhador é o elemento que estádiretamente ligado a isto, é bom que saibamos que repousa em nossos ombros todaesta dependência. Verdadeiramente falando, 'toda essa gente quer nos subjugar,porque depende de nós. Vocês já imaginaram no dia em que todos nóstivermospeonsciência disto? Pois é isto que Deus quer nos oferecer para dar aomundo aquele equilíbrio que, no momento, está faltando. Só assim vai ser revelada averdadeira justiça. Assim vamos encontrar a paz que vem da verdade. É o fim datapeação, da falsidade e da mentira que se apresenta com cara de verdade. Deus éverdade e justiça e, então, essas coisas que não correspondem à verdade e à justiça

são contra Deus.Por estas razões, acredito que estes instrumentos que recebemos como meiosde descoberta da verdade são mensagens de Deus aos homens que trabalham natransformação da natureza, na busca Constante, na criação e produção dos objetosessenciais da vida humana. Quero repetir o que falei antes: Deus, após insistentesapelos aos poderosos e não sentindo o efeito desejado, após advertências e castigosaplicados aos homens de poder, decidiu usar os pequenos como instrumentos de suaprópria libertação. Quando Moisés, um homem simples e do povo, lideroií e libertoudos domínios do Faraó uma população escrava com grande prejuízo para umpoderoso exército, Deus quis mostrar que não estava para fazer conchavos comFaraós, nem negociatas com os homens da corte da época e que seu exército — opovo simples, desarmado— era mais poderoso que o do Faraó.

Deus não parou aí. Não foi esta atitude a única que teve em relação àconfiança depositada nos trabalhadores, nos que são subjugados por um sistema ouregime. Cristo formou seu colégio com homens do povo, não os homens da corte. E,destes escolhidos, os que tiveram maior destaque e empenho foram exatamente osmais humildes. Com estes outros exemplos da História da humanidade, de uma coisatenho certeza: os poderosos, os ambiciosos e usurpadores do sangue da humanidadenão vão destruir o mundo. Os pequenos, os que hoje são subjugados vão salvá-lo evão dar equilíbrio às futuras gerações. Deus assim o quer, como já mostrou em outrasvezes. Como e quando ainda não sei. A vida da humanidade é um processo, o qualvai determinar as coisas.

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MISSÃO A CUMPRIR

DEPOIS DE PASSAR por muitas fases, na vida, é que vamos tomando conhecimento dascoisas e descobrindo que cada um de nós tem uma missão a cumprir. Como

trabalhadores, nunca devemos nos acomodar no nosso canto, à espera de que osoutros se compadeçam de nós e devolvam um pouquinho mais, daquilo que é retiradode nós. Logo que descobrimos esta mensagem que Deus nos envia — de confiar emnós para implantar no mundo o equilíbrio, a paz, a confiança entre os homens e oamor ao próximo — passamos a ter uma grande responsabilidade. Se fugirmos a estechamado de Deus, estamos não apenas negando nossa colaboração mas tambémcaindo moralmente diante dos demais trabalhadores, e estamos traindo nossa própriaconsciência. Negar-se a lutar contra a força do mal é cair na acomodação, é teratitudes semelhantes aos parasitas de que falei anteriormente. Nossa missão é dura edifícil, mas pode ser cumprida. Se não tivermos medo, se não desistirmos pelocaminho, chegaremos até o fim. É bom lembrar que Deus está do nosso lado e jámostrou como ajudar àqueles que dispõem de poucos recursos. Não estão

lembrados? Moisés n|o tinha a menor ideia de como sair, com aquele contingente deescravos, das terras dominadas pelo Faraó. Eles próprios não esperavam que aságuas se abrissem, dando passagem. Claro que para chegar a isto houve muitotrabalho, não foi uma atitude mágica. Todos passaram por fases muito duras. Tambémesta travessia não foi a solução total para os seus problemas, foi apenas uma etapa,talvez a mais difícil para que aquele povo pudesse começar sua vida como povo livre,em busca da terra prometida.

Se observarmos os fatos bíblicos, vamos concluindo que as coisas sempre serepetem, só que, em cada época, acontecem com os instrumentos que estão maispresentes. Se, na época de Moisés, houve a invasão das águas para exterminar umexército poderoso, hoje, também aparece bem à nossa frente outra coisa qualquerque, no momento oportuno, é revelada para nós. É claro que não vamos ficar de

braços cruzados à espera deste milagre. Voltando ao fato anterior, vamos sentir que omilagre só aconteceu depois de muitas outras coisas feitas em prol da libertação. Atépara Moisés cçnquistar a liderança não foi fácil. Entre os problemas maioresenfrentados por Moisés estava a desconfiança do povo, a falta de segurança. Coisasque também acontecem nos nossos dias. Por outro lado, Deus sabe da dureza dascoisas e vai facilitando, em doses pequenas. Acho que Deus não quer o nossosacrifício de uma forma suicida, mas ele também não quer que paremos, nosacomodemos e deixemos que, cada vez mais, as coisas pesem para o nosso lado.Pois aí tanto o seu trabalho quanto o nosso fica mais difícil. Cada um de nós temalgum recurso, um dote particular que Deus nos deu e, às vezes, não descobrimoseste dote sozinhos. É preciso que outras pessoas nos ajudem a descobrir do que

somos capazes.As pequenas coisas são muito importantes na nossa vida e, através delas,chegamos às grandes. Na nossa vida, há uma rotina em quase tudo: trabalho,convívio, sofrimentos, alegrias, e é dentro desta rotina que cada um tem de descobrir asi próprio e fazer o que é necessário para a própria libertação. Nunca vamos esperarum tempo para fazer as coisas que estão ao nosso alcance e não conseguimosdescobrir. As oportunidades passam e nós continuamos esperando por elas.Gastamos um tempo precioso em coisas inúteis, só pensando que não podemos fazernada, e que não somos capazes. Não sabemos que bem próximo da gente aspessoas com quem lidamos constantemente têm uma experiência que nós não temos,sentem coisas que não sentimos e, assim, tanto poderem as dar quanto receber.Quando descobrimos as coisas, não é necessário ministrar aulas ou impor nosso

pensamento. Os fatos da vida de cada um se assemelha e é nesta semelhança quecolocamos nossas experiências comuns e sentimos bem o outro, percebemos qual é o

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ângulo em que ele vê as coisas. Uns vêem os fatos da vida pelo ângulo real e outrospelo irreal, o artificial. Este é o começo da estória.

Vimos, no início, que são duas vidas, dois mundos diferentes. Não fomos nós,os trabalhadores, que estabelecemos esta diferença. Não foi Deus que criou oelevador de serviço, o banheiro de empregada e tudo o mais que distingue as classessociais. Daí a grande importância de, quando mantivermos um diálogo, umrelacionamento com uma pessoa, sentirmos eni que ângulo ela está, se vê as coisascom a visão real ou com a artificial, deturpando e invertendo os valores, em benefíciodo lado oposto. Isto é possível a partir das pequeninas coisas, não é preciso umgrande acontecimento. São as coisas de rotina as mais importantes para a descobertadói homem como tal, sua afirmação e segurança de uma consciência crítica. Quandoisto parte de nós, de nosso meio ambiente, elas crescem e se desenvolvem como sefosse um direito adquirido.

Sabemos, contudo, que muitos apesar de serem pobres, apesar de seremtrabalhadores pensam o contrário. Isto deve ser sua formação, seu meio ambiente e adose acavalada de alienação que receberam. Outros recebem a mesma dose, massentem o peso da vida e isto faz aliviar a carga de influência que recebem. Estes são

aqueles semelhantes à parábola de Cristo: «é a semente lançada entre os espinhos».Deduzimos, então, que, se retirarmos os espinhos que estão entre eles, vão crescer efrutificar.

Cada um de nós é auto-suficiente, é capaz e tem possibilidades de ajudar osoutros e ser ajudado em nosso crescimento. É questão de se ligar, como se diz nagíria, e levar a vida de rotina. Não é preciso mudar de ambiente, nem de trabalho.Onde estamos, junto a outros trabalhadores, é onde devemos cumprir nossa missão.Qualquer que seja a função que desempenhamos na vida, estamos sempre próximosdo homem e de Deus. É questão de querermos fazer as coisas. Muita gente que estáinteressada em contribuir com a obra de Deus, na libertação dos oprimidos, noequilíbrio do mundo, na implantação da justiça, na moralização dá pessoa humanaafastando esta deteriorização da humanidade, às vezes, fica pensando como começar

ou o que fazer. Ninguém, nunca, vai ter uma receita pronta e uma tabela enumerandoo que fazer e quando fazer. Ora, logo que a gente está ligado com este tipo depreocupação, passa automaticamente a ser um juiz de nossos atos. Quandocometemos uma atitude que não corresponde ao esperado ou quando vai contra osnossos objetivos, nos absolvemos deste erro ou damos a nós uma pena que sirya demedida corretiva para reparar o erro e seguir em frente. Não vamos ficar comremorsos das besteiras que cometemos, nem nos sentir culpados por coisas erradas,quando a nossa vontade era acertar. Se não tivermos esta atitude, ou nos enterramosem excesso de preocupações ou nos acomodamos. São as duas tendências maisprováveis.

Minha única receita é esta: faça alguma coisa para o crescimento da classetrabalhadora. Não tenha medo de fazer errado. Se, um dia, você descobrir que estáerrado, passe a fazer como entende que é certo. Apoie-se nos seus companheiros eprocure aperfeiçoar suas experiências. É aí que está a verdade. Vá sempre aos fatos,veja as causas, as pessoas implicadas neles, quem são os atingidos e por quê. Vocêsempre terá uma resposta correta, sem tapeação e mentirinhas. Repito, não espereuma tragédia para considerá-la como fato, elas são as que menos contribuem. Procurecomo fatos as coisas de rotina — o aumento do pão e do leite, o preço da carne, afalta de arroz, o aumento da passagem, a falta de ônibus na sua linha, o aumento doaluguel, as taxas, os impostos, a falta d'água, as taxas escolares, o preço dos livros, aconstante falta de professoras, o tempo que as crianças ficam sem estudar, os fatosque acontecem no ambiente de trabalho: Por que um colega chega sempre atrasado?Por que outro falta sempre ao trabalho? Por que outro é muito ligado ao chefe ou

patrão? Por que outro anda sempre no INPS? Por que outro entrega seus colegas? E,também, por que uma criança é chorona, a outra é brigona, a outra não gosta de

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estudar, a outra é nervosa? Por que a juventude se desinteressa por umas coisas e seinteressa por outras?

Nunca as coisas acontecem por acaso, há sempre uma razão de ser e umacontecimento é decorrente de muitas causas. Se conseguirmos descobrir as causas,muitas vezes, podemos evitar um acontecimento em nosso prejuízo ou antecipar outroem nosso benefício. É bom lembrar que, muitas vezes, somos portadores de causasque geram problemas contra nós mesmos e não temos consciência disto.

Com tudo que disse espero dar o mínimo de contribuição não só aos homensquê vivem como trabalhadores autónomos — os biscateiros — mas para todos os quevivem da força de seu trabalho, seja braçal ou intelectual, desde que se identifiquemcm um só pensamento e uma só causa: salvar o homem, pelo amor de Deus!