O Bigode de Nietzsche

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Luís Lima

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O BIGODE DE NIETZSCHE................................................................................................................................

Luís Lima

Os óculos escorregam-me quando corro. Não sei se é do suor que me escorre da testa, galgando a �oresta das sobrancelhas ou se é do nariz �no, que me parece mais magro: tenho um nariz �no e cada vez mais magro. Pudera a minha cabeça

ter cabelos, transpiraria muito menos e os óculos não estariam sempre a descair, como um sorriso desencantado. Tenho de mudar de óculos.

Rui S. Barros. Assim assinei o livro. Fiz a licenciatura em �loso�a contemporânea mas pus--me a escrever sobre Nietzsche. É como se ele fosse meu contemporâneo, meu irmão, meu leitor. Mas que merda de mania é esta de agora me parecer que o mundo inteiro é da minha família. Nietzsche. Não sei por que me veio esta ideia à cabeça. Aquele bigode vivo como um animal nunca me provocou a menor excitação.

Uma vez fui a um seminário em Bucareste. Lá falam e apreciam os autores francófonos que vêem sexo em tudo o que é �loso�a. A minha abordagem ao bigode animalesco de Nietzsche fez furor. Quase tanto como o sobrevoo nocturno de Bucareste. O �lósofo-aviador. A bordo estava Anca Calin, uma estudiosa de Pierre Bayard, o psiquiatra-escritor. Por que raio haveremos todos de ter uma pro�ssão dupla emparelhada por um hífen. Lembra-me sempre as parelhas de bois encosta acima, encosta abaixo, apenas juntos por se encontrarem presos.

Não era Pierre Bayard, isso era território novo e inexplorado, mas ao estilo da Liliana Coutinho. Era mesmo o do livro por vir: Blanchot. A sobrevoar Bucareste falámos dos três: Blanchot, Bayard e Nietzsche. Excitou-se muito o avião. Elas eram duas, falávamos mais ou menos alto, sacudíamos palavras para os ombros uns dos outros. Estavam tão escuros os rostos delas, quase indistintos. Apenas as vozes, as pronúncias, os sotaques, os tropeções das línguas. Que merda de prazer aquilo me deu. Eu só dizia os animais de Zaratustra: a águia, a águia, repetia de braços abertos no cockpit.

Fechei os olhos como quem fecha um computador. Afastando-me deles. Recolhendo-me entre o coração e as meninges. Estava a voar. As minhas asas eram violetas e esverdeadas. Nasceram-me da glândula tiroide, abaixo da nuca, e estavam fortemente agregadas ao meu dorso. Comecei por sacudir a asa direita, primeiro devagar, depois com mais energia, senti esse desempenho estranhamente muscular. Fiz o mesmo com a asa esquerda, primeiro de-vagar, e então mais energicamente. Sem me demorar sacudi ambas as asas, ao mesmo tempo e em sincronia. Comecei a levantar voo. Um sorriso rasgou os meus lábios: tinha os olhos

Ana Menezes

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bem abertos. Comecei a subir, primeiro devagar, depois mais aceleradamente. Senti o ar tornar-se mais �no, mais fresco, era tão diferente sem o avião. Que leveza. Acima, as nuvens.

Vou deixar crescer um bigode como o do Nietzsche. Aquilo mexe-se, aquilo tem vida, aquilo é um animal!

Tenho vontade de fazer um voo nocturno, de beber um café no Luxemburgo. Tenho lá uma amiga tradutora. Emigrou. Faz uns trabalhos para uma associação de luso-coisos, tra-duz para quem vive longe da língua materna. Uma vez, a Isabel contou-me que queria escrever um livro erótico. Mas estava desconsolada porque «em Portugal é impossível pu-blicar uma coisa dessas!». Não era romance de cordel, não era Maria Teresa Horta, era «um romance erótico, como a Duras, só que melhor», era em português e escrito pela Isabel, que é muito mais nova e bem mais bonita que a Marguerite. Mas dizia, com ar desenvolto e sotaque francês, «aqui nunca me irão publicar, esta é uma sociedade misógina, puritana, machista primária inculta e, sobretudo, insensível. Sabem lá o que é desejo, o que é erotis-mo». Não vou nada beber um café ao Luxemburgo.

Pois, a vida selvagem é lá fora. Fora do lar paterno. Ser adulto é um recomeço, criança-tigre, camelo-deserto, vai subir a montanha para viver com os seus próprios animais. Crias?

Eu sou um vento! Intempestivo. Eis-me homem. Depois de criança, camelo, tigre. Quero tanto assinar o meu nome por debaixo do teu. Continua que te roubo a identidade. Sobe a montanha, vem privar com os meus animais. De noite, não há serviços gratuitos. Tudo se paga: o copo de água para a ansiedade, a toalha molhada para a febre, a luz acesa para a falta de ar. O preservativo no olhar para evitar as lágrimas. Eu sou uma noite de luz cheia, uma noite de verão. Vou assinar por ti, no espaço que deixas em branco dentro de mim.

Nietzsche andava a poluir-me a mente. Era como se eu conseguisse deixar de escrever sobre a escrita dele, fazer exegese. Tudo me parecia empobrecer o seu texto. Tudo o que pudesse comentar, esclarecer, interpretar, analisar, era tudo tão mas tão mais pobre do que a escrita dele. Para que servia aquilo tudo?

Sempre que vejo uma família, a sagrada, a triádica, dos olhos nascem-me pérolas liquefeitas, como se fossem a condensação do núcleo protegido da ostra quando esta se abre ao mar, à violência das correntes, às variações mais íngremes na escala da amplitude térmica, sempre que vejo uma sacro-santa família, os meus dedos contraem-se e a língua aperta-se contra o interior dos incisivos, os inferiores, raspando neles até gerar aftas. Sempre que vejo, coloco os óculos que, no suor do meu rosto molhado de pérolas liquefeitas, deslizam nariz �no abaixo detendo-se no frondoso bigode de animal. Ah, sempre que vejo estas famílias.

A�nal, parece que fui eu que preparei isto tudo. 10 minutos de checklist e o aeroplano le-vanta voo. À beira da arriba é muito fácil. O vento vem do mar e embate nas falésias, basta uma boa perpendicular para descolar. Não há break even point. Há apenas estar ali, cada vez

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mais rápido, entre o céu e o mar. Matiz de azul, como os olhos dela.Tenho o bigode a arder. Foi a Lou. Estive demasiado próximo dela, demasiado tempo. Tenho de ir caminhar. Há demasiado tempo que não vou ao penhasco amarelo. Devo ir respirar no alto do penhasco amarelo e escrever, escrever. Ali sei o que signi�ca voltar a ser eu na diferença que me constitui como um destino. Voltar e não encontrar nada senão o retorno a toda a força. Voltar assim a toda a força é uma queda absoluta, uma queda sem gravidade. Lou.

Criança nas mãos, Lou, o camelo, o exegeta, um puma na montanha. Saltimbanco no alto de uma vara, uma verga que não dobra sob o peso do atleta, a palhaça de máscara branca ri, com trejeitos a nascerem-lhe nas asas do nariz: ela não ganha rugas, tem a pele demasiado oleosa, ela é uma ruga, uma prega no corpo que lhe sai entre os ombros, pescoço acima. Mas quem vem a ser esta? Tenho de trazer as ervas do penhasco para fazer uma tisana.

O problema está nos olhos. Nos meus que olham os dela. São cambiantes os olhos. Nunca têm uma cor �xa. Translúcidos e lívidos são verdes de cinza, são quentes de azeite, os olhos são um problema. É por causa dos lábios que se tornam problemáticos. Estão simplesmente ligados como se ligam as constelações, como os arquipélagos múltiplos e unos se ligam, os olhos e os lábios estão assim. O problema está na união dos lábios com os olhos. É esta a síntese do inefável com o físico. A conjunção das emoções e da carne. As lágrimas que lhes dão brilho, o sangue que os ruboresce. Os cristais líquidos unem os olhos aos lábios. É este o problema que despertam à minha vista. Toldam-se-me os olhos. Tiro os óculos, contraio as asas do nariz, esbarro a língua contra os dentes incisivos. Porquê tanta projecção? Quanta fantasia no meu espírito. Preciso de subir à montanha. Caminhar trilho acima, serpentear como um réptil. Deitar-me na terra húmida de orvalho. Subir, subir, vou caminhar até ao alto. Do alto se vê o horizonte do mundo, cabe-nos entre os dedos à distância de um bra-ço estendido. Um abraço universal do alto da montanha. Daqui já não vejo aqueles olhos. Beijo as fragas que não têm lábios. Fico no alto da mais elevada serrania para poder beber os líquidos das pedras, esses cristais feitos corpo. Aqui, sou só eu. Obrigado minhas deusas. Santas Marias do Mar. Os ramos das árvores sabem abraçar.

O bigode monstruoso inchou. O rosto de Frederico retraiu-se por detrás da máscara felpu-da. Frederico, dizia-me ela, ou não, não me dizia nada depois de pronunciar o meu nome. Sempre que começava uma frase com essa palavra, que ela contraía num cada vez mais insuportável F’drico, era para uma interjeição, um imperativo, uma determinação daquilo pelo que eu deveria optar, aquilo que eu deveria pensar, o que eu inevitavelmente iria es-colher. F’drico...

Embuste atrás de embuste. Tenho de acender um cigarro. Não se pode fumar no avião. Não se podem abrir janelas. Detesto pastilhas elásticas. Mastigo a minha saliva através daquela pasta �exível. Irritam-se-me os dentes, contraem-se-me as gengivas. Mirra-se-me a língua. Quero fumar. Em nome de todos os embustes emocionais do mundo, em nome de todas as armadilhas da sedução. Mas será que nunca, mas nunca mais aprendo?

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