O Bibliotecario Do Imperador - Marco Lucchesi
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Sobre a obra:
A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros,com o objetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudosacadmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fimexclusivo de compra futura.
expressamente proibida e totalmente repudivel a venda, aluguel, ou quaisqueruso comercial do presente contedo
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo
nvel."
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Marco LucchesiO BIBLIOTECRIO DO IMPERADOR
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Copyright Marco Lucchesi, 2013
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edio pode ser utilizada oureproduzida em qualquer meio ou forma, seja mecnico ou eletrnico,fotocpia, gravao etc. nem apropriada ou estocada em sistema de bancos dedados, sem a expressa autorizao da editora.
Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortogrfico da LnguaPortuguesa (Decreto Legislativo no 54, de 1995).
Editor responsvel: Ana Lima CecilioEditores assistentes: Erika Nogueira Vieira e Juliana de Araujo RodriguesEditor digital: Erick Santos CardosoCapa: Victor BurtonDiagramao: Jussara FinoTratamento de imagens: Adriana Bertolla
1 edio, 2013
cip-brasil. catalogao na publicaosindicato nacional dos editores de livros, rj
L969bLucchesi, Marco, 1963-O bibliotecrio do Imperador/Marco Lucchesi.1. ed. So Paulo: Globo, 2013.1058 kb; epub
isbn 978-85-250-5571-2
1. Bibliotecas. 2. Romance brasileiro. i. Ttulo.
13-03775 cdd: 869.93cdu: 821.134.3(81)-3
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Direitos de edio em lngua portuguesa para o Brasil adquiridos porEditora Globo s. a.Av. Jaguar, 1485So Paulo-sp 05346-902www.globolivros.com.br
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Sumrio
CapaFolha de rostoCrditosDedicatriaEpgrafeIlustrao1234567891011121314151617181920212223242526272829AgradecimentosIlustraoNotas
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A Sauro e Giusi Lunardini pelas noites de Massarosa
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Um processo de suposies, de associaes, do que est para nascer, um embrio.E este obscuro quebra-cabea s poder exigir uma ideia ordenadora.
Witold Gombrowicz
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1prefcio do revisor
confesso que de literatura moderna entendo muito pouco e, pelo que tenho vistoultimamente, quero entender cada vez menos.
J no suporto corrigir livros sem foco, em mil pedaos e com manual deinstruo, para no ferir a suscetibilidade dos autores. Recebo jogos literrios,romances incompletos, que no apenas no formam a imagem de velhosquebra-cabeas, com esplndidos castelos e catedrais, como sequer trazem aspeas prometidas.
Este livro sofre os mesmos sintomas e se apoia sobre o mesmo terreno,incerto e movedio, com excessiva intimidade da histria com a fico. Quandose diluem os limites que as separam, perde-se a inteligncia do processo.
O truque do autor consiste em criar espaos que no se fecham e mal serelacionam. Deixa tudo pela metade, e ri-se do trabalho do leitor, este sim,paciente e laborioso, fazendo o que caberia narrativa, abrir caminhos e atalhosque levem a uma clareira.
Tudo no passa de estratgia. Aps algum esforo em desenhar ocaminho, descobre-se que o livro, que antes parecia um rio caudaloso, no passade um logro, de um simples riacho, quase sem gua. Tentei preveni-lo, mas suavaidade no permitiu sequer uma troca de palavras.
O autor no entende quase nada sobre muita coisa. E ama citaes, gostade mostrar que leu, fingindo ser escravo da histria da Repblica e do Imprio,quando no passa de um escravo da vaidade, para a qual infelizmente no existeLei urea.
Mas se tratasse, pelo menos, de pessoas notveis, que frequentaram osgrandes sales de outrora e influram nos destinos do pas... Seus personagens sode segundo e terceiro escalo, sem brilho, sem interesse, em torno dos quaisgiram alguns nomes fortes, como o caso de dom Pedro II, ou do visconde deOuro Preto.
No espere um percurso homogneo e pontual, como o de um bomromance histrico. Parecer um leilo de roupas velhas e pudas, onde osconceitos de biblioteca e livraria mal se distinguem entre si.
No entendo o que realmente pretende fazer. Um livro de histria? Uma
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aventura policial, em torno da morte do protagonista? Confunde apenas asestratgias.
Sinto saudade dos escritores antigos, dos que sabiam tecer uma narrativadensa e ao mesmo tempo gil.
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2Ao Sr. Adriano FerreiraLargo de Santa Rita, 210Rio de Janeiro, 12 de maio de 18903h da manh
No custa imaginar a satisfao que esta carta produzir num espritoindigente e corrompido como o seu. No tanto a carta, mas ascircunstncias que me levaram a escrev-la e a deciso eminente queacabo de tomar.
Que fim de sculo espantoso: cheio de infames, capazes demanchar a mais slida reputao!
H de bastar-me um gesto rpido e discreto, sem chance de aparte.Como o senhor desconhece o que seja elevao de vistas, enfiado
at o pescoo em labores corsrios, poder parecer-lhe que saio doepisdio vencido.
Mas, por favor, no se precipite. Os louros que lhe cabem soparciais.
Quem poder assacar-me a pecha de covarde ou ladro?Estou certo de que o esprito sutil do Imperador no sofrer dvidas
acerca das calnias fabricadas contra mim nas mesas da Colombo.Quem nunca deixou de pr timbre em servir a verdade, sabercompreender-me perfeio.
Escrevo depressa e deixo rastros de tinta. No me preocupo. Asmanchas combinam com o carter do destinatrio.
Espero um dia poder encar-lo de frente.S ento saberemos qual de ns dois realmente venceu.
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3vejo-me aqui nesse labirinto de cartas e insultos, intrigado com as demandasurgentes, seno fatais, que acabo de ler. J no posso adiar o incio da histria,aps a descoberta dessas palavras desferidas contra Adriano Ferreira.
Preciso voltar ao tempo zero do romance, para clarear sua gnese. Sertambm uma resposta ao gracioso prefcio deste livro.
No me esqueo de quando encontraram um segundo exemplar do livroHarmonias de Kepler. Deu-se na mesma poca em que me perdia nos armaznsda Biblioteca Nacional, na montagem da exposio dos duzentos anos, Umadefesa do infinito. Dez milhes de itens representados por magros epreciosssimos duzentos! A espessura do infinito devia abranger o volume domundo e o olhar sensvel do leitor, este pequeno deus que infunde vida aos livros,mediante o sopro admico da leitura. O Harmonias encerra essa belezairresistvel, na sublimada msica das esferas. Eu visitava sem medo asprofundezas do cosmos e da Biblioteca, na selva de mapas, cdices antigos,iluminaes.
Como e para quem traduzir essa emoo?De volta ao universo da bibliologia, a uma correta e segura localizao,
eu tinha a impresso de que o livro de Kepler pudesse duplicar a miragem dostesouros potenciais da biblioteca.
Uma histria imperfeita e descontnua reunira aquela esplndida coleo,produzindo um universo inflacionrio, em grande expanso e cheio de surpresasestelares.
Eu olhava para os poucos espaos vazios dos corredores e imaginavauma histria passada naquela Arca de No, dentro da qual naveguei durantequase dois anos. O caminho do romance seria talvez o de buscar, do incio aofim, um volume, do abismo arrancado, como o Harmonias. Pensava nossortilgios das obras raras, espera do autor, luz da luz, deus de deus. Pensavanum romance de realidades reflexas, fora do centro e da moldura. Uma histriade folhas de rosto, ex-libris, dedicatrias: romance que poderia sair de elementosmnimos, em que todos completassem uma ausncia que no sei para onde vai.
Lembro-me do sbio Revisor, ao reclamar da falta de foco. Dou-lheinteira razo, mesmo porque, na elipse de Kepler, existem dois focos.
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Perdia-me com estrelas mortas que brilhavam no cu de antigos jornais.Temia incorrer num desfile de nomes, cair no espelho do nada, adstrito a umconjunto de bibliotecas ou livrarias, frequentadas por falsrios, biblifilos eladres. Assim vagava eu incerto, quando me deparei com uma figura sufocadano silncio de um sculo.
No me perguntem como cheguei a Incio Augusto Raposo, responsvelpela biblioteca particular de dom Pedro II, em vista da qual perdeu a prpria vida.
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4dom pedro river
Seguindo os passos de meus personagens, procuro traar de forma esquemtica asmudanas de cenrio.
Mosteiro de So BentoMorro de So Bento
Livraria LombaertsRua da Quitanda, 68
Biblioteca FluminenseRua do Sabo, 45
Museu NacionalPraa da Aclamao
Sociedade Arcdia BrasileiraRua da Ajuda, 55
Manoel Ferreira LagosRua do Carmo, 61
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Livraria ClssicaRua Gonalves Dias, 54
Gabinete Portugus de LeituraRua dos Beneditinos, 12
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Visconde do Rio BrancoRua do Conde, 51
Biblioteca Nacional e PblicaRua do Passeio, 48
Livraria de Joo Martins RibeiroRua Uruguaiana, 1
Machado de AssisRua dos Andradas, 119
Livraria QuaresmaRua So Jos, 65 e 67
CotegipeRua Senador Vergueiro, 9
Joaquim NabucoRua Bela da Princesa, 1
Visconde de CavalcantiRua das Laranjeiras, 18 A
Baro de LadrioRua Cosme Velho, 7
Livraria Francisco AlvesRua do Ouvidor, 134
Biblioteca Particular de dom Pedro iiQuinta da Boa Vista
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5incio personagem procura de um autor, porque precisa contar sua prpriavida, como no drama de Pirandello, vestido de preto, nufrago de sua gerao. E,no entanto, desapareceu de repente, como um fantasma, obrigando-me apersegui-lo, nas raras pistas que encontrei e que tanto irritaram o Revisor destelivro.
A bem da verdade, eu me tornei personagem de meu personagem. Sinto-me como se estivesse no conto The Swimmer, de John Cheever, atravessandoa cidade atravs de muitas piscinas, alimentadas pelo Lucinda river, riosubterrneo e imaginrio, de imponentes guas azuis.
A trajetria sinuosa do Lucinda girava em torno da vida de Neddy, cujabiografia tornava-se mais firme medida que prosseguia incerto o curso do no-rio.
Era justamente assim que eu me sentia, ao longo de livrarias reais eimaginrias, s margens de um Dom Pedro river, que tive de inventar epercorrer, no tempo da exposio da Biblioteca Nacional. Foi assim que chegueia Incio, cuja vida precisava desvendar, como os astros de Kepler ou a cabeado Revisor.
Um de ns levou mais de vinte anos para atravessar o Rio de Janeiro, domorro de So Bento Quinta da Boa Vista. Vinte anos ao longo do rio DomPedro, num cenrio composto e variegado. Longe das harmonias de Kepler,ntimo da angstia de Pirandello, personagem sem autor, nos livros quenaufragam no corpo da cidade.
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6preciso saber mais sobre incio augusto. Navego nas perigosas correntes mentaisdo Dom Pedro river.
No abismo entre piscinas e cartas desesperadas, passeio de manh pelasruas do Rio, na livraria So Jos, cujos livros me consomem as finanas e aqui seagregam, compondo este quebra-cabea. Passo na Tabacaria Africana, onde medeixo levar no turbilho de perfumadas nuvens dos fregueses. Passo a limpo, nocirrus de um fumo toscano, um extrato do dirio de Incio, sobre a noite na qualdom Pedro seguiu para o exlio.
Uma histria me atravessa e mal posso adivinh-la. Minhas pupilasbebem um feixe de luz, um ponto de fuga. E os episdios se dilatam comoa sombra do Imperador na biblioteca. Rua da Misericrdia. MercadoVelho. Rua Fresca. Seguem as investidas da cavalaria nos domniosirreais da cidade. Pouco mais ao sul do forte de So Tiago. O acaso e odestino tramam a dissoluo das coisas que nos cercam. Terceiro reinadosem Isabel. Histria fora da histria. Labirinto sem janelas, tragado pelasnuvens da Tabacaria Africana. Os gatos da Ouvidor olham um vultofugidio. Posso apenas pressenti-lo, ou, quem sabe, adivinh-lo. Umcoche branco puxado por cavalos negros. Trs horas da manh. Chavesperdidas. Portas fechadas, Olhos fundos para ver o que no vejo. Partedo cais Pharoux a ltima barca e atinge a espessura do nada. Ao longe,um ponto em que se apagam as luzes da baa. Tempo zero: fora do Rio,dentro do sonho, naufrgio irreal. Todo navio submerso como um livro,que o vu das guas, tmido, recobre. A Candelria uma nau de velaspandas, como a igreja da Cruz dos Militares. E dois cavalos brancosarrastam um coche negro. Sinto o Arco do Teles elevado a uma potncianegativa e o Pao da cidade. Vermelho, esquecido, o cemitrio do Caju,banhado pela nebulosa de rion, que tambm flutua sobre as torres doCarmo. Um homem vaga na Primeiro de Maro, olhos crivados naesfera dos sonhos, indeciso entre partir e no partir. Ponto de fuga. Noitesem lastro, destino e capito.Desaba sobre o cruzador Parnaba a medas aflies. Um coche negro puxado por cavalos brancos.
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Uma histria que aos poucos me consome.
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7vejo-me quase a dar razo ao revisor. Entretanto, preferia que ele fosse emboradeste livro, em vez de dom Pedro. Confesso que no entendo todas as palavras deIncio sobre a ltima noite do Imperador no Brasil. H algo de estranho, que maladivinho.
Ainda que eu fumasse toda a nuvem da Tabacaria Africana, ainda queme perdesse nas delcias livrescas da So Jos, eu no seria capaz de saber paraonde correm as guas secas do rio Dom Pedro. Como se tivesse de domar umcavalo selvagem, que o que fao nesta histria, buscando informaes quecomponham um quadro. Preciso salvar algum destas pginas. E no possodesistir agora, depois da carta furiosa de Incio e do dirio, que parecem pedidosde socorro do personagem que me acena rio acima.
As poucas pginas deste livro formam um romance policial e noforosamente hidrulico. Menos pela histria que pelo conjunto de dilignciastomadas, a desdobrar-se em planos mistos de investigao, num jogo de cdigosdispersos.
Trata-se de uma aventura onde se incluem os bastidores, o avesso dahistria, por onde passam, cruzados e invertidos, os fios do tapete narrativo.
Procuro nomes, datas, ao longo das salas quase infinitas da Santa Casa deMisericrdia no Rio de Janeiro. Procuro a biografia de Incio, enquanto subo edeso escadas, vigiado por fileiras de quadros que aumentam a vertigem decorredores perfeitamente iguais e longilneos.
Como um espelho de Pirandello.Perdi a conta das visitas Santa Casa e capela de Nossa Senhora do
Bonsucesso, prxima ao antigo morro do Castelo, com a ladeira, outrora viva, ehoje interrompida, que no leva a parte alguma, assim como este romance, emcujas guas flutuam autor e personagem.
Passados trs meses de investigao, a notcia arrancada a ferro e fogodos registros. Chamam pelo meu nome como um trovo na sala de espera. Corropara proteger-me da chuva, intimado por uma voz feminina muito spera, quecumpre h dcadas o mesmo ofcio pluvial.
H de ser assim no fim dos tempos. Aquela mesma voz dividir o joio dotrigo, a direita da esquerda, sem que ningum ouse pedir vistas do processo.
O balco de vidro fosco recobre como um vu o rosto da atendente,
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contra os brbaros que somos ns, os que vivemos deste lado. Oito mil oitocentos e sessenta e dois, adulto, quadro dois !Eis a chave numrica, a palavra esquecida, o vento que corre em meus
domnios. O nmero afinal se fez carne. Carne?! No propriamente. Menos quecarne. O nmero se fez osso. E na direo dos ossos de Incio, abalo-me aocemitrio do Caju.
Procuro o quadro dois, que como um remanso nos mares bravios docampo santo, onde os tmulos so barcos levados ao abismo e regurgitados praia. Busco demoradamente, e de olhos abertos, o endereo correto. Fao trsvezes o mesmo percurso. Volto. Insisto. Mas intil. O nmero perdeu o fio-terra.
O sol a pino desnuda apagadas inscries. Vivo a sensao de paz no seiodo abandono. Nada de novo no Caju.
Deixo-me contemplar as runas, aqueles tmulos sem inscrio, mudos einteis, como quem percorre bibliotecas de livros sem folhas de rosto, prefcio econtedo. Para frei Camilo, se a terra dos monges defuntos um passado semeloquncia, na biblioteca os corpos renascem nos ureos vestgios das ideias.
Memria atemporal dos volumes que dormem. O que no o caso destaslpides. E se me perco em devaneios, meu bom Revisor, se no vou direto aoponto porque no achei infelizmente o esqueleto de Incio.
Saio do cemitrio a imaginar aqueles tmulos no dia do Juzo, com aatendente da Santa Casa chamando as almas pelo nome. Creio que os mortoscansados, entorpecidos, continuaro a dormir, a fim de no romperem oinvlucro de sono com que se fundem integralmente, longe da salvao.
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8a que se reduziu a natao das piscinas, que estranha mudana de curso, nasguas salobras do cemitrio, entre mortos, com diferentes graus de dissoluo dahistria?
Sofro de um gravssimo dficit ficcional. Mas a culpa toda de Incio ede seu trabalho, porque a biografia de um homem de livros encerra umacontradio. A vida e o livro so inimigos ferozes. Viver no seio de uma bibliotecareflete o isolamento de um bibliopata.
O homem de livros desvive, quando serve no palcio de um deuscartceo, guiado pela fome do catlogo, que ao mesmo tempo estmago emapa-mndi. Um verdadeiro processo de autlise, em que a biblioteca-esfingedevora a si mesma e aos encarregados de manter vivo aquele monstro.
O bibliotecrio sonha o conjunto em que nada se perde, fora dasvicissitudes do mundo, casa de um s Livro, ideal, em guerra santa contra asepidemias, insetos e ladres, que agem nas frestas do silncio, no PasseioPblico, no Campo de Aclamao, nas salas do Senado, desejosos dos belosdiamantes da biblioteca de dom Pedro II. Eis em que consiste a misso de Incio:vigiar, combater.
Se o guardio dos livros no possui biografia plena, dispe, contudo, devasta bibliografia, tpica de quem vive dos outros, gegrafo do espao, daclassificao, para que no se perca nenhum livro e, muitas vezes, para sempre,dentro da prpria casa.
Ado na aurora do mundo, cumprindo a liturgia de um deus incerto, livredo mal, eis o que sonha Incio Augusto, esquecido de si, buscando apagar ostraos de sua vida.
No se apagou, todavia, e para desespero do Revisor, o anncio que diz:
parentes e amigos do infeliz incio cesar raposo convidam missa emsufrgio de sua alma amanh, segunda-feira, 19 de maio na matriz desantana
A Gazeta de Gois dar os psames aos parentes no ms seguinte.
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9abordo em poucas linhas o ocaso do imprio, de que ainda no tratei, a partir deuma figura que parece personagem bem conhecida por Incio Augusto.
Se dependesse do desassombro do visconde de Ouro Preto, a repblicano teria a menor chance de vingar no Brasil, to inarredvel se mostrava aconvico de que a monarquia era a nica forma de governo capaz de promovera grandeza do pas. Os anais da Cmara dos Deputados registram sua reao,diante dos vivas repblica do padre Joo Manuel.
Ouro Preto ergue-se com mpeto e energia, em contra-ataque: Viva a Repblica, no! No e no; pois sob a monarquia que temos
obtido a liberdade que outros pases nos invejam, e podemos mant-la emamplitude suficiente para satisfazer o povo mais brioso!
Certamente, no na conta de Ouro Preto que se podem debitar todas asrazes do fim do Imprio. Foi dos seus mais altivos defensores, capaz deenfrentar quem quer que fosse, com amplos sacrifcios pessoais.
Foi ele quem planejou o que poderia ter sido o trao de unio entre oSegundo e o Terceiro Reinado o baile da Ilha Fiscal, evento de grande valorsimblico, reluzente e aparatoso, como se desvelasse o rosto de um futuro, quejamais chegou.
Alm do baile, Ouro Preto elabora um conjunto de medidas altamenteineficazes, a fim de se evitar a queda iminente. Seu defeito mais vistoso decorreda inflao de sua virtude maior, a firmeza. Qualidade que vai da arrogncia obstinao, de uma surdez imponente falta proverbial de sensibilidade. Depoisdo grande no repblica, Ouro Preto lidera a resistncia aos insurgentes, commpeto resoluto.
Combino a agenda de governo s vozes da imprensa para esboar, emtraos breves, o que se passou naquele dia fatdico, quando o pas estava sentadona boca de um vulco, como disse Floriano, ajudante general do gabinete deOuro Preto, cuja deslealdade constitui afronta aos princpios de carter.
No dia 14 de novembro, Ouro Preto analisa o bilhete de Floriano:tramam algo por a alm: no d importncia tanto quanto seria preciso, confiena lealdade dos chefes que j esto alertas. Houve reunio do tribunal doTesouro, com a presena dos ministros da Guerra e da Justia e do presidente daprovncia. Ouro Preto determina que o ministro da Guerra procure
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imediatamente Deodoro. Em seguida, pe em estado de prontido a guardacvica e o corpo de polcia, convocando a fora capaz de vir at a Corte,devidamente municiada e sob as ordens diretas do primeiro-ministro.
De noite, em torno das dez, Ouro Preto recebe em casa o redator doJornal do Commercio, que viera indagar se era exata a notcia da ordem depriso contra Deodoro e se haveria embarque dos batalhes da guarnio para acapital. Ouro Preto desmente categoricamente a ordem de priso.
s onze e quarenta e cinco, o chefe de polcia da Corte telefona parainform-lo que o primeiro regimento estava em armas:
Julgo necessria sua presena aqui por todos os motivos.O visconde segue apressado pela rua de So Francisco, disposto a parar o
primeiro veculo. Junto ponte do Maracan, faz sinal para um carro, que erajustamente do chefe da polcia.
Seguem pela Haddock Lobo e entram no quartel da cavalaria policial.Prontos quarenta praas e dois oficiais. Ouro Preto determina que se incorporems ordenanas dos ministros, aos destacamentos e patrulhas e sigam sem demoraao quartel da rua dos Barbonos. Traa no arsenal de marinha toda uma estratgiade combate, que inclui o morro do Castelo e os navios.
A essa altura, o ministro da Guerra convence Ouro Preto de se instalar noquartel do Exrcito, para animar a resistncia. Dir mais tarde, Ouro Preto,que o levaram para uma ratoeira.
Cercado o quartel do Exrcito, pela manh, Ouro Preto pergunta aFloriano:
Por que deixaram que tomassem tais posies? No Paraguai, nossossoldados apoderaram-se de artilharia em piores condies.
Sim responde Floriano , mas l tnhamos em frente inimigos e aquisomos todos brasileiros.
Ouro Preto compreende afinal a espessura dos fatos. Envia umtelegrama a dom Pedro, sobre o Ministrio que depe nas augustas mos devossa majestade o seu pedido de demisso, quando a tropa acabara defraternizar com o marechal Deodoro, abrindo-lhe as portas do Quartel.
Deodoro exprime toda a mgoa dos polticos do Imprio, lembrando osacrifcio do Exrcito no Paraguai, quando lutavam, todos, meses a fio, dentro depntanos, na defesa da ptria.
Imvel e sobranceiro, sem dizer palavra, como se fora uma esttua,Ouro Preto responde:
No s no campo de batalha que se serve a ptria e por ela se fazemsacrifcios. Estar aqui ouvindo o general neste momento no somenos a passar
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alguns dias e noites num pantanal. Fico ciente do que resolve a meu respeito;pode fazer o que lhe aprouver. Submeto-me fora.
Do resto j sabemos todos...Na manh seguinte, Rafael, antigo liberto de dom Pedro, caminhava
pelos jardins e aleias da Boa Vista, sem saber dos ltimos acontecimentos.Incio Augusto andava de um lado para o outro, nas escadarias do
palcio, com gestos que traduziam angstia e confuso. Seu Raposo, voc enlouqueceu? Rafael, no sabes que ontem foi proclamada a Repblica e que teu
Senhor est preso no Pao da cidade?Eis um trecho do romance de Mcio Teixeira, com a reao de Rafael,
descrita com nfase, ao erguer o brao direito e olhar para o cu: Que a maldio de Deus caia sobre a cabea dos algozes do meu
Senhor!Mas ela caiu imediatamente sobre quem a pronunciou. Foram aquelas
suas ltimas palavras.Seis meses depois seria a vez do bibliotecrio, investido de grave e
crescente desespero.
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estranho incio que se eclipsou no horizonte do tempo como Cristo na cruz, entreo bom e o mau ladro, como se tudo tivesse acabado, e sem janelas para a vidaeterna da fico.
Hoje me caram s mos alguns dados sobre o calvrio de Incio, quatrocartas de seu inimigo, Adriano Ferreira, que, se no subiu aos cus, no deixou detrazer episdios que clareiam regies que s podem ser vistas mediante o eclipse.
Deixemos que se apresente.
Dizem que o senador Rodrigo Silva e eu dividimos o mesmo aprumo, amesma elegncia, o mesmo frescor da toalete. Sinto-me lisonjeado, masno posso opinar sobre a matria sem incorrer em autoelogio. Sei queem dois pontos coincidimos. O ano de nascimento, 1833, e o nmeroaproximado de gravatas, quase uma centena, a que corresponde umnmero mais sbrio de alfinetes com safiras, rubis e esmeraldas.
O paralelo termina aqui, infelizmente para mim.Rodrigo um tipo excessivo e leve, corruptvel e corruptor, austero
e confidente, brusco e afvel, pronto como guia nas questes de poder.O que nele parece casual e inesperado no passa de estratgia e clculopara atrair senhoras da boa sociedade, opulentas em carnes ehaveres.
Quanto a mim, nasci no Rio de Janeiro, nas tempestades do PerodoRegencial. rfo de me aos seis anos, meu pai foi um famoso relojoeiro,scio de Agostinho Hummel, na loja da rua da Cadeia, cuja clienteladispunha de slidos contos de ris. E, no entanto, a sociedade com oAgostinho achava-se comprometida. Vrios relgios desapareciamdentro da loja e os balancetes, apesar das boas vendas, traziam nmerosestranhamente negativos. Meu pai viu-se obrigado a sair da sociedade,por mseros tostes, perdendo mveis, cavalos e escravos. A casa ficoupor um fio, salva apenas com as economias de minha av. S no pdesalvar a sade mental de seu filho, levado ao hospcio da PraiaVermelha, de onde nunca mais saiu at morrer, em 1849.
Precisei trabalhar cedo. Abandonei a escola, sem deixar de ler
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todos os livros que pudesse e conhecer as lnguas. Comecei na livrariaLombaerts, onde aprendi muito sobre encadernao. Cheguei mesmo asalvar alguns livros da biblioteca de dom Pedro. Fiz amizade com osmelhores profissionais, criando laos que duram at hoje e que meajudaram a conquistar, por exemplo, a edio princeps da Marlia deDirceu, quando esperava encadernao fora da Biblioteca Nacional.
Fui despedido, no lembro por qual motivo, da Lombaerts, tendo aventura de me ver empregado, poucos dias depois, na BibliotecaFluminense, rua do Sabo. Trabalhei com Francisco Martins, velhorabugento e preguioso, que me obrigava a trabalhar duas vezes mais.Separei alguns livros para mim, cujo valor ningum mais do que eu seriacapaz de apreciar, e que iluminam a prateleira mais alta de minhasestantes.
Certa vez encontrei Uruguai (recuso-me a cham-lo de visconde!),diretor simblico da biblioteca, o qual se insurgiu, aos berros, contra aminha ousadia, imagine, a de um empregado, em cumpriment-lo. Foidas grandes humilhaes que sofri. Disse-lhe com voz spera que no sedirigia a um simples escravo, mas a um cavalheiro, a quem no restavaseno demitir-se, como se espera de um homem de brios.
Foi o que fiz e de modo algum me arrependo.No cheguei a passar fome, salvo pelos relgios que papai trouxera
da loja para casa, como se buscasse ento se precaver do golpedesferido mais tarde por Agostinho. Vendi uma pndula na rua doSenado.
Minha experincia com os livros era apreciada na Corte, levando-me, assim, menos de vinte dias depois, com apenas trinta e um anos, atrabalhar no Museu Nacional, graas a um amigo de papai, o doutorLeopoldo Souza Campos, que conhecia o diretor daquela casaveneranda. Fui admitido em janeiro, com abrao caloroso e uma pontade emoo.
Comeou bem o que havia de terminar mal. Creio que matei odoutor Leopoldo, seis meses depois, de desgosto, no nico furto no qualme envolvi em toda a minha vida. Leopoldo foi a nica pessoa quedesconfiou de mim. Associei-me a um amigo de famlia, Domenico Galli,morador no Campo de Santana, que me convenceu a praticar um atodesonroso.
Sirva de atenuante a vida limitada em que eu vivia, com aquelesalrio irrisrio e ofensivo do museu. Quando no os arroubos dajuventude, que ainda no me abandonara, nos sonhos de aventura eliberdade. Tudo ocorreu no domingo, de 25 a 26 de junho de 1865. Deiinstrues ao italiano para entrar no museu, mostrando salas esquecidas
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e corredores cegos. Antes de o museu fechar, Domenico enfiou-se atrsde uma porta e agiu com a percia de um gato. No dia seguinte, deramcom a janela aberta, fsforos e pedaos de estearina. Acharam o papelcom minhas instrues (idiota!), que sinalizava primeiro os diamantes,depois o ouro em p e, no final, bem separados para que no tilintassem,todas as moedas de ouro e prata que pudesse reunir. O bilhete estavaescrito em italiano, sem o meu nome.
Foram 53 moedas, 70 medalhas e 49 diamantes.Tudo bem dividido e jamais fomos descobertos. Domenico mudou-se
para a buclica So Paulo. Pouco depois mudou-se tambm, mas para ocemitrio, abalado com a invaso do museu, o pobre doutor Leopoldo.Sei que andava com a sade frgil e que no demoraria a partir. Mesmoassim, mandei rezar missa por sua alma na igreja de So Joaquim, ondeo vi algumas vezes.
Tirando sua morte, no tenho outro remorso, pois no houvederramamento de sangue e ningum teve de pagar ou devolver omontante. O museu tratou de comprar novas e melhores moedas, nosendo todas dignas de exposio. O bolsinho de Sua Majestade tambmfoi acionado, ficando o museu mais formoso do que era.
Depois daquela noite, passei a viver com a facilidade dos tempos darelojoaria de papai. Como se eu tivesse desfeito uma injustia.
Depois de pedir demisso, nunca mais voltei a por os ps no museu,como tributo memria do doutor Leopoldo.
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chegamos a conhecer um dos desafetos de incio, alvo da carta cheia de dioque abre este livro, depois das palavras de meu ilustre Revisor, que sedesmoraliza medida que o romance adquire autonomia.[1]
A averso de Incio devia-se talvez ao fato de ser Adriano pessoa deastcia invulgar, que se mantinha a salvo de toda e qualquer suspeita, sob oescudo glacial do cinismo e do clculo das palavras, como se nada pudessealvej-lo.
O quebra-cabea ganha novos contornos e j no saberia dizer qual sera efgie, qual a figura que poder emergir de tantas indagaes: se o meu rosto,se o de Incio ou o de Adriano. No ser decerto o do Revisor!
Adriano possui um segundo nome, prenhe de consequncias. Dou-lhe apalavra.
Hoje me tomam pelo que realmente sou: um homem culto, uma dasglrias do Brasil, apesar de jamais ter publicado um s livro ou artigo.Sou como Scrates, amo apenas o debate, a senda inesperada a que adiscusso pode levar.
Sou obrigado a observar que, alm da merecida fama intelectual e,por causa dessas mesmas virtudes, alcancei o ttulo de baro, a que sesoma um bom nmero de charutos, alfinetes e contos de ris pagos aRodrigo Silva.
Devo-lhe o ttulo de baro... baro de... baro de Jurujuba! Foimotivo de alegria e desconcerto aquele estranho Jurujuba! Prefeririaoutro nome, que no soasse como uma pilhria.
Consolo-me ao lembrar-me de outros, quase impronunciveis, comoIvinhema. E que dizer afinal de um baro de Aiuruoca ou de Suru?
Seja como for, prefiro o baronato de Jurujuba a no ter nenhumaligao com os que fazem a histria do pas. O carto de visitas quemandei fazer, com o braso de armas, abriu-me de par em par as portasde saraus, gabinetes e livrarias imperiais.
Tenho um ex-libris de grande refinamento e que um pouco meresume.
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Ah! Como gostaria de encontrar hoje o defunto visconde doUruguai...
Vivo atualmente sem preocupaes. Ajudo de modo generoso osmais desprovidos, como sabem os fiis das igrejas de So Francisco daPrainha e de Santo Antnio dos Pobres. A bem da verdade, apresso-me adizer que gasto a maior parte de meus haveres com a expanso dabiblioteca luminosa que formei vida afora.
Por outro lado...
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as palavras de adriano ferreira, baro de jurujuba, desaparecem repentinas comesse outro lado e com o que poderia vir depois. Digamos que perdemos o versoda folha. E que passamos agora ao anverso, ao ajudante da biblioteca de domPedro.
Para seus amigos, Incio Augusto um esprito aberto e prestimoso,amador das boas letras, a quem no falta senso de humor e nem tampoucodotes maternais.
De acordo com seu obiturio, assinado por Yankee, Incio era de umaextrema generosidade, repartindo seus honorrios com os amigos necessitados ecom muitos pobres que lhe batiam porta do seu humilde quarto no pavimentotrreo do Pao da Boa Vista.
Ria-se com Urbano Duarte, a mais no poder, dizendo-se republicanodesde a mais tenra infncia, como que para morder a adeso dos fariseus,convertidos no perodo de 15 a 20 de novembro.
Incio era de fato um republicano convicto, sem que, com isso, deixassede dar mostras de gratido famlia imperial.
Qualidades solares, as suas, apreciadas por dom Pedro, que a ele semprese dirigiu com grande afabilidade, em pouco mais de sete anos de convvio.
Para lidar com as riquezas da Boa Vista, Incio revelou competnciasbeneditinas, diante de um acervo complexo e heterogneo, sensvel s virtudespotenciais da livraria, realinhando estantes e prateleiras, para saciar a fome dacidade dos livros, voltada sempre mais para o futuro.
Saa-se bem, o imperial bibliotecrio, mas era preciso que houvesseoutros braos, para ajud-lo a promover com eficcia a defesa do infinito.
Certa vez, Incio recebe inesperada visita do poeta Guimares Passos ede outro amigo. Como estivessem em jejum, h quase trs dias, Incio osconvida para o jantar, mas com extrema delicadeza, como se lhes pedisse umfavor:
Faam companhia ao solitrio.Vieram ao gabinete de Incio os pratos das cozinhas imperiais,
regalando-se todos em clima de amizade fraterna. Aps o caf, com o charutodesenhando formas areas, Incio dirige-se ao poeta, nos termos aduzidos por
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Joo do Rio: No lhe cansa esta vida, amigo Guimares? A sua obra necessitaria de
quietude, de descanso. Oh! Descanso! Olhe, eu desejaria passar a vida como o senhor. O
destino que no quis... Mas sempre possvel ajudar o Destino. Estava precisando de algum
para o trabalho na biblioteca...Guimares Passos comeou a trabalhar na mesma semana como
arquivista, onde se encontra com um dom Pedro concentrado em suas leituras,no seio da livraria.
Interpela-o certa feita o imperador: Senhor Guimares, como traduziria voc estes versos de Zorilla?Sobre o mesmo livro, observa Joo do Rio, a imperial barba argntea
e a cabea juvenil do poeta curvaram-se. J os estudei, majestade, e at cheguei a traduzi-los. Como? Assim... Agradvel coincidncia, senhor Guimares. Acabo de traduzi-los do
mesmo modo e a sua traduo restitui-me a confiana que em mim no tinha.
A viagem e os livros foram a terapia do esprito, segundo escreve OuroPreto, de Roma, aps o advento da Repblica.
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haver terapia que atenda s necessidades primrias dos colecionadores delivros, dos que se enamoram do objeto, das partes acessrias e acidentais?
O biblifilo clssico, na estrita acepo da palavra, no passa de ummagnfico idiota. As qualidades intelectuais o denunciam e no sei o que maisadmirar, se a falsa erudio a que faz jus, se o oportunismo vigilante, que odenuncia, ou se as unhas ousadas e compridas. O biblifilo um lascivo pordefinio. Poderia presidir a melhor biblioteca da Corte ou o mais lrido bordel,como o da rua Senhor dos Passos, lanando mo da mesma atitude, entrerameiras e leitores: a lngua ferina e o carter simulado.
Os bordis e as livrarias perdem com tal figura, a quem importa menos ovolume que o conjunto, menos a verdade que a aparncia.
O biblifilo no possui propriamente uma biblioteca, mas um serralho,como os paxs de Istambul, fixando a beleza nos corpos que o aguardam, febris,no seio da biblioteca. Livros de rendas galantes, multicores e a paixo dedesnud-los; outros, com pequenas cancelas, ferros e broches, defendem o pudorde sua virgindade. Se as odaliscas de marroquim o aborrecem, ordena livros develudo azul. E, dentre aquelas pginas, uma espcie de perfume, nos sinuososvolumes bizantinos, com a variedade de esmaltes e caprichos do Oriente.
No h meio-termo, no h fronteira aberta. Ou se intelectual oubiblifilo. No se pode servir a dois senhores, sem deixar de trair, cedo ou tarde,um dos dois. Vejo o visconde de Silva, folheando o Alcoro, adquirido na livrariaFauchon e Dupont, na rua Gonalves Dias, sem saber uma vrgula de rabe. Omesmo volume aparece nas estantes da Quinta da Boa Vista, quando dom Pedroe Gobineau debatem, nas tardes de domingo, a seduo das lnguas levantinas.
Eis a diferena entre um biblifilo e um leitor, entre o desenho e ainterpretao, unhas afiadas e mos velozes.
H obviamente ampla intimidade entre biblifilos e ladres. Primossiameses que atuam no mesmo ramo de atividades. A pilhagem de livrosobedece lei de Lavoisier, segundo a qual nada se perde, nada se cria, mas tudose transfere de uma estante outra, num moto contnuo, por toda a eternidade.
No clara a fronteira das unhas de ladres e biblifilos. Lembro da Artede furtar e imagino uma ode s unhas dos primos que acabamos de ver, unhas
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prprias e alheias, finas e grossas, speras e sutis, unhas compridas, agudas,criminosas, unhas sempre e, em demasia, unhas tantas e tamanhas, que precisocort-las sem demora.
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obtive a peso de ouro, das unhas do infame tetraneto do baro, o bilhete em quereage s acusaes do bibliotecrio imperial.
Li mais de uma vez a carta de Incio a mim dirigida, aquela em que meatribui manchas de carter, falta de elevao de vistas, definindocorsrias minhas atividades livrescas. Duras palavras, como se mecoubesse pagar o crime que no cometi, o crime de o haver suicidado.No posso dar de ombros: seria a um s tempo faltar verdade e snormas da lngua, atribuir-me essa culpa. Ser preciso lembrar que oautocdio no passa de um assassinato de si mesmo, em que seconfundem sujeito e objeto, vtima e ru?
Pobre Incio! Requiem aeternam dona ei, Domine. Descanse empaz.
Pobre?!Considero inadmissveis suas palavras, inadequadas para um
cavalheiro que gozava da irrestrita confiana de dom Pedro, palavrascheias de dio dirigidas a um baro com grandeza! Foi a carta maisrepugnante que recebi, um insulto feroz como a descompostura dovisconde de Uruguai. Feridas que no cicatrizam.
No direi nada sobre meu ofcio. Tenho clareza do altrusmo que meleva aos livros, a muitas lguas de distncia da prtica dos ladres queassolam a cidade. Compreendo o desespero e a morte de Incio,buscando salvar a biblioteca do imperador, quando no a prpria honra,na qualidade de guardio dos tesouros. Rasgou as vestes sacerdotais,atirando-as ao fogo.
Incio no tratou do acervo como lhe era devido, como se esperade um bom prefeito dos livros. Faltavam-lhe qualidades administrativas eintelectuais, o contrrio de um Ramiz Galvo, junto BibliotecaNacional, homem de cultura, que conheci no Caf do Comrcio, emaceso debate movido a cajuadas com o erudito Manoel Ferreira Lagos.
Incio forma exceo no perfil dos que se ocuparam do acervopetrino, como foi o caso do doutor Canto e Melo, que era realmente um
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sbio e a quem sucedeu, sem o substituir.Hesitante, Incio confessou a Urbano Duarte que no se sentia
altura do convite do Imperador, tal como Ouro Preto deveria terreconhecido a falta de predicados para presidir ao ltimo gabinete doImprio.
Seja como for, creio que poderei perdoar Incio com o tempo. Achoque j o perdoei. No tenho outro remdio. O dio o princpio doabismo, para o qual no serei arrastado. Rezo pela salvao de sua alma.
Sinto uma ponta de pena de Incio. Como dizer a palavra certa, quepreferiria talvez esconder? Incio sentia inveja, uma inveja irresistvelde mim. No posso e no o devo culpar. Formvamos uma contradio.
De origem obscura, nascido na distante cidade de Gois, sem ttulose sem posio, trajando fatos discutveis, recebendo modesto salrio, quemal dava para o sustento, Incio no podia competir com meu estado.Havia um abismo entre ns, que separava o humilde guardio dabiblioteca e o baro de Jurujuba.
Sempre me comportei de modo magnnimo. Quis mesmo ajud-lo,abrindo portas, granjeando a seu favor amigos de prestgio crescente,como Joo do Rio, Guimares Passos e Olavo Bilac, jovens clientes, aosquais fornecia livros a preos reduzidos.
A primeira vez que o encontrei, lembro-me bem, foi na livraria deJoo Martins Ribeiro, na Uruguaiana, no comeo dos anos de 1880,depois de ele assumir a biblioteca do imperador.
Era um autodidata esforado, cultura breve, polido e gentil, paracompensar o carter pouco atrativo e sem vibrao. No sei comochegou ao cargo e nutro srias dvidas sobre o mrito. Havia tantosnomes! No me incluo na lista, pois no advogo em causa prpria.Lembro-me de Ramiz, Bilac ou Ramos Paz. Mas o que dizer a respeito,se naquela altura dom Pedro dormia sempre, em toda a parte, com odiabetes avanado e a inteligncia mais vagarosa?
Chegamos a fazer boas partidas de voltarete, aqui em casa, no largode Santa Rita. Dei para Incio livros, charutos, tubos de tinta e pincis(as nicas manchas de que disponho, no as de carter), quando eletomava aulas de pintura, com o objetivo de aproximar-se mais de domPedro de Saxe e Coburgo, de quem era amigo, deliciando-se em longase animadas palestras sobre aquarelas e quadros a leo.
Poucos meses depois de conhec-lo, Incio levou-me deslumbrante biblioteca petrina. Foi em 5 de junho de 1888, fazia sol.Voltei dois anos depois, janeiro de 1890. O intendente da Quinta era meuprimo, o que me permitiu horas de pura meditao, livre da companhiados mortais. Incio tirou ilaes indevidas, imaginando o que eu jamais
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seria capaz de fazer no corao do templo do ex-imperador. Outraspessoas entraram no recinto, como foi o caso de Taunay e de no seiquantos mais, que furtaram livros e objetos.
Eu me pergunto justamente por que duvidou de minha honra?No me perdoava a amizade com o superintendente da Quinta, que
era pessoa de valor e acima de qualquer suspeita.Foi um perodo em que Incio revelou todo o seu dio e ingratido,
retribuindo com essa moeda a amizade desinteressada que lhe devoteinos ltimos sete anos.
Ferido de ingratido, no me deixo abater. Guardo sempre um restode esperana, necessrio e suficiente.
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os planos da narrativa rompem a fronteira moral e metafsica de meuspersonagens e se misturam com a minha prpria biografia, e com tamanhadisposio, que j no sei quem fuma os meus charutos, escreve essa histria,mergulha nas guas do rio dom Pedro e manda ao inferno o Revisor.[2]
To capturado me vejo que raras vezes consigo dormir.So trs ou quatro da manh. Alis, quatro. Quatro e dez. Quatro e vinte.
Quatro e... Ao diabo com a insnia e as trevas exteriores, primcias do demnio,da noite em branco. Quatro e vinte. Quatro e meia. Posso recorrer ao celular,mas a luz agride meus olhos, como um golpe de faca. Ouo a litania dos relgios,esses, que adquirem noite nova epiderme. De cordeiros passam a monstros,ruidosos, como se anunciassem o fim do mundo, como se houvesse no coraode suas entranhas uma revoada de corvos. Penso no pai de Adriano, ntimodaquelas aves, preso ao morgue de ferro, desmontando, com culos duplos eincisivos, aqueles simulacros de tempo.
Talvez eu pudesse dormir, sem o barulho desses pssaros, mas se so elesjustamente que imprimem um ritmo msica, fona e incessante, da insnia.
Todo o relgio um metrnomo no seio da madrugada. Cada qual adestempo.
Se as investidas do sono mostram-se inermes, as vias inquietas da insniatrazem o eco de um trem, bufante, nervoso, que devora tudo que passa na janela,formas que surgem e logo se desfazem.
Despe-se o trem da insnia nos subrbios do medo. Um copo de guasobre a cmoda. Um captulo do livro de Flora, de mile Zola, que antecipa amorte de Incio. O trem. O relgio. A insnia. Posso adiar o encontro das narinassfregas da locomotiva, atrasando o relgio. Quatro e meia. Quatro e vinte.Quatro e dez.
Tomo um quarto de sonfero e logo se desfazem, num roxo impreciso, otrem, o relgio e os corvos.
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mas, s vezes, durmo, passada a meia-noite, sem corvos e relgios, tolongamente como se quisesse abrir meus olhos em outra cidade, aspirando sfrias, longe do terreno movedio destas pginas.
Passo uma semana em Petrpolis, no arquivo do Museu Imperial, eaponto algumas ideias sobre a biblioteca de dom Pedro, cotejando catlogos delivrarias que desapareceram ou que simplesmente foram absorvidas por outras,como a Fluminense, na qual trabalhou Adriano, sob a tutela de Uruguai.
Eis a concluso a que cheguei.A biblioteca particular de dom Pedro uma nuvem, em pleno ar, nuvem
dom Pedro, de livros expansivos, como as fronteiras do Imprio, nuvem desonhos, nuvem latente. Ferida na ambio de dominar o mundo. A biblioteca um fenmeno meteorolgico, sem que se possa repres-la, por muitos anos,inquilina de uma casa, ao longo de poucas dcadas, sdita fiel de um soberano,at sobrevir a nova dinastia, o fato consumado, a venda ou a cesso dos livros,passados para o domnio de um novo rei-proprietrio, debaixo de cuja lei seredesenham as linhas de poder. Cedo ou tarde, o imprio das circunstnciasimpe uma nova ordem s prateleiras, atravs do quadro sucessrio ou do golpede estado, quando no atravs dos brbaros, que arrancam estampas e figuras,mutilando os livros, a fim de abastecer o escuso mercado em que volumes edocumentos se desmancham ou desfiguram.
Ao contemplar de longe a biblioteca, avulta o sentimento aparente deposse legtima, na boa relao dos volumes com seus pares, na montagem de umrelevo harmoniosamente disposto, no balano da altura ou da lngua em queforam escritos, no desenho das capas, de acordo com o assunto, gnero, pas,como se cada qual houvesse nascido para ocupar aquele espao e nenhum outroalm daquele em que se encontra, submisso a um destino livresco irrevogvel.Como se inaugurassem novo tempo e espao, apagando o nome do antigo rei,como faziam os faras. Mais de perto, porm, quando abrimos os alfarrbios epercorremos as primeiras pginas, damos com sinais remanescentes, brases,ex-libris, comentrios a latere, com letra mida, retratos escondidos e cartas quejamais chegaram ao destino, fechadas no claustro de papel a que foramrelegadas suas vidas, revelia de si mesmas, talvez, como se fossem o poeta
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Junqueira Freire entre os beneditinos. A geografia dos livros quase tocomplexa como quando se pretende explicar o mistrio do mal na teologia crist.Quando menos se espera, um livro desponta, sem alarde, fora de lugar, nasprovncias distantes do Imprio. Ou, ainda, no captulo das surpresas, nas lojas delivros, como a foto de Rob Roy, cozinho de dona Isabel, que acabo de encontrar,por mero acaso, nas pginas de um velho missal da Francisco Alves. Pode-seperceber que a demografia da biblioteca filha do acaso, atravs da pirataria doslivros, da venda imprpria ou de simples e pacfica herana.
Nada mais incerto e heterogneo, precipitado e fugaz, poroso edescontnuo do que uma biblioteca, seja ela qual for e onde quer que se constitua.Campo santo de lpides, sutis e discretas, como no cemitrio dos ingleses. Formasque prorrogam para sempre uma infinita disperso.
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a disperso dos maiores inimigos de incio. Obsesso de olhos abertos.Pesadelo quando adormece.
Leio no Dirio Oficial a nota sobre suas novas atribuies, poucos mesesdepois da sada do Imperador, de auxiliar da comisso que dever fazer oinventrio dos documentos petrinos dos trs palcios, para lev-los para a BoaVista, onde sero examinados por um grupo de notveis. A companhia de ferroThe Rio de Janeiro and Northern Railway concede a Incio passagem de ida evolta a Petrpolis.
Dolorosa tarefa que o arranca do museu-biblioteca, vendo a comissodecidir o que pertence ao Brasil e o que pertence famlia imperial. Para ele,era como abrir uma ferida no cosmos, uma ciso no processo de unidade, umcorte no acervo que no admitia divises, destinos outros e mutveis endereos.
Implicava tambm tirar Incio da biblioteca, fundeado no torreo dopalcio, desprovido de foras para sair, ferido no duelo verbal com o intendentedo palcio, cujo nome no declino, por motivo de rigor. Digo apenas que eraamigo de Jurujuba, o que dispensa credenciais.
Como arrancar-te, Incio, do mundo dos livros, sem ferir teu isolamento,essa leve misantropia, que de tudo e de todos te afasta?
Ouo a voz de Incio, abafada e surda, como se fosse uma intuio:
Misantropo? Devagar. Eu no diria tanto. Longe da vida? Mesmo que odesejasse e no foram raras as vezes minha inquietao nunca mepermitiria faz-lo. Afastado de tudo e de todos? Mas se fiz justamente doslivros minha vida! A biblioteca a que respondo minha salvaguarda.Vivo e morro isolado no torreo sul do palcio, e aqui me distraio dotempo (que jamais se distrai), cercado pelas torres altas, que meprotegem dos dissabores do mundo. No adivinho a culpa que meatormenta, a expiao que me consome e nem tampouco o destino queme esmaga. Fujo sempre e por toda a parte. Moro na cidadela da BoaVista, cercado pelas paredes imperiais. Mortalha de meus labirintos,batalhas de meus temores. Insulado na livraria de dom Pedro, que meimpede o descortino do mundo. Vejo as coisas do alto, de longe. E no sei
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dizer quem me domina, se o orgulho ou a solido. Ambos participam dobanquete do medo e rompem a paz de gelo de meus vassalos. No passode um escravo dos livros, dos que pertencem a um rei no exlio, cujasombra e memria se espraiam ao longo desses corredores.
Pago o preo de estar s. A teimosia de no pertencer novaordem. Pago um tributo que tudo exige de mim. Quanto me pesa, de fato,e quanto me fere! Embora pese mil vezes menos que as hipotecas deconchavo e submisso.
Caminho ao fim do dia pela imperial Quinta e no alcano o ltimoraio de sol, que desaba por trs das montanhas.Preparo-me para ointerminvel combate da insnia. Tenho longos anis volta dos olhos,negros, das noites brancas, sem o licor do sono que no vem. Sinto-medevastado. E me pergunto por que tanto silncio, e mgoa de silncio, secada parte de silncio exige outro mais fundo e impronuncivel?
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impronuncivel?Sim, decerto, quando se trata de traduzir o fim do Segundo Reinado, esse
pequeno e doloroso apocalipse.Desmancham-se os imprios sem piedade, derramando uma impressiva
massa de runas. Colunas quebradas, capitis retorcidos, frontes e arquitravescobertos de musgo, h sculos deitados, rastejantes, sem a frondosa beleza deoutrora, quando eram esguios, verticais.
A tanta altura no corresponde a precipitao do reinado de dom Pedro,diante da escala de esplendores e misrias da antiga Roma.
Se existem muitos modos de exercer a arte da queda, todos apontam parao fim da matria solar de que so feitas as coisas que iluminam parcelas detempo, hoje profundamente escuras.
Com o fim do Imprio, apagam-se as fontes dos possveis, cessam ossonhos de glria, que no passam de iluso, fora da paisagem que os criou,perdem-se as memrias do presente, ligadas a um pretrito imperfeito.
Que dizer do brilho dos olhos da viscondessa de Cavalcanti e seu modo deapanhar os cabelos, banhados de antigo e sensual perfume? Seus ps iro perdero agasalho dos sonetos de Guimares Jnior e j no voltarei a ouvi-la ao pianocom Arthur Napoleo.
Sinto como se os brbaros tivessem a inteno de violar as bibliotecas dacapital, empenhados no saque aos tesouros. Sero outras as tardes da Quinta daBoa Vista, desertas e vazias, na ausncia dos que lhe deram vida.
A queda do Imprio coincide com a minha forma de cair, quando de tudome despeo.
Como nos versos de Verlaine, sou o imprio no fim da decadncia, vejopassar os brbaros e no componho versos indolentes.
Talvez, frementes.Tomo a serena deciso de naufragar com o Imprio, fugindo memria
de vivos e mortos, um breve ponto de luz na escurido, prestes a se dissolver noumbral da madrugada.
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um ponto de luz imaterial, gasoso e impermanente, como as estrelas da pera Lafavorita. O captulo no progride na arte da queda ou das precipitaes e norevela tampouco o sentido daquele ponto luminoso.
Prefiro no adiantar os fatos. Passo do cu para a terra, das estrelas aosdedos de Jurujuba.
Que minhas unhas sejam prfidas e perigosas, como as de um mseroladro, para obter vantagem e lesar terceiros, eis um conjunto deatributos que no se adequam aos meus dedos e livros. Vivo da fortunaque me foi subtrada, nos tempos da loja de papai, e que recuperei nomuseu. No preciso de nada.
Minhas unhas so curtas e a quintessncia da arte, a que me dedico, dotada, sim, de fina elevao de vistas, porque exige senso deoportunidade e virtude intelectual.
Sinto-me como um ator no teatro do mundo, de tcnica apurada,desempenhando variados papis, de acordo com o cenrio em que mevejo.
No me apodero de bens alheios para obter vantagem, pois sendobastante minha fortuna, no teria meios de ampli-la com as migalhas daeventual venda de livros.
Como poderia eu definir em poucas palavras a razo de meu ofcio,a tarefa a que me entrego, num s destino de leitor e biblifilo?
Se me permite a imodstia, sou uma espcie de messias dos livros!Parecer estranho aparentar-me com a teologia. Devo frisar bem
esse ponto para a defesa de infundadas crticas.Baste um exemplo. Conheo bem a biblioteca de Cotegipe, cujos
volumes, esquecidos, abandonados, parecem estranhar e queixar-se damo que os importuna em meio ao descanso morto em que jazem.
Viviam assim os livros da casa na rua do senador Vergueiro.Cotegipe guardava algo em torno de trezentas e oitenta virgens, livrostristes, oprimidos, como os judeus na Babilnia.
Por que deix-los morrer, sob o jugo de um Nabucodonosor que os
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oprime para dar brilho carreira de ministro de vrios gabinetes,emprestando-lhe ares de uma frgil cultura, inclinada a frases de efeito,boa para relatrio e discurso?
Tirei da masmorra pouco mais de vinte exemplares, todas as noitesem que cmplice involuntrio Arthur Napoleo tocava, com dedossuaves e unhas aparadas, as polonaises de Chopin, quando se abria osalo de Cotegipe sociedade fluminense.
Os livros so vtimas da infmia, de que resultam sequelas, algumasvezes irreversveis, como os de Dom Quixote, emparedados, ou dos quemorrem de abandono, presas do bicho ou despedaados, como osremanescentes da biblioteca do Colgio dos Jesutas, de que salveipoucas obras de valor, negociando o preo de alguns jogos.
Pombal foi o anticristo, o libricida mor, culpado pela dissoluo daordem inaciana, que levou disperso milhares de livros e papis,vtimas de um incndio invisvel, mais silencioso e devastador.
Sou uma espcie de messias. Trabalho na ressurreio dos livros-lzaros, como se voltassem, depois de mortos e desfeitos, beleza deoutrora. Digo a mim mesmo: nosso amigo dorme. Tratarei de despert-lo, mediante nova encadernao e costura, couro e veludo, letrasdouradas e superlibris. Um furto sagrado, reparador, que salva os livrosque morrem nas falsas bibliotecas ou nos sales hipcritas da Corte.
No sou mais que um simples arteso. Realizo no silncio uma tarefapacfica e amorosa. Ouo as vozes dos livros, como se olhassem paramim, pedindo socorro. Jamais me ocorreu fazer como Caxias na Guerrado Paraguai, quando um praa afirmou haver soldados vivos entre osmortos. Assisti cena, estava l, com as pernas enfiadas na lama at acintura. O ento marqus disse: se o senhor der ateno s lamriasdesses defuntos no enterra nenhum.
Eu no saberia dar resposta mais sanguinria e glacial como essade Caxidiablo, que era como o chamavam os paraguaios.
Tenho ouvidos sensveis a Verdi e Rossini. O coro dos hebreus e ocorpo dos livros beira da morte me emocionam at o fundo da alma.
Eis aqui o tamanho e o alcance de minhas unhas, a razo por queno aceito as palavras de quem me insulta, como se eu tivesse urdido nasmesas da Colombo (que jamais frequentei), uma campanha para difamara honra de um cavalheiro.
No considere as unhas do baro de Jurujuba, meu caro Incio,mas o carter elevado de quem ama os livros e trabalha de olhos fitos nofuturo.
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quais olhos, afinal, e o que se entende por futuro, so aspectos que me escapam,assim como os ladres que se escondem sob as frases deste livro.
No h sada para o futuro, simplesmente porque o sentido de devir j seesgotou h mais de um sculo. Porque no h nem pode haver futuro, alm doImprio, sob o qual se produziram os sonhos de Incio e Adriano.
Leio o trecho de uma carta redigida pelo militar e jornalista UrbanoDuarte, duas semanas antes da morte do imperial bibliotecrio. Urbano registra oque ouviu de Incio, acerca de um estranho mistrio que se abate sobre os livrosda Boa Vista.
A paz romana, ou melhor, petrina, dominante ao longo do dia nabiblioteca, cede lugar a batalhas ferozes entre sditos inquietos, passadaa meia-noite, que quando se batem os livros, na disputa entre antigos emodernos. Assim comeou a falar Incio Augusto, entre delrio e razo.Mas preciso que estejam desertas, aquelas salas, sem a figura de domPedro, novo Marco Aurlio, inclinado, roando, com os dedos e a barba,as pginas dos livros.
Ausente o imperador, os sermes de Vieira cerram fileiras contra osholandeses, dispondo de piques e mosquetes contra o livro de Barleus,que se defende como pode, mediante as poucas flechas, tomadas deemprstimo do vizinho de prateleira, Hans Staden, com o qual mantmfortes vnculos de amizade.
Gregrio de Matos Guerra e Cludio Manuel da Costa, na terceiraestante, perseguem, agarram e espancam os esqueletos das academiasbraslicas, as histrias da Amrica portuguesa, de Rocha Pita e a militar,de Jos Mirales, obesas de pedantismo, sobretudo a ltima, formandouma selva de ignorncia.
Jos de Alencar apeia-se do cavalo de O gacho e ordena o stio daobra de Teixeira e Souza, na quinta estante, direita, levando morte,por inanio, O filho do pescador, com seus fantasmas, esmagados peladestra de Ubirajara. A eles se juntam os gonalvinos tupis, sob mandatode Y-Juca-Pirama, de olhos fixos na primeira edio de Os Lusadas,
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assinada pelo prprio Cames, cinco prateleiras acima volume a salvodo cabo das tormentas em que naufragam os livros deste sculo.
Castilho comanda o assalto a Alencar pela retaguarda, com pesadosobuses filolgicos, instigado por Gonalves de Magalhes, que sedeclara preludiando a vista do futuro comandante das letrasnacionais.
Precedido pelo voo do condor, chega, apressado ao cais, o navio deCastro Alves, pronto para quebrar as investidas do rude classicismo deMagalhes, opondo-lhe a sinfonia das vozes de frica.
E a cada dia, renova-se a querela intestina e perigosa.
Aps o fim da monarquia, o visconde de Taunay contempla, emocionado e triste,a solido da biblioteca imperial. Sem ter notcia da guerra dos livros de domPedro, conhecendo embora a dos homens, indaga, confuso e magoado: Melhorno lhe teriam servido, ao moderno Marco Aurlio, em vez daqueles sessenta milvolumes, de que se rodeou, seis mil baionetas, comandadas por um generalsincero e fiel?.
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outra a minha batalha, de baionetas verbais e fuzis silenciosos, apoiados nasentrelinhas, sem arrebiques retricos, para alvejar o Revisor, a mim mesmo, aAdriano talvez, e principalmente Incio, cuja vida est por um fio.
E, contudo, no tenho como ajud-lo e nem posso.Jamais busquei personagem com tamanha entrega e desespero, seguindo
seus rastros sem descanso, tresnoitado, a compulsar arquivos do Rio e de Gois,vasculhando a plancie montona do Almanaque Laemmert, o territrio mercurialdo dicionrio Sacramento Blake, sem deixar o arquivo-labirinto do Gro-Par,em Petrpolis.
Aps exaustivas diligncias, o resultado rarefeito, pouco acima de zero,altamente desanimador.
Como no odiar o personagem, e por motivos bem reais, diante daescassez de dados, soterrados pelo silncio, que ele engendrou contra mim?
Vejo-me aborrecido com sua deciso de deixar a cena, pouco antes dofim do ato, longamente planejado e consumado, sem aviso prvio, fora doenredo, a produzir graves resultados ficcionais, trajando terno escuro, chapu ecasimira. Como se de mim suspeitasse, digamos, cem anos antes, e maisobstinado se mostrasse, e foragido, nas dobras do tempo, despistando sempre,apagando as provas, assaltando afrontosamente os bolsos do futuro. Como serecusasse o dilogo, evitando as intenes que me levaram a desenh-lo, adesbastar o vazio que o engoliu, a arranc-lo, como Jonas, do ventre de um peixe,trazendo-o de volta superfcie, ao mundo verbal, dos que hoje exultamos epadecemos.
Apenas duas ou trs cartas, lidas mais de mil vezes. A caligrafia, ulica epontiaguda, no tempo em que servia ao Imperador, cujas consoantes crescem,em forma de colunas, encimadas por capitis, como se erguessem um palcioinvisvel, nas hastes dos T, dos I e dos L.
Letras que, na carta de despedida, perdem altura, inclinadas direita,deselegantes, alm do prprio nome reversivamente sublinhado, de cujo ltimoo, de Raposo, corre um fio de sangue, em forma de serpente.
Descubro, no Arquivo Nacional, o inventrio de Incio Augusto, com amesma quantidade zero de informaes, como se algum houvesse arrancado
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suas pginas para me confundir. Eu procurava alguma semiologia de objetos,uma lista de livros, gravatas, chapus. Em vez disso, mil vezes nada. Apenas ainformao de que Leonor de Lemos Jardim, sua me, era a herdeira.
Cravei Incio de mil perguntas, agudas como flechas, como se fosse umso Sebastio, perguntas sobre a famlia, sobre dom Pedro, a vizinhana deautores no correr das prateleiras, a famlia dos ttulos, as divises, e todo umsistema que decifrasse a casa dos livros, antes da disperso final.
E o que colhi desse anmalo jardim? Floradas de ausncia, prolas dossilenciosos da Prsia, altaneiros, resolutos, na torre de marfim.
Que poderia eu esperar de um tmulo naufragado no abismo do Caju,desaparecido, afogado, insolvente?
Buscando seus despojos, imaginei uma burla de mau gosto, queinterrompesse minha odisseia tumular. Aborrecido, como um personagem deMozart, decidi convid-lo para jantar aqui em casa. Era pouco antes do meio-dia,tempo de fantasmas simtricos. Convidei a esttua de um anjo, como se fora ade Incio...
Sei muito bem, senhor Revisor, que se trata da soberba, que me atribui,mas tambm da soberba dos vivos sobre os mortos, sua e minha.
Considere tambm uma espcie de grito, de quem paga as contas dahistria em longas prestaes e que, apesar disso, no consegue sair do vermelho.
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para sair do vermelho, que o valor da dvida que tenho com Incio, aposto emJurujuba, que no perde ocasio de acertar suas contas, sob o ngulo deplorveldas moedas do Museu Nacional. No tenho outra sada: as moedas de Adriano eos juros do Revisor.
Ei-lo de novo, pronto ao elogio de novas faanhas, o indefesso baro deJurujuba.
Sou do tempo em que a igreja de Santa Luzia dispunha apenas de umatorre, esquerda e solitria; do tempo em que o gabinete portugus ficava rua dos Beneditinos, o ingls, perto do Pao, e o meu corao, entre osdois, nas pginas de Dickens e Victor Hugo; do tempo em que a igreja deSo Joaquim abrigava os altares santos da cidade e iguais sacerdotesque pregavam a humildade.
Sou de um tempo que comea a perder nitidez, que se encaminhavertiginoso dissoluo.
Sou obstinado. No desisto. Moro no largo de Santa Rita, na casaonde nasci, com a janela da sala aberta para a dcada de 1830, quandosonhava com os morros de So Bento e Conceio. Era o comeo domundo. E, desde logo, tambm, o seu fim, quando se abeirava odesencanto, contado nas batidas de pndulas e relgios rebeldes, queento me assombravam, como se evocassem, em notas escuras eretorcidas, a msica distante das esferas.
Procuro um deus omisso, preguioso, que esboce as regras doquebra-cabea csmico, onde faltem quase todas as peas. Um deusincompleto, livre de rodas de trens e de pndulas. Porque no tenhocomo manter em dilogo os relgios desta casa.
Hoje, sentado na cadeira de balano, contemplo a janela profunda epontual, a janela silenciosa e sem deus, que a livraria na qualdeliciosamente me aprisiono. Alfa e mega, pelos sculos dos sculos,amm, de torres invisveis e sinos inconfessos. Folheio a vida nas pginasque refletem os domnios da memria, pndula e relgio.
Sou o bem e o mal desta biblioteca, o anjo e o demnio, a missa
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branca e a missa negra, o lado escuro e o transparente. Baro de minhasprovncias, ignoro se chove ou faz sol, se dia ou noite, se h imprio ourepblica, quando mergulho nas guas lunares da biblioteca.
Lunares?Sim, porque gosto de visit-la de noite, quando o silncio desaba
sobre o largo de Santa Rita e acolhe o sono dos mortais. Lunar, porqueaprendi com Ariosto que as coisas que se perdem na Terra chaves epapis vo diretamente para a lua. Boa parte dos livros que j no seveem no Imprio encontra-se aqui cheios de fulgor.
Eu poderia resumir a histria de cada objeto, onde, como e quando,se de biblioteca pblica ou privada, se houve ou no risco.
o lado comovente da coleo, que bem demonstra a inteligncia ea sensibilidade, de quem reuniu, em pouco mais de trinta anos, umconjunto formidvel, povoado com obras do mosteiro de So Bento at aQuinta da Boa Vista. Cito os extremos da cidade nova e da cidade velha,como se fossem a cabeceira e a foz de um rio, ao longo do qual flutuamilhas episdicas: as colees de Ladrio, Nabuco, Machado, Rio Branco,Ferreira Lagos e Diogo Cavalcanti. Todas prestam homenagem biblioteca pblica da Corte, na rua do Passeio, o mais profundomanancial.
A tica da conquista, sobre a qual se baseia meu imprio, obedece adois princpios incontornveis. Primeiro, salvar os livros ameaados, afim de evitar o drama da extino. Segundo, tirar apenas os livrosduplicados, como as torres de Santa Luzia, para no romper os laos deuma coleo, evitando com isso o vazio, o horror vacui, de que sofrem asbibliotecas.
Segui a vida inteira um sbio equilbrio, espaando as idas smesmas bibliotecas, para no gerar desconfiana.
Tntalo de meu desejo, aguardo o momento certo. Cheguei a tiraralguns livros do lugar ou a escond-los nas prateleiras mais altas, paradepois resgat-los, semanas ou meses depois.
S uma vez perdi o Harmonias de Kepler, livro to bem escondido,que nunca mais o encontrei, seno em sonho.
Para dar pequena ideia do que guardo a sete chaves, aponto unspoucos ttulos de minhas provncias, cercadas de relgios, portasrobustas, grades de ferro nas janelas. E duas pistolas just in case:
Biblioteca promissa et latens
Mstica cidade de Deoz
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Insiclupdia potica
Frutas do Brasil
O abismo dos monges glutes
Sobre a excelncia das tripas
Geschichte von Brasilien
Memrias de um annimo sobre todas as artes e as cinciasque no foram ainda inventadas, com um ndice copioso detodos os autores que teriam escrito sobre elas, se ashouvessem conhecido
Manuscrito corrigido do poema da Assuno
Catecismo chins de Sixto V em lngua hotentote, siraca efrancesa, redigido sob a forma de breves perguntas semresposta para uso das crianas no ventre materno
Medicina teolgica
Manuscritos dos sermes de frei Sampaio
Cordeiro Dubitationes in foro
Ars honeste petandi in societate
Psalmi tradotti dal ebraico
A pera das janelas
O manuscrito do licenciado Gaspar
Apario de santa Gertrudes a uma freira de Poissy emtrabalho de parto
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Orpheus brasilicus
Marlia de Dirceu
Flor das rosas do rosrio
Estampas diversas de Le grand thtre de lunivers, tomo110
Manual de confessores
Orbas de Cludio Manuel da Costa (em vez de Obras, daa raridade)
Os antibiticos da alma
O beija-cu, manual de cirurgia
Nova escola para aprender a ler, escrever e contar
Balana intelectual
Biblioteca do mundo visvel
H ainda outras que no declaro para no atrair a scia de ladres que vigiammeus passos no largo de Santa Rita.
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procurei muitas vezes no prdio anexo da Biblioteca Nacional, no cais do porto,algumas preciosidades da livraria de Jurujuba, como O manuscrito do licenciadoGaspar, de Machado de Assis, e O poema da Assuno, com as notas de frei SoCarlos, pouco antes de morrer.
Poderia comentar outros livros de Adriano Ferreira, mas no me sintopropenso a faz-lo, dada a premncia de coisas que precisam ser explicadas.
Parece inoportuno adjetivar, mediante aplauso ou censura, quem seinclina para o suicdio. A discusso perde fora, quando no passa da fronteirapessoal. Para Clvis Bevilqua, o suicdio abrange por um lado, o crime, poroutro, a loucura, e por outro, a mediania honesta, no tendo limites precisos entidos que a separem das que lhe ficam contguas.
Prefiro essa abordagem mais livre, dentro de uma escala e quantidadeque geram compreenso acima do factual.
Apesar de impactante, a despedida de Incio integra um conjuntoestatstico, realizado aps o final do Imprio, que abrange o perodo de 1870 a1890.
Os motivos de morte so diversificados, apesar de apontarem todos paraum feixe de convergncias, de que sobressai a paixo, a loucura, a embriaguez, omedo, a tristeza e a enfermidade.
A descrio dos meios ajuda a compreender os instrumentos de viagem,como veneno, asfixia, arma branca ou de fogo. O cenrio fator determinante,como a queda no Alto da Tijuca, ou das janelas de sobrados e hotis, alm daslinhas de trem e de bonde.
Com esses dados, evitam-se investidas metafsicas, mediante uma visocomparada. Ganham, assim, os dramas pessoais um sentido coletivo eintercorrente, na diversidade da lngua e dialetos das formas de morrer.
De 1870 a 1890, houve 633 suicdios, alm de 925 tentativas, num total de1558 casos.
O Rio lidera as estatsticas. Ou porque fosse mais usual na Corte, ouporque os dados se mostrassem mais seguros.
A cada cem mil habitantes, a porcentagem de casos no Imprio, em1870, foi de 11,9; em 1872, chegou a 14,5; subiu consideravelmente em 1882,
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para depois baixar de forma excessiva, em funo da coleta irregular de dados.Em 1888, a proporo era de 11,3 e, em 1890, de 1,9 suicdios por cem milhabitantes.
Para Bevilqua, a baixa de 1890 era fruto de ideais republicanos, queabriram um novo horizonte, rompendo o tedium vitae. Trata-se de crticaapressada, pois, na verdade, no houve nos relatrios de 1889 o levantamento donmero de suicdios.
No ano da morte de Incio, 1890, teria havido apenas dez suicdios: oitohomens e duas mulheres, dos quais sete brasileiros e trs estrangeiros, a que sesomam outras 29 tentativas.
Os relatrios no descrevem meios e condies. Dispomos de nmerosvolteis, quantidades que no preservam o cenrio e a liturgia da arte de morrer.
Seja como for, nos ltimos vinte anos, contados a partir de 1870, oveneno o coadjuvante preferido, com 310 mortes, ao passo que em ltimolugar vem a morte por esmagamento no leito do trem ou de bonde, com apenas21 casos.
Incio escolheu o modo menos popular de morrer, dividindo a mesmasorte com raros confrades de infortnio.
Dom Pedro de Saxe e Coburgo neto de Pedro II e afeioado a IncioAugusto escreve da Europa: Fiquei horrorizado com a morte do Raposo!Porque se suicidou? Imagino que foi por no ter de qu viver!.
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no se aborrea, gentil revisor, com a superficialidade do neto de dom Pedro. Eleno s havia perdido a ltima esperana de governar o Brasil, como tambm aprpria razo, que o abandonaria de vez, como ao pai de Adriano, meio sculoantes.
Preocupo-me apenas com Incio e com o que acabo de dizer, buscando,no plano dos nmeros, eclipsar um sofrimento que se adensa.
Que mais poderia eu fazer, diante do abismo?Se dispusesse da mais remota esperana de salvar Incio de seu destino,
eu no hesitaria em dar incio a uma conversa direta e pessoal, que varasse amadrugada do dia 12 de maio, e que pudesse desfazer algum ressentimento oupreveno, evitando que casse na cilada que urdiu contra si.
Sobretudo agora que o vejo, pronto e decidido, s trs da manh, comdiscreta elegncia, trajado de preto, fechando um mao de cartas, frias como anoite, e atiladas, como o remetente, fixando uma verdade radiosa, que no sepode encarar de frente, como o sol.
Minha esperana, ou talvez heliotropia, induz-me a pensar numa histriareversa, na contramo das leis de causa e efeito, de antes e depois, o relgio dossculos e o destino dos homens.
Sonho o adiamento da Repblica. No lugar de Ouro Preto, vejo Saraivacomo primeiro ministro, flexvel e pragmtico, apto a renovar as foras doImprio. Vejo dom Pedro, renunciando em favor de sua filha, a rainha Isabel,para o Terceiro Reinado, sem o funesto interldio da Ilha Fiscal. Vejo FlorianoPeixoto enviado a alguma misso no exterior, mnima, modesta, inversamenteproporcional ao tamanho de sua perfdia. Vejo Deodoro, cumprindo funesburocrticas no Pao, com o ttulo de marqus, esmagado nos mimos de suaplatitude. Vejo o Exrcito absorvido na Guarda Nacional e uma grande reformafederalista, ao mesmo tempo em que dom Pedro assume afinal uma cadeira noSenado. Vejo a Quinta da Boa Vista mudada, no perodo isabelino, em bibliotecae museu, abertos ao pblico, a cuja direo responde Incio Augusto.
Mas se tudo est morto e sepultado, se as coisas de outrora norepresentam nada aos olhos cansados de nossos dias, como e por que pensar areverso das coisas que se mostram irreversveis?
Imagino esse percurso para adiar a morte de Incio, pondo fim aos
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ladres mais perigosos da Boa Vista. O Terceiro Reinado acabaria com a morteda rainha, na dcada de 1920, e Incio teria vivido algo em torno de trinta anos.
Mais fundamental seria conversar com ele, demov-lo da deciso, indo porta do palcio, independente da forma de governo.
E me pergunto se a morte do passado no passa de mera iluso, de umdogma vazio de um alucingeno do tempo?
H quem defenda que nada morre, nem mesmo as vibraes do passado,para o qual se pode teoricamente viajar, segundo os estudiosos das curvas detempo fechado.
A tirania do futuro seria provocada, em ltima instncia, pela foragravitacional do sistema planetrio, que nos impede a volta ao passado.
Haver dia em que j no seremos escravos do futuro?Perdoe a digresso, que a muitos poder soar excessiva. J me arrependo
de ter levado a fora da gravidade a sentar-se no banco dos rus.Havendo culpado nessa histria caber julg-lo dentro de uma
jurisdio concreta. E se recorri cosmologia porque me insurjo contra asbarreiras temporais que me afastam daqueles idos de maio.
No tenho como burlar as leis de que disponho, na fico e na gravidade,tal como fez Unamuno, com o romance Niebla, ao receber em casa opersonagem Augusto Perez, quando este decidira acabar com a prpria vida.Unamuno diz a Augusto que ele jamais poder suicidar-se, pelo simples fato denunca ter existido. Augusto Perez responde, entre atnito e indignado:
Como, no existo? No, voc no existe seno como um ser ficcional; voc no , pobre
Augusto, mais que um produto de minha fantasia e da fantasia de meus leitores,este o seu segredo.
No caso de nosso outro Augusto, Incio, eu no disponho de tribunalmetafsico que permita sentenciar a morte do amigo de dom Pedro, sem prestarcontas a outras instncias, tal como quando Augusto Perez se viu impedido deextinguir sua prpria vida, simplesmente porque Unamuno j havia decretadooutro fim sua criatura, para no interferir no plano geral da obra.
Quanto a mim, no tenho como exigir de Incio a condio de criaturaideal, como o seu homnimo, ente de pura fico, porque misto seu estatutonestas pginas, entre realidade e sonho, o corpo ausente no cemitrio, mashavido, no sendo hoje mais que um fantasma, com uma taxa de ficoacrescida, na trama em que o aprisionei.
No tenho como afrouxar-lhe as amarras temporais de quando era vivo.Nem mesmo se Incio quebrasse a moldura do quadro que nos separa,insurgindo-se contra o crcere de tempo, propondo-me uma partida de voltarete,no meu escritrio, como fazia com o baro de Jurujuba. Mas qual seria oresultado, se no sei as regras do voltarete, se no imagino o que conversar e em
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que parte da lngua portuguesa, que diferente, como a distncia entre histria efico?
Incio, meu bom amigo e vtima de meus devaneios, sinto-me de mosatadas. Posso oferecer apenas uma parcela de tempo mnima, atrasando orelgio ficcional, como o pai de Adriano, dobrando as fibras do romance paratorn-las pouco mais elsticas, alterando-lhe o ritmo da narrativa.
No sem antes invectivar uma vez mais a fora da gravidade.
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fiz um desvio perigoso, entre curvas de tempo fechadas e abertas, na companhiade Unamuno. Pobre Incio Augusto, que tentou esconder-se do futuro. E a cujadeciso me oponho, seguindo-lhe a sombra, ao longo destas pginas, sem a forade impedir o desfecho para o qual se encaminha obstinado.
Achei nos papis da Biblioteca Nacional outra pgina solta de seu dirio,sem nome, sem data, cuja caligrafia reconheci de pronto, bem como o tominconfundvel.
Uma noite de maus sonhos e pressgios. Lnguas de fogo e lava devorama Boa Vista. A luz fatal do incndio alteia-se, impiedosa, enquanto alivraria do Imperador morre sob um gneo apocalipse. Cada livro deitaum claro homicida e os frgeis manuscritos parecem Joana dArc, adebater-se, inerme, nas fauces do fogo. Corro. Grito. Nenhuma voz.Nenhum sinal. Noite em que as cortinas renovam o mpeto das chamas,debaixo da chuva de lapli que se precipita das altas prateleiras. No htempo de salvar a primeira edio de Os Lusadas, que se retorce emconvulso cartcea. Uma densa nuvem de cinzas toma de assalto oImprio. Naufrgio do universo: e um sem-nmero de globos exorbitadose mapas-mndi destrudos compem um colosso de runas, a reclamarum anjo na terra hostil e abrasada. Assumo, em lgrimas, a culpa de umcrime no cometido e imploro perdo de joelhos, enquanto dom Pedropassa, cabisbaixo e sufocado de silncio, um deus caipora e triste, deolhar distante. O que seria o exlio comparado ao flagelo da biblioteca,no fim da monarquia dos livros?
Acordo rfo de deus e dos astros. Corro biblioteca e vejo comalvio que tudo permanece como est. Cames seguiu, so e salvo comdom Pedro, no Parnaba.
Algo que por breve tempo me anima e consola.Mas, de imediato, o terror e o desespero voltam contundentes. Sei
que no posso continuar assim. Um de ns precisa ceder espao aooutro.
A biblioteca e seu guardio formam uma anttese ruinosa.
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Leio no dia 22 de maio de 1890, um artigo sobre Incio honrado velho [sic!],muito estimado, de que conhecem as causas publicadas e naturalmenteverdadeiras que levaram o antigo empregado de confiana de dom Pedro aatirar-se debaixo das rodas de um trem de ferro, suicidando-se como a Flora, avirgem selvagem da Bte humaine (...) Quem poderia supor, quem poderiaprever que aquele bondoso e pacato burgus, to pouco romanesco e naaparncia to arraigado vida escolheria para arrancar-se dela violentamenteaquele modo estupidamente trgico to romanescamente terrvel. Que animalcurioso o homem.
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a concluso do captulo anterior apoia-se numa frase totalmente frvola, tirada deum cronista, cujo talento parece bastante duvidoso. Perde-se a chance decomentar o incndio de O ateneu, de Raul Pompeia, que estava nas estantes daQuinta, e com o qual parece dialogar o sonho de Incio.
Mas o incndio prossegue na viglia, sem que outros, seno o imperialbibliotecrio, o reconheam a fundo.
Comeava a ler algumas pginas sobre viagens definitivas, sobre a mortesocrtica, e outras modalidades voluntrias.
Despedir-se da vida, seguindo uma cincia de fins superiores, em sintoniacom o esprito de liberdade, traduz um eloquente gesto filosfico, lcido,penetrante.
Como tocar o abismo seno atravs dele, como defini-lo e reconhec-lo,seno dentro de suas negras fauces? Sob o impacto da morte do pobre Raposoda minha biblioteca, dom Pedro sublinha a notcia da carta dirigida ao coronelJardim, na qual dizia que motivos particulares o levavam prtica do suicdio.Poucos dias depois, anota mais uma vez: Raposo, na carta dirigida ao tenenteJardim, diz que as chaves ningum as encontrar mais.
Em tantas perdas, e no exlio, o imperador temia a dos livros e a daschaves, como se a morte de Incio fosse a queda do ltimo baluarte de suabiblioteca. Perdidas as chaves, qual seria o risco iminente dos livros, quando o seubom Raposo j no poderia combater pragas e ladres?
Era um perigo real, ameaando o tesouro de vrias geraes, o sentidoda vida de dom Pedro, parte da qual consagrada ao acervo que cresceu ao longode quarenta anos.
Dom Pedro lembrou-se de Sneca, para quem o simples fato de viverno era valor suficiente, mas sim viver bem. Sneca passou os limites abstratosda leitura da apologia de Scrates, aplicando para si o prprio fim.
Para o filsofo, quem sabe morrer, desaprende a temer e servir. Qual ovalor do crcere, dos guardas e das correntes, se h sempre uma sada, uma fugadaquele mesmo crcere feroz, que consiste na moderao do amor vida?
Trs semanas aps a morte de Incio, Camilo Castelo Branco, amigo doimperador, ento completamente cego e melanclico, decide abreviar a estada
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na Terra. Dom Pedro lembra do que Camilo escreveu, em outra ocasio, queinvectivar de covarde o suicida escarrar na face de um morto. A vida dosdesgraados irremediveis seria um prfido escrnio do Criador se o suicdio lhesfosse defeso.
No tenho como entrar nos domnios teolgicos, que me levariamdemasiadamente longe da pequena geografia que me circunscreve, obrigando-me a passar pelas aduanas do mistrio da iniquidade, viagem sem volta, razo ouconsequncia.
Carece dizer tambm que a escala de valor atribuda ao suicdio umadesvalia, fruto de pressurosa leitura, distribuindo moes de crtica ou louvor, aquem morreu, como se houvesse cometido um ato de infmia ou de ousadia.Nada disso importa, a no ser a dor, aguda e selvagem, do suicida.
O futuro esplende nos teus olhos. Mas o presente que arde sobre a pele.
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batem porta da casa, onde me defendo, h mais de vinte anos, das tempestadesdo mundo. No o esperava, assim como dom Giovanni no esperava a esttua docomendador. Confesso a ponta de mal-estar, a centelha de perplexidade. Passouao escritrio, sem que me desse tempo de arrumar a mesa, abarrotada com asobras de Pirandello e Unamuno.
Enquanto eu no dizia palavra, surpreso, a esquadrinh-lo, o visitantefuzilava-me com olhos acesos de indignao. Fiz-lhe sinal para que seacomodasse, com os ltimos raios de delicadeza que fui capaz de reunir quelashoras da noite, raios frios, emoldurados num quadro escuro.
Eis-me aqui, Marco Lucchesi disse-me, afinal, com voz hostil , aprotestar contra a sem-cerimnia deste livro, a desfaatez de viver dos outros,sem prejuzo de si mesmo, sanguessuga da histria, curioso como as comadresde Windsor, prfido e desleal como um Iago, cheio de cimes de um passadoque jamais desnudou e possuiu.
Perdo, Incio, mas no vejo como possa ter cimes do passado epreencher as qualidades que me atribui. Pense bem, sou eu quem o trouxe devolta vida, quem o tirou do limbo do tempo, quem o tornou contemporneo,quem deu voz a seu fantasma, esse mesmo fantasma pelo qual os leitores de hojesentiro um misto de entranhada piedade e admirao...
E por que deveriam sentir piedade? Acha que devo prestar-lhehomenagem como ao deus do tempo, ao deus cruel dos mortos, que meressuscita com o simples objetivo de pagar a prestao de sua pequena glrialiterria, atacando-me a honra para trazer-me de volta. Aonde e por qu? Se fuieu mesmo quem decidi sair de cena, guardar silncio, abreviar a vida, que tudoo que esse deus bufo me impede agora de fazer!
Um silncio glacial abateu-se entre ns. Acalme-se, Incio, por favor, no exagere no juzo que faz de mim. O
que me levou at voc foi esse pacto de orgulho e de silncio, de quem sacrificaa prpria vida a um ideal superior. S posso escrever sobre o que admiro e suavida constitui sobretudo um gesto de soberbo desamparo.
Pouco importa o que pense de mim! No prova nada e nem o perdoado que quer que seja. Considero a ressurreio que me inflige um atoinescrupuloso. Dos que presumem conhecer-me, a mim e ao tempo em que
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vivia. Mas voc no foi alm dos fatos, vistos de longe, sem participao.Estudou-os durante um ano e hoje voc conhece menos que um escravo doPao. Por que no escreve livremente uma histria tirada de si mesmo, sem meaprisionar como um gnio da lmpada, perturbando o descanso que me dei, semme fazer, um s instante, o mnimo de verdade ou justia, de que, alis, nocareo, pois minha despedida foi um ato pleno, motivo pelo qual nada lhe devo.Sequer as tolices que inventou diante de meu obstinado silncio, nos documentosque eu teria suprimido para despistar esse esprito de dio e revanche, que oanima. Do que me atribui neste livro, s escrevi a carta do captulo seguinte. Oresto no passa de inveno.
Falou com olhos vazios, sem gestos, com a voz metlica e montona.Assim me defendi, aborrecido. Permita dizer-lhe, Incio, claramente o que penso. Antes de tudo, no
admito fronteira entre vida e imaginao. Alis, a idade das coisas lmpidas eclaras j passou. Porque do ponto de vista literrio ou mesmo teolgico, do nadano vem coisa alguma. Ao elaborar poucos elementos de sua biografia com osacrifcio de um escravo da clareza, no do Pao sigo uma histria quereinvento: entranhada nos fatos, subvertida nos meios e orientada para os fins.No sei de revanche ou de dio. Mas de uma razo soberana e sensvel, em que...
...os fins justificam os meios, pensamento, alis, bastante original! Vocacaba de confessar o quanto distorceu uma biografia, para torn-la atraente,apetecvel, nos limites de uma fbula, como as gravatas de Jurujuba, que jamaisexistiu, e os alfinetes de pedras preciosas, de Rodrigo Silva, o dirio, que noescrevi, e a pgina da guerra dos livros. Autores como voc, eu no deixariaentrar sequer na parte mais frgil da biblioteca de dom Pedro, por mais generosae aberta que fosse.
Parecia perder fora, exausto e abatido. Pois muito bem, Incio, nesse ponto se algum se revela, este algum
no sou eu, mas sua prpria soberba. Voc foi ajudante da biblioteca doimperador, de quem gozava, alis, de toda a confiana, mas no era e nuncapassou dessa escala. Compreendo e sinto profundamente o drama que o levou aabdicar de sua vida. Mas no posso deixar de ver sua ligao excessiva, com oacervo petrino, como se Sancho e Dom Quixote trocassem seus papis. Cabia avoc cuidar, vigiar e organizar a Biblioteca, e no impedir que um volumeentrasse ou sasse da cova de Montesinos.
Acendo meu toscano, ao passo que tudo me parece absurdo: o dilogo, anoite e a narrativa.[3]
Com ou sem moinhos, com ou sem argumentos sofsticos iguais aosseus, indago o que pensaria se um sculo depois algum desfigurasse as linhas desua biografia, obrigando-o a entrar em casas que nunca penetrou, a assumiratitudes que jamais havia de subscrever, ou a listar um conjunto de aes em que
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jamais esteve envolvido? No me importo com o que possam fazer de meu fantasma. Ser um
emprstimo, sem juro e condio, nas malhas de um romance, assim comovoc, hoje, a respirar nestas pginas, na qualidade de fantasma a quem procurodar vida, um mero personagem.
No sei de personagem que tenha nascido algum dia, como eu, naprovncia de Gois, vindo a morar no campo da Aclamao e bem depois naQuinta, e que tenha decidido como e quando morrer, na estao de SoCristvo, produzindo, afinal, um atestado de bito!
No voltarei ao ponto, Incio. Fiz com voc o que decidi fazer. No mecircunscrevo sua biografia, tenho outras razes, que no pertencem a ningum,mas ao prprio gesto que o engendrou neste romance. Mesmo que voc tivessefeito desaparecer outros papis sobre sua histria pessoal.
Voc me atribui a virtude de furtar os bolsos do futuro. Frase tovigorosa quanto um drama de cabar. O ladro o narrador, que tira moeda debolsos alheios, como um chacal entre os tmulos, sem ir a fundo nos registros,roubando-me a vida porque precisava viver em mim, na segunda pessoa dosingular.
Ora, Incio, posso responder que tudo aparncia, que a cada dia seesgara o tecido frgil de nossa biografia.
Mas no se iluda! Somos dois fantasmas, separados por uma finapelcula de carbono. Importa saber o modo pelo qual narramos nossa vida. E aque grau da infinita ausncia corresponde a nossa dor...
E se apressou para o seio da noite, como quem aguarda o ponto final.
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incio levou cinquenta e um dias para redigir uma carta de seis pginas (a nicaverdadeira deste livro), de 21 de maro a 11 de maio de 1890. A letra esbelta eelegante, a princpio, acaba por perder altura e vigor, medida que a vida e acarta chegavam ao fim. Adiava a concluso, porque talvez nutrisse uma vagaesperana, que o pudesse desobrigar do abismo. E, contudo, a salvao ia longe ea queda no podia ter sido mais cruel.
Se alguns caram por fora e graa da metfora, out