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CANCIAN, E. ; BRAZIL, M. C. . O Barão de Vila Maria: poder, história agrária e
memória em Mato Grosso. In: BORGES, F.T. de Miranda; PERARO, Maria Adenir;
COSTA, Viviane G. da S.. (Org.). Trajetórias de Vidas na História. 1 ed. Cuiabá:
EDUFMT, 2009, v. 1, p. 93-116.
O Barão de Vila Maria
Poder, história agrária e memória em Mato Grosso
Elaine Cancian1
Maria do Carmo Brazil2
Resumo Abstract
Joaquim Gomes da Silva – o barão de Vila
Maria – ocupou no século 19, as terras
localizadas entre os rios Taquari, Paraguai
e o Negro, marcando a história da
ocupação do Pantanal sul-mato-grossense.
Proprietário de gado, terras e trabalhadores
escravizados, destacou-se no cenário
político e social, ocupando cargos
importantes na cidade de Corumbá como
juiz de paz e vereador.
Como outros proprietários das terras
provincianas de Mato Grosso, o barão
serviu-se da mão-de-obra cativa para
cultivar em sua principal fazenda, a
Piraputangas, os alimentos necessários ao
abastecimento da vila de Albuquerque e
Santa Cruz de Corumbá. Figura
emblemática, o barão foi pioneiro na
formação dos latifúndios do sul de Mato
Grosso ao fundar no Pantanal a histórica
Fazenda Firme, transformada por seu filho
Nheco, no mais importante centro
pecuarista regional.
Joaquim José Gomes da Silva-the baron of
Vila Maria-settle down in the nineteenth
century, the land located among the rivers
Taquari, Paraguai and Negro, making
History concerning the settlement of the
swampland from south province.
He became very well-known due to its
social and political actions, he also was an
owner of large amounts of land and cattle,
whereby, slave labour was used in his
farms, mainly in Piraputangas.
Piraputangas was responsible to farm he
necessary food items for the villages of
Albuquerque and Santa Cruz de Corumbá.
The baron had a great value and also was a
pionner in the formation of land property
in the south of Mato Grosso, which was
founded the historical farm called Firme.
The farm was transformed by his son
Nheco in one of the most important cattle
breeder in the region
Palavras-chaves: fazenda, barão de
Vila Maria, escravidão
Key-words: farm, baron of Vila Maria,
slavery.
1Professora do Curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Campus do Pantanal.
Mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). 2Professora Titular em História do Brasil da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Docente
do Programa de Mestrado em Educação e do Programa de Mestrado em História da Universidade Federal
da Grande Dourados (UFGD). Doutora em História Social pela FFLCH/USP.
História de vida como fonte
Um dos legados deixado por Marc Bloch que serve de orientação à conduta ou
ao procedimento do pesquisador é a observação histórica, cujo olhar deve alcançar a
imensa massa dos testemunhos não escritos. Ao relato, à ordem dos fatos e ao
acontecimento o historiador precisa incorporar ao recurso da reconstrução histórica as
inúmeras pistas ou vestígios, muitas vezes ocultos, capazes de apreender o homem na
sociedade e no tempo.3 Marc Bloch lamenta em sua obra Apologia da História – ou o
ofício do historiador4, prefaciada por Jacques Le Goff, o fato de os historiadores
dedicados aos períodos antigos não recorrem nem de cartas privadas, nem confissões,
legando apenas péssimas biografias em estilo convencional. Jacques Le Goff lembra
que se ouvirmos os conselhos deixados por Marc Bloch veremos o quanto os atuais
historiadores, que estudam as épocas remotas, têm se esforçado em escrever histórias de
vidas submetidas ao rigor dos métodos, “(...) ao menos das dos homens ilustres do
passado, e a história do indivíduo nesses tempos antigos deveria beneficiar pesquisas
atuais ligadas ao ‘retorno do sujeito’ em filosofia e nas ciências sociais, retorno que não
deixa indiferente os historiadores.”5
As mudanças verificadas na vida material dos homens, nas formas de abordar as
questões regionais reúnem algumas das preocupações dos historiadores em apreender
não só as contradições, mas também as vicissitudes do cotidiano no processo histórico.6
A historiadora Maria do Carmo Di Creddo, ao tratar a questão das fontes históricas,
ressalta o inventário como fonte valiosa para a apreensão e análise nas formas de
riqueza social, para o estudo da história da família e da história rural. Nesta perspectiva
de abordagem, o inventário permite explicar parte das “(...) origens da fortuna pessoal e
familiar particularmente a aquisição de bens imóveis (e o) processo de formação da
3 LE GOFF, Jacques. Prefácio. In: BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador.
Edição anotada por Ètienne Bloch. Apresentação à edição brasileira Lilia Moritz Schwarcz. Tradução
André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 20. 4 BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Edição anotada por Ètienne Bloch.
Apresentação à edição brasileira Lilia Moritz Schwarcz. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2001 5 LE GOFF, Jacques. Prefácio. In: BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador.
Edição anotada por Étienne Bloch. Apresentação à edição brasileira Lilia Moritz Schwarcz. Tradução
André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 26. 6 DI CREDDO, Maria do Carmo. O Inventário como fonte para a análise nas formas de riqueza social:
reflexões sobre estudo de caso. In: DI CREDDO, M.C., ALVES, Paulo, OLIVEIRA, Carlos Roberto
(orgs.). Fontes Históricas: Abordagens e Médodos. Assis, SP: PPGH/FCL/UNESP, 1996, p. 11.
propriedade rural(...).”7 Os inventários iluminam aspectos da realidade pois em muitos
deles estão arrolados artefatos domésticos (bens móveis), bens imóveis ou descrições de
breves incidentes humanos dos lugares em questão. Além disso, os inventários expõem
situações - eventualmente consideradas triviais - por um leitor apressado – mas são
fontes prenhes de significados para o conhecimento das relações sociais e econômicas
locais, seja de indivíduos ou famílias.
Para Di Creddo o inventário suscita predominantemente a discussão dos
problemas relacionados à concentração do patrimônio imobiliário. Através dele é
possível verificar que durante o escravismo colonial o homem escravizado representava
uma forma de riqueza, parte constitutiva do capital de uma empresa. O trabalhador
escravizado era tido como mercadoria que se escolhia, comprava e vendia. Era num
documento de compra e venda que o cativo passava a figurar como bem de capital,
propriedade semovente da empresa agrícola ou de um núcleo familiar sujeito à
utilização do trabalho compulsório.8
Pelas reflexões de Di Creddo o inventário é uma fonte capaz de elucidar “(...)
não só as origens da riqueza familiar – expressas em escravos, propriedade ou outros
bens – mas também colocar a trajetória de formação da fortuna pessoal e familiar
através da identificação do tipo de bens arrolados.”9
Com essas reflexões elegemos o caso do Barão de Vila Maria que se estabeleceu
em terras do sul de Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul. Estudos realizados sobre o
barão como Genealogia Mato-grossense, de José de Mesquita, Vila Maria dos Meus
Maiores, de Luis-Philippe Pereira Leite10,
contribuíram para nutrir o gênero da biografia
romanceada e as memórias por ordem crescente de interesses. São escritores que
romancearam os fatos ligados à vida do barão, mostrando a trajetória de um homem
diferente. Este homem endiabrado, que na infância atormentava a vida dos moradores
da antiga Vila Maria, sua cidade natal, aos 37 anos recebeu do Imperador D. Pedro II, o
título nobiliárquico de Barão de Vila Maria, em reconhecimento aos serviços prestados
ao país.
Alguns dos serviços prestados ao Império Brasileiro ligaram-se ao fato do barão
ter transformado sua fazenda Piraputangas em sentinela avançada do Comando de
7 Ibid., p. 11. 8 BRAZIL, Maria do Carmo. Fronteira negra...Op.cit. p. 32. 9 DI CREDDO, M. C. Fontes Históricas... Op cit., p. 12. 10LEITE, Luis-Philippe Pereira. Vila Maria dos Meus Maiores. São Paulo: Vaner Bicego, 1977.
MESQUITA, José. Genealogia mato-grossenses. São Paulo: Resenha Tributária, 1992.
Armas da Província, sediado em Corumbá antes mesmo de ter deflagrado a Guerra
contra o Paraguai. Com essa missão tomada para si controlava com os habitantes da
região qualquer movimento que representasse perigo e insegurança, principalmente no
rio Paraguai, área de passagem obrigatória dos invasores.
Abílio de Barros lembra que um de seus descendentes, o escritor Augusto César
Proença, citando um Relatório do Comando Geral e Corumbá feito pelo coronel Carlos
Augusto de Oliveira, destacou o esforço do barão em estabelecer um forte foco de
resistência, a despeito dos interesses opostos dos comandantes: “(...) duzentas
espingardas e cartuchame para armar seus camaradas e agregados ao mesmo tempo em
que enviava ao Comando Geral de Corumbá 12 escravos por ele alforriados para
assentarem praça, e seus próprios dois filhos. O mais velho, de nome Firmino, tido de
um primeiro casamento, viria a ser morto pelos paraguaios. Desse ato o barão faz
referência em seu testamento com visível sentimento de revolta e orgulho ao mesmo
tempo, pois, no entrevero armado, o seu filho abatera três dos soldados paraguaios que
foram ao seu encalço. Ainda pelo relatório do cel. Carlos Augusto, ficamos sabendo que
partiu do barão o aviso final do desembarque, em Albuquerque, das tropas paraguaias
que marcharam sobre Corumbá, bem como da passagem dos vapores inimigos rio
acima. O barão atravessaria o rio Paraguai para sua margem esquerda, onde possuía
fazenda de gado e, de lá, subiria o Taquari até Coxim, de onde, montado em burros,
com família e alguns escravos, seguiu até o Rio de Janeiro para dar notícias ao rei, como
consta da história.” 11
A imagem de Joaquim José Gomes da Silva foi descrita como herói de guerra,
como desbravador ou pioneiro e como o fazendeiro lavrador que no distrito de
Albuquerque legou aos pantaneiros a ocupação de uma das mais lendárias regiões do
Pantanal – a Nhecolândia.
Segundo a narrativa daqueles que se prepuseram a escrever a história de vida do
barão, a luta destes desbravadores que se transformaram em povoadores da região do
pantanal sul, não fez parte dos relatos dos viajantes.12
Poucos historiadores procuraram
dialogar com os elementos da realidade presentes em suas memórias ou outras peças
informativas similares. Assim, a reflexão sobre a ocupação deste espaço singular,
11BARROS, Abílio Leite de. Gente Pantaneira (Crônicas da sua História). Rio de Janeiro: Lacerda, 1998,
p. 72-73. 12 BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai, o ‘mar interno’ brasileiro. Uma contribuição para o estudo
dos caminhos fluviais. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas.
São Paulo-SP. 1999, p. 262. (Tese de Doutorado).
rendilhado de rios, traduz a certeza de que a pesquisa histórica sobre as correntes de
povoamento e os aspectos da vida material, permanece como uma floresta primitiva, à
espera de seus desbravadores.13
Mesmo biografado de forma romanceada14
, é possível
afirmar que o barão foi mesmo pioneiro na formação dos latifúndios do sul de Mato
Grosso ao fundar a histórica Fazenda Firme, que se tornou importante centro da
pecuária da região.
Feitas as considerações acima, a escolha de Joaquim José Gomes da Silva, o
barão, como objeto de análise justifica-se pela necessidade de explicar a atuação política
dos grandes proprietários e sua relação com o universo social durante a formação dos
latifúndios nos pantanais de Mato Grosso. Além disso, os registros da vida política do
mesmo foram encontrados em arquivo local, favorecendo, portanto, a escrita do
trabalho.
Não pretendemos com essa escolha reforçar o imaginário ilusório daqueles que
entendem os representantes do poder como os únicos a terem o direito de serem
lembrados e registrados nas produções historiográficas. Aclarar a trajetória de um
grande proprietário inclui perpassar também pela vida e ações praticadas pelos
escravizados dentro das casas e nas fazendas desta região.
Ao retratarmos patriarca Gomes da Silva, grande proprietário de terras e cativos,
evidenciou-se que na fronteira das raias castelhanas os senhores serviam-se do
trabalhador escravizado, permitindo ser reconhecido na região por abastecer Corumbá e
Albuquerque com diferentes víveres. Inserido em um contexto social propiciador de
poder e cargos elevados entre proprietários de extensas terras, o barão soube utilizar-se
das oportunidades.
O objetivo não é produzir uma carteira de identidade15
de Joaquim José Gomes
da Silva. Tampouco realizar uma trajetória completa de sua vida, mas entender, ainda
que restritamente, como estruturou o jogo do poder, as relações sociais e, sobretudo o
uso do braço cativo no distante sul de Mato Grosso, numa época marcada pela
manipulação da terra e do trabalho.
No tempo da escravatura, período em que o branco abastado, proprietário de terras
e dos trabalhadores escravizados, enjeitava os trabalhos braçais servindo-se de cativos
13 Ibid., p. 262. 14 Sobre o gênero da biografia na construção do discurso Cf. PENA, Felipe. Teoria da biografia sem fim.
Prefácio de Muniz Sodré, Editora Mauad, Rio de Janeiro, 2004 15BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaina.
(Orgs.) Usos e abusos da história oral.4. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2001. p.188.
no campo e na cidade e o homem livre pobre mantinha pelo menos um preto nos
afazeres domésticos ou no ganho objetivando, sobretudo a sobrevivência diária, era
corrente considerar o trabalho “coisa” de escravo.
Um bom casamento entre brancos era aquele que unia filhos descendentes de
barões, fazendeiros, políticos, etc. Numa sociedade escravocrata marcada pelos
interesses dos grandes proprietários, pela utilização do braço cativo e pela
desvalorização dos indivíduos oriundos de relações interétnicas (brancos, nativos e
negros), fazia diferença ser branco. Essa distinção ampliava quando este branco era de
família abastada ou do dotado de título nobiliárquico. Todavia, em certas famílias
alguns membros fugiam dos costumes praticados na época, contraindo laços
matrimoniais pouco promissores. Foi nesse contexto que transcorreu a trajetória de vida
de Joaquim José Gomes da Silva.
De menino diabo a barão
Filho do padre José Joaquim Gomes da Silva e da “bugra” Rosa Thereza
Inocência do Nascimento, natural de Vila Maria (atual São Luiz de Cáceres-MT),
Joaquim José Gomes da Silva, o menino diabo, nascido no ano de 1825, enfrentaria,
segundo seus biógrafos, as durezas da vida, a discriminação social para só mais tarde
tornar-se proprietário rural na região sul da província de Mato Grosso e o único barão
da cidade de Corumbá: (...) De Jacobina irradiava a gente aventureira, que tomou conta
de grande porção do Pantanal, no Taquari, Paraguai e Negro, onde se afazendou o genro
de João Pereira Leite, de nome Joaquim José Gomes da Silva, Menino-Diabo, em moço,
e barão de Vila Maria, por decreto de 1862 (21/06/1862) ”16
.
Joaquim Gomes da Silva recebera o apelido de menino diabo devido às artes
praticadas quando ainda era criança. Conforme os memorialistas dentre tantas
travessuras a mais recordada é a entrada na igreja de Vila Maria (atual cidade de
Cáceres), antes da missa e a prática do sacrilégio. O menino endiabrado teria
consumido o vinho do cálice do padre e urinado no recipiente. O ato escandalizou a
população da região, reservando-lhe a imagem de menino mau. Quando jovem, em
1839, recebeu uma herança do pai falecido constituída por alguns escravos, objetos de
casa, livros e trezentos e cinco reis.
16 CORRÊA FILHO, Virgílio. Fazendas de gado no Pantanal mato-grossense. Rio de Janeiro: Ministério
da Agricultura/Serviço de Informação Agrícola, 1955. 62 p. (Documentário da Vida Rural, 10), p. 22.
Na obra Pantanal. Gente, tradição e história, Augusto César Proença, publicada
em 1990,17
mostra que a herança encorajou Joaquim José a casar-se com sua prima
materna Benedita Fausta de Campos com quem teve um filho de nome Firmino. Após o
falecimento da sua esposa tornou-se mascate, profissão que o aproximaria da segunda
companheira. Durante as suas viagens entre Cuiabá e Cáceres, acostumava repousar na
fazenda dos parentes, a Jacobina, morada da prima de segundo grau Maria da Glória, a
qual do alpendre da casa acompanhava a movimentação do núcleo rural, podendo
observar e ser vista pelo primo. Proença descreve-a com feições de menina, sem beleza
e “ajeitadinha”.18
Os olhares resultaram em namoro escondido, o qual ao ser descoberto
pelo major João Carlos, pai da menina, fora proibido. Naturalmente o grande
proprietário de terras e cativos não considerava o primo mascate, um bom pretendente à
futura herdeira da Jacobina, a qual na época tinha apenas treze anos de idade.
Conforme registrou Proença19
, os amantes impedidos de se verem planejaram um
casamento às escondidas. Durante a noite, quando a família, os cativos, os agregados e
criados e os animais da fazenda dormiam Maria da Glória servida por lençóis amarrados
na porta do quarto escapou pela janela apoiando-se nas paredes externas da casa. A
cavalo Joaquim José e a prima, fugiram. Com o barulho do galope os fujões acordaram
animais e habitantes da casa causando enorme alvoroço feito por cachorros, galinhas e
porcos. Auxiliado pelos trabalhadores da fazenda, o major João Carlos deliberou a
busca pelos fujões, mas a esperteza de Joaquim impediu que a amada retornasse à
Jacobina, pois havia antecipado a documentação necessária para realização do
casamento. Em uma igreja de Poconé, casaram-se imediatamente após a fuga.
Para livrar-se definitivamente das ameaças familiares da então esposa, Joaquim
José dirigiu-se em 1845, para o sul de Mato Grosso, rumo ao pequeno povoado de
Corumbá. Assim, segundo as avaliações de Virgílio Correa Filho, “(…) pelo seu grande
tino comercial, sua vontade de vencer, capacidade de trabalho, Joaquim José foi
requerendo sesmarias a ponto de, já em 1847, ser o proprietário de uma porção delas
(…).” 20
As terras requeridas por Joaquim José Gomes da Silva estendiam-se pela região
do Urucum, Taquari, Paraguai, Jacadigo, Aquidauana e outros. Todavia, foi na elevada
17PROENÇA, Augusto César. Pantanal. Gente, tradição e história. Campo Grande/MS, 1992. 18Idem, p. 67. 19Idem, p. 70, 71. 20Idem, p. 71.
Serra do Urucum pertencente à fazenda Piraputangas, o espaço escolhido para elevar a
moradia que abrigou a família Gomes da Silva no espaço rural até a invasão paraguaia.
Distante a poucos quilômetros de Albuquerque, Piraputangas foi referência constante
dos viajantes estrangeiros da época, dada sua extensão, beleza natural e construções
contidas, sobretudo pela importância econômica na região.
Joaquim José Gomes da Silva, além de grande proprietário de terras, gado e
trabalhadores escravizados, foi homem influente na região, desempenhando o papel de
juiz de paz e vereador de Corumbá.21
A fazenda das Piraputangas
Cumpre lembrar que os primeiros povoadores do pantanal sul partiram da região
de Cuiabá, Poconé, Livramento e Cáceres, precisamente da grande fazenda Jacobina. Os
Pereira Leite ocuparam a região do Descalvado e os Gomes da Silva conquistaram a
parte sulina do Pantanal. Na história da ocupação da porção sul do Pantanal, figurou
como já comentado, Joaquim Gomes da Silva veio ocupar a sub-região do Pantanal
entre os rios Taquari, Paraguai e o Negro. Tomou posse, portanto, de uma sesmaria
localizada na região de Corumbá, requerida como parte da herança deixada pelo pai de
Maria da Glória Pereira Leite, sua mulher.22
A vitória sobre a reação dos “estrategos” paiaguás, graças às fortificações
portuguesas de 1778, permitiu o lento povoamento da mesopotâmia entre o rio Negro e
o Taquari. Deste vasto espaço tomou posse, em 1847, Joaquim José Gomes da Silva,
assentando-se numa área entre Corumbá e Albuquerque, onde fundou a Fazenda
Piraputangas, junto a serra do Urucum. Como eram terras de excelência para as
atividades agro-pastoris, o rebanho aumentou rapidamente, tornando-se necessária a
utilização de maior quantidade de pasto para o gado.23
Na busca dessas áreas de pastagem, explica Abílio Leite Barros, o barão talvez
informado pelos nativos, descobriu que havia uma imensa extensão de campos limpos
“acima da foz dos rios Miranda e Abobral e abaixo das águas do Taquari, perto de
21Joaquim José Gomes da Silva foi eleito vereador em 1872, na primeira eleição realizada em Santa Cruz
de Corumbá para escolha dos sete vereadores . O barão foi eleito com a maioria dos votos, cento e setenta
e cinco, para um total de 269 votantes. Além de vereador, Gomes da Silva foi escolhido para
desempenhar a função de juiz de paz, eleito com cento e oitenta e um votos. Cf. Ata especial de apuração
dos votos para sete vereadores e quatro juízes de paz desta paroquia de Santa Cruz de Corumbá. 1872.
Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá. Documentos avulsos. Corumbá-MS. 22 Cf. BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai.... Op. cit., p. 243. 23 Ibid., p. 249.
Albuquerque...”24
, precisamente na margem esquerda do rio Paraguai. Portanto, na área
contígua ao rio, onde mais tarde ficou conhecida como porta de entrada da Nhecolândia,
o barão fundou um retiro, tratado primitivamente por Manga do Barão, depois Porto da
Manga. 25
Em função das seguidas enchentes o rancho foi mais tarde abandonado. O
barão determinou a construção de um novo retiro num local mais alto e enxuto, a quatro
léguas de distância do rio, a que foi dado o nome de “Firme”26
.
A fazenda Piraputangas, propriedade do barão de Vila Maria27
, localizava-se
próximo a Albuquerque e Corumbá, e abastecia ambas as localidades devido à
abundante produção de alimentos.28
Firmada em terra favorável à agricultura, mas
também à pecuária, foi explorada devidamente com plantações variadas e criação de
animais.
As plantações de cana-de-açúcar e dos alimentos que abasteciam os núcleos
urbanos eram cuidados pelos escravos lavradores e roceiros. Na lavoura labutavam
Marina, Eustachio, Balthasar, Anastácio, João do Ouro, entre outros.29
A lida com o
gado, a fabricação da aguardente, do açúcar e da farinha, a confecção de instrumentos
com ferro e madeira, também eram atividades efetivadas pelos cativos.
Na relação30
dos cativos rurais pertencentes ao espólio do barão um escravizado
aparece destacado. Gabriel, 38, era especializado na lida com o gado bovino e por isso
identificado como vaqueiro. O único cativo campeiro de propriedade do barão arrolado,
dentre tantos outros, talvez pudesse ensejar a diminuição considerável da quantidade
dos animais precipitada pela invasão das tropas paraguaias, responsáveis pela utilização
da carne bovina e dos alimentos produzidos na Piraputangas como alimentação. O dado
24BARROS, Abílio Leite de. Gente ....Op. cit., p. 80. 25 A Manga do Barão refere-se a uma espécie de corredor com paredes de varas de bambu que servia para
conduzir o gado até a barranca do rio para fazer a travessia à outra margem. Informação fornecida pelos
moradores da localidade. Cf. BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai.... Op. cit., p. 249. 26
BRAZIL, Maria do Carmo. Terra e Trabalho no sul de Mato Grosso. Considerações sobre ocupação
dos pantanais e formação dos latifúndios - século 19 e 20. In: Helen Ortiz (org.). Escravidão em
propriedades pastoris. Passo Fundo: EdiUPF, 2008. [Coletânea sobre escravidão ( No prelo)]. 27O título “barão de Vila Maria” foi concedido a Joaquim José Gomes da Silva em 21 de junho de 1862,
pelo Governo Imperial. 28PROENÇA, Augusto César. Pantanal. Gente, tradição e história. Campo Grande-MS, 1992. 29Classificação dos escravos para serem libertos pelo Fundo de Emancipação - 1877. Arquivo da Câmara
Municipal de Corumbá / Corumbá (MS). 30
Inventário dos bens do barão de Vila Maria/1876. Memorial do Arquivo do Tribunal de Justiça de
Campo Grande/MS. p. 77-80. 315 f.
observado, somado às informações da literatura disponível31
poderia ensejar uma
conclusão precipitada de que pouco ou nenhum gado havia na fazenda após o término
da Guerra do Paraguai. Mas, o próprio Inventário revela na relação dos bens
semoventes uma quantidade considerável de gado bovino, sendo trinta para corte,
quarenta vacas mansas leiteiras e quarenta e sete reses de criar. Doze mil reses foram
declaradas existentes nas Fazendas Palmeiras e São Francisco, também propriedades do
barão.32
Piraputangas mereceu destaque na literatura dos viajantes devido as suas
riquezas naturais e investimentos matérias ali empregados. Para Joaquim Ferreira
Moutinho, a fazenda do barão era notável. Registrou, então: “(...) O melhor
estabelecimento d’aquellas paragens era o riquíssimo engenho- as Piraputangas -
pertencente ao Sr. Barão de Villa Maria. D’ahi sahia grande parte do sustento para
Corumbá; accrescendo que a maior parte do gado que ali se consumia era tirado das
fazendas do mesmo barão, proximas do Engenho, onde residia em riquíssima casa, perto
da fábrica movida por água, entre ricos pomares, e bellas e abundantes plantações,
disposto tudo com muito gosto, regularidade, e até com luxo.”33
João Severiano da Fonseca, membro da comissão encarregada de demarcar os
limites com a Bolívia e autor da obra Viagem ao redor do Brasil 1875-1878, fez um
registro apreciável sobre Piraputangas: “(…) já foi uma das primeiras da província em
riquezas de gados e prosperidade na safra do açúcar, farinha, milho, arroz e feijão, com
que abastecia a cidade. Os paraguaios devastaram-na e arrebataram seus gados. Seu
proprietário Joaquim José Gomes da Silva, barão de Vila Maria, desde 1870 que a ia
reerguendo e já começava à colher bons frutos quando a morte lhe assaltou no mar,
recolhendo-se da côrte, aonde o tinham levado interesses da maior monta, quais os da
mineração do ferro...”34
Fazendas Palmeiras e São Domingos
31Conforme Augusto César Proença e Luis-Philipe Pereira Leite após a Guerra do Paraguai a fazenda do
barão ficou totalmente arrasada, o gado praticamente extinto. Afirmam a perda total pelo barão, dos seus
bens. 32Inventário dos bens do barão de Vila Maria/1876. Memorial do Arquivo do Tribunal de Justiça de
Campo Grande/MS. p. 77-80. 33MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Noticia sobre a Província de Matto Grosso seguida D’um roterio da
Viagem de sua Capital a São Paulo. São Paulo: Typographia de Henrique Schroeder, 1869. p. 246. 34 FONSECA, João Severiano da. Viagem ao redor do Brasil 1875-1878.Rio de Janeiro: Typographia de
Pinheiro & Cia, 1880. p.303.
Além da lavoura cultivada na Piraputangas o barão mantinha plantações em São
Domingos, terras também suas.
O viajante João Severiano, além de ter registrado sobre as poucas fazendas
promissoras do sul da Província de Mato Grosso, que ainda há época (1875-76), era
ocupada para plantações de gêneros alimentares e criação do gado, destacou que as
fazendas mato-grossenses sucumbiam porque permaneciam exclusivamente ocupadas
pela criação do gado. Quando faltavam pastagens e água os animais fugiam em busca da
alimentação morrendo nos pantanais ou permanecendo distantes das propriedades de
origem. Sem gado e sem couro para exportar os fazendeiros presenciavam o
esgotamento dos seus recursos.
Diferente da desordem estabelecida na grande maioria das fazendas nacionais e
particulares, nas terras da família Gomes da Silva predominava o cuidado dos
proprietários e a prosperidade. A fazenda Palmeira, por exemplo, administrada pelo
filho do barão, Joaquim José Gomes da Silva, conhecido por baronete35,
também
mereceu destaque na literatura dos viajantes. Palmeiras e mais cinco cativos36
foram
doados por escritura pelo casal Gomes da Silva ao filho no ano de 1873, três anos antes
do falecimento do barão.
A fazenda Palmeira tinha suas terras revolvidas para plantação de hortas,
pomares, plantas ornamentais e jardins e os pastos cuidados para criação do gado. Foi
elevada na mesma moradia confortável e bela, em uma época, cuja maioria das extensas
propriedades de gado mantinha construções simples, sem luxo nem conforto, vistas
pelos viajantes37
mais como pardieiros do que moradias propícias aos proprietários das
terras.
Assim descreveu Severiano sobre a fazenda Palmeiras: “Há apenas dois anos via-
se ainda no delta do Taquari uma fazenda, que pelas promessas que fazia prometia vir a
35 Na Inglaterra, baronete é um título de nobreza superior ao de cavaleiro e inferior ao de barão. 36 Jornal A Situação.Anúncios.Ano VI, N° 314, 17 abr. de 1873, p. 04. Biblioteca Pública Estadual Dr.
Isaías Paim. Campo Grande/MS. 37 Ver entre outros: CASTELNOU, Francis. Expedição às regiões centrais da América do Sul. São Paulo:
Nacional, 1987. FONSECA, João Severiano da. Viagem ao redor do Brasil 1875-1878. Rio de Janeiro:
Typographia de Pinheiro & Cia, 1880; FLORENCE, Hercules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de
1825 a 1829. São Paulo: Cultrix, 1977; MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Noticia sobre a Província de
Matto Grosso seguida D’um roterio da Viagem de sua Capital a São Paulo. São Paulo: Typographia de
Henrique Schroeder, 1869; SMITH, Herbert Huntington. Do Rio de Janeiro a Cuyabá. São Paulo:
Melhoramentos, (s/d).
ser o modelo das da província. Seu dono, jovem, ativo e empreendedor, inteligente e
dócil aos sãos conselhos da experiência, empregava o melhor dos seus esforços em
beneficiá-la. Vastas sementeiras de alfafa estavam feitas do mesmo modo que campos
imensos plantados com gramíneas de pasto. Seus gados não tinham precisão de
percorrer léguas para abeberarem: havia canais e açudes, e, mais que não eram
requeridos pela necessidade e só por um excesso de previdência. O jovem e inteligente
fazendeiro já enchia-se de legítimo orgulho, observando como o seu gado prosperava de
modo extraordinário relativamente aos outros não cuidados. Atendendo à fazenda,
atendia à si e aos seus. Sua vivenda não seria um rancho, um galpão, um miserável
pardieiro como os de tantos outros muito superiores em meios da fortuna: ia sendo
construída conforme suas posses atuais, mas com gosto e confortabilidade, e seguindo o
adiantamento da época. Hortas, pomares e jardins, delineavam-se em já próspero
crescimento: para eles buscava sementes de tudo o que era de utilidade e ornamento,
consciente de que aumentando-lhes a beleza mais encarecia o valor da vivenda. Em
pouco tempo seria ela o orgulho do seu laborioso dono e o espelho das da província.”38
A casa rural do barão
Elevada entre os pomares e as plantações a moradia ostentava luxuosidade, em
uma época cuja maioria das construções rurais de Mato Grosso era simples construções
elevadas com paredes de barros e cobertas com folhas de coqueiros existentes na região,
semelhantes pardieiros salpicavam os espaços rurais e serviam de habitação àqueles que
se aventuravam, principalmente à procura de metais preciosos. Mas, diferente das
singelas construções mato-grossenses, a edificação rural do barão era coberta com
telhas, possuia três salas, corredor, alcovas, varanda nos fundos e cozinha.39
Nas salas frontais da moradia haviam dispostas pequenas mesas fabricadas de
cedro dispostas ao centro destas. No formato quadrado e redondo, essas mobílias
possivelmente eram usadas para comportarem vasos, sinetas ou castiçais. Também,
mesas quadradas, com gavetas, - escrivaninhas - eram parte dos móveis dispostos nessas
peças. Nos quartos, baús, canastras, camas de jacarandá forradas com lona e couro e
toucador, eram os objetos usados pela família Gomes da Silva. O interior da casa possuia
38 FONSECA, João Severiano da. Viagem ao redor do Brasil 1875-1878.Rio de Janeiro: Typographia de
Pinheiro & Cia, 1880. p. 163-64. 39 MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Noticia sobre a Província de Matto Grosso seguida D’um roterio da
Viagem de sua Capital a São Paulo. São Paulo: Typographia de Henrique Schroeder, 1869. p. 245-46.
ainda armário grande de guardar livros, cadeiras de balanço, cadeiras de palhinha, cantoneiras
de jacarandá, castiçais de prata e relógio de parede.40
A casa funcionava porque os vários cativos mantidos na fazenda realizavam as
diversas atividades cotidianas. Rufina, 39, única cozinheira, preparava as refeições e os
cativos Randolpho, Nicencia e Ignês, cuidavam dos demais afazeres domésticos. Na
tabela 1 é possível observar os dados sobre os cativos executores das atividades internas
da casa do barão, bem como os demais trabalhadores escravizados especializados nas
tarefas rurais.
Tabela 1. Cativos rurais de propriedade do barão de Vila Maria.
Nome Idade Cor Estado Aptidão ao Trabalho Profissão
Cristolpha 15 Parda Solteira Bastante Doméstica
Eustachia 22 Parda Solteira Bastante Lavradora MULHERES
Mariana 21 Parda Solteira Bastante Roceira
Rufina 39 Preta Solteira Bastante Cozinheira
Theodora 40 Preta Viúva Bastante Roceira
Antonio Congoió 54 Preta Solteiro Bastante Lavrador
Antonio Nunes 29 Preta Solteiro Bastante Sapateiro
Antonio 18 Parda Solteiro Bastante Roceiro
Anastacio 16 Preta Solteiro Bastante Lavrador
Balthazar 22 Parda Solteiro Bastante Lavrador
Fillete 23 Parda Solteiro Bastante Lavrador
Gabriel 33 Preta Solteiro Bastante Lavrador
Gonçalo 52 Parda Solteiro Bastante Lavrador HOMENS
João do Ouro 22 Preta Solteiro Bastante Lavrador
João do Engenho 18 Parda Solteiro Bastante Copeiro
Manoel 16 Parda Solteiro Bastante
Serviço
Doméstico
Raimundo 32 Parda Solteiro Bastante Lavrador
Tristão 34 Preta Solteiro Bastante Lavrador
Vicente 12 Parda Solteiro Bastante
Serviço
Doméstico
Fonte: Elaborada com base no Livro de Classificação dos escravos para serem libertos pelo Fundo de
Emancipação – 1873 1874 e 1877. Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá / Corumbá (MS). Ver
também: BRAZIL, Maria do Carmo. Fronteira Negra. Dominação, violência e resistência escrava em
Mato Grosso – 1718-1888. ). Passo Fundo: EdiUPF, 2002, p.145 e 150. (Coleção Malungo) CANCIAN,
Elaine. Escravidão, arquitetura urbana e a invenção da beleza. O caso de Corumbá (MS). Passo Fundo:
EdiUPF, 2006, P. 252-261 . (Coleção Malungo).
A moradia do barão e as plantações de cana, milho, mandioca e frutas e demais
alimentos não eram os únicos beneficiamentos implantados na fazenda: cercados de
animais, currais, enfermaria, galpões de palha e quartos foram construídos. O engenho
40CANCIAN, Elaine. Arquitetura e escravidão em Corumbá: gênese e desenvolvimento do núcleo
justafluvial. In: Helen Ortiz (org.). Escravidão em propriedades pastoris. Passo Fundo: EdiUPF, 2008.
[Coletânea sobre escravidão ( No prelo)].
de moer cana e fabricar o açúcar e a aguardente e os galpões de funcionamento das
oficinas de carpintaria, ferragens e monjolo movido por água completavam a paisagem
da Piraputangas.
Os viajantes acolhidos na fazenda repousavam em quartos separados da casa do
barão. O fato desses compartimentos serem cobertos por telhas denota que eram mais
salubres e considerados mais relevantes em relação às acomodações dos trabalhadores
escravizados, cobertas com material pouco valorizado.
Peça desprezada pelos escravizadores durante o cativeiro a cozinha era o espaço
exclusivo das cativas cozinheiras, da fumaça espalhada pelo fogão à lenha e do árduo
trabalho,41
. A cozinha era o último compartimento da moradia do barão e as atividades
ali executadas podiam não ser apreciadas pelos proprietários, sobretudo pelas esposas
dos senhores, mas as louças saídas da cozinha usadas para servir seus donos deveriam
ser as mais finas. Os objetos deveriam ser adequados ao maior proprietário de terras e
único barão da região. Infelizmente não contamos com relatos, documentos ou outras
produções reveladoras dos objetos utilizados na habitação do barão. Mesmo assim é
possível tecer algumas considerações atentando para o arrolamento dos bens da família
registrado no Inventário de Joaquim José.
Na cozinha da baronesa havia louças, uma pequena salva de prata pesando três
quilos e quarenta gramas e outra maior de quinze quilos. Tais objetos eram guardados
em um armário descrito no Inventário como armário grande com tampo de guardar
louça42
. Apesar destes poucos utensílios utilizados na casa eram provavelmente de boa
qualidade.
A família Gomes da Silva incrustada no pantanal, terras longínquas dos centros
de poder, aonde as novidades chegavam mais rapidamente, talvez vivesse mais adaptada
aos objetos fabricados pelos nativos, assim como os exploradores nos primeiros tempos
da colonização. Os utensílios domésticos, sobretudo os talheres eram raros no período
colonial e, nas terras mato-grossenses, ainda em pleno século 19, eram pouco usados.
Leila Mezan Algranti43
ao abordar a escassez de mobiliário e utensílios da casa colonial
41
CANCIAN, Elaine. Escravidão, arquitetura urbana e a invenção da beleza. O caso de Corumbá (MS).
Passo Fundo: UPF, 2006, p. 96-98. 42 Inventário dos bens do Barão de Villa Maria. 3 de agosto de 1876. p. 77-80. Arquivo do Tribunal de
Justiça de Campo Grande (MS). 43 ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In:SOUZA, Laura de Mello e. (Org.). História
da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia da
Letras, 2004.
lembra-nos de que a posse de objetos não sugeria riqueza. Eram a escravaria, as jóias, a
quantidade de alimentos servidos à mesa, a qualidade das roupas usadas e os cargos
ocupados as principais evidências de elevada posição social.
Após a chegada da família real em 1808 o interior das casas recebeu requinte de
novos objetos. Os utensílios foram inseridos nas casas dos proprietários mais abastados,
mas a preocupação por maior conforto esteve presente na Colônia desde a metade do
século 18 restritamente, nos maiores núcleos urbanos, como nos mostra Leila Mezan.
O engenho das Piraputangas
O engenho de moer cana existente na Piraputangas era de ferro provido por dois
cilindros movidos à água. A máquina era protegida por uma construção grande, coberta
com telhas. A cana passada na moenda pelos cativos era armazenada em um depósito
contíguo ao engenho, coberto de telhas e que comportava os sete grandes recipientes de
azedar garapa e dois alambiques, um de serpentina e outro constituído pelo antigo
sistema, ambos de cobre e pesando um mil e setenta kilos.
Em uma edificação também, coberta de telhas, era armazenada a aguardente
dentro das quatro pipas de madeira. Tais recipientes guardavam entre duzentas a
seiscentas canadas44
de cachaça. Além da fabricação de bebida, era preparada para o
consumo da fazenda e das regiões vizinhas a farinha de mandioca. No galpão coberto de
palhas, em dois fornos de cobre, pesando setenta quilos cada um, os trabalhadores
escravizados do barão, preparavam e torravam a farinha.
Além das edificações que serviam ao preparo da aguardente, do açúcar e da
farinha, existiam aquelas destinadas às oficinas de carpintaria e ferraria. O galpão com
telhado abrigava as ferramentas completas e necessárias ao trabalho especializado dos
cativos carpinteiros. A oficina de ferreiro, igualmente de telhas, tinha instrumentos
como bigorna, torno, fole entre outras ferramentas usadas no trabalho com metal.
Os diferentes gêneros alimentares colhidos e o açúcar preparado, através do
trabalho braçal escravizado, eram acondicionados em uma casa coberta de telhas. O
açúcar era armazenado em caixa grande com tampa.
As senzalas das Piraputangas
44 Unidade de medida antiga para líquidos, equivalente a 2,662 litros.
Havia ainda na extensa propriedade rural, edificações destinadas ao descanso
dos escravizados. Conhecidas como senzalas, essas estruturas cobertas de palha e sapé
serviam também ao descanso dos camaradas do barão.
Observa-se que somente a engenhoca de pilar milho e café – atividade simples,
portanto, e as senzalas eram cobertas por palha, um material encontrado facilmente e
livre de gastos; espaços possivelmente desprezados pelo proprietário, por abrigarem
“coisas” sem muita importância. Possuir cativos era substancial na época para fazer as
atividades rurais, habitações e engenho funcionarem, porém a preservação da saúde dos
trabalhadores não era considerada relevante.
Apreciados como “peças” ou mercadorias a serem usadas conforme as
necessidades e desejos dos proprietários, os trabalhadores escravizados eram mantidos
próximos às edificações usadas para o fabrico do açúcar, da farinha, da aguardente e dos
galpões usados às demais atividades rurais. A pouca distância de currais e cercados os
vários cativos do barão livravam-se da fadiga diária debaixo do sapé.
A vida na cidade
Até a Guerra do Paraguai, a família Gomes da Silva viveu na Piraputangas mais
próxima à povoação de Albuquerque, região de terras férteis e acessíveis durante o
período das cheias no Pantanal. A pequena povoação em grande parte era abastecida
com os alimentos produzidos na fazenda do barão, este que foi considerado “um
cidadão de Albuquerque, segundo o escritor Abílio Leite de Barros45
.
A desorganização da economia pastoril realizada pelas tropas paraguaias na
região obrigou Joaquim José a estabelecer-se em Corumbá. A literatura disponível e as
fontes primárias pinçadas nos arquivos da cidade de Corumbá, não permitiram saber
como era a casa urbana do barão. Mas, conforme Abílio de Barros, após a morte do
barão a baroneza mandou edificar uma casa na principal rua da cidade, a Delamare.
No Inventário do barão aberto em 28 de julho de 1876 foi registrada uma casa
edificada de matéria-prima – possivelmente de pedra, coberta de telha – na Rua
Delamare, lote urbano 86, bem como uma moradia na cidade de Cuiabá na Rua Barão
de Melgaço. Comumente, a posse da referida edificação pode ser evidenciada servindo-
se da relação dos proprietários de casas, seguido do valor predial aplicado na época às
45 BARROS, Abílio Leite de. Gente Pantaneira: (Crônicas da sua História). Rio de janeiro: Lacerda
editores, 1998.p. 71.
propriedades, publicado no periódico A Opinião. Consta que na Rua Delamare uma
residência da “herança do barão de Vila Maria” 46
teve seu imposto avaliado em
54$000.
Os dados restritos do documento citado não viabilizam um conhecimento amplo
da casa urbana da família Gomes da Silva, nem tão pouco a data da edificação.
Possivelmente, a moradia era apreciável à época, pois se tratava da residência de uma
família nobiliárquica, com brasão47
próprio e detentora de muitos trabalhadores
escravizados.
Na Tabela 2 elaborada com informações retiradas da Junta Classificadora de
Corumbá, observa-se que muitos cativos trabalhavam na moradia urbana dos Gomes da
Silva. As cativas Egina, Francelina e Maria das Dores identificadas com a profissão
serviço de roça, provavelmente faziam a limpeza do quintal residencial e plantavam
alguns alimentos ou frutas consumidos pela família. Era costume na época, manter
plantações nos extensos quintais objetivando suprir as necessidades alimentares, pois as
comodidades dos tempos atuais inexistiam. Em Corumbá, no século 19, nas moradias
elevadas com as pedras48
retiradas das barrancas que margeiam o rio Paraguai, em lotes
estreitos, porém compridos, as famílias mantinham os quintais com criações de animais
e plantações. Tal condição explica a posse de cativos especializados no serviço de roça,
mas conservados no espaço urbano.
46Edital-Relação dos proprietários de casas, nas respectivas ruas, com valor do décimo de prédios
urbanos. A Opinião. Ano I, N° 38, 09 jul. de 1878, p. 02. Biblioteca Pública Estadual Dr. Isaías Paim.
Campo Grande/MS. 47 O brasão do barão exibia a figura de um nativo cortando cana-de-açúcar com um instrumento simples,
uma espécie de foice fabricada com cabo curto. 48 CANCIAN, Elaine. Escravidão, arquitetura urbana e a invenção da beleza. O caso de Corumbá (MS).
Passo Fundo: UPF, 2006.
Tabela 2. Cativos urbanos de propriedade do barão de Vila Maria.
Profissão Nome Idade Cor
Amélia 26 Parda
Clara 50 Preta
Emilia 50 Preta
Maria Magdalena 30 Preta
Cozinheira Maria Magda 40 Preta
Maria Pequena 45 Preta
Thereza 28 Parda
Thereza 30 Parda
Theodora 35 Preta
Eva 19 Parda
Francisca 18 Parda
Serviços Domésticos Mariana 17 Parda
Maria Victoria 44 Preta
Luciana 38 Preta
Egina 50 Parda
Serviços de Roça Francelina 26 Parda
Maria das Dores 30 Preta
Quantidade de cativas 17
Fonte: Elaborada com base no Livro de Classificação dos escravos para serem libertos pelo Fundo de
Emancipação – 1873 1874 e 1877. Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá / Corumbá (MS). Ver
também: BRAZIL, Maria do Carmo. Fronteira Negra. Dominação, violência e resistência escrava
em Mato Grosso – 1718-1888. ). Passo Fundo: EdiUPF, 2002, p.145 e 150. (Coleção Malungo)
CANCIAN, Elaine. Escravidão, arquitetura urbana e a invenção da beleza. O caso de Corumbá
(MS). Passo Fundo: EdiUPF, 2006, P. 252-261 . (Coleção Malungo).
A permanência de Joaquim José em Corumbá após Guerra do Paraguai revelou
seus interesses particulares. Destituído das riquezas propiciadas por suas fazendas o
status pessoal foi mantido com seu envolvimento na política. Filiado ao partido
conservador, o barão ocupou cargos importantes, representou o poder local, depois de
vencido na luta por uma indenização exigida em função dos prejuízos causados pela
Guerra.
O envolvimento do barão na política
Joaquim José endividado, já dispondo de poucas cabeças de gado e vítima de um
procurador fraudulento que se apoderou indevidamente de algumas propriedades suas, o
barão procurou estabelecer-se em cargo de destaque. Presente no processo eleitoral
ocorrido logo após a instalação da Câmara Municipal de Corumbá, o barão foi eleito
vereador e exerceu o cargo de presidente.
Corumbá, em 1872, sofria as conseqüências da Guerra do Paraguai. Mediante a
necessidade de reorganização do poder público representado por vereadores, juizes de
Paz, delegados, etc., foi colocado em andamento a escolha das autoridades locais. Logo,
a presidência da Província de Mato Grosso executou a nomeação das primeiras
autoridades representativas da assembléia local. A instalação da Câmara ocorreu no dia
17 de agosto de 1872, na residência de José Joaquim de Souza Franco, nomeado
presidente, através do ofício n° 32 de 10 de Julho de 1872, despachado da presidência
da Província em Cuiabá. Na posição de presidente nomeado Souza Franco, instalou a
Câmara Municipal da Vila de Santa Cruz de Corumbá e empossou no mesmo ato
Antônio Joaquim da Rocha, Dionízio Pires da Motta, João Pimenta de Moraes, José
Gomes Monteiro e Miguel Henriques de Carvalho ao cargo de vereador.49
No mesmo ano foi formada a mesa paroquial para proceder à eleição. Todas as
etapas do pleito foram determinadas pelo barão de Vila Maria. Na Igreja Matriz de
Santa Cruz de Corumbá Joaquim José instalou a Assembléia Paroquial, nomeou os
mesários, secretários e suplentes e efetivou todas as orientações necessárias ao processo
eleitoral ocorrido em três dias consecutivos.
E sete de setembro de 1872 quatro mesários foram escolhidos através do voto. Em
seguida o barão instalou a Assembléia Paroquial e, junto aos membros da mesa e
demais participantes, aprovou a Acta de formação da meza Parochial de Santa Cruz de
Corumbá. Nenhum problema foi registrado em ata no primeiro dia das atividades
dirigidas por Joaquim José, mas o decurso dos trabalhos revelaria a oposição de alguns
cidadãos. O registro50
de todo o processo de escolha desvela uma eleição marcada pela
má vontade de alguns cidadãos na participação dos trabalhos quando escolhidos para
realização de tarefas específicas, bem como a oposição de certos grupos empenhados na
não efetivação da eleição.
No dia seguinte à formação da mesa paroquial, durante a terceira e última
chamada dos votantes a eleição foi interrompida pelo cidadão Antônio da Silva, descrito
em ata como reconhecidamente, desordeiro. Embriagado, Antônio ultrajou os presentes,
obrigando o barão a ordenar sua saída do local de votação, bem como sua autuação por
insistir nas provocações proferidas às pessoas. Certamente, com a atitude de
afastamento imediato do cidadão embriagado o barão objetivava restabelecer a ordem e
49Ata da instalação da Câmara Municipal da Vila de Santa Cruz de Corumbá. Documento com 5 folhas. Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá. Corumbá-MS. 50Ata de formação da mesa Paroquial de Santa Cruz de Corumbá, Município da Capital da Província de
Mato-Grosso. Documento com 8 folhas. Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá. Corumbá-MS.
dar prosseguimento à execução dos trabalhos, mas a inesperada ação de um grupo de
opositores deu continuidade à interrupção da votação, iniciada pelo homem alcoolizado.
O major João de Oliveira Mello, primeiro tenente da armada, o subdelegado
Antônio Joaquim Moreira Marques, o cidadão José Joaquim de Souza Franco, seguidos
por marinheiros à paisana e demais pessoas, prosseguiram com os insultos dirigidos ao
barão e mesários “promovendo destarte grande tumulto e desordem ao processo
eleitoral.”51
De acordo com o relatório produzido na época, a reação do barão foi
imediata ao ter sua autoridade desrespeitada, acionando a guarda para colocar-se à porta
da Igreja. Nesse Relatório ficou registrada em ata a seguinte informação: “(…) foi
suficiente a presença desta pequena força para que os desordeiros, vendo frustrados os
seus planos, prorrompessem em grande alarido, dirigindo injúrias e insultos aos
mesários e cidadãos pacíficos, (…).”52
Grupos exaltados, liderado por Antônio Joaquim
Moreira Marques, subiram à a mesa ocupada pelos mesários e por João de Oliveira
Mello e proferiram ofensas ao barão. Logo depois os manifestantes saíram da igreja,
acompanhados pelos demais opositores. Restabelecida a ordem, o barão ordenou a
continuidade da chamada dos votantes.
Na ata de apuração dos votos, concluída no dia 8 de setembro de 1872, sete
vereadores e quatro juízes de paz foram eleitos através do voto. A apuração das cédulas
foi realizada na igreja Matriz da Paróquia de Santa Cruz de Corumbá às onze horas da
manhã. Consta em ata a apuração das cédulas executada na presença do juíz de paz, o
barão de Vila Maria, o qual ordenou ao mesário Francisco Freire Garção a leitura em
voz alta e compreensível das cédulas contidas na urna e, aos demais mesários, a
execução da lista nominal dos candidatos bem como a anotação do número de votos
alcançados por cada votado.53
Joaquim José foi o candidato mais votado, recebeu 175
votos ao cargo de vereador e 181 para juíz de paz.
A desordem provocada pelo subdelegado José Joaquim de Souza Franco,
nomeado anteriormente presidente da Câmara, junto aos seus cúmplices não extinguiu a
eleição, muito menos prejudicou a imagem do barão. A escolha dos quatro Juízes de
Paz e sete vereadores foi efetivada. A vida pública como juiz de Paz e vereador
51Ata de formação da mesa Paroquial de Santa Cruz de Corumbá, Município da Capital da Província de
Mato-Grosso. Documento com 8 folhas. Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá/MS. (verso da Folha 3). 52Idem 53Ata especial da apuração dos votos para sete vereadores e quatro juízes de Paz desta Paróquia de
Santa Cruz de Corumbá. Folhas avulsas. Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá. Corumbá/MS.
escolhido através do voto, foi iniciada para o barão, a partir do dia seis de janeiro de
1873, após participar do “juramento dos Santos Evangelhos em um livro deles, em que
pôs a sua mão direita e prometeu de bem fielmente desempenhar as obrigações de
vereador da referida Câmara.”54
Empossado, o barão executou no dia seguinte, junto ao presidente da “velha
Câmara” o termo de juramento deferido aos demais vereadores e juízes de Paz, eleitos
em 14 de maio de 1872. O termo de juramento é do seguinte teor: “Aos sete dias do mês
de Janeiro do ano de mil oitocentos setenta e três, nos Paços da Câmara Municipal da
Villa de Santa Cruz de Corumbá, e em sessão extraordinária da mesma, aí pelas dez
horas da manhã, reunidos os vereadores da nova e velha Câmara, foi pelo Presidente
desta deferido juramento dos Santos Evangelhos em um livro deles em que puseram
suas mãos direitas, e sobre cargo do qual lhes encarregou que bem e fielmente
desempenhassem as obrigações de vereadores na forma da Lei, e recebido pelo seu
Presidente dito juramento assim prometeram cumprir desempenhando religiosamente as
obrigações a seu cargo, e aos demais-assim o jurapassando imediantamente também a
deferir o mesmo juramento aos juízes de Paz pela forma e maneira supra, o que todos
fizeram, do que para constar lavrei o presente termo que sendo lido sai assinado por
todos. Eu Joaquim José de Carvalho, Secretário da Câmara que o escrevi.”55
Eleito com a maioria dos votos para exercer o cargo de vereador no interregno de
1873-1876, Joaquim José Gomes da Silva exerceu a função de vereador até o início do
mês de abril. A bordo do navio Madeira, quando retornava do Rio de Janeiro, no dia
quatro de abril de 1876, o barão, com apenas 51 anos de idade, faleceu, deixando para o
filho Joaquim Eugênio a missão de fazer prosperar as posses restantes da família e à
baroneza a exploração das riquezas existentes no Urucum. O objetivo da viagem era
conseguir concessão para exploração das minas de ferro e manganês do Urucum.
A rigor, o pós-guerra do Paraguai desenhou um quadro dramático tanto para
fazendeiros quanto à mão de obra disponível. Ao barão de Vila Maria, por exemplo, o
governo entregou milhares de apólices de dívida da Guerra do Paraguai. Mas o prazo
ilimitado dado ao Paraguai para saldar as dívidas arruinou suas finanças. Seu
54Termo de juramento deferido ao cidadão Joaquim José Gomes da Silva. 06 de janeiro de 1873.Folha 1.
Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá/MS. 55Termo de Juramento deferido aos novos vereadores e Juízes de Paz para o quatriênio de mil oito centos
setenta e tres a mil oito centos setenta e seis. 07 de janeiro de 1873. Folha 1 e verso. Arquivo da Câmara
Municipal de Corumbá/MS.
falecimento em Montevidéu trouxe sérios tropeços financeiros para a viúva, pois,
precisou vender as propriedades para pagamento de dívidas.56
No testamento, incluído no Inventário, foram arrolados os negócios realizados,
partilhas de terras, gado, casa na cidade, uma bandeja de prata com o brasão da família,
escravos, apólices e títulos representativos da dívida pública do governo paraguaio em
favor do barão. No espólio constam duas fazendas: Piraputangas e São Domingos, esta
conhecida como Fazenda Grande (Alegria ou Firme), avaliada em um conto de réis.57
A
fazenda Palmeiras e a fazenda São Francisco localizavam-se à margem esquerda do rio
Taquari e eram glebas localizadas em área contígua ao Firme, representando também o
centro irradiador da criação de gado do Pantanal sul. Conforme os termos do Inventário,
a maioria dos escravos foi entregue para pagamento de dívidas da baronesa com os
credores hipotecários do Inventário.58
Antes de morrer, o barão redigiu seu testamento deixando como herdeiros a viúva e
dois filhos Joaquim José Gomes da Silva, de 28 anos, e Joaquim Eugênio Gomes da
Silva, de 19 anos. Ao casar-se o filho Joaquim José recebeu cinco escravos, gado e uma
fazenda já formada por seu pai, denominada Palmeiras. Entretanto, logo após a morte do
barão, Joaquim José foi assassinado na Fazenda Piraputangas, e a esposa e os filhos
passaram a representá-lo num processo que teve uma duração de 20 anos. Assim, em
1876, quando abriu o Inventário, Joaquim Eugênio Gomes da Silva, era o único filho do
fazendeiro.
Joaquim Eugênio (o Nheco) com 22 anos, após casar-se com Maria das Mercês Leite
de Barros, (a Chechê) na vila de Nossa Senhora do Livramento, dirigiu-se a Corumbá
objetivando tomar posse dos direitos deixados pelo barão.
Portanto, a morte do barão não redundou na desistência da família aos bens
amealhados pelo patriarca desde o século 19. Maria da Glória, a baronesa, e seu filho
não desistiram das posses, apesar do conturbado processo de arrolamento e partilha dos
bens do barão. Existem arquivados na Câmara registros de pedidos relacionados à
56 BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai, o’ mar interno’ brasileiro. Uma contribuição para o estudo
dos caminhos fluviais. Universidade de são Paulo, faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
São Paulo-SP. 1999, p. 217-238. 57 Inventário dos bens do Barão de Villa Maria. 3 de agosto de 1876. p. 77-80. Arquivo do Tribunal de
Justiça de Campo Grande (MS). 58 O quadro de classificação dos escravos para serem libertados pelo fundo de emancipação mostra que o
barão possuía cerca de 39 escravos entre pretos e pardos. Cf. Mss. Livro de Classificação dos escravos
/Fundo de Emancipação/1873. Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá.
concessão e demarcação de terras. A baronesa em 1886 pediu concessão gratuita ao
presidente da província59
, de uma região conhecida por Barranco Branco, localizada
abaixo de Coimbra nos limites com o rio Itereré, conforme comunicado pelo Ministério
da Agricultura.
O Inventário do barão pendente na justiça, devido ação dos credores, por duas
décadas foi então concluído, mas Nheco ávido por trabalho e em posse do valor de vinte
e oito bois, não esperou a tardia conclusão do Inventário, ignorou o processo
apoderando-se da fazenda Firme. A sesmaria denominada Firme, posse do finado barão
de Vila Maria, situava-se à margem esquerda do rio Negro a qual, com a invasão
paraguaia, foi ocupada pelos soldados e todo o seu gado apreendido e transportado para
Assunção.
Os registros informam que Joaquim Eugênio encaminhou pedido60
de demarcação
da fazenda Firme em 1885, porém assentado na região desde 1880 já havia
restabelecido a fazenda edificando sua residência, introduzindo gado vacum,
construindo currais e retiros e fixando lavoura. As autoridades locais reconheceram os
melhoramentos implantados nas terras por Nheco, bem como seus direitos na petição.61
Cioso de suas raízes José de Barros Maciel escreveu sobre A Pecuária nos
Pantanais de Mato Grosso referindo-se às particularidades do imenso vale do Paraguai,
dedicando considerações apreciáveis sobre (a) situação da fazenda Firme, com a morte
do barão em 1876. Maciel conta que, em 1885, Firme foi arrematada em praça para
efeito de pagamento de custas judiciais. 62
Com a ajuda de Luiz Augusto Esteves, credor
do Inventário e membro da família da baronesa, a fazenda foi adquirida a crédito por
Joaquim Eugênio Gomes da Silva que, segundo seus biógrafos românticos, precisou
vencer as dívidas, o isolamento e as condições inóspitas, inundáveis e cruéis do
Pantanal.63
Pelas descrições de José de Barros Maciel a região da Nhecolândia (homenagem
feita a Joaquim Eugênio Gomes da Silva, o Nheco) constitui-se de terreno firme – ou
59Palácio da Presidência da Província de Matto-Grosso/ Cuiabá, 10 de agosto de 1886. Ofícios dirigidos à
Câmara/Corumbá. Arquivo da Câmara Municipal de Corumbá/MS. 60Documento N° 7. -Correspondência Oficial com as diversas autoridades locais – 1881 a 1890. Livro
de Registros da Câmara Municipal. Nº 168 61. Nº 168-Correspondência Oficial com as diversas autoridades locais – 1881 a 1890. Documento Nº 8.
Livro de Registros da Câmara Municipal.
62BARROS, Maciel José de. A Pecuária nos Pantanais de Mato Grosso. Tese apresentada ao 3º
congresso de agricultura e pecuária. São Paulo: Imprensa Metodista, 1922. 63 Cf. BRAZIL, Maria do Carmo. Rio Paraguai...Op. cit., p. 251-253.
seja, distante das vazantes, dos rios e dos corixos – e de uma área inundável,
caracterizada pelos terrenos limítrofes aos cursos d’água, quase sempre argilosos e
arenosos. A escolha do Firme não foi por acaso, explica Abílio Leite de Barros:
“decorreu do fato de ser a área de menor valor no inventário, sem benfeitorias e que por
isso despertaria menor interesse dos credores (...) Piraputangas deveria ser objeto de
maior cobiça, São Francisco era fazenda fundada, e Palmeiras tinha sido dada ao filho
Joaquim José por antecipação de legítima.”64
Além da ocupação do Firme era importante efetuar o povoamento, o
desenvolvimento da lavoura, a criação de gado e cavalo. Daí o interesse de Nheco em
convidar seus cunhados José de Barros, Jejé, e Gabriel Patrício de Barros, Bié, para
trabalhar no Firme. Jejé e Bié partiram de Cáceres para ajudar Joaquim Eugênio na
produção de gado e na instalação de retiros em áreas estratégicas, com objetivo
específico de garantir-lhe a posse das terras inventariadas.
José de Barros, já estabelecido na Nhecolândia, trouxe a lume em 1959,
Lembranças65
, um precioso conjunto de efemérides nhecolandenses que abrangem a
saga dos conquistadores na ocupação das últimas áreas disponíveis do Pantanal66
.
Segundo suas memórias, a ocupação assumiu uma feição singular, exibindo ar de
família67
baseada na relação de camaradagem e parentesco ou numa forma de
agregamento parental que Alcântara Machado, estudando o passado bandeirante,
identificou como “organização defensiva.” 68
Esse tipo de agrupamento envolvia o
chefe com autoridade irrefutável sobre a mulher, a prole, os agregados, familiares e
proletários livres indicando uma política de ocupação nitidamente vinculada à
segurança.
José de Barros Maciel conta que Nheco “(...) de tempo em tempo aprestava uma
grande canoa de casco de ferro, impulsionada à zinga e voga e fazia as suas viagens à
Corumbá, trazendo carne seca, couros de gado vacum, penas de garça e peles de onça
64 BARROS, A. L. Gente....Op. cit., p. 86.
65BARROS, José de – Lembranças (para meus filhos e descendentes). São Paulo: Centro Gráfico do
Senado Federal (reedição), l987. 66 BRAZIL, Maria do Carmo. Mar interno...Op. cit., p. 252.
67 CORRÊA FILHO, V. Pantanais ...Op. cit., p. XI. 68 MACHADO, Alcântara. A Família. Vida e Morte do Bandeirante. São Paulo: Governo do Estado,
1978, p. 143.
para vender e com o seu produto fazia aquisição de café, mate, sal açúcar, fazendas,
para uso seu, de sua família e para suprimento de seus camaradas.”69
Firme foi avaliada no Inventário em um conto de réis, preço de um cativo, mas
sob o poder de Nheco fora valorizada, expandida e transformada na Nhecolândia70
,
grande latifúndio pastoril localizado entre os rios Taquari e Negro.
69 MACIEL, José de Barros. A Pecuária ....Op. cit., p. 16. 70O nome Nhecolândia é proveniente do apelido do seu fundador, o Nheco. Sobre a Nhecolândia podem
ser consultados os autores: BARROS, Abílio Leite de. Gente Pantaneira: (Crônicas da sua História). Rio
de Janeiro: Lacerda editores,1998; PROENÇA, Augusto César. Pantanal. Gente, tradição e
história.Campo Grande/MS, 1992.