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ConScientiae Saúde ISSN: 1677-1028 [email protected] Universidade Nove de Julho Brasil Bendazzoli, Willian Silvestre Reseña de "R. Farmacognosia: da planta ao medicamento" de C.M.O. Simões; E.P. Schenke; G. Gosman; J.C. Palazzo de Mell; L.A. Ment; P. Petrovick ConScientiae Saúde, núm. 1, 2002, pp. 61-62 Universidade Nove de Julho São Paulo, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=92900111 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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ConScientiae Saúde

ISSN: 1677-1028

[email protected]

Universidade Nove de Julho

Brasil

Bendazzoli, Willian Silvestre

Reseña de "R. Farmacognosia: da planta ao medicamento" de C.M.O. Simões; E.P. Schenke; G.

Gosman; J.C. Palazzo de Mell; L.A. Ment; P. Petrovick

ConScientiae Saúde, núm. 1, 2002, pp. 61-62

Universidade Nove de Julho

São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=92900111

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RESENHA

Um dos episódios mais famosos da história daciência não seria tão memorável hoje, se não fosse umalenda um tanto quanto duvidosa. Em 22 de junho de 1633,Galileu Galilei ajoelhou-se diante dos representantes daInquisição Papal, em Roma, para negar sua defesa das idéiasde Copérnico e do movimento da Terra em torno do Sol.De acordo com a lenda, ao se levantar, Galileu teria pro-nunciado as três palavras que mais tarde se tornariam céle-bres: “Eppur si muove” (E, no entanto, se move). Galileuera conhecedor do poder exercido pela Inquisição, e dequão imprudente era subestimá-la. Além de abjurar suasformulações científicas perante a Inquisição Papal – o querepresentou o ápice de seus conflitos com a Igreja –, foicondenado à clausura domiciliar até sua morte, e suas obras,proibidas. Verdade ou não, o episódio sobrevive até hojenuma aura de inocente simplicidade, como a lembrança dahistória da maçã que, ao cair na cabeça de Isaac Newton,teria inspirado a formulação das leis da gravitação univer-sal, ou a de Arquimedes correndo nu por Siracusa e gritan-do “Heureca!”, após descobrir o empuxo dos líquidos.

O legado de Galileu, que com tanta determinaçãodefendeu suas idéias – mais tarde confirmadas –, é o nossomoderno método científico, fundamentalmente empírico.Seu confronto com a Igreja Católica é o episódio mais no-tório dos muitos conflitos entre ciência e religião, entrerazão e fé, que ocorreram em nossa história. Creio que,tanto quanto o desafio enfrentado pela ciência há 300 anos,para estabelecer uma nova visão do mundo independentedo dogmatismo religioso, também a atual barreira entreciência e público leigo é um desafio a ser superado.

A dificuldade de veiculação do conhecimento cien-tífico nas camadas populares é um obstáculo ao desenvol-vimento da própria ciência e do país, pois o não-esclareci-mento do leigo compromete os pilares de sustentação daciência. Os recentes episódios envolvendo técnicas declonagem, por exemplo, têm chegado à população de for-ma fantasiosa e, muitas vezes, inverídica e irresponsável,pelos meios que os divulgam. Exemplos como esse se pro-pagam nos meios de comunicação e na literatura não espe-cializada, alimentando o antagonismo crescente entreciência e conhecimento popular. O leigo, por não conse-guir utilizar a informação que recebe, transforma-a em ma-nifestação cultural, que é, muitas vezes, inesperada e, pode-

O AZUL DE RENOIR NO CÉU DE GALILEU

WILLIAN SILVESTRE BENDAZZOLI

Farmacêutico-Bioquímico; Doutorando em Farmacognosia e Mestre em Bromatologia pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas daUniversidade de São Paulo; Professor e Coordenador do curso de Farmácia e Bioquímica do Centro Universitário Nove de Julho.

SIMÕES, C. M. O.; SCHENKEL, E. P.; GOSMAN, G.; PALAZZO DE MELLO, J. C.; MENTZ, L. A.; PETROVICK, P.R. Farmacognosia: da planta ao medicamento. 4a. ed. Porto Alegre / Florianópolis: Editora da Universidade UFRS /Editora da UFSC, 2002, 824 p.

se dizer, brilhante quando expressa pela literatura. Em umchuvoso novembro de 1816, Mary Wollstonecraft Shelley,em uma competição literária, produziu a clássica saga demoralidade da transgressão dos limites éticos pela ciênciapor meio da manipulação da vida. O ser criado pelo médi-co Victor Frankenstein, rejeitado pelas pessoas por seu as-pecto, recorre à morte e à destruição, impondo a temáticado horror da criação, que se tornou dominante. Entretanto,depois da morte do ‘pai’, acontece a redenção da criatura,revelando o horror do criador amoral. A fórmula, que vol-tou mais tarde com os andróides de Blade Runner, remeteà reflexão de nossa responsabilidade social quanto aos ru-mos da pesquisa científica.

Atualmente a ciência está imersa em um processode superespecialização crescente e inevitável – fator quecontribuiu para o empobrecimento cultural das novas ge-rações –, e o avanço dos métodos de investigação moleculartrouxe, na bagagem, o pensamento reducionista, presenteem muitos segmentos científicos. Pertenço a uma geraçãode pesquisadores que viveu e vive este processo, aparente-mente irrefreável. Muito antes de o código genético huma-no ser decifrado, Richard Dawkins, em seu fascinante OGene Egoísta, defendeu a idéia do reducionismocomportamental, ao afirmar que os genes comportam-secomo unidades independentes. Fortemente enraizado naciência moderna, o reducionismo, entretanto, já mostra si-nais de superação, cedendo lugar a uma nova visão do ho-mem, integrada e holística.

Minha área de estudo, a Farmacognosia – que, emsua faceta mais conhecida, apresenta-se como o estudo deplantas medicinais – felizmente ainda é favorecida com apossibilidade de desenvolver a pesquisa de modo amplo,porque em parte utiliza o conhecimento popular comomaterial de trabalho. Esta interface nos força a uma ampli-ação de horizontes, pois o ponto de partida para o estudo edeterminação de propriedades farmacológicas de produtosderivados de determinada espécie vegetal, muitas vezes,encontra-se na profundidade do folclore, do conhecimentodo povo ou, como último reduto, na sabedoria de poucaspessoas que ainda guardam um conhecimento incapaz deser mantido pela geração atual.

O estudo de plantas medicinais sempre atraiu sim-patizantes, pesquisadores amadores ou seguidores do ri-

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ConSCIENTIAE SAÚDE. Rev. Cient., UNINOVE - São Paulo.

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gor da Academia, e seus resultados são interpretados àluz de diferentes doutrinas. Este caleidoscópio científi-co-cultural tem, como ponto de convergência e estraté-gia de sobrevivência da própria espécie, a busca da curados males que afetam o homem. Vivemos um momentoem que o mundo é varrido por uma onda naturalista, e écrescente o número de pessoas que, por opção e não porfalta dela, preferem as plantas medicinais como recursoterapêutico. No entanto, o seu uso incorreto constituiriscos para a população. O confrei (Symphytum officinaleL.), planta muito utilizada na medicina popular brasilei-ra para inúmeros fins, exemplifica esta situação. Aindahoje seu uso é muito difundido, em geral sob a formade beberagens diversas. Entretanto, seus efeitoscarcinogênicos, hepatotóxicos e nefrotóxicos, conhe-cidos há mais de 20 anos, somente são evitados quan-do utilizado como preparação de uso externo. A des-peito de sua proibição em preparações de uso internopela Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária em1992, a espécie continua sendo utilizada popularmen-te na forma externa.

O uso de plantas medicinais, como alternativa tera-pêutica barata para a população de baixa renda, deve serestimulado, sim, de modo correto, por profissionais prepa-rados e solidamente amparados em boa bibliografia, de-tentores dos conhecimentos popular e científico, e que se-jam capazes de unir os dois. A literatura técnica nacionalsobre farmacognosia sempre foi muito carente de obras;existem boas obras, mas que enfocam basicamente a Botâ-nica). Freqüentemente encontramos livros sobre plantas me-dicinais, porém, invariavelmente, todos fazem breve des-crição de cada uma das espécies mais comuns e citam seususos populares. Certamente eles têm contribuído para nos-so cabedal de informações sobre a sabedoria popular. Nãoencontramos, entretanto, obras que tratem do tema commaior profundidade e rigor científico.

Nesse sentido, Farmacognosia – da planta ao me-dicamento vem preencher uma lacuna. O livro, atual-mente na quarta edição, mas com poucas mudanças des-de a primeira, explora praticamente todos os aspectos im-portantes no estudo da Farmacognosia. Na primeira par-te, discute biodiversidade e quimiossistemática, um dosmais importantes contextos para quem lida com abioprospecção de princípios ativos; aborda modernas téc-nicas usadas em análise fitoquímica, biotecnologia e con-trole de qualidade de fitoterápicos, bem como as últimasmedidas da legislação brasileira em sua regulamentação.O conhecimento popular – importante ferramenta nabioprospecção – infelizmente é discutido em apenas umcapítulo, que trata da Etnofarmacologia, detalhando asestratégias de abordagem dos contextos culturais quepermeiam os diversos sistemas de saúde dos povos.

A segunda parte da obra trata dos aspectos clas-sicamente abordados pela l i teratura técnica emFarmacognosia – os grupos de princípios ativos vege-tais. O livro dá especial destaque - não injustamentemerecido - ao grupo dos alcalóides, que inclui algu-mas das drogas classicamente usadas em farmácia. Estaparte é precedida de uma importante discussão sobremetabolismo vegetal, tema de grande utilidade para oestudante de fitoquímica e biotecnologia. Cada capítu-lo traz modernas abordagens sobre os grupos de prin-cípios ativos, cobrindo desde sua biossíntese e ocor-rência até propriedades químicas, métodos de extra-ção e propriedades farmacológicas e, finalmente, seuemprego farmacêutico. Adicionalmente, são discutidasas principais espécies vegetais e drogas que contêmcada princípio ativo.

Ao estudante de Farmácia, graduando ou pós-gra-duando, e aos entusiastas da área, Farmacognosia – daplanta ao medicamento pode não ser a obra definitiva,mas certamente conquistou posição de destaque entreaquelas recomendadas para um estudo moderno datemática. Os organizadores, pesquisadores das Univer-sidades Federais de Santa Catarina e do Rio Grande doSul e da Universidade Estadual de Maringá, contaramcom a participação de 48 especialistas de diversas uni-versidades brasileiras, das mais variadas áreas daFarmacognosia. O resultado é um trabalho moderno eamplo, realizado com a profundidade necessária para oentendimento do estudante de graduação, apesar da in-capacidade que a obra tem de amalgamar conhecimentopopular e científico, fundamentais para esta área. A ta-refa é deixada ao estudante e ao mestre que o forma.Ainda assim, o livro é, sem dúvida, uma importante con-tribuição para a institucionalização acadêmica daFitoterapia, como parte essencial de um sistema de saú-de pública. Neste, esperamos que predomine a visão in-tegrada e holística do homem, transcendendo oreducionismo acadêmico, moldada por todas as verten-tes da genialidade do espírito humano.

Em um domingo de outono, visitei, no Museude Arte Moderna de São Paulo, a exposição do pintorimpressionista Pierre Auguste Renoir, oportunidadepela qual serei sempre grato a minha amiga J. C.Villanova. Renoir sofreu de artrite nos últimos anosde sua vida, que o levou a perder os movimentos ple-nos das mãos. No entanto, sua perseverança o fez con-tinuar a pintar, usando os pincéis amarrados a seus bra-ços. Que seja lembrado, então, para além da beleza edo azul de sua obra, também por sua determinação,assim como Galileu. Dois homens separados por doisséculos que, com sua genialidade, contribuíram parauma nova visão do mundo.

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