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O AUTOR

Félix Bermudes, poeta, prosador, comediógrafo e

desportista, brilhou em todas estas facetas das suas actividades.

Como poeta deixou uma vasta obra disseminada por livros e teatro; dela se destacando as magistrais adaptações à língua portuguesa dos poemas «If» de Rudyard Kipling e

dos «Versos Doirados dos Pitagóricos». Como prosador, entre outros trabalhos deixou--nos os

seus livros «Cinza e Nada», «Aos meus Irmãos Comunistas», «O Homem condenado a ser Deus» e «Buda Instruindo os Discípulos». A sua familiaridade com a língua francesa permitiu-lhe editar em Paris a sua notável obra «La Conquête de VÊternel».

Como comediógrafo — e englobamos nesta designação a revista, a opereta, a farsa, a comédia e a mágica — escreveu, em colaboração, ou apenas

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com a105 pdináriotará dtrabalhLisboa.

Compeão hipismoesgrimade tirequipa pia, eúltimos«ProvaPistola»peonatode esda supares, segunda

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sua assinatura, ora criando, ora adaptando,eças de teatro. Para se avaliar do extraor- êxito que as suas peças alcançaram bas-izer que, numa mesma noite, cinco dos seusos eram representados em cinco teatros de

o desportista foi, em diversas épocas, cam-nacional de várias modalidades. Praticou

, futebol, remo, ciclismo, ginástica, atletismo,, ténis, alpinismo e tiro. Campeão nacionalo, à espingarda e à pistola, capitaneou a

portuguesa nos Jogos Olímpicos de Antuér-m 1920, e de Paris, em 1924, tendo nestes

alcançado o honroso 4." lugar na grande de Mestres Atiradores Internacionais à. Em espada, ganhou aos 50 anos o cam- de Portugal, em competência com dezenasgrimistas, dos quais alguns tinham metadea idade. Já com 67 anos foi finalista, em

do campeonato de Portugal de ténis, ems categorias. Aos 82 anos, na sua última

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visita a Moçambique, jogou ténis de mesa com avivacidade e alegria de um adolescente.

Presidente da Sociedade de Escritores e Com-positores Teatrais Portugueses, presidente da So-ciété Internationale des Gens de Lettres, presidenteda Sociedade Teosófica de Portugal, desportistaInternacional e Olímpico, Félix Bermudes viveusempre sob o signo do «Mens sana in corpore sano».

A sua obra «Sem armas no meio das Feras»,agora editada, a título póstumo, foi terminada poucoantes do seu falecimento, que se verificou em 5 deJaneiro de 1960.

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NO MISTÉRIO DA NOITE

Naquela estrada da Rodésia, o porta-bagagem do tejadilho abriu as garras de aço e trambolhou sobre o alcatrão, espadanando a carga que lhe fora confiada, com a mais pura ingenuidade. Enquanto recolhíamos e reacomodávamos a tralha desman- telada, uma linda borboleta azul, com grandes ro- sáceas amarelas, teimava em pousar nos nossos sapatos. Bastava que um de nós parasse e logo aquela jóia Viva fazia aterrissagem numa gáspea. Que eflúvio oculto atrairia para os nossos camba- dos sapatorros, aquela turquesa alada? A cor do

calçado?... o cheiro da graxa?... a graça antiga dos nossos joanetes? Nunca o pudemos apurar, por não sabermos a língua das borboletas; mas o que apu- rámos desde logo é que as três horas perdidas no local do desastre e na reparação nos impediriam de entrar na reserva da Gorongosa à hora regulamen- tar. Se chegássemos lá de noite, quem se havia de aguentar com a furibunda descompostura do fiscal

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— Não temos outra, Sr. Rodrigues. — Mas olhem que já hoje um elefante se atirou

ao camião do Dr. Palhinha. — Um ca... ca...camião carregou o elefan...

fante?! então não... não... vamos! — Ele a bem dizer não foi desse lado, foi na

«picada» três (1).

— Está bem, Sr. Rodrigues, daqui a uma hora estaremos em sua casa.

E lá fomos, estrada fora, mergulhados num mar de treva, com dois funis de luz jorrando à nossa frente. Começaram a surgir os coelhos, correndo encandeados diante do carro, sem saber apartar-se do nosso caminho. Juntavam-se, como numa ca- poeira, e atrasavam a nossa marcha, mantendo-nos

(1) Chama-se «picada» a estrada de terra batida talhada na Reserva.

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na permanente angústia de os esborrachar. Quando já o espectáculo se tornava irritante, surgiu o pri-

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Rodrigues, que das feras da reserva é a que rugemais alto, muito embora, no fundo, seja o amigomais manso?

Estávamos em Junho, pleno inverno austral, enaquelas paragens o Sol apaga os candeeiros àscinco e meia. Passava dessa hora quando a jangadanos fez atravessar o rio Púnguè, numa paisagemlinda, que só espera que ali seja instalada uma praiafluvial, para os pares românticos devorados pelapaixão, que aspirem também a ser devorados peloscrocodilos. Estamos no seio do sertão africano, masjá a praga do telefone trouxe até este posto o desa-foro da civilização e foi por um fio que não escapá-mos à descompostura sem fio:

— Então isto é que são horas? — Tivemos uma avaria, Sr. Rodrigues. — Bem sei, uma avaria nos miolos! E querem

atravessar a Reserva com uma noite destas?

— Então podemos seguir os quatro? — Quatro cacetadas é o que vocês precisam

por chegarem a uma hora destas! Arrangem-se como puderem e durmam aí no mato.

— Mas aqui não há quartos e as pretas das cubatas recusam-se a deixar-nos lá dormir. Têm medo de ficar mascarradas de branco.

— Então avancem, mas olhem que é por vossa conta. E se virem uma tromba no ar, agachem-se.

— Agachar talvez não seja preciso... o medo também não é tanto!

— E se forem comidos pelos leões, não venham depois queixar-se à Administração.

— Não, Sr. Rodrigues, queixamo-nos a S. Pe- dro, quando chegarmos ao céu.

— Qual céu! Vocês vão direitinhos mas é para casa do diabo!

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meiro texugo, com a sua capa branca sobre o dorso.Logo deixámos de ter pressa, regulando o anda-mento do carro pelo galope tardo do plantígrado.Sumido o texugo na cortina de treva, entrou emcena um lince. Que bem se destacavam as ovaisnegras sobre o fundo amarelo, no traje de noitedaquela fera que ninguém vê de dia!

Uma coruja, reflectindo nos grandes olhos osfachos do carro, ia sendo atropelada, pela sua hesi-tação em descolar. Noitibós, bufos e outras avescruzavam constantemente os cones de luz. Outrolince, outro texugo, ginetas, manguços e porfim um urso formigueiro foram passando nestedocumentário dos mistérios da selva, que os olhosdos homens só podem descortinar quando infringemos regulamentos das reservas de caça, que, comjusta razão, nos proíbem de circular de noite.

A minha surpresa foi enorme e altamente agra- dável, quando me encontrei naquele acampamento, instalado com uma perfeição e um esmero que eu ainda não tinha visto nem sonhado em organizações similares. Belos e firmes edifícios abrigam todos os serviços de secretaria, armazéns, residências e ane- xos, em vasto e bonito parque, bem arborizado e ajardinado a primor. No vasto restaurante foi-nos logo servido um saboroso jantar, em cuja ementa figuravam os legumes e hortaliças frescas e as car- nes e peixes que diariamente são expedidos em gelo do mercado da Beira. Vinhos, cervejas e refrescos saem de grandes frigoríficos.

As habitações turísticas para os visitantes da Reserva estão pitorescamente espalhadas e reves- tem a forma de enormes cubatas semi-esféricas. Sim- plesmente, em vez de estacaria e colmo, são todas

Mas esta infracção, tão amavelmente consen-tida entre descomposturas e pragas, proporcio-nou-nos um espectáculo de sonho tropical, que ja-mais se apagará no arquivo da nossa memória.

Apenas chegámos à secretaria da Reserva,começámos a desfiar ao Fiscal Rodrigues os nos-sos encontros com a fauna nocturna e ele, entusias-mado a emendar as nossas asneiras zoológicas, dei-xou passar o prazo legal para a descompostura.Quando se lembrou, já a fúria estava fria.

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construídas em cimento, com sólidas portas e am- plas janelas, orientadas na melhor direcção.

Um extenso balneário, com serviço permanente de duchas a quente e frio, completa o conforto desta bela estância. As camas, de fofos colchões, estão guarnecidas de mosquiteiros, que eu nunca utilizei, porque tendo ali estado sempre na estação seca, nunca lá vi um único mosquito.

Ao redor das habitações, alargam-se platafor- mas circulares de cimento, sempre muito bem varri-

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das, para que a bicharia miúda não se aventure aaproximar-se das casas. Apenas surge um cordãode formigas é logo exterminado; uma aranha nãose atreve a mostrar-se a descoberto naquele espaçolimpo.

Assim, em vez de um «safari» de mato, o turista,sempre acarinhado, ingressa numa organizaçãohoteleira de alta categoria, às portas dum verda-deiro Éden.

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passa duma batata, O movimento diário das fun- ções administrativas e hoteleiras, agravado com o turismo, acabou por tornar tão familiares as pró- prias feras, que ameaçava transformá-las em bichos de capoeira, capazes de vir comer à mão. Esta man- sidão excessiva tirava todo o carácter ao espec- táculo da vida bravia da selva. Era preciso que os animais se deixassem ver a boa distância, mas seria incoerente e decepcionante ter de lhes pedir licença para passar.

Reconheceu-se, portanto, que se tornava impe- rativo transferir o acampamento para a entrada do território mais próxima da cidade da Beira. Com actividade e zelo, aproveitando os ensinamentos da

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O SOLAR DOS LEÕES

A mais elementar das lógicas parecia aconse- lhar, na organização duma Reserva de animais sel- vagens, que todos os serviços do acampamento fos- sem instalados no centro do território. Demonstrou, porém, a experiência que a lógica, às vezes, não

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As fotografias tomadas neste bairro leoninofornecem-nos as cenas mais inéditas e mais ines-peradas: um leão à janela (fig. 1); uma leoa comas patas traseiras a sair duma porta e as dianteirasa entrar noutra (fig 2); leões estirados nas soleirasdas portas (fig. 3). Mas o espectáculo mais inacre-ditável a que jamais assistimos e avidamente focá-mos na câmara, foi o de seis leões em cima dotelhado (fig. 4).

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blema dos abastecimentos. Vida simples, fácil, confortável, a dos fidalgos

de juba instalados neste solar feudal, cujo brazão é todo carregado de leões.

( ) Chamam-se «tandos» às grandes planícies, quase sem árvores,da Reserva.

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experiência, foi construído o acampamento actuale abandonado o primeiro.

Logo uma família de sete leões tomou posse detodos os recintos, incluindo o terraço do restaurantede que fizeram solário. Aprenderam, não se sabecomo, a servir-se da escada exterior, em caracol.Arvoraram o interior das casas em abrigos, alcovase maternidades e passaram a organizar uma vidacitadina. O mercado é ali à beirinha, o próprio«tando» (1), onde dezenas de milhares de antílopesse oferecem à escolha do freguês. Outros leões seforam juntando à primeira família, para usufruiremtodo este conforto de civilização, e quando lá fuipela primeira vez já o burgo comportava mais detrinta.

Hoje, o antigo acampamento é um dos atractivosmais aliciantes do programa turístico da Reservae constitui romagem obrigatória dos visitantes.

Como os fotografássemos insistentemente, a uns oito metros, acabaram todos por descer paca- tamente a escada de caracol, espalhando-se cá por baixo, onde já se encontrava estirada uma dúzia deles.

Imediatamente ligada à cidade dos leões, esten- de-se a vasta planura rasa, ocelada aqui e além de charcos que servem de bebedouro e onde se espraiam, a perder de vista, dezenas de milhar de antílopes, gazelas, zebras, bois-cavalos, sem contar os palmípedes que enxameiam nos lagos. À hora das refeições, um grupo de dois ou mais senhores da selva, saem as portas da cidade e vão ali, ao açougue, escolher uma rez. A operação é simples e rápida. Um dos felinos agacha-se, cosido à terra, e os outros enxotam-lhe para cima um herbívoro, que é colhido à passagem. Uma patada na nuca ou um estorcegão no pescoço e fica resolvido o pro-

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RESTOS DE UM MUNDO

QUE DESAPARECEU

De todos os grandes bichos que vagueiam no estado bravio, o mais impressionante e o mais inte- ligente é o elefante, o colosso sobrevivente de épo- cas que a evolução encerrou. Uma laboriosa trans- formação reduziu as proporções da fauna e da flora, aperfeiçoando-lhes as formas. Numa sucessão de contrastes, o grande proboscídio é dos animais mais aptos a amar e servir o Homem, mas é, do mesmo passo, o mais perigoso e o que maiores danos lhe acarreta.

É pouco frequente, mas irreparàvelmente fatal, que um elefante tome a iniciativa de atacar e perse- guir o homem, sem provocação; mas um estado doentio de perturbação nervosa e talvez mental em que pode cair, transforma-o no inimigo número um e na ameaça mais grave que os seres humanos po- dem encontrar na selva. Até entre os elefantes do- mesticados da índia estas crises se dão.

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Mas outros defeitos incorrigíveis incompati-bilizam o elefante com a civilização: o gigantonedestrói tudo na sua passagem, não apenas pornecessidade, mas por divertimento. Cubatas e cho-ças que se encontram desabitadas são reduzidas aescombros; postes e fios telegráficos são derruba-dos e torcidos; as plantações são devastadas, as cul-turas espezinhadas; os milhos, as beterrabas, inha-mes e bananais são devorados em massa numa sónoite, por aqueles comilões, deixando, para o ho-mem, a miséria, onde havia a fartura. As desgra-çadas tribos por onde passa a manada, vêem todoo seu trabalho de lavoura aniquilado e ficam semter que comer. Para defender o indígena destasdepredações catastróficas, tem sido indispensávelmandar exterminar grandes manadas, por caçado-res profissionais experimentados, que arriscam milvezes a vida.

À medida que o solo africano for conquistadopara a cultura, cada vez mais terá de ser suprimidoo elefante, fatalidade económica que torna maispreciosa a função das Reservas, para acautelaralguns milhares de representantes da espécie.

Mas nem assim o problema dos estragos ficaplenamente resolvido, porque bandos vagabundosfogem, por vezes, da zona reservada e é precisoreconduzi-los ao território de onde se evadiram, oque acarreta dispêndios, trabalhos e perigos. Fe-lizmente, a maioria dos animais acaba por com-

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preender que ultrapassar determinada fronteira é perder toda a protecção e atirar-se para a zona da morte. Nas cercanias das Reservas há sempre caça- dores à espreita dos imprudentes que se afastam.

Assim, num fim de semana em que deambulá- vamos pela Reserva, no camião do Dr. Teles Pa- lhinha, que para esse efeito no-lo havia empres- tado, aquele ardoroso caçador dirigira-se em carro ligeiro para a sua reserva de caça pessoal, nas cer- canias da Gorongosa. Numa volta de mão, sur- giu-lhe um belo macho, lindamente armado, fugido da Reserva grande, e como não era possível con- sentir àquele vadio que fosse destruir as plantações e devorar as colheitas dos indígenas, o caçador emérito abateu-o ao primeiro tiro.

Vimos, dois dias depois, as lindas pontas de marfim, duma rara perfeição e grão finíssimo, pe- sando 30 e 31 quilos.

Custou caro àquele vagabundo o espírito de aventura. Se eu não fosse vegetariano, tinha uma bela ocasião de provar uma rodela de tromba ou Um talhaço de chispe de elefante.

Sucede às vezes que um velho macho da Reserva surge em crise de mau humor e entra a carregar os automóveis ou os guardas, que, aliás, são exímios na arte de lhe fugir de vista. Quando os ataques se repetem com insistência, o animal é reconhecido oficialmente como perigoso e o Chefe Rodrigues recebe da Direcção a sentença de o eliminar. Com

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profundo pesar do seu coração, o Chefe rapa daformidável escopeta e vai provocar a derradeiracarga do mal intencionado trombicho. O elefanteataca e a bala do Rodrigues não perdoa.

De uma vez, porém, o velho rabugento que iaser abatido, ao ver o Rodrigues de carabina empunho, quedou-se a olhá-lo, como quem medita e,parecendo compreender do que se tratava, virou--lhe a garupa e fugiu espavorido. Nunca mais esseelefante ameaçou fosse quem fosse e ainda hoje évivo. Torna-se deveras impressionante o complexode emoções e de raciocínios de que este animal semostrou capaz: reconhecimento de culpas, pres-sentimento de que ia ser castigado, resolução dese emendar e de não voltar a provocar a cólera dobicho homem, que pode matar de longe.

Em certa manhã, parámos na «picada», a con-templar uma manada de elefantes que pastava namargem do caminho (fig. 5). Um macho enorme ebem armado repontou com o camião e avançou emcarga (fig. 6). Foi só o trabalho de engrenar a pri-meira e seguir em frente. O animal começou aacompanhar o camião por dentro do mato, correndoparalelamente à nossa marcha. O condutor acele-rou e libertámo-nos daquela ameaçadora persegui-ção. Quando cinco minutos depois voltámos paratrás, o elefante, que estava onde o deixáramos, nãofez caso nenhum do carro. Ficámos na dúvida so-bre se o animal pretendia atacar ou divertir-se

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apenas. O condutor afirmou que era carga. De todos os modos, posso garantir que não é nada agradável ver um elefante selvagem prestar-nos assim tanta atenção.

Doutra vez, viemos encontrar uma bicha de automóveis parada no meio da «picada», porque, mais adiante, estava um elefante atravancando o caminho. Não sei há quanto tempo as viaturas ali se encontravam, nem quanto tempo ficariam ainda, se um impaciente não se tivesse resolvido a tocar o «claxon», no que foi logo acompanhado por todos os outros. Perante este concerto sinfónico, o elefante, sem pressa, afastou-se para o interior do mato, dei- xando a passagem livre. Mas esta prática não foi considerada prudente pelo veterano da Reserva: um elefante verdadeiramente agressivo poderia irri- tar-se com o barulho e «arder Tróia».

Doutra vez ainda, tivemos de deixar passar uma grande família de tromboscídios, que atraves- sou a nossa estrada, em fila indiana. Entre outros donairosos monstrengos, passou uma jovem e ele- gantíssima mamã, com o bebé pela mão. Aqui, a mão era o apêndice caudal, a que o miúdo, se assim se pode chamar a uma besta daquele tamanho, se filava com o apêndice nasal (fig. 7). Os extre- mos tocam-se.

Com estes bebés de elefante, quando ficam abandonados na selva, porque lhes mataram a mãe, ou porque não puderam acompanhar a manada em

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fuga demente, dá-se uma curiosíssima manifestaçãode instinto que os impele a procurar a protecçãodo homem. Muitas vezes, esse homem é o mesmoque lhes matou a mãe e que, dum só tiro se apoderaduma presa morta e doutra viva. Quando a pobrecria desamparada, no desespero da solidão, encon-tra aquele ser que anda só em dois pés e que o seuinstinto lhe segreda que pode protegê-lo, corre aentregar-se-lhe sem reservas, como a uma segundamãe. Essa segunda mãe encontrá-la-ia o órfão namanada, se conseguisse regressar a ela.

Desde que o pequeno elefante resolve espon-taneamente entregar-se a um homem, nunca maiso larga e acompanha-o passo a passo. Por vezes,se esse passo se lhe afigura lento, o elefanteempurra o homem com a cabeça, ajuda que estedispensaria de bom grado.

Aqui surge para o protector o gravíssimo pro-blema de alimentar o protegido, porque as vacasleiteiras não estão ali ao alcance e o leite que sus-tenta um vitelo em todo um dia é um pequenoalmoço para uma cria elefantina. Mas um pequenoelefante representa um grande valor, se se conse-guir mantê-lo vivo e sadio, até o transaccionar paraum circo ou para um jardim zoológico. Começamentão os grandes sacrifícios do proprietário dobicho, que vão ao extremo de o alimentar a leitecondensado, o que sai mais caro do que sustentarum burro a pão de ló.

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A esta grande despesa outras se juntam, porque o elefante pequeno é um garoto terrível, que passa a vida a inventar partidas, sempre de carácter demolidor: vai aos lavatórios das mulheres e vira-os de cangalhas, partindo-os quase sempre; esfran- galha a roupa estendida nas cordas ou no chão; arromba as aramadas de hortas e pomares, pondo tudo em fanicos; destroça as capoeiras, soltando para a selva todos os seus habitantes; e pesca pelas janelas móveis e utensílios, que se entretém a fazer em cavacos, O grande tratante, que é muito inteli- gente, tem bem a consciência do mal que pratica, porque, feita a partida, logo foge, embora saiba perfeitamente que as boas chicotadas de cavalo- -marinho não tardarão a correr atrás dele e a alcançá-lo em cheio, por muito que ele grunha e guinche e trombeteie, a pedir uma misericórdia que não merece.

É muito dispendiosa a criação dum pequeno elefante na selva e muito elevada a percentagem de insucessos.

Em toda a parte, o conflito entre o elefante e a cultura das terras é um problema sem outra solu- ção que não seja a destruição comandada das grandes manadas, quando a sua expulsão das regiões agrícolas se torna impossível. São então encarregados dessas penosas e arriscadíssimas

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campanhas de extermínio os mais experimentadoscaçadores profissionais. James Hunter, possivel-mente o maior perito de grande caça de todos ostempos, foi encarregado, pelo Governo da Áfricado Sul, da mais árdua tarefa de exterminação dehordas devastadoras de proboscídeos. Tratava-sede uma manada enorme, refugiada no coito quaseinacessível de uma floresta muito difícil de pene-trar, floresta situada às portas da Cidade do Cabo,de onde a praga trombuda irradiava a seu belo pra-zer, a devastar tudo ao de redor.

A expedição arrastou-se durante longos meses,no decurso dos quais Hunter, correndo gravesriscos, abateu muitas centenas de elefantes e reco-lheu várias toneladas de marfim, além da remu-neração ajustada com o Governo.

Em 1934, A. Cunningham foi incumbido dedar combate às hordas de elefantes fugidos deBaringo e da Reserva do Norte, que alastravam,como uma tromba de trombas, pelas zonas de cul-tura, destruindo tudo na sua passagem. O hábilcaçador matou 80 elefantes e recolheu uma tone-lada de marfim.

Marcus Daly, à sua conta, dizimou milhares degrandes paquidermes.

É aflitiva e dramática a notícia destas heca-tombes comandadas, mas nada há a fazer. Encon-

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tramo-nos em presença duma fatalidade natural, que proíbe a coexistência da civilização e destes colossos anacrónicos de Idades desaparecidas. Contentemo-nos pois em guardar alguns milhares de conserva, nesses museus vivos que são as Re- servas.

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A PERDER DE VISTA E DE CONTAGEM

A imensa planície onde os leões vão abaste- cer-se oferece um espectáculo de movimento e de vida que deixa assombrado o visitante. De qual- quer lado que se encare, estende-se sempre uma cortina infindável de animais, desde o primeiro plano até aos confins perdidos no horizonte. Aliás, na Reserva da Gorongosa, nunca se está sem animais à vista; mas não se julgue que é só a pro- fusão que assombra, é também a variedade que em- polga. Desde o elande ou pacala (cefo, em Angola) duma tonelada de peso, até ao minúsculo ourebi, en- contrasse naquele «tando» tudo o que a África pode fornecer nos géneros antílope, gazela, cervídeos, equídeos, bovídeos, porcinos e caprídeos. Apartados segundo o seu capricho, ou reunidos segundo as suas afinidades, os imensos rebanhos de mil e mais cabeças cruzam-se com os pequenos grupos de espécies menos gregárias. Mas tudo em proximi- dades imediatas, guardando apenas as distâncias

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indispensáveis para não haver misturas. Aliás, es-tas misturas não deixam de se dar, entre espéciesanimais que guardam umas pelas outras simpatiasatávicas que não se justificam por caracteres deespécie, mas nem por isso são menos reais. O exem-plo mais frisante é o dos gnus, ou bois-cavalos, sem-pre associados com zebras, embora entre os dois gé-neros não exista qualquer vislumbre de parentesco.

Há animais que se distinguem pela grandezade porte associada à elegância das formas, comoé o caso do enorme elande, armado de bonitos chi-fres que saem do crâneo em sacarrolhas, mas logocrescem a direito até às agudas pontas. O cudo étambém um grande antílope, tão excessivamentearmado que dá a impressão duma cabeça mal equi-librada em proporções. As palancas ostentam lin-das armações, arqueadas sobre o dorso em gra-ciosas curvas. As zebras reconhecem-se a qualquerdistância, desde que o sol faça brilhar as suas raias

negras (fig. 8). O inhacoso é um antílope de portemédio, mas muito bem plantado, enchendo a paisa-gem com a sua elegância (fig. 9). Nada, porém,excede a graciosidade da redunca e da carvicapra,de estatura modesta, mas perfil airoso, fino e bemlançado.

Outros animais há que espalham no «tando» anota cómica: citemos o javali facochero, a cabeçamais feia da criação, que corre com a grande caudaerguida a pino, com um penacho na ponta, como

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se, muito expressamente, quisesse ser ridículo. O gnu, ou boi-cavalo, um dos grandes antílopes (fig. 10), é o palhaço da planície, porque, além de se apresentar com uma cabeça feia e disparatada, tem a mania de desatar, sem mais nem menos, a fazer cabriolas, corcovas e pinos, disparar parelhas de coices no espaço vazio e afirmar que é maluco por todos os meios ao seu alcance.

Uma surpreza, que não é de prever e nada tem de agradável, é a existência de uma gazela, mal intencionada e extremamente perigosa, que ataca o homem, Trata-se do orix, ou galengue, bicho po- deroso, do tamanho de um burro e armado de duas grandes lanças ponteagudas, que crescem vertical- mente em linha recta. Ao homem atravessado por tão agressivas armas não restam esperanças de vida. Eu próprio vi, uma vez, no jardim zoológico de Lisboa, um orix carregar com fúria insana um visitante que se aproximou das grades. É evidente que essas grades estavam reforçadas com rede forte, de malhas finas, que as pontas não transpunham, e estava afixado um aviso, acautelando o público; mas o choque da marrada contra o obstáculo foi espantoso de brutalidade, verdadeira explosão de maus instintos. E vá a gente deixar-se embalar no velho conceito poético «meiga como uma gazela»!

Em contraste com este truculento herbívoro, fera nas horas vagas, os liliputianos da floresta e do «tando» enchem-nos de enternecimento. Nada

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pode haver de mais gracioso, de mais vivo, de maiselástico do que um dick-dick, um ourebi, um cefa-lofo, verdadeiras miniaturas vivas, empoleiradasem canelas tão delgadinhas, que parece milagresustentarem corridas tão velozes.

Singularmente notável é, também, o grupo dasimpalas, o mais espectacular dos animais da selva (fig. 11). Quando se lançam em correria, assusta-das ou perseguidas, todas as rezes do rebanho jo-gam aos ares grandes pulos, de três metros de alturaou mais, dum efeito acrobático surpreendente. Comcerteza procuram descortinar se, no seu caminho,surge qualquer perigo que deva ser evitado. NaReserva, basta que um automóvel corra um poucoatrás delas, para desencadear o frenesi dos saltos;e o efeito desses voos planados é mais uma mara-vilha a acrescentar ao espectáculo prodigioso davida na selva.

Circular no «tando» por entre esta naturezaefervescente, é viajar num sonho que nos reconduzao paraíso, quando o Homem era um ente puro econtemplava com amor inocente a Criação inteira.

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LEÕES NA INTIMIDADE

Naquela tarde, as senhoras ficaram no acam- pamento e só meu filho e eu saímos no automóvel. Dirigimo-nos ao rio Nhamussenguere, nas faldas da Gorongosa, em busca de espécies ainda não vistas, incluindo algum rinoceronte.

Quando a «picada» cortava uma clareira, depa- rámos um grupo de 14 leões, fazendo repousada- mente a digestão do almoço. O carro entrou na cla- reira, os leões cederam-lhe o lugar e dispersaram para 15 metros de distância.

Meu filho, sempre guloso de documentário, pediu autorização para sair do carro, a fim de foto- grafar alguns leões cara a cara — ou focinho a foci- nho —, conforme o conceito de cada uma das par- tes. O guarda consentiu, atendendo a que as feras se mostravam bem almoçadas.

Ao passarmos ao lado de uma moita, indo meu filho à frente, com a câmara, um leão, que devia estar profundamente adormecido, acordou sobres-

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saltado e, vendo um homem à ilharga, fugiu espavo-rido, a três metros de meu filho. O excêntrico do casoé que o homem desarmado não teve o menor sobres-salto, ao passo que o rei das feras, armado até aosdentes, apanhou um susto espectacular e fugiuridiculamente, com a coroa à banda e o ceptro derojo entre as patas.

Por ali nos demorámos, tirando meu filho váriasfotografias, até à distância em que os leões resis-tiam ao medo.

Com excepção das raras pessoas que podemobservar os animais ferozes na sua vida livre, todaa gente os imagina terrivelmente perigosos parao homem e sempre à espreita de oportunidades parao atacar e comer. Não pode haver conceito maiscontrário à verdade. Todos os animais selvagens,por perigosos que sejam, desde a víbora ao elefante,vivem no terror do homem, fogem e escondem-sedele como duma divindade nefasta e impiedosa,que dispõe do poder supremo de matar a distância.A experiência, reforçada pelo instinto atávico, queé ainda experiência armazenada na espécie, ensinaaos animais da selva que as flechas e os dardossaem da mão do homem com a morte na ponta. Seo homem é branco, brilha-lhe na mão o raio que ful-mina, rugindo um trovão. Os animais dão-se bemconta deste poder insuperável do rei da Criação eapavoram-se ao vê-lo, fugindo aterrados ao sentir--lhe as emanações.

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Só por circunstâncias excepcionais e raras as feras fazem frente ao homem. Mais raramente ainda lhe provam o sabor. Num outro capítulo nos ocupa- remos dos «comedores de gente» (1).

Nas Reservas, onde os animais não são perse- guidos, perdem o pavor do homem, mas conser- vam-lhe o respeito suficiente para guardar as dis- tâncias. Podemos então observá-los de perto e à nossa vontade, sem inquietações mútuas.

Foi uma experiência de raro e impressionante encanto encontrarmos-nos, assim, numa clareira de mato de 40 metros de raio, rodeados de 14 leões, que nos encaravam com respeito mas confiada- mente, sem a menor agressividade. Perfeita, suave, harmoniosa evocação do Paraíso! Compreendemos

(J) Este capítulo já não pôde ser escrito, devido ao falecimento do autor; apenas se encontrou um apontamento incompleto, que trans- crevemos a seguir:

Quando um grande carnívoro sofre um acidente que, sem o matar, lhe rouba a faculdade de caçar as suas presas habituais, atinge, obri- gado pela fome, um grau de ousadia que o leva a aproximar-se das aldeias indígenas, para passar a alimentar-se com animais domésticos, cujas capacidades de defesa se encontram diminuídas pela submissão ao homem.

Tem assim, por vezes, a oportunidade de descobrir que as crian- ças que vão buscar água, ou as mulheres que se dedicam aos trabalhos agrícolas, são presas mais fáceis ainda. Perde então o medo à espécie humana e passa a atacar todas as pessoas que pode surpreender, tor- nando-se um «comedor de gente».

É por isso que, na selva, um caçador escrupuloso nunca abandona a perseguição de uma fera ferida. Tem de a abater, para evitar o perigo de que ela passe a alimentar-se com os gados e populações da região, transformando-se num flagelo terrível.

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então os preceitos piedosos de Buda, quando ensi-nava aos homens que os animais são os nossosirmãos mais novos. São Francisco de Assis, umadas almas mais bondosas que atravessaram o Cris-tianismo, renovou idêntica doutrina no mundo oci-dental. Se nos debruçarmos com sinceridade sobreeste problema espiritual, podemos impregnar-nosde sentimentos de fraternidade, lendo no livro di-vino da Mãe Natura que foi através da longa e labo-riosa evolução animal que se estruturou, elo por elo,a forma maravilhosa que havia de servir de corpofísico ao Ser humano, cúpula e coroamento de todosos reinos da Natureza. Em verdade completa, amesma evolução que preparava o corpo ia, do mes-mo passo, desenvolvendo o embrião duma alma, adesabrochar plenamente no Reino Humano. Maseste assunto transcendente não é para ser tratadoaqui. Se algum leitor se interessar por ele, encon-trá-lo-á largamente explanado na minha Série Azul— «O Homem Condenado a Ser Deus», «A Poe-sia do Espírito» e «Buda Instruindo os Discípulos».Apresso-me a confessar, à imitação de SantoAgostinho, que nem sempre protegi esses irmãosmais novos e que a minha simpatia pelos seres vi-ventes os não defendeu, durante muito tempo, daminha cupidez nem da minha gula. Fui um caçadorfurioso, enquanto não cheguei à idade de ter juízo,primavera psíquica que oscila entre os 50 e os 100anos, conforme a precocidade de cada criança

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grande. Isto, sem contar com os serôdios que nunca chegam a amadurecer. A culpa não era exclusiva- mente minha, visto que vim encontrar no meio social hábitos inveterados e correntes que natural- mente adoptei, até à hora em que a minha consciên- cia desperta resolveu reagir. Desde que recebi um pouco de iluminação, não mais me diverti a praticar o mal e a espalhar o sofrimento.

Mas, se nunca mais cacei, não tenho vergonha de confessar que foi esse o mais duro sacrifício da minha vida, um esforço angustioso de vontade que se arrastou durante anos, antes de conseguir con- cretizar-se numa resolução definitiva. A sedução da aventura, a ânsia de captar a presa difícil, a vaidade da minha perícia, pulverizavam todos os meus impulsos de reacção piedosa, Era escravo duma paixão inveterada na alma, nos nervos, na medula que fabrica o sangue. Foi com a mais rude violência que pus cobro a estas transigências cobar- des, obrigando a minha consciência a encontrar em si própria a força de se fazer obedecer. Ao dominar essa paixão absorvente e horrenda, senti-me verda- deiramente um Homem.

Em seguida, para completar a harmonização destes sentimentos de protecção e amor aos ani- mais, tornei-me vegetariano, sem que este novo esforço de renúncia parecesse pesar-me como um sacrifício. Outras pessoas de minha família segui- ram corajosamente o meu exemplo.

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Foi nesta disposição de espírito que, aos 82 anos,consegui pela primeira vez a oportunidade tão de-sejada de visitar as Reservas africanas de feras eanimais selvagens, arriscando-me a ser caçado, euque já não caçava. Apesar de ser vegetariano, esterisco de ser comido pelos bichos do mato, eu quejá não como bicho nenhum, não chegou a esfriar omeu entusiasmo de curiosidade ardente pelos misté-rios da selva e pelo desenrolar da vida girando emroda livre.

E agora aqui estou entre 14 leões, verificandoque a máquina fotográfica ou a de filmar substi-tuem com vantagem a carabina, no desporto emo-cionante da caça à imagem. Este, afinal, exige maisperícia e coragem, proporciona aventuras mais pal-pitantes e arriscadas, do que matar os animais. Porisso, grandes caçadores têm renunciado às armas,para se dedicarem ao estudo apaixonante da vidados bichos na selva.

Quando abandonámos a clareira, as feras dei-xaram-se ficar repartidas como estavam.

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O BANDIDO

Sempre com a consciência pesada dum crime recente, do dia ou da véspera; sempre pronto a comer um irmão, os miolos do pai ou uma perna da esposa; roubador de crianças, para as devorar, sem se dar ao trabalho de lhes tirar os brincos, as pulseiras nem os colares, que depois lhe aparecem no bucho; salteador de ninhos e de gados; ladrão em terra e pirata nas águas; este facínora-mor de todos os reinos sabe melhor do que ninguém que lhe trazem sempre a cabeça a prémio.

Esta indesejável certeza transformou o nosso herói no último dos cobardes, sempre apavorado com a ideia de lhe chegar a vez de ser comido ou de ter de prestar contas à justiça dos homens. Inca- paz de atacar sem ser à traição, o asqueroso e fedo- rento crocodilo tem um medo horroroso desses deu- ses que matam de longe, embora deixem ficar uma ou outra vez uma perna esquecida no fundo das águas. E que saboroso petisco! Que tenra que é

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a carne do Rei da Criação!... Mesmo da criaçãode capoeira, o rei é ele, pois não há frango que tãoapetitosamente se preste a ser comido cru, por nemsequer ter penas, e, assim, ser muito mais fácil apre-ciar-lhe o gosto e a lisura da pele.

A dele, crocodilo, faz um contraste flagrantecom a nossa; é áspera, dura e escamosa, mas nempor isso ele a defende com menos devoção e tena-cidade. O facto de com essa pele se fazerem lindasmalas não convence nenhum crocodilo a deixar-seesfolar; parece até que o instiga a fugir mais de-pressa, mal lhe chega aos ouvidos um roçagar quetraga suspeitas de gente. Nas Reservas de vida sel-vagem, vi de perto e à minha vontade quase todosos bichos do continente africano; mas, a despeitodos avanços mais cautelosos, dos rodeios mais estra-tégicos e dos silêncios mais presumidamente abso-lutos, crocodilos, em África, só os vi por um óculo.Mais exactamente, por dois óculos ou seja um bi-nóculo. Os únicos que não fugiram à minha apro-ximação foram os que estavam empalhados nos mu-seus de Salisbury e de Lourenço Marques.

Nado e criado neste pavor, desde que o homemapareceu no mundo, a atirar-lhe com grandes ca-lhaus que lhe partiam as escamas, o crocodilo foiaprendendo todas as lições que o mimetismo ensinaaos medrosos e aos velhacos, uns para terem maisprobabilidades de não ser comidos, outros parareunirem mais possibilidades de comer. Ajudado

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por esta indústria natural de camuflagem, o croco- dilo veste-se de tronco de árvore, quer a boiar, espreitando uma presa, quer varado no lodo, a dor- mir uma sesta. Para os olhos do preto, de nada lhe serve o embuste; mas para um ingénuo europeu sem experiência, o cepo que para ali está encalhado na margem, é um cepo mesmo.

Por uma linda tarde de Junho, passávamos à ilharga duma pequena lagoa, de uns cem metros de diâmetro, que já nos era familiar. Parámos o camião a pequena distância, para ver os pernaltas que por ali andavam, a mostrar como se podem pescar tru- tas com as bragas enxutas.

— Reparem que na margem de lá está um cro- codilo, disse o chefe Rodrigues.

— Crocodilos neste charco?! — Vêm do Urema com as grandes chuvas e

deixam-se ficar por aqui. Não vê aquela mancha amarelada, nesta direcção?

— Aquilo é um cepo. — Veja com o binóculo. Obedeci e trouxe à minha presença o objecto

em análise. As lentes do meu esplêndido binóculo desvaneceram toda a ilusão: era um tronco de árvore.

— É cepo, Sr. Rodrigues. — É crocodilo, Sr. Bermudes. — Salvo seja, Sr. Rodrigues.

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Nisto, o cepo, para acabar com a discussão,levantou-se nas quatro pernas e atirou-se de cabeçapara a água, como qualquer campeão de saltos.

— Então é cepo, Sr. Bermudes? — É crocodilo, Sr. Rodrigues. — Salvo seja, Sr. Bermudes.

O EXÉRCITO DO AR

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A selva também dispõe das suas esquadrilhas aéreas, organizadas segundo uma técnica variadís- sima, que as leis da Natureza sabem adaptar a cada tipo de funções. Nunca nessas formações de vôo ocorreria um desastre, se não fora a agressiva inter- venção do homem, destruindo indescriminadamente tudo quanto pode. Até sem intenção propositada o homem destrói as aves, estendendo pelos espaços livres fios eléctricos, onde elas vão quebrar os pes- coços ou as asas, quando a falta de visibilidade as atraiçoa. Até sem querer, o homem é mau para os bichos!

Felizmente que nem todos são assim, e é aos que fazem excepção que devemos as Reservas onde a Vida selvagem é protegida e amparada, no res- peito das suas condições naturais. E então é um enlevo empolgante ver essa Vida em acção.

De toda a fauna voadora da África, a que mais impressiona os europeus pela sua variedade, abun-

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dância e indiferença pela presença do homem é airmandade dos abutres, encarregada da limpeza dolixo em toda a parte. As vassouras são os bicos, oscaixotes o papo. Em Casablanca, Dacar e outrascidades, é preciso pedir-lhes licença para passare o homem da Europa tem mais medo de apanharuma bicada do que eles um pontapé.

Na selva, os abutres são muito maiores e bas-tante menos familiares. O seu aparecimento, nasárvores, no chão, ou no ar em grandes carroceis,denuncia sempre a presença de bicho morto e defestim de feras de que ambicionam partilhar (fig,12), O abutre não mata: espera sempre que lhe sir-vam a pitança já pronta, fresca ou podre, indife-rentemente. O talher são as garras e o guardanapoonde vai limpar o bico é a casca do imbondeiro ouda acácia mais próximos. Se a cobardia não tornasseesses poderosos rapaces inofensivos para o homeme para os animais vivos, que devastações eles pode-riam levar a cabo com a sua força, a acuidade da suavista, o seu domínio dos ares e os enormes bandosem que se juntam! Felizmente que esses «skymas-ters» de carne e penas, que podiam ser bombardei-ros, não passam de paraquedistas.

Seguem-se em importância, nas manchas deágua dos matagais, os hidro-aviões palmípedes detodas as espécies, desde a garça Golias, de doismetros de altura, até às marrequinhas e borrelhos,pouco maiores que os pardais. Os flamingos, empo-

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leirados em duas canas vermelhas, com um nó ao meio; os pelicanos, quase sem pernas, que vão en- cher a sua grande e fedorenta bolsa ao mercado do peixe das lagoas e praias fluviais; os gansos do Egipto e patos de toda a parte, incluindo a China, de onde vêm nobilitados com o título de mandarins; os grous coroados, majestosos de beleza, de elegân- cia e de porte; as cegonhas, que dão sempre a im- pressão de que se esqueceram duma perna no ben- galeiro; toda essa imensa família aquática enche de vida, de animação e de cor as bordas dos charcos e dos rios.

Catando os búfalos e os hipopótamos, as lindas garças brancas são as sentinelas vigilantes que avisam toda a selva do perigo humano, quando este se acerca, camuflado entre as moitas.

Que mágico espectáculo, para o bípede des- naturalizado das cidades, esses bandos infinitos de gente alada, quer entregues às suas ocupações pou- sados nas praias ou na água, quer catapultados em massa para os ares, sincronizados pelo mesmo alar- me! Um bom binóculo permite observá-los em plena tranquilidade, nossa e deles.

Outro grande atractivo das «picadas» e charne- cas de mato são os bandos de galináceos agarrados ao chão, teimando em não voar. Pintadas e perdizes correm Maratonas à frente dos carros, obrigando- -nos a reduzir o andamento, para as não depenar vivas sob os pneus. Só de uma vez, juntou~se uma

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bandada de mais de cem galinhas de mato, fugindoe cacarejando diante do nosso camião, sem se resol-verem a atravessar a sebe, para saírem do caminho.Era um espectáculo muito mais divertido para nósdo que para elas, se é que eu soube interpretar osignificado daqueles cacarejos em língua de gali-nha. Por fim, quando a «picada» abriu numa cla-reira, espalharam-se em leque pelo meio das moitas,ofegantes e aflitas.

Cumpre-nos fazer neste capítulo uma referên-cia especial às aves do género pássaro, que ani-mam a Reserva com os seus voos e os seus cantose muitas delas com a sua beleza. Entre estas des-taca-se a espécie típica do Gaio de Moçambique,uma das mais admiráveis jóias vivas da natureza, emcuja roupagem de plumas predomina o vermelho cin-tilante, contrastando com manchas de verde e azul,formando uma sinfonia estridente de cores. Quandoesta ave maravilhosa voa de árvore para árvore,desejaríamos que levasse consigo os nossos olhos,

para a vermos melhor e de mais perto. Devemos ainda citar a imensa variedade de

borboletas, algumas duma formosura fascinante, queexcitam em nós a cobiça de as agarrar e prender,só pelo crime de serem lindas. Quantas vezes va-gueei pelas florestas e jardins, só para espreitar asborboletas e contemplar como Deus geometriza!

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A MESA DOS REIS

Um carrocel de abutres, planando lá nos ares, de asa aberta e parada, anunciou-nos, na linguagem imutável da selva, que mais um drama da batalha entre a vida e a morte se estava desenrolando na floresta. Logo nos apressámos a ir espreitar cá em baixo o que eles viam lá em cima, com aqueles olhos de penetração prodigiosa, que a distância não vela e o sol não ofusca. Avaliando por cálculo o centro daquele círculo, que nos desviava para o espaço aberto do grande «tando», descobrimos dois pode- rosos leões de juba, em tudo iguais, que devoravam os acepipes ainda quentes do abdómen rasgado duma zebra, que mais parecia talhado pela faca dum cortador de ofício.

Clientes familiares desta mesa de reis, recal- cando a gula e a cobiça, alinhavam, numa fila indiana de mais de cem metros, incontáveis abu- tres, como mendigos numa sopa de pobres, espe- rando resignadamente com tigela pronta, a sua vez

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que, na selva, pode não chegar nunca. A experiên-cia de que a fome é má conselheira e de que atro-pelar os que chegam primeiro é desencadear a fúriade todos ensinou aos rapaces a disciplina mile-nária das «bichas», que os abutres humanos sóagora aprenderam, depois de criarem à sua voltaa miséria, o desconforto e a fome. Cada candidatoque chega, de garras em arpão e de bico afiado paraa carnagem, aterra no último lugar do sinistro cor-dão, para evitar as querelas, as navalhadas e ospescoços rasgados. Só o repugnante marabú, debico formidando como esporão de nau, goza daprioridade de passagem por entre a turba aviadorade comedores de destroços.

Mas nem sempre os leões conseguem acautelara sua despensa da rapacidade das hienas, dos cha-cais e das esquadrilhas de paraquedistas emplu-mados. Estes dois, que surpreendemos abancadosà sua mesa real e vimos depois que tinham arras-tado a presa desde longe para a sombra daquelaacácia isolada, começaram, ao ver-nos, por retirarmagestosamente em boa ordem, sem pressas nemimpropérios. O nosso camião de caça, reduzidoà inofensividade pelas leis da Reserva e pelo paci-fismo dos viageiros, que nem levavam consigoqualquer arma, parou a 12 metros da zebra sinis-trada. Os dois reis da selva, confiados na imobili-dade do grande intruso rolante, que já estão habi-

taram a estender-se a ambos os lados da sua presa, para que dela não se apoderassem os abutres.

Era, na verdade, um espectáculo raro o destes senhores feudais da selva, abancados à mesa far- tamente servida pelo tributo lançado sobre os seus vassalos, e rodeados, como é próprio de reis, por uma corte de parasitas esperando as prebendas de alguns sobejos do banquete régio. Depois de poucos minutos de mútua observação, abandonámos o tea- tro das operações aos heróis e comparsas deste drama da natureza bruta.

tuados a não temer, suspenderam a retirada e vol-

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DEPOIS DE JANTAR

Em mata aberta, de árvores e moitas espaça- das, encontrámos um grupo de quatro leões, que dormiam espalhados à sombra, a vinte ou trinta metros uns dos outros. Já tinham sido inquietados por turistas, o que explica a dispersão do bando,

pois a espécie felis-leo manifesta uma índole acen- tuadamente gregária, que os incita a viver em conjunto.

Descobrimo-los precisamente porque o nosso guia viu, ao longe, o sinal convencionado entre os familiares da Reserva para indicarem uns aos outros a presença de leões, elefantes, ou espécies mais raras, que se tenham deixado ficar onde foram vis- tos. Esta telegrafia é realizada por meio de ramos de palmeira, em posições determinadas por um có- digo de sinalização que torna mais eficientes os serviços de turismo. Graças a este semáforo, outros carros ali vieram, antes e depois do nosso, permi- tindo fotografias que colheram no mesmo campo um leão e um automóvel (fig. 13).

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pressa como bravura, preferindo o jogo a distân-cia ao corpo-a-corpo.

Em frente de um leão que ruge ao pé de nós,fora da jaula e em plena selva, metralhando-noscom perdigotos de jacto, até para fugir é precisocoragem. Foi animado da mais nobre valentiadesta espécie que abandonámos tão pitoresca aven-tura, em busca doutras menos turbulentas.

Nestas entrevistas na selva, com as feras, o me-

cá fora e os visitantes em jaulas rolantes, de onde lhes é proibido sair. Se andasse tudo à solta, logo surgiriam as incompatibilidades do costume.

Noutra ocasião, num alargamento da «picada», passámos por um corpo de zebra, literalmente coberto e rodeado de abutres, em massas compac- tas. Dentro da própria carcassa estavam refugia- dos os mais felizardos, devorando as saborosas entranhas. Como os proprietários daquela presa não deviam estar longe, demos por ali umas voltas

lhor canhenho de apontamentos é a máquina foto-gráfica e ainda superior a cine-câmara.

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e não tardámos em descobrir um casal de leões, que o movimento de carros na «picada» impedia de

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O leão é um fidalgo preguiçoso, cuja ocupação

favorita é dormitar, no seu triclínio de palha, aolado do fogão do refeitório. Depois de comer, tema digestão pesada como os frades e não gosta quelhe perturbem a sesta. Era precisamente o queestávamos fazendo a uma pacata família de quatrodestes felinos, com as evoluções do nosso camião,que só aproximando-se a sete ou oito metros con-seguiu fazê-los deslocar, para se deitarem de novoa pequena distância. Dois deles suportaram asnossas impertinências sem reacções agressivas ecom uma paciência de caixeiro de armazém demodas. Os outros dois, porém, agacharam-se pron-tos a atacar e bombardearam-nos com um rugidoque devia vir carregado de impropérios em línguade leão. Não tivemos tempo para decifrar os insul-tos porque o nosso condutor acelerou com tanta

Não é possível conjecturar até que ponto as

ameaças dos felinos seriam levadas por diante. O mais provável seria uma prudente retirada, ou mesmo pânico de cada uma das feras, se o camião continuasse a investir na sua direcção; mas é proi- bido inquietar os animais e os regulamentos da Reserva fizeram-se para ser cumpridos. A quem não obedecer rigorosamente às disposições regu- lamentares, ensina-se-lhe, depois de multado, a «picada» mais curta para sair da Reserva e fica inscrito na lista dos indisciplinados.

Só assim se explica que não tenha havido até hoje qualquer acidente lamentável entre os milha- res de feras e os milhares de visitantes que se entrevistam nas Reservas: é que ali, ao contrário do que se passa nos jardins zoológicos, as feras andam

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ir guardar a sua despensa, enxotando os gatunos (fig. 14).

É que, felizmente para nós, onde passar oHomem, acaba-se a realeza do leão.

Como nem só os leões têm direito a regalosopíparos, também a minha família e a mim nos foioferecido um delicado ágape em plena floresta. Há,num dos mais bonitos recantos da Reserva, umalagoa que uma turista inglesa de bom gosto quepor ali se demorou, baptizou de «Lagoa do Pa-raíso». Aí se juntaram, num radioso meio-dia,todos os elementos grados de superintendência naReserva, para um alegre e delicioso almoço ofere-cido aos hóspedes que iam alvorotar o sossego.Estavam presentes o Administrador Júlio dos San-tos Peixe da Circunscrição da Gorongosa, oDirector da Reserva e perito de caça Dr. JoaquimTeles Palhinha e o Fiscal Geral, Alfredo Rodri-gues, além de vários convidados. O florestal pic--nic foi organizado pela categorizada desportista

sima castelã, excede toda a imaginação; e o encanto das excursões a que nos levaram, incluindo as im- ponentes quedas de água do Morombose, jamais se desvanecerá na nossa memória (fig. 15).

Como é pena que a nossa vida não possa fixar-se permanentemente, como num céu, em momentos, em horas, em dias assim vividos!

D. Sara Teles Palhinha. Ficaram-me gravados nocoração os requintes de solicitude que esta gentilSenhora e seu marido nos dispensaram, na Goron-gosa e na Beira.

No ano seguinte, o Administrador Santos Pei-xe hospedou-nos no seu palácio residencial dePaiva de Andrade, então já acompanhados deminha filha Cesina. O que foi a fidalguia e a dis-tinção desta hospedagem, presidida pela gentilís-

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UM BAILE NO MUNDO ELEGANTE

Um, dois, vinte, cinquenta, cem..., não foi possí- vel contá-los, aos hipopótamos que fazem sala de estar num troço do Urema, largo rio que de longe vem e limita a Reserva numa grande extensão (fig. 16). Na água ou fora dela, ali se encontram, a todas as horas, numerosas famílias daqueles paquidermes, que alternam os banhos de sol com os de tina, sem receio de tisnar a cútis mimosa, de cinco cen- tímetros de espessura. A um quilómetro de distân- cia já cheira a hipopótamo e a crocodilo, essências que ninguém sente o desejo de deitar no lenço; duvidamos até de que tivessem aceitação, entre a própria gente hipopótama, para perfumar o «ba- ton» das beiçudas e rotundas banhistas que, em pleno nudismo, ostentam as suas toneladas de gra- ciosidade, por aquelas elegantes praias de lodo e vasa negra (fig. 17).

Os hipos, silhuetas fortes, recortadas no hori- zonte daquela bacia plana e careca, saltam aos olhos a grande distância. Os crocos, porém, tron-

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cos apodrecidos estirados na lama, são mais difí-ceis de descortinar e a sua consciência de saltea-dores em sobressalto atira-os para a água, ao maisligeiro alarme. Não são, por isso, fáceis de obser-var, sem lentes poderosas, os crocodilos dos riosde África. Na Gorongosa, nem por não serematacados se mostram menos ariscos, eles que ata-cam tudo.

Aquela zona da Reserva portuguesa é talvez amais rica de todo o mundo em hipopótamos, e oespectáculo que eles oferecem, quando sobrevoados,é inédito e surpreendente. Cá de baixo, no «tando»,só se alcançam por troços fragmentados do rio,onde se refastela uma centena de bichos por sector.

Todos os dias íamos filmá-los com tele-objec-tiva de grande alcance, recolhendo cenas movimen-tadas daquele orbe fluvial. Em certa manhã, entremeia centena de indivíduos agrupados na margem,desencadeou-se uma enorme bronca e lançaram-seem carrocel, em perseguição uns dos outros. Nãopodíamos descortinar a causa nem a intenção daagitada farândola, que terminou por todos se lan-çarem à água, desabando sobre os que já lá esta-vam e continuando na mesma correria, em dansade roda.

Tivemos de concluir que se tratava dum baile,naquele mundo elegante, festividade que propor-cionou a meu filho um curioso e movimentado filme.

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A uns duzentos metros deste mesmo local, ca- va-se uma pequena lagoa, onde costuma estacionar um velho solitário. Deve ser um D. Juan decrépito, a quem a mocidade esperançosa escorraçou para longe do harém e que, para evitar questões e golpes de queixada, se mantém a distância dos rufiões na idade atlética. É evidente que não é sem azedume que o sultão deposto aceita o exílio; a disposição do seu espírito de grande porco não é das melhores nem das mais acomodatícias, conforme teve ensejo de experimentar uma turista inglesa, que pretendeu aproximar-se dele mais do que ele considerou dis- creto. Ainda a visitante estava a cinquenta metros e já o brutamontes trotava, de má catadura, ao en- contro dela. A filha de Albion correu, gritando, para o autocarro, que estava a 200 metros e de onde largou, gritando mais ainda, o chefe Rodrigues, de escopeta em punho. Ao vê-lo e ouvi-lo, o velho e sabido paquiderme percebeu logo do que se tratava e fugiu em direcção oposta, a esconder-se no rio. A pobre da senhora é que não ganhou para o susto e prometeu não tornar a afastar-se para longe do autocarro, quando lhe fosse permitido sair dele.

Ao mesmo charco fui eu, dias depois, bi- nocular um crocodilo, mas não estava presente o quezilento cavalo do rio.

No mesmo trecho do Urema se juntaram mais tarde, filmando cada um na sua margem, o chefe

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Àquela hora ainda quente da tarde, na «picada» que da jangada do Púnguè conduz à Reserva, as moscas tsé-tsé, verdadeiros tavões de lanceta ace- rada e corpos de borracha, puderam banquetear-se à nossa custa e embebedar-se de sangue humano. Uma grande manada de búfalos devia frequentar as paragens vizinhas, arrastando consigo aquela praga de vampiros, torturante e perigosa. Despre- venidos como íamos, nada mais podíamos fazer do que distribuir pelas costas uns dos outros grandes palmadas, que nos doíam mais a nós do que às moscas.

Chegados ao acampamento da Reserva, logo nos munimos das pás mata-moscas regulamentares, única forma de agressão a que a tsé-tsé não resiste.

Não é que a pàzada a fulmine, mas deixa-a no chão, estonteada, o tempo suficiente para a espe- sinharmos e espremer-lhe o sangue que nos chupou.

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No dia seguinte, apesar de ser proibido andar com armas na Reserva, cada um de nós brandia a

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Rodrigues e meu filho Fernando. Captaram cenasadmiráveis da variadíssima fauna do rio e cadaum ficou, entre outros bichos, na tele-objectiva dooutro.

Mas nunca mais conseguiram filmar outro baile daquele mundo elegante.

TSÉ-TSÉ ÀS PÀZADAS

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sua pá, esgrimindo contra a tsé-tsé nos lombos unsdos outros. É claro que quando a pàzada era maisrija, não estava lá «tsé» nenhuma... era só malva-dez do vizinho do lado, esquecido de que a lei daselva inclui a «vendeta». Se o agredido era branco,refilava logo e vingava-se um minuto depois; se erapreto, não dava confiança.

— «Também tu, meu filho Bruto»..., repontei eu,parafraseando César, quando meu filho Fernandome aplicou uma pàzada suspeita.

Explicou-nos o guarda indígena que nos acom-panhava, que o campo de cultura daqueles enxamesde moscas de gado era uma manada de 5000 búfa-los, prosperamente instalada naquela zona, gordade pastos, rica em toalhas de água e fresca de som-bras florestais.

— Cinco mil búfalos?! estranhámos nós. — Sim, siô; todo juntado num manada só. Olhámos uns para os outros, sorrimos do exa-

gero e tirámos mentalmente duas cifras aos 5000.

Uma manada de 50 búfalos já era bonita em qual-quer parte do mundo. O nosso cepticismo justifi-cou-se plenamente, porque, de tantos búfalos, sóvimos umas amostras isoladas, que não nos deixa-ram aproximar mais de trinta metros (fig. 18), Deoutras espécies animais, vimos dezenas de milhar.

No dia seguinte, o guarda era diferente, mastambém nos falou da manada dos cinco mil. Torná-mos a olhar uns para os outros, mas já não nos atre-

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vemos a tirar mais duma cifra. Seria possível que se juntassem em manada 500 búfalos?... É esse o nú- mero em que está computado o total da existência desses bovídeos no parque Kruger, mas ali repar- tidos em diversas manadas.

À tarde, de volta ao acampamento, abordámos o assunto com o chefe da Reserva.

— Ó Sr. Rodrigues, até agora temos visto poucos búfalos.

— É porque não calhou. Temos uma manada de 5000, sem contar os que andam por fora dela.

— 5000!... Agora, perante esta afirmação fidedigna, já

não podíamos tirar cifra nenhuma; tínhamos de aceitar o inacreditável.

— E onde poderemos desencantar essa floresta de chifres?

— A área é muito grande e uma tal massa de gado tem de andar sempre em movimento, porque onde parar uma hora ceifa a pastagem. Mas eu amanhã vou com vocês, a ver se a topo.

Disse e cumpriu. Na manhã seguinte, antes de nós termos lavado a cara, já ele tinha tudo a postos para a partida. Batemos e espiolhámos uma larga faixa de floresta e de «tando» até ao rio. Vimos de tudo, no reino da bicharia; só dos grandes ruminan- tes não havia notícia.

— Ó amigo Rodrigues, de búfalos nem a som- bra!

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nha dos 5000. Ao cair da tarde, despedimo-nos da Reserva,

pois retirávamos na manhã seguinte, e, quando re-gressávamos ao acampamento, vimos de longe, nomeio da «picada», uma coluna de automóveis imo-bilizados em fila indiana.

— Que estarão ali a fazer aqueles carros? — Estão a ver passar os búfalos, respondeu o

chefe tranquilamente. «Anda depressa, rapaz!»,

tavam a circular por aquela fenda através da massa incontável de búfalos. Com o grande camião rom- pendo à frente, já os carros ligeiros podiam seguir mais confiados, porque os animais se iam apartando diante de nós, parando à distância regulamentar de homenagem ao homem.

Rodámos cinquenta metros, cem, duzentos, qui- nhentos e sempre de cada lado a mesma massa compacta, interminável, a perder de vista na flo-

gritou para o condutor. E foi em acelerado que o

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resta clara, à direita e à esquerda; sempre as duas muralhas de carne e de chifre. Todos os animais

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— A sombra levam-na eles, o que deixam ficaré o cheiro. Se quer uma prova, aí a tem no chão.

— Eu não quero prova nenhuma, prove você! E regressámos ao acampamento, ao fim de uma

jornada de encantos e de surprezas, mas vazia debúfalos. Aquilo dos 5000 era uma grande escova,a explorar a nossa ingenuidade.

Ao romper da manhã do dia seguinte, logo ochefe Rodrigues nos foi acordar com o grito deguerra — vamos aos búfalos!... Mas foi sem pres-sas, nem alvoroço, nem sequer esperança, que pas-sámos por água a ponta do nariz, engoiados de frio.A ducha regulamentar toma-se à tarde, no regressoda soalhada e da poeira.

Repetiu-se a batida aos bovídeos, mas, em todo odia só conseguimos ver tudo o que não era búfalo.Nem essa palavra se pronunciava já, fosse paranão magoar o amor próprio do Chefe, fosse paranão dar a impressão de termos engulido a patra-

nosso camião foi colocar-se à frente da caravana, estacionada e receosa de avançar entre duas mura- lhas de ruminantes.

Ali começava o mar de búfalos (fig. 19). A 15 metros da estrada, de um lado e de outro, massas compactas de ruminantes conservavam-se imóveis, olhando-nos em perfeita calma, sem tugir nem mugir.

Quando chegaram os primeiros carros, os bi- chos que já tinham passado afastaram-se um pouco e ficaram à espera dos outros; estes, porém, já não se atreveram a cruzar o caminho por onde ia passar o Rei das Feras, entrincheirado nas suas conchas duras, que correm mais e rosnam mais alto do que os próprios leões.

Uma pesada espectativa de receio mútuo para- lisava os dois campos: os búfalos não se decidiam a passar diante dos automóveis e estes não se afoi-

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voltados para nós, numa imobilidade de parada,pareciam estátuas negras, todas iguais, na formae na cor, na imponência e na força.

Quando saímos daquele oceano de três miltoneladas de carne viva, mas felizmente imóvel,pelo seu inabalável respeito ao homem, já não eramcinco mil, mas um milhão de búfalos e dois milhõesde chifres, que a nossa imaginação exaltada cal-culava ter visto, naquele sonho evocador das ida-des edénicas. Se o medo se tivesse infiltrado nosnossos nervos, o sonho teria degenerado num pesa-delo angustioso de meio quilómetro; mas nesteespantoso espectáculo, nenhum de nós deu pelapresença do perigo, tão focada se mantinha todaa nossa atenção na beleza desta rara aventura.

MACACARIA

Não é por falta de consideração e do respeito devido, que não temos feito referência à gente pri- mata, que tem sobre nós a grande superioridade de dispor de quatro mãos, e às vezes de cinco, quando o ornamento da fachada posterior é susceptível de armar em gancho. Esta buliçosa e dinâmica família marca sempre uma nota de pitoresco, onde quer que pule, guinche, ou se dirija circunspectamente ao contacto imediato com o turista, a requisitar-lhe brindes.

Chegado a Livingstone, por via Atenas-Cairo, segui para Victoria-Falls, no automóvel da família que estava à minha espera, e, logo ali, sofri a pri- meira surpresa pelas coisas estranhas que se pas- sam em África. Os cinocéfalos, cercopitecos e outros quadrumanos da floresta integraram-se de tal maneira no turismo local, que vêm reclamar dos visitantes o seu tributo de guloseimas, tomando-as

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da mão do oferente com a maior cautela, para o

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cómico, a luta romana sobre os tejadilhos de auto-móveis, de onde os contendores vinham sempreparar ao chão, na impossibilidade de se seguraremna chapa. Eu fui entrevistado dentro do carro, porum cinocéfalo, que se sentou no «capot», a olharpara mim com ar interrogativo e extremamente fa-miliar... salvo seja.

Este é o aspecto alegre e pitoresco do convíviocom os mais divertidos habitantes da floresta; masnem tudo são rosas neste contacto entre a selva vivae o progresso rodoviário: a macacada brava apren-deu a abrir as portas dos automóveis e, sempre queos bugios descobrem um que não fique fechado àchave, introduzem-se nele, revolvem e esfarrapamtudo, despedaçam os estofos, à procura de come-dorias, e roubam os objectos que lhes excitam acobiça. Tornaram-se assim uma verdadeira calami-dade, para os visitantes que não reparem nos avisos,

despido de cerimónia como de roupa, foi desembru- lhar e devorar tudo, empoleirado numa árvore vizi- nha, ficando a senhora ansiosa, no pavor de que ele voltasse à despensa, antes que lhe acudissem.

Numa avenida arborizada de Lourenço Mar- ques, também prolifera a família macacoide, sob a protecção municipal. As crianças da cidade diver- tem-se a dar-lhes de comer, registando-se plena confiança mútua. Se os macacos falassem poderiam surgir discussões que passassem a vias de facto; mas, sendo uma das partes muda, entendem-se as duas muito melhor.

Nas Reservas de caça, as várias espécies de macacos não são tão confiadas, mas também não fogem senão aproximadas de perto. Nas florestas desprotegidas, porém, onde são perseguidos, é muito difícil vê-los, porque se escondem nas ramarias

profusamente espalhados, ou desconheçam a línguainglesa em que são redigidos.

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mais densas e vão fugindo sempre diante de quem passe.

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não molestarem. Mal pára um automóvel ao longoda extensa estrada, logo os símios o rodeiam; sal-tam-lhe para o «capot» ou para o tejadilho (fig. 20)e ali ficam pacificamente à espera da pitança, queàs vezes não chega nunca, porque o viajante, des-conhecedor das praxes, não se preveniu com subsis-tências para os monos.

Ali presenciámos e filmámos cenas homéricasde folia simiesca. A todas sobrelevava, no efeito

Aqui se repete o que se passa em Gibraltar, com

a última dinastia da macacada europeia, que encon- trou naquela rocha um acolhedor refúgio. De um caso sei eu, ali ocorrido muito recentemente, em que uma pobre senhora, que tinha ficado só no banco da frente dum automóvel, viu, paralisada de terror, entrar pela porta dentro um macacão que se apoderou dos embrulhos de chocolate e pastelaria que estavam na prateleira, diante dela. O símio, tão

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O colobo é o mais esbelto e o mais bonito dosprimatas africanos, principalmente o negro, de suis-sas e grande avental branco. Os caçadores de ori-gem europeia dão-lhe caça para lhe aproveitarema linda pele; os indígenas matam-no para se rega-larem com uma carne tenra e saborosa, que, possi-velmente, deve matar saudades dos tempos áureosda antropofagia.

Tiveram as autoridades da Rodésia do Sul a gentileza de nos concederem autorização para a visita e hospedagem na Reserva de Wankie, antes da abertura da estação. Nela ingressámos, vindos de Victoria Falis, e logo apareceu a receber-nos uma girafa, animal ainda novo, galopando algum tempo, no seu estilo desmanchadão, ao lado do nosso carro. Um quilómetro mais adiante, surgiu uma manada de zebras, que longamente caracoleou à nossa di- reita, porque pretendia cruzar a estrada para a esquerda. Reconhecida a intenção, meu filho abran- dou a velocidade e logo o esquadrão raiado apro- veitou a concessão de passar, desfilando a dez metros pela frente do carro. Foi este o meu primeiro contacto com os animais da selva e o meu entu- siasmo não cabia em mim.

Chegados à hospedaria (rest house), recebeu-

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-nos e instalou-nos, com toda a afabilidade, o Direc- tor da Reserva; mas como ainda não havia pessoal,

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Nas proximidades de culturas, estes bichos têm

de ser dizimados, pelos estragos que fazem e des-caramento de que dão provas.

São constantemente acossados pelos leopardos,que os atacam no chão e nas árvores; mas os gran-des cinocéfalos e mandris dão combate vitoriosoa estas feras, cercando-as, esfarrapando-as e vin-gando a espécie.

Não há antropóides nas Reservas que visitei.

A RESERVA DE WANKIE

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tivemos que bastar-nos a nós próprios, o que nãofoi difícil, graças à assistência de minha nora Joane da minha neta Mary Clair, O Director conduziu--nos a uma torre, de onde, à luz do poente, se des-cortinava uma larga extensão de planuras, ondepastavam, muito dispersos, alguns antílopes.

Com os mantimentos sortidos que levávamos,cozinharam as damas um saboroso jantar, rematadocom boa sobremesa, a que se seguiu uma noite bemdormida, em fofos colchões e numa paz edénica.

Na manhã seguinte, saboreado o primeiro al-moço, o Director tomou lugar no nosso carro e se-guimos a percorrer a Reserva. O primeiro encontrofoi com um magnífico casal de leões, deitado a atra-vancar a estrada. Tivemos de parar junto deles eo Director falou-lhes, para os convencer a deixar--nos passar. Retiraram-se para fora do caminhoe tornaram-se a deitar a uns dez metros. Eram duasenormes e explêndidas feras, na pujança da vida,sendo ele portador duma farta e frisada juba negra.Foram estes os exemplares maiores e mais belos,entre tantos que depois vi.

A Reserva de Wankie, reduzida em área, ériquíssima em variedades de fauna. Não comportagrandes rebanhos, mas tem de tudo, num completosortido, incluindo os animais mais procurados pelosturistas, como os elandes ou tucas, o maior dos antí-

lira espiralada, e os avestruzes, de tão excêntrico e pitoresco aspecto (fig. 21). Mas o principal atractivo é o das enormes girafas que ali abundam, de parceria com os elefantes.

Dispõe esta Reserva de um grande palanque de muitos lugares e defendido com toda a segu- rança, junto de uma lagoa que serve de vasto bebe- doiro a toda a bicharia, a todas as horas. Dali po- dem os turistas observar a fauna que vai beber. A nós coube-nos a sorte de surpreender as mano- bras de aproximação de uma girafa encalmada (fig- 22).

Durante três dias, percorremos esta bonita re- serva que, em profusão de animais não suporta paralelo com a da Gorongosa, mas é, incontestavel- mente, favorecida pela diversidade.

Daqui seguimos por Bulawayo para as monta- nhas dos Matopos, de uma beleza tão suave e nos- tálgica que foram escolhidas para nelas erguer o mausoléu-monumento de Cecil Rhodes (fig. 23). Nada mais existe, como construção, alguns quiló- metros ao redor, e assim aquela grande e próspera nação agradece ao clarividente Chefe que a organi- zou, deixando-o dormir o seu eterno sono na paz tranquila do deserto.

Partimos no dia seguinte para Zimbabwe, onde se erguem as construções mais misteriosas do

lopes, cujos machos atingem por vezes o peso deuma tonelada; os cudos, de enormes armações em

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mundo, para as quais ainda não se encontrou expli- cação satisfatória (fig. 24). Na planície estendem-

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-se vários recintos, cercados de altas muralhas deoito metros, com acesso por um corredor onde ape-nas cabe um homem. A construção é toda em gran-des paralelepípedos de granito, admiravelmentetalhados e sobrepostos sem qualquer cimento, se-gurando-se pelo próprio peso. Na montanha à ilhar-ga, ergue-se, com o mesmo material, uma espécie decastelo, sem qualquer torre ou muralha, mas apenasguarnecido de muros baixos, podendo servir, quan-do muito, de parapeitos de resguardo (fig. 25). Deque civilização provirão estas singulares constru-ções? Que acontecimentos, usos e costumes teriampor ali passado? Perguntas a que, até hoje, ninguémse sentiu habilitado a dar resposta admissível.

O esforço de subir à montanha foi compensadopela vasta paisagem, que de lá desfrutámos.

A seguir, visitámos Fort Victoria, Umvuma,Gwelo, Quéqué, Salisbury e Umtali, bonitas e bemtraçadas cidades, que nos demonstraram quanto aRodésia do Sul é um país progressivo, opulento ebem apetrechado. Em toda a parte há bons hotéis.As cidades são desafogadas, de padrão moderno,com vastos e bem sortidos armazéns, onde se encon-tram as últimas novidades de Paris e Londres porpreços que, em muitos artigos, são mais reduzidosque na Europa, graças à leveza dos impostos.

Umtali, cidade fronteiriça com Moçambique,

há habitações, mas apenas comércio, hotéis, postas, serviços municipais e administrativos. Ao redor des- te núcleo, estendem-se as zonas residenciais, onde cada família tem a sua vivenda cercada de jardins. É, na verdade, uma cidade ideal, que há-de servir de modelo para a humanidade futura.

Antes de passarmos a fronteira, subimos a mon- tanha florestal de Vumba, de imponente beleza, e de cuja cumeada a vista mergulha em terra portu- guesa, até meia centena de quilómetros (fig. 26).

No ano seguinte, havíamos de voltar a percor- rer a Rodésia para visitar Inyanga, maravilha de- sértica onde mais nada existe além de um imenso hotel, à beira dum lago e encostado à montanha, (a última montanha que eu subi). Campos de varia- dos jogos o rodeiam e para obter alojamento é pre- ciso solicitá-lo com um mês de antecedência. Mas que paz inefável se desfruta naquele deserto, pri- vilégio de ermitões que dispõem de automóveis e jogam o ténis e o golf, o bridge e a canasta. Inyan- ga, recanto escondido que não tem parceiro! Feli- zes os que te descobrem, assim oculta e apartada do mundo!

ligada à Beira por uma boa estrada, é constituídapor um núcleo central de várias avenidas, onde não

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DE FRONTEIRA A FRONTEIRA

Foi sempre reconfortante, para os meus sonhos de fraternidade humana, verificar o impulso espon- tâneo de confiança e simpatia com que os indígenas negros das províncias portuguesas do ultramar saú- dam os brancos que passam nas estradas. As mu- lheres, com os filhos às costas ou a carga à cabeça, paravam sempre, à passagem do carro que me le- vava, saudando com a mão espalmada e um largo sorriso branco rasgando o rosto escuro. Os homens saudavam com a mesma simpatia e, se usavam cha- péu, tiravam-no.

E isto repete-se assim mesmo, sem falhar nunca, nas duas províncias distantes, a da costa do Atlân- tico e a das margens do Índico. Sente-se intensa- mente que o nosso compatriota indígena vive feliz por ser português e reconhece que a actividade do branco lhe acarreta o progresso, a justiça, a liber- dade, o conforto e um nível superior de vida, con- dições sociais que ele jamais poderia usufruir nos

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