O AUTISMO: NO LIMITE DA LINGUAGEM Sobre a Possibilidade...
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
O AUTISMO: NO LIMITE DA LINGUAGEM Sobre a Possibilidade do Tratamento Analítico
Elisa Carvalho de Oliveira
2005
12
O AUTISMO: NO LIMITE DA LINGUAGEM Sobre a Possibilidade do Tratamento Analítico
Elisa Carvalho de Oliveira
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica (Instituto de Psicologia), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.
Orientadora: Ana Beatriz Freire
Rio de Janeiro
abril de 2005
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O AUTISMO: NO LIMITE DA LINGUAGEM Sobre a Possibilidade do Tratamento Analítico
Elisa Carvalho de Oliveira
Orientadora: Ana Beatriz Freire
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Teoria Psicanalítica (Instituto de Psicologia), da Universidade Federal do Rio de Janeiro
/ UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.
Aprovada por:
Presidente, Prof.ª Dr.ª Ana Beatriz Freire
Doutora em Psicologia Clínica PUC/Rio
Prof.ª Dr.ª Letícia Martins Balbi
Doutora em Psicologia Clínica PUC/Rio
Prof.ª Dr.ª Fernanda Costa Moura
Doutora em Psicologia Clínica PUC/Rio
Rio de Janeiro
abril de 2005
14
Oliveira, Elisa Carvalho de.
O Autismo: no limite da linguagem. Sobre a possibilidade do
tratamento analítico. / Elisa Carvalho de Oliveira. - Rio de Janeiro:
UFRJ/Instituto de Psicologia, 2005.
x, 143: il.; 30 cm.
Orientadora: Ana Beatriz Freire
Dissertação (Mestrado) - UFRJ / Instituto de Psicologia / Programa
de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, 2005.
Referências Bibliográficas: f. 149-150.
1. Autismo. 2. Outro. 3. Fala. 4. Linguagem. 5. Tratamento
analítico. I. Freire, Ana Beatriz. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Instituto de Psicologia. III. Título.
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AGRADECIMENTOS
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq -, pela concessão da bolsa de estudos, que viabilizou a continuidade desta pesquisa. A Ana Beatriz Freire, por sua sensibilidade na escuta das questões da clínica do autismo, por sua orientação e seu apoio, sem o qual esta Dissertação não poderia ter sido realizada. Aos integrantes do grupo de pesquisa psicanalítica da UFRJ sobre o tratamento do autismo e da psicose, particularmente à Jeanne Marie Costa Ribeiro, Kátia Alvarez e Mariana Costa Ribeiro, cujas questões em muito contribuíram para o presente trabalho. Aos professores de Teoria Psicanalítica, em especial a Anna Carolina Lo Bianco, Angélica Bastos e Fernanda Costa-Moura, por suas indicações e comentários ao longo de meu percurso de mestrado. A Eduardo Vidal, por sua escuta analítica das questões suscitadas ao longo da formulação desta Dissertação. A Vera Vinheiro, Leila Neme, Cristina Vidal e Sofia Sarué, presentes em muitos momentos importantes, ao longo deste trabalho. À meu pai, Alcéstes, por suas palavras. À meu filho Rafael, por seu amor, seu carinho e sua alegria.
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RESUMO
A presente dissertação resulta de um trabalho de pesquisa suscitado,
inicialmente, pelos impasses com os quais o psicanalista se defronta na clínica do
autismo. Como referência teórica principal, tomou-se a obra de Sigmund Freud e
o ensino de Jacques Lacan. A partir da apresentação dos fragmentos de dois casos
clínicos de crianças que se encontravam no autismo, procurou-se evidenciar o
modo singular pelo qual cada uma delas chegou a articular uma fala endereçada
ao Outro, como efeito do tratamento analítico. Ao tocar o cerne da questão do
sujeito da linguagem, o autismo, em sua radicalidade, vem interrogar a teoria
sobre os primeiros momentos da constituição do sujeito. Procedendo a esta
investigação, recorreu-se a um aparato teórico acerca das condições de entrada do
vivente na linguagem, partindo, inicialmente, do texto de Freud, em torno das
primeiras experiências relativas à constituição do aparelho psíquico, e
prosseguindo, em função do ensino de Lacan, em uma abordagem mais detalhada
da estrutura da linguagem na qual o sujeito se constitui. A direção do tratamento
que aqui se propõe sustenta-se em uma escuta analítica dos elementos verbais que
se atualizam na transferência. Esse tratamento baseia-se no desejo do analista de
promover uma abertura para que seja possível ao autista, em função do trabalho
que realiza nas sessões, advir como um sujeito que, a partir do momento em que
fala, modifica radicalmente sua posição subjetiva.
Palavras-Chave: autismo, Outro, fala, linguagem, tratamento analítico.
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RÉSUMÉ
Ce mémoire est le résultat d’un travail de recherche suscité par les
impasses devant lesquelles se voit le psychanalyste dans la clinique de l’autisme.
Les fondements théoriques en sont l’oeuvre de Sigmund Freud et l’enseignement
de Jacques Lacan. À partir de la présentation de fragments de deux cas cliniques
d’enfants qui se trouvaient dans l’autisme, on a essayé de mettre en évidence la
façon singulière dont l’un et l’autre en sont venus à articuler une parole adressée à
l’Autre, en tant qu’effet de la cure analytique. Atteignant le coeur de la question
du sujet du langage, l’autisme, dans sa radicalité, interroge la théorie à propos des
premiers moments de la consitution du sujet. Pour ce faire, on s’est servi d’un
apparat théorique sur les conditions d’entrée du vivant dans le langage, prenant
pour point de départ les textes de Freud à propos des premières expériences
concernant la constitution de l’appareil psychique et poursuivant, en fonction de
l’enseignment de Lacan, dans une approche plus détaillée de la structure du
langage où le sujet se constitue. La direction de la cure qu’on propose ici s’appuie
sur une écoute analytique des éléments verbaux qui s’actualisent dans le transfert.
Et cette cure est fondée sur le désir de l’analyste d’amener une ouverture
permettant à l’autiste, en fonction du travail accompli dans les séances, d’advenir
en tant qu’un sujet qui, dès qu’il parle, modifie radicalement sa position
subjective.
Mots-clés: autisme, Autre, parole, langage, cure analytique
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
CAPÍTULO I 19
1.1 Fragmentos de um Caso Clínico - Íris 19
1.1.1 Primeiras articulações 21
1.1.2 Um certo enquadre 22
1.1.3 Endereçamentos ao Outro 23
1.1.4 Efeitos do tratamento para os pais 24
1.1.5 Sobre o lugar do sujeito no fantasma do Outro 25
1.1.6 Um segundo tempo do tratamento 27
1.1.7 Uma nova articulação 30
1.1.8 Um atravessamento do lugar que o sujeito ocupava para o Outro 32
1.2 Fragmentos de um Caso Clínico - Paulo 33
1.2.1 Uma primeira palavra: “Pedra” 34 1.2.2 Sobre o lugar do sujeito no fantasma do Outro 35 1.2.3 Materiais de construção 36
1.2.4 Sobre a possibilidade de um tratamento 37
1.2.5 Na via da articulação de um apelo verbalizado 38
1.2.6 Um segundo momento 40
1.2.7 Efeitos do tratamento para os pais 41
1.2.8 Um terceiro tempo do tratamento 42
CAPÍTULO II 44
2.1 A questão da quantidade 45
2.2 A Teoria do Neurônio 46
2.2.1 As barreiras de contato 47
2.3 Sobre o modo de funcionamento do aparelho psíquico 49
2.4 A primeira experiência de satisfação 52
2.5 A experiência de dor 55
2.6 Desejo e defesa primária 57 2.7 A estruturação do “eu” (Ich) 59
2.8 A carta 52 61
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CAPÍTULO III 64
3.1 Sobre a estruturação do aparelho psíquico 65
3.2 Um retorno ao Projeto freudiano 70
3.2.1 O complexo do Nebenmensch 74
3.2.2 O real como das Ding 77 3.2.3 O Outro da linguagem 79 3.2.4 O Outro do imaginário 80 3.3 O lugar da criança no fantasma do Outro 81
3.4 Necessidade, demanda e desejo 84
3.5 Sobre o apelo 86
21
CAPÍTULO IV 88
4.1 A fala plena na realização da psicanálise 90
4.2 O esquema L 93
4.3 A primazia do significante 95
4.3.1 A estrutura da linguagem 99
4.3.1.1 O signo lingüístico 99
4.3.1 2 O valor do signo 100
4.3.2 O inconsciente e a estrutura da linguagem 101
4.3.3 O sujeito como efeito do significante 102
4.3.4 O sujeito e o Outro 106
4.4 As operações de alienação e separação 107
4.5 O objeto a 110
4.6 Sobre a pulsão 111
4.7 Pulsão de morte 116
4.8 O jogo do Fort-Da 117
4.9 O mais-de-gozar 119
4.10 Lalangue 122
4.10.1 Lalangue e a estrutura da linguagem 124
4.10.2 O inconsciente – “uma elucubração de saber sobre lalangue” 125
4.10.3 O Significante-Um 126
4.11 O gozo 127
4.12 O autismo 129
CONSIDERAÇÕES FINAIS 132
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 140
22
INTRODUÇÃO
As questões que suscitaram esta pesquisa foram formuladas a partir de uma
experiência clínica que, ao longo de vinte anos, tem-se voltado para o atendimento de
crianças autistas1.
Em uma abordagem inicial, o autista apresenta-se em um estado de grande
alheamento, de profunda indiferença frente ao mundo que o cerca. Esse estado, no
entanto, em função da singularidade de cada caso, admite toda sorte de diferenças e
variações.
A partir de dois casos clínicos de crianças que, ao se apresentarem para o
atendimento, poderiam ser consideradas como casos de autismo, propõe-se este trabalho
a circunscrever uma questão, dentre tantas, relativa à forma singular como cada uma
dessas crianças passou, como efeito do tratamento analítico, a falar ao Outro2,
modificando radicalmente o estado em que se encontrava.
Ao proceder à investigação que engendra esta pesquisa, adotar-se-á como
ponto de partida a premissa de que o conjunto das manifestações que caracteriza o
autismo, incluindo o suposto alheamento, aponta para a grave problemática que se teria
configurado já nos primeiros tempos da constituição do aparelho psíquico, no limite da
linguagem.
Nesta via, tomando como referência principal a obra de Sigmund Freud e o
ensino de Jacques Lacan, buscar-se-á, na primeira parte desta Dissertação, após a
apresentação dos casos clínicos, delimitar, na obra de Freud, um momento princeps da
constituição do aparelho psíquico, denominado “A experiência de satisfação” (FREUD,
1895). No Projeto (idem), o autor indica que o recém-nascido, em seu desamparo
primordial, precisa de um adulto “experiente”, com atenção voltada para ele. Que não só
escute, mas também interprete, dando um sentido às primeiras manifestações do bebê
(expressão de emoções, inervação vascular e gritos).
1 O termo autismo foi inicialmente empregado por Bleuler (1916) para denominar os casos mais graves de esquizofrenia. Na década de 1940, Leo Kanner (1943), psiquiatra austríaco, empenhou-se na construção de uma nova entidade nosográfica - o autismo infantil precoce, que se aplicava a crianças que se caracterizavam por sua “extrema retração” desde o início da vida. 2 O Outro (A), com maiúscula é definido por Lacan (1954/55) como lugar da linguagem. Ao se referir a uma alteridade radical, o Outro distingue-se do outro (a), com minúscula, o outro como semelhante.
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É essa “ajuda alheia” (FREUD, 1895) que realiza uma ação específica no
mundo externo. Tal ação propicia ao desamparado, por meio de dispositivos reflexos,
executar no interior de seu corpo a atividade necessária para pôr termo, mesmo que
provisioriamente, à grande excitação que o invade. A totalidade deste processo constitui
a primeira “Experiência de satisfação”, da qual resultam as mais radicais conseqüências
para a estruturação do psiquismo.
Em torno dessa primeira experiência, Freud ressalta a importância do grito,
que, ao ser escutado pelo adulto, deixa de constituir uma simples manifestação do bebê,
apenas uma via primária de descarga, para adquirir, então, em um segundo momento, a
“importantíssima função da comunicação”.
Em seu retorno à letra de Freud, Lacan privilegia a estrutura da linguagem
na qual se constitui o sujeito do inconsciente. Desde antes de seu nascimento, já se fala
sobre o bebê, e o que dele se diz está diretamente relacionado com o modo como seus
pais o acolhem. Por conseguinte, a palavra que circula em torno do surgimento de um
futuro sujeito revela, de diversas formas, a verdade do lugar que a criança, como objeto
privilegiado, ocupa no desejo do Outro.
Na clínica do autismo é marcante que no discurso dos pais surgem muito
poucos elementos referentes ao lugar que esse filho, que se encontra no autismo, veio a
ocupar. Os psicanalistas dedicados ao tratamento de crianças autistas, dentre eles Rosine
Lefort3, referem-se à depressão materna que precede o nascimento da criança, como
uma questão decisiva para a problemática que vem a se instaurar na relação do recém-
nascido com o Outro. Neste sentido, a mãe deprimida estaria de certa forma “absorvida”
por uma perda irreparável, frente à qual não foi possível a realização de um trabalho de
luto, impossibilitando a constituição do lugar de uma falta em que este filho viesse a se
alojar.
Pelo fato de estar na linguagem, o ser humano, mesmo antes de falar, já está
submetido ao mal-entendido de habitar a linguagem. Dessa forma, em um primeiro
“encontro” do bebê com a mãe, pode-se dizer que uma pretensa completude ou uma
total harmonia já se faz impossível. Ao falar ao bebê, a mãe, em sua função, apresenta
ao recém-nascido os primeiros pares de significantes, indica-lhe as pequenas diferenças
entre os sons e demanda a repetição desses sons. Nesta via, vindo a ocupar o lugar de
3 LEFORT, Rosine- psicanalista, autora, em colaboração com Robert Lefort, de Nascimento do Outro (1980/1984), Bahia, Fator editora.
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um Outro primordial, a mãe posiciona-se como intérprete do grito do desamparado,
conferindo-lhe o sentido de um pedido de auxílio, um apelo.
Diferentemente dos apelos mimetizados, passíveis de se realizarem por
qualquer ser, o “apelo verbalizado”, tal como o define Lacan (1953-54), é específico do
ser humano. Na medida em que é efeito da articulação entre os primeiros gritos do
recém-nascido e a resposta dada pelo Outro, o apelo, como um momento específico da
constituição do sujeito, é a condição sine qua non para que este aceda à realidade
humana.
Por sua condição de falante, como já se afirmou, o ser humano dispõe de
aparelhos insuficientes para o processo de adaptação à vida, que garantiriam a
sobrevivência, tornando-se necessário, portanto, que o infans faça saber sua carência ao
Outro. Em tal situação, é crucial, portanto, o comparecimento de um Outro que,
acolhendo o chamado do recém-nascido, responda não só fornecendo o alimento, mas
também decidindo sobre a significação das primeiras manifestações do bebê.
Neste sentido, formula-se a pergunta que opera como ponto de partida para
esta pesquisa: Que conseqüências podem advir para o infans se, em um primeiro
momento da constituição do sujeito, algo da “ordem do impossível” se apresentar nessa
primeira tentativa de estabelecimento de um laço do recém-nascido com o Outro?
Indaga-se, então, se esse desencontro, ao se apresentar de forma tão devastadora, não
faria com que a única resposta do sujeito, em sua luta para manter-se vivo, fosse
justamente o autismo.
Prosseguindo com o trabalho de pesquisa suscitado pelo tema do autismo,
serão focalizado os primeiros momentos da constituição do sujeito. Para tanto, traçar-se-
á um breve percurso pontuando alguns dos textos, ao longo do ensino de Lacan, que
circunscrevem uma questão acerca das condições de entrada do vivente na linguagem.
Em uma das últimas referências a que se recorrerá, Lacan afirma que:
[...] o resultado da linguagem é que alguma coisa chega desde que se encontra este famoso meio, alguma coisa acontece, às vezes no Outro, na verdade sempre no Outro... E é assim mesmo que aquilo que se chama ser humano tem como primeira experiência: ele percebe que acontecem coisas quando se fala. (LACAN, 1975, p.77)
25
O objetivo desta Dissertação consiste, portanto, em interrogar, a partir da
apresentação dos fragmentos de dois casos clínicos, o modo singular pelo qual foi
possível a cada um destes pacientes, ao longo do tratamento analítico, proceder a uma
outra forma de articulação na linguagem, na medida em que, em sua singularidade, cada
um deles passa a articular uma palavra com um certo endereçamento ao Outro - que
veio modificar, de forma radical, o estado de tão grande alheamento em que cada um
dos pacientes citados se encontrava anteriormente.
Primeiramente será apresentado o percurso do caso clínico de Íris, uma
criança autista que, aos cinco anos, iniciou o tratamento analítico. O estado em que a
paciente se encontrava, inicialmente, era muito grave, sendo-lhe somente possível emitir
sons e gritos indiferenciados, os quais, por sua vez, caíam no vazio, com muito poucas
condições de estabelecimento de qualquer laço com o Outro. Dessa forma, mantinha-se
em um estado de grande alheamento com relação ao que se passava a sua volta,
mantendo exclusivamente uma certa ligação com a mãe. Essa ligação era marcada pelo
fato de a mãe adivinhar tudo o que a filha precisava, do que resultava, segundo a mãe,
nem ser necessário falar.
Até aquele momento não se estabelecera propriamente um laço com o
Outro, ou seja, a paciente não dirigia o olhar, nem articulava qualquer palavra com
endereçamento, de modo a possibilitar um laço de comunicação. Contudo, conforme
será abordado, em meio à gravidade do caso foi gradativamente tornando-se possível
circunscrever uma determinada “atividade” realizada pela paciente, cuja delimitação se
deu em função de sua repetição ao longo das sessões.
Tal atividade envolvia uma certa ordem, ou seja, uma articulação, que
consistia no fato da paciente extrair pequenos pedaços de tinta de alguma porta, parede
ou ainda de um muro. Essa extração, porém, ocorria, na maioria das vezes, no ponto
específico da superfície onde a paciente encontrasse alguma reentrância ou falha
preexistente.
A posteriori, foi sendo possível constatar a importância dessa “atividade”
realizada pela paciente, na medida em que, de sons e gritos indiferenciados, Íris foi
passando, como efeito de seu “trabalho” ao longo das sessões, a articular palavras
construídas ou mesmo inventadas por ela, com um endereçamento ao analista.
A possibilidade de vir a articular uma palavra dirigida ao Outro promove
uma modificação decisiva na posição subjetiva desta paciente, o que produziu
conseqüências para o lugar ao qual, com seu mutismo e alheamento, era chamada
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anteriormente a dar consistência na dinâmica familiar. Neste sentido, ao se
apresentarem alguns fragmentos deste caso clínico, será abordado o trabalho possível do
analista com os pais de Íris, bem como os efeitos, para estes, do tratamento da paciente.
O segundo caso clínico, apresentado neste primeiro capítulo, refere-se ao
percurso do tratamento de Paulo. A demanda de tratamento, realizada inicialmente pelos
pais, deu-se em função de uma crise do filho, na escola que freqüentava, já com grandes
dificuldades.Durante a festa de seu aniversário, Paulo, em estado de grande agitação,
não aceitou permanecer próximo às pessoas que lá se encontravam e, diante da
insistência para que participasse, passou a jogar ao longe todos os objetos ao seu
alcance. Essa crise operou de certa forma um “corte” na forma como os pais vinham
lidando com a problemática, levando-os à decisão de procurar um atendimento analítico
para o filho.
Aos seis anos, Paulo tinha poucas condições de estabelecer um laço com os
outros a sua volta. Apresentava uma intensa agitação, que o impedia de ficar muito
tempo em um só lugar ou mesmo manter uma atividade articulada em torno de um
objeto. Seu olhar, apesar de não ser totalmente ausente, não se mantinha em direção ao
Outro. A criança era alimentada pela mãe e não tinha qualquer autonomia sobre os
cuidados de higiene com seu corpo. Em meio a tão grave desarticulação, contudo,
restavam algumas palavras.
Neste segundo caso, objetiva-se abordar uma possibilidade de tratamento
para este paciente, em função de um “trabalho” que se iniciou em uma primeira sessão,
quando, ao se dirigir ao analista, o paciente retirou o anel da mão deste. A posteriori,
este primeiro ato do paciente constituiu-se em uma abertura para uma articulação no que
se poderia considerar como algo da ordem da transferência, quando, na sessão seguinte,
o paciente trouxe um de seus objetos privilegiados - uma caixa - e a deixou “guardada”
no armário do consultório. Ao retomar este objeto na sessão seguinte, pôs em curso um
“trabalho”, como foi assinalado, ora em torno da caixa, ora do anel, na alternância das
sessões, cujo efeito foi o surgimento de novos fonemas e palavras que vieram a se
constituir na possibilidade de uma nova forma de articulação do sujeito na linguagem.
Assim como no primeiro caso clínico, serão abordadas, inclusive, as possibilidades de
trabalho com os pais.
No Capítulo II, com a finalidade de articular teoricamente a questão sobre a
possibilidade do advento da fala como efeito do tratamento analítico do autismo, será
realizado inicialmente um percurso em Freud, focalizando “A experiência de
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satisfação”, denominação dada pelo autor a este momento da constituição do aparelho
psíquico.
Ao abordar os primeiros tempos da constituição do aparelho psíquico no
texto de Freud, e posteriormente na obra de Lacan, é importante sublinhar o caráter
circunscrito e parcial desta análise. Trata-se de um trabalho de pesquisa, sem, contudo, a
pretensão de esgotar toda a formulação freudiana e lacaniana acerca da estruturação do
psiquismo.
Ainda no Capítulo II será apresentado um breve comentário sobre a Carta
52 (FREUD, 1896) que fornece elementos importantes para a abordagem da modificação
empreendida por Freud entre o escrito de 1895 e o texto que marca a formulação do
conceito do inconsciente propriamente dito: Interpretação dos sonhos (FREUD, 1900).
No Capítulo III desta dissertação, o texto: Interpretação dos sonhos (1900),
em que Freud retoma o tema da primeira experiência de satisfação, será focalizado,
tendo por primeiro objetivo situar a função do grito, tal como formulada por Freud, já
que, no ato da interpretação pelo adulto que cuida da criança, o grito constitui uma
importante via de comunicação - o que abre, logicamente, a possibilidade de acesso à
palavra pela criança, como um apelo endereçado ao Outro.
Será também trabalhada a noção do Nebenmensch (FREUD, 1895).
Considerando-se que este vocábulo é formado de Neben (próximo) e Mensch (homem),
pode-se traduzi-lo como “o homem próximo”, aquele que, inclusive, estaria em posição
de acolher os primeiros sinais emitidos pelo bebê e dizer algo a respeito.
Articulada a esse ponto, será abordada a concepção de Jacques Lacan acerca
do Outro primordial que se apresenta ao infans, abrindo a possibilidade de uma
articulação do sujeito na linguagem.
Ainda nesse terceiro Capítulo se buscará apoio no Seminário A Ética da
Psicanálise (LACAN, 1969), no qual o autor destaca de sua leitura do Projeto (FREUD,
1895) a noção de das Ding, “a coisa”. É importante assinalar que, na formulação desta
noção, Lacan situa das Ding como o resto inassimilável, ou ainda, como um resíduo da
operação da entrada do sujeito na linguagem.
Como um desdobramento deste primeiro tempo da constituição do sujeito,
no qual o infans chega a estabelecer um laço com o Outro, será ressaltada, no mesmo
Capítulo, a tríade necessidade-demanda-desejo, em que Lacan (1969) destaca a
estrutura significante que determina o sujeito em relação ao Outro. Nesta via, entre
necessidade e desejo interpõe-se o registro da demanda. Para o ser falante, a
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necessidade fica sujeita às exigências da demanda, isto é, deve submeter-se à forma
significante para retornar como mensagem a respeito do lugar do Outro. Porém, nem
toda necessidade é articulável pela demanda, restando algo que permanece como
perdido.
Ao se trabalhar a possibilidade da estruturação psíquica do sujeito, surge a
questão de que este se constitui em função de uma resposta ao lugar que esse mesmo
sujeito veio a ocupar como objeto no fantasma do Outro. Para tanto, serão trabalhadas
as indicações de Lacan (1969) sobre o tema, na carta a Jenny Aubry, já formulando a
pergunta que se apresenta a partir da clínica do autismo, de que lugar se trata no desejo
do Outro, para aquele cuja resposta foi o autismo.
No Capítulo IV, em função do tema desta pesquisa, far-se-á um breve
percurso pela obra de Lacan, com o objetivo de prosseguir na abordagem do modo de
entrada do vivente na linguagem. Partindo da distinção promovida por Lacan entre o
campo da linguagem e a função da fala em psicanálise (1953), tratar-se-á, a seguir, da
concepção lacaniana do sujeito como efeito da articulação significante, no escrito A
instância da letra no inconsciente freudiano (1959). Posteriormente serão abordadas as
operações de alienação e separação, descritas no Seminário 11 (1964), nas quais, em
função da teorização do objeto a, destaca-se, um resto como efeito da operação de
entrada do sujeito na linguagem. A respeito do seminário O avesso da psicanálise
(1968), assinalar-se-á a existência - frente à perda, como condição necessária para o
advento do sujeito - de algo a recuperar em termos do mais-de-gozar. Para finalizar este
percurso, serão trabalhadas algumas pontuações de Lacan sobre a questão da lalangue
no Seminário 20 (1972/73), que de certo modo reformula a concepção anterior de
linguagem.
No contexto destas novas articulações operadas por Lacan em torno da
questão da fala e da linguagem, focalizar-se-á a Conferência em Genebra sobre o
sintoma (LACAN, 1975), da qual serão destacadas algumas das pontuações do autor
sobre autismo, já que esse texto constitui importante referência para a presente
Dissertação, tanto pelas marcações quanto à posição do autista na linguagem, como
pelas importantes indicações a respeito da direção do tratamento.
A título de conclusão, serão apresentadas algumas considerações em torno
da possibilidade do advento de uma outra forma de articulação do sujeito na linguagem
a partir do momento em que, como efeito do tratamento analítico, cada um dos
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pacientes citados, em sua singularidade, passa a endereçar uma palavra ao Outro na via
da formulação de um apelo.
É importante ressaltar que a complexidade dos problemas abordados indica
que as conclusões esboçadas revestem-se do caráter investigativo ou ainda exploratório
desta dissertação. E, desta forma, assinalam o sentido primeiro destas conclusões e a
exigência de novas e mais aprofundadas investigações decorrentes da pesquisa inicial.
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CAPÍTULO I
A clínica psicanalítica deve consistir não só em interrogar a análise mas interrogar aos analistas, para que dêem conta daquilo que em sua prática tem de acaso, o que justifica que Freud tenha existido... (LACAN, 1977, p. 35)
1.1 FRAGMENTOS DE UM CASO CLÍNICO – ÍRIS
Aos cinco anos, Íris foi ao consultório para uma primeira sessão, conduzida por seus
pais. Andava de um lado para o outro na sala de espera, com o olhar vago, chegando a emitir
alguns sons, em um estado de grande alheamento.
Bem aos poucos, o analista aproximou-se de Íris e lhe falou algo como um
cumprimento. A partir deste primeiro “encontro”, sem, contudo, olhar para o analista, Íris se
aproximou do consultório. Ao encontrar a porta entreaberta, “adentrou” a sala para, em um
relance, atravessar todo o espaço e sair em seguida. Deixando os pais na sala de espera, passou
a andar aleatoriamente pelos espaços da casa onde se situa o consultório (cozinha, banheiro,
jardim etc.), mas sem delimitá-los ou mesmo diferenciá-los.
Ao longo desse percurso, e sem que fosse possível ao analista intervir, a paciente
era em alguns momentos tomada de grande excitação, fazendo-a correr e pular, com o corpo
extremamente rígido, chegando, nesses momentos, a emitir alguns sons e gritos.
Nesta primeira sessão, contudo, após retornar à sala do consultório, Íris pegou a
mão do analista e o conduziu até a porta, ao que o analista disse: “Ah! É para abrir?” Nesse
momento conclui-se a primeira sessão, e Íris retornou à sala de espera, onde reencontrou seus
pais.
As sessões prosseguiram, sem que Íris pronunciasse qualquer palavra articulada. Em
alguns instantes, chegava a emitir certos sons e gritos, mas sem um endereçamento. No entanto,
não se poderia dizer que sua posição fosse totalmente indiferente, pois, ao sentar-se de costas
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para o analista, chegava a se voltar ligeiramente, como para confirmar onde ele estava. E ao
encontrar, de certa forma inadvertidamente, o olhar do analista, desviava o próprio olhar, como
se o olhar do Outro contasse para ela, mas não fosse possível suportá-lo.
Em determinada sessão, Íris foi ao consultório levada pela mãe. De uma forma
diferente do que havia ocorrido até então, a paciente tomou a atitude de puxar a mãe pela mão,
fazendo com que esta a acompanhasse até a sala e permanecesse com ela. Nessa situação, a
mãe passou a relatar o fato de, na noite anterior, a filha ter acordado de madrugada e não ter
voltado a dormir, o que inclusive havia provocado um certo “transtorno” na casa. Durante o
tempo em que a mãe falava ao analista, Íris, manteve uma intensa atividade andando de um
lado ao outro da sala, até que, de forma surpreendente, dirigiu-se à mãe e falou: “Mamãe!”.
No momento em que, durante a entrevista com o analista, Íris falou pela primeira
vez uma palavra com endereçamento, e um endereçamento muito específico, ou seja, à sua
mãe, surgiu um impasse: a mãe não percebeu que a filha havia articulado uma fala. Quando o
analista pontuou essa fala de Íris, a mãe perguntou o que tinha ocorrido, já que não havia
escutado a palavra da filha, como também não se dera conta da existência de um
endereçamento.
Em uma tentativa de falar, em se dirigindo à mãe, Íris não encontrou naquele
momento uma possibilidade de enganchar seu chamado, que de certa forma caiu no vazio. Ao
chamar a mãe e não ser reconhecida como um sujeito que fala, a única resposta que Íris
encontrou foi voltar a “circular” pela sala, andando de um lado a outro.
Contudo, a posteriori, foi possível constatar que a escuta do analista e sua
intervenção - na via de que a paciente havia falado e de que essa fala estava endereçada a sua
mãe - tiveram efeitos, inclusive para a possibilidade de um trabalho com os pais, o que será
abordado mais adiante.
1.1.1 Primeiras articulações
Em meio à gravidade do caso, foi sendo possível circunscrever uma
determinada atividade realizada pela paciente, delimitação esta que se deu em função de
sua repetição. Tal atividade envolvia uma certa ordem, ou seja, uma articulação, que
consistia no fato de Íris “extrair” pequenos pedaços de tinta de alguma porta, parede ou
ainda de um muro. Essa “extração”, todavia, operava-se quase sempre no ponto
específico da superfície onde Íris encontrasse alguma reentrância ou falha. Dessa forma,
32
a paciente centrava sua ação no “trabalho” de cavar, recolher o produto de sua
escavação para então jogá-lo longe.
Como um primeiro efeito dessa atividade restava um buraco ou um furo
naquela superfície onde antes só havia uma pequena diferenciação. E isso fazia com que
Íris em alguns momentos retornasse ao mesmo lugar para reafirmar a “exteriorização”
de mais um pequeno fragmento.
Algumas vezes, após “extrair” os pequenos fragmentos, Íris estendia os
braços acima da altura de seu corpo e então lançava os pequenos objetos para longe,
observando-os cair até o chão e emitindo um som como: “Aaah!” - uns dos poucos
momentos em que lhe era possível veicular de alguma forma sua voz.
Nas Conferências norte-americanas (1975), Lacan afirma que o analista
opera em se deixando guiar pelos termos verbais utilizados pelo sujeito que fala. Se
Freud recomenda algo, em termos da posição que o analista deve sustentar no
tratamento analítico, é não se precaver de qualquer idéia ao escutar o paciente. Assim,
ao se referir à Direção do tratamento, Lacan ressalta que o analista deve “seguir” o que
escuta do paciente.
Assim, nesse primeiro momento, cabia ao analista escutar o que a paciente
apresentava nas sessões. E, nesta direção, “acompanhar” de certa forma, literalmente, o
percurso da paciente pelos lugares, na medida em que Íris ainda não conseguia
permanecer somente em uma sala específica. Quando possível, o analista recolhia e
levava para o consultório alguns dos objetos (jarra de água, massinha e rolo de papel)
que a paciente havia tomado em suas mãos ou que de certa forma havia demonstrado
um mínimo interesse em explorar. Dessa forma, o analista operava na tentativa de que o
“trabalho” da paciente viesse em um outro momento a se realizar de forma mais
circunscrita, na sala do consultório.
Após um certo tempo, ao analista, cuidadoso em não se colocar de forma
invasiva, foi sendo possível realizar algumas pequenas pontuações: palavras que
veiculava em torno dos cumprimentos de chegada e partida, dos objetos que circulavam
na sessão e, muito especificamente em determinadas situações, ao pronunciar o nome
próprio da paciente. Neste sentido, ao analista cabia escutar o momento em que se fazia
possível dirigir uma palavra a Íris e discernir quando se tratava de fazer circular
palavras em torno do que estivesse ocorrendo na sessão, uma fala nem sempre tão
diretamente endereçada, na medida em que isto poderia apresentar-se como excessivo.
33
1.1.2 Um certo enquadre
O ponto que se pretende destacar refere-se a uma determinada sessão em
que, após um primeiro tempo do tratamento, Íris passou a realizar a atividade
mencionada, especificamente na sala do consultório, de certa forma incluindo o analista.
Nessa sessão Íris tomou o rolo de papel (o que já havia feito antes), mas,
desta vez, para ir até a janela da sala do consultório, onde, tomando o parapeito como
um certo limite, passou a destacar pequenos pedaços de papel, jogando-os não somente
para longe, mas para fora da sala. Durante a ação, emitia novos e diferentes sons como:
“Dedede!”.
Desta forma, com o contorno da janela, algo da ordem de uma atividade
anteriormente tão dispersa passou a ser realizado com um certo enquadre - o que
envolvia, inclusive, se assim se pode dizer, uma perda, de uma outra ordem, em torno
dos pequenos objetos que a paciente fazia cair da janela até o andar térreo.
Ao realizar essa atividade, Íris centrava-se em torno do “trabalho”, que
envolvia alguma articulação, localizando de alguma forma uma tão grande excitação
que, como efeito, produzia um breve momento de tranqüilidade. Todavia, ao destacar
todos os pedaços de um rolo de papel, buscava logo outro, com grande “aflição”, até
fragmentá-lo todo, como algo que pudesse repetir-se indefinidamente.
Contudo, transcorridas algumas sessões nas quais se repetia a atividade na
janela, o analista fez uma intervenção na via de dizer algo, muito pontualmente, em
termos de que talvez já fosse possível a paciente realizar “um ponto” ou mesmo uma
escansão nessa marcante, mas também incessante atividade e deixar algo para um outro
momento. Nesta direção, o analista perguntou à paciente se ainda seria preciso
fragmentar todos os pedaços do rolo, ou seja, se não poderia deixar um resto ali, já que
voltaria para a próxima sessão, como já vinha ocorrendo há algum tempo (em função
mesmo da alternância das sessões).
Naquele momento, ocorreu uma relativa descontinuidade na ação que a
paciente estava realizando, na medida em que, por um instante e pela primeira vez,
parou para dirigir um olhar ao analista - sem, contudo, ainda dizer uma palavra.
Por seus efeitos, esta sessão se destacou como o início de um outro tempo,
em que algo se articularia para a paciente de uma outra forma. A partir de então, apesar
da grande desagregação que ainda se manifestava, Íris passou a privilegiar a janela do
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consultório como um lugar específico para sua atividade. Essa mudança, realizada em
torno de pedaços de papel, já promovia um certo distanciamento de uma posição
anterior tão grave que fixava a paciente em fragmentos de tinta da parede.
Em uma das sessões seguintes, surgiu algo inédito. Diferentemente das
circulações aleatórias pela casa, Íris, ao sair da sala, decidiu ir até o andar térreo pegar
um dos pequenos objetos que jogara no chão e trazê-lo de volta para a sala. Ao chegar à
janela, lançou-o novamente para fora, emitindo novos fonemas como “Dedede!”.
De certa forma modificando a atividade que de algum modo a singularizava,
a paciente passou, em uma outra articulação, a alternar os objetos que arremessava,
como se fora um “jogo’ que envolvesse a emissão de um fonema ou grupo de fonemas.
Marcantemente, essa expressão surgia no momento em que Íris arremessava o pequeno
objeto. (Mais à frente, será abordada essa atividade da paciente com relação ao jogo do
fort-da (FREUD, 1920).
1.1.3 Endereçamentos ao Outro
Nesse contexto, surgiu uma primeira palavra articulada pela paciente,
endereçada ao analista. Ao final de uma sessão em que ficara centrada em torno de seu
“jogo”, Íris realizou um movimento, ou melhor, um gesto e pronunciou uma palavra
construída, ou ainda, inventada por ela: “Ram!”. Ao pronunciá-la, Íris olhou para o
analista e fez um gesto como um aceno. Interpretando o que tal articulação estava
indicando, o analista então disse: “Ram? Acho que você está se despedindo por hoje, é
isso? Tchau?” Ao escutar estas frases, a paciente continuou a olhar para o analista e,
dirigindo-se até a porta, virou-se para olhar ainda mais uma vez e então reafirmar em
uma palavra a “sua” despedida: “Ram!”.
Em uma das sessões seguintes, enquanto Íris ainda se encontrava na sala de
espera, localizada no andar térreo, o analista escutou-a chamá-lo. Ao fazê-lo, de forma
surpreendente, articulou o nome do analista, o que configurou um endereçamento, de
uma outra ordem do que vinha ocorrendo até então. Neste sentido, cabe perguntar se
nesse momento, já não estaria constituindo-se para Íris uma outra possibilidade de
realizar um endereçamento ao Outro, na via da articulação de um apelo. Um apelo
verbalizado que, como formula Lacan (1953) aponta a um outro nível de ligação com o
Outro. Alguns momentos depois, quando encontrou o analista e este lhe disse que
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escutara seu chamado, Íris, em resposta, esboçou um sorriso, demonstrando que um laço
com o Outro estava em vias de construção.
A partir de então, passou a dizer “Ram!” sempre que se despedia e a esboçar
um sorriso como sinal de reconhecimento ao encontrar o analista.
1.1.4 Efeitos do tratamento para os pais
Os efeitos do que passou a ocorrer com a paciente, nesse primeiro tempo,
retornaram para os pais, que se angustiaram na medida em que Íris começou a falar.
Para a mãe foi surpreendente que a filha passasse a se despedir, dando provas (segundo
a mãe) de que não só entendia uma separação, mas também a aceitava.
Em uma entrevista com o analista, a mãe declarou que, quando se afastava
da filha, não falava nenhuma palavra a respeito desse desaparecimento ou ausência.Essa
atitude de nada dizer a Íris ao sair de casa era determinada pela recusa em ver a filha
sofrer com a vivência de uma separação, mesmo que breve. Se, por um lado, a mãe era
capaz de reconhecer que, no exercício da função materna, deveria nomear presença e
ausência, por outro, não suportava defrontar-se com a idéia de causar sofrimento à filha
ao nomear alguma distância entre ambas, ou seja, de nomear uma falta. E isto, para a
mãe, afigurava-se como problemático.
O efeito do afastamento sem qualquer expressão verbal por parte da mãe
fazia com que esta, ao retornar, encontrasse a filha em um canto do quarto, contra a
parede, ou fechada, utilizando o único recurso que parecia restar-lhe: a realização de
suas estereotipias, em estado agravado.
Nesse momento do processo analítico, pela primeira vez os pais dirigiram ao
analista uma questão, pois estavam de alguma forma sem saber como agir frente à
mudança de posição de Íris, na medida em que esta passara a falar. Ainda assim, levou
um determinado tempo para que os pais, cada qual a seu modo, chegassem a concluir
que deveriam passar a endereçar um gesto de despedida à filha. Em determinada
entrevista, a mãe declarou que, pelas atitudes da filha, passou a achar que Íris realmente
sentiria falta, se os pais se “esquecessem” de falar com ela ao sair; que isto realmente
poderia gerar um agravamento de seu estado, não mais tanto em termos de um
isolamento, mas agora de uma agitação maior.
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Em decorrência, os pais passaram a sustentar o endereçamento de uma
palavra a Íris, nomeando a ausência de cada um deles e indicando que retornariam
posteriormente. Desse modo, apontaram para uma dimensão simbólica, o que se
constituiu como fundamental para possibilitar ao sujeito realizar um trabalho frente ao
vazio deixado pela partida da mãe, sem ser aspirado pelo vazio criado pela ausência de
palavras. Todavia, é importante assinalar que toda esta mudança no posicionamento de
cada um dos pais se deu a partir dos efeitos promovidos em função deste ponto de corte,
de separação que a paciente formulou como efeito de seu tratamento: “Ram!”.
1.1.5 Sobre o lugar do sujeito no fantasma do Outro
Na Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975), Lacan afirma que, na
experiência cotidiana do analista, mostram-se com muita evidência os efeitos causados
ao sujeito pela maneira como este foi desejado quando ainda não era absolutamente
nada.
Os pais modelam o sujeito na função que se intitulou simbolismo. “Isso não
quer dizer que a criança seja o princípio de um símbolo, mas que a maneira pela qual foi
instilado um modo de falar traz a marca de como o sujeito foi aceito pelos pais...
Inclusive, uma criança não desejada, em nome de um “não-sei-quê” que surge de seus
primeiros balbucios, pode vir a ser mais bem acolhida posteriormente. Isso não impede
que algo conserve a marca de que o desejo não existia antes de certo tempo”.(LACAN,
1975, p.125).
É importante que se possa aqui situar o lugar que Íris ocupava para seus pais.
Em uma frase, como assinalado anteriormente, a mãe afirmou que não se despedia da
filha por não querer frustrá-la. A partir da articulação desta fala em um discurso dirigido
ao analista da filha, a mãe retomou, naquele momento, algumas das situações que havia
trazido nas primeiras entrevistas.
Quando do nascimento de Íris, sua irmã já contava dois anos de idade, e a
família morava na Europa, no país de origem do pai. A mãe relatou que ficara muito
deprimida por estar em um lugar onde não havia criado laços afetivos. As únicas
pessoas com as quais se relacionava, além do marido e da primeira filha, eram os
sogros. Na época, a mãe já queria voltar ao Brasil, mas, em função do trabalho do
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marido, isto não era cogitado, não chegando sequer a ser assunto do qual se pudesse
falar.
Após o nascimento de Íris, a mãe sofreu uma grave hemorragia e, durante a
recuperação, chegou finalmente, segundo ela, a dizer que preferiria morrer, caso não
voltasse para o Brasil. O momento do parto e a proximidade da morte levaram-na, de
certo modo, a formular em palavras o que estava silenciado há tanto tempo. Contudo,
sobre Íris e seu nascimento, propriamente, nenhuma palavra.
Durante o ano seguinte, o pai permaneceu no Brasil tentando rearticular-se
em termos profissionais, tendo esse sido um período muito difícil em que, segundo a
mãe, ficou sozinha com a filha. Em tal situação, tendo que fazer o trabalho doméstico, a
mãe colocava Íris em um “bebê-canguru”, onde a deixava praticamente todo o dia,
envolta em um casaco de pele, que, segundo a mãe, fazia com que ambas, juntas,
parecessem “uma”.
Quando a família retornou ao Brasil, Íris já contava um ano. Logo os avós
maternos notaram que havia algum problema com a neta, tendo-se então iniciado a
procura de um tratamento.
Ao longo das entrevistas em que abordava a questão de não falar palavra
alguma ao se despedir, a mãe chegou a articular que a tentativa de “não frustrar a filha”
se devia ao fato de tanto ela como a filha já terem passado por sofrimentos demais,
especialmente em função da ausência do pai quando este estivera sozinho no Brasil.
Durante esse período, que se estendeu do nascimento ao primeiro ano de vida de Íris, a
mãe declarou que, por terem passado juntas por todo esse período tão difícil, ambas se
entendiam “perfeitamente”.
Neste sentido, a mãe sustentou que somente ao olhar a filha já saberia o que
a menina queria, de tal forma e a tal ponto que não precisaria falar. Dessa forma,
nenhuma palavra era dada à filha; não era necessário, segundo ela. Mesmo mais tarde,
já configurado o autismo, a mãe, apesar das preocupações decorrentes de tal quadro,
supunha que em seu isolamento a filha não passava por nenhum sofrimento, na medida
em que tinha tudo de que precisava.
A respeito do pai, foi dito que, em sua “preguiça”, ele não intervinha,
deixando que mãe e filha mantivessem essa ligação. Como conseqüência, Íris não
aceitava e mesmo evitava um contato com o pai.
1.1.6 Um segundo tempo do tratamento
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Em determinada sessão, Íris chegou ao consultório com vários “band-aids”
em diversas partes do corpo. Durante a sessão, tentou tirar um deles, pedindo ajuda ao
analista. Ao encontrar uma pequena marca no corpo, Íris aflitivamente tentou apertá-la,
chegando a aumentar um pouco a pequena marca ou o pequeno furo na pele. Esta
questão em torno de pequenos furos no corpo perpassou várias sessões, sendo que, em
determinado momento, Íris se aproximou do analista para tocar-lhe o rosto, em uma
pequena marca. Voltou-se, então, para uma pequena ferida no próprio corpo, mais
especificamente na perna, e disse: “Dodói!” com uma expressão de choro. Ao falar
“Dodói!”, expressou um sofrimento - uma fala e um pesar que, de uma nova maneira
com relação ao que havia ocorrido até então, era endereçada ao analista.
Este ponto se fez marcante, pois a paciente falou “dodói” de uma forma
diferente, como um endereçamento, ou ainda como um pedido de escuta, que, ao ser
acolhido pelo analista, fez com que a paciente, por uma primeira vez se aproximasse e
chegasse a se sentar no colo para um abraço em meio ainda a um choro sentido, para o
qual o analista em sua escuta deu um suporte, inclusive dizendo que iria melhorar.
Em uma sessão seguinte, quando já falava de sua ferida sem furar no real o
próprio corpo, a paciente chegou a ir até a frente do espelho para olhar uma pequena
marca no ombro, o que ainda não havia ocorrido. Até então, ao passar em frente ao
espelho, Íris o fazia de forma indiferente, sem se deter para olhar a própria imagem, o
que passou a ocorrer a partir daquele momento de uma outra forma.
Neste segundo tempo do tratamento, Íris já dirigia ao analista um olhar e
mesmo um sorriso, como sinal de reconhecimento. Foi quando a paciente passou a se
situar, ou ainda, a se posicionar de uma outra forma, na medida em que se dirigia ao
analista pronunciando palavras cujo sentido poderia ser apreendido.
Assim, ao arremessar pequenos pedaços de papel pela janela, a paciente
passou a dirigir ao analista um pedido de que este pegasse o papel guardado no armário
na sessão anterior e permanecesse junto dela durante esse “jogo”.
Em determinada sessão, ocorreu algo novo: ao ir até o armário pegar mais
um rolo de papel, Íris se voltou para o analista e, olhando-o, disse: “Vai?”. Assim, pela
primeira vez perguntava-lhe se poderia pegar mais um rolo de papel, em uma
articulação diferente da que ocorrera até então, pois, ao indagar, esperava uma resposta
verbalizada. E nessa sessão, quando o analista lhe respondeu afirmativamente, Íris
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sorriu, não só em função de passar a trabalhar com o papel, mas também de certa forma
pelo fato de tal articulação tornar-se um laço de comunicação com o Outro.
Nas sessões que se seguiram, em grande parte do tempo Íris permaneceu de
certa forma realizando seu “trabalho”, sem solicitar o analista nem procurar
aproximação. Contudo, ao desejar incluir o analista em alguma situação, já o fazia com
um claro endereçamento pelas vias do olhar e das palavras. Neste período, como foi
dito, passou a centrar sua singular atividade na sala, fazendo, inclusive, do consultório
um lugar em que, em determinados momentos da sessão, chegava a deitar-se no sofá,
aconchegando-se nas almofadas e permanecendo assim durante um certo tempo, como
se estivesse descansando, numa perceptível modificação do estado de tão grande
excitação em que se encontrara anteriormente.
A partir de então, Íris passou a uma posição diferente, na medida em que, ao
longo das sessões seguintes, começou a balbuciar durante quase todo o tempo, em
sensível contraste com a posição inicial, em que o profundo silêncio era somente
rompido por alguns sons.
Nesse período, surgiu inclusive uma outra dimensão do que se poderia
avaliar como uma certa mudança na posição de Íris, pois, além dos novos balbucios, em
alguns momentos a paciente passou a gritar, diferentemente dos sons que havia emitido
até então. Neste momento, faz-se importante assinalar os efeitos que esta nova forma de
vocalização gerou para os pais.
Desde o início do tratamento de Íris, a mãe se dispunha a prosseguir com o
tratamento da filha, levando-a as sessões e se mostrando disponível para as entrevistas,
sendo todavia, marcante que a cada início de uma entrevista com o analista reiterava a
pergunta: “O que falar? Está tudo bem”.
Com exceção do momento citado anteriormente - em que uma primeira
questão retornou para os pais quando a filha passou a falar “Ram”, ao despedir-se deles,
o que promoveu toda uma primeira modificação no lugar que Íris ocupava na dinâmica
familiar -, a mãe não trazia propriamente uma queixa, na medida em que a situação,
apesar da gravidade, estava de certa forma “estabilizada”. O pai, por sua vez, desde o
início das entrevistas apresentou a questão de que a filha não se endereçava a ele nem a
mais ninguém, somente mantendo ligação com a mãe; assim, por considerar que não
tivesse muitas oportunidades de intervir, deixava a filha a cargo da mãe.
O que parece oportuno ressaltar refere-se ao que retorna para a mãe a partir
da forma como os gritos da filha passaram a se apresentar. Era, por assim dizer, um
40
momento em que a mãe se angustiava. E em sua angústia chegava, ao longo de algumas
entrevistas com o analista, a enunciar uma questão que promoveu vários
desdobramentos posteriores: frente a esse grito, diferentemente de até então, “não sabia”
mais o que a filha queria. Este ponto se configura em uma abertura na posição da mãe,
que anteriormente dizia ser a única que não só sabia, mas “adivinhava” o que a filha
queria ou de que precisava, destinando a Íris uma “única relação”, exclusivamente com
a mãe.
Como será abordado mais à frente, o grito, nos termos em que Lacan o trata
no Seminário Problemas cruciais da psicanálise (1965), “cava” um buraco no Outro.
Este momento não foi sem conseqüências para a paciente em termos da possibilidade de
seu chamado se fazer ouvir pelo Outro. De uma situação inicial, em que o chamado à
mãe caía no vazio, como se não houvesse nenhuma “falha” onde pudesse se enganchar,
Íris caminhou para um outro momento, também já mencionado, em que seu grito passou
a constituir uma questão para a mãe - o que a posteriori configurou uma possibilidade
de que esse grito viesse a se tornar um apelo, em função de um Outro não tão completo
e consistente como se apresentava a mãe, que sabia e adivinhava as necessidades e os
desejos da filha.
Pelo fato de a mãe não mais poder dar conta de uma relação tão fechada com
a filha ou mesmo de não poder sustentar essa relação na forma como vinha sendo
mantida, surgiu a possibilidade de um novo laço entre mãe e filha, ao longo de todo um
percurso no qual a palavra passou a circular. Neste sentido, ao longo de muitas
entrevistas com o analista, a mãe de Íris foi construindo a idéia de que, a partir de então,
seria necessário dirigir uma palavra à filha, não somente para nomear a própria
ausência, mas em situações que envolviam a alimentação, os cuidados com o corpo e
mesmo a regulação dos horários do sono, na tentativa de chegar a um “acordo”. Ou seja:
frente ao grito cujo significado não tinha mais condições de adivinhar totalmente, a mãe
passou a falar com Íris sobre o que poderia estar ocorrendo com ela.
Ainda com relação a este momento surge para os pais uma outra questão,
pois para eles Íris era “praticamente” indiferente a qualquer outra criança que
permanecesse próxima a ela. Contudo, indagada sobre os motivos que estariam levando
a filha a adotar uma nova atitude, em função de seu grito, a mãe se perguntou se seria
possível que a partir de então Íris estivesse “imitando” algum colega da escola que
freqüentava. Ao dizê-lo, deu-se conta de ter percebido que a filha já se mantinha
próxima de uma outra criança. E isto até então lhe parecia impensável.
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1.1.7 Uma nova articulação
Em determinada sessão, Íris aproximou-se do analista para dizer-lhe,
claramente endereçando-lhe a mensagem: “Ábua!”. Ao fazê-lo, chegou a repetir
“ábua!”, bem próximo do rosto do analista, deixando evidente a intenção em se fazer
compreender. Ao escutar esta fala, o analista respondeu: “Ábua?! Ah! sim, você está
querendo me dizer que você quer beber água?”. Como resposta, Íris se dirigiu à porta,
esperando que o analista a acompanhasse até o local onde ficava o bebedouro, o que já
apontava para uma outra posição da paciente, em que já era possível fazer um certo laço
com o Outro, nestes termos estabelecendo algo da ordem de uma comunicação. Isto,
como efeito, trazia uma outra articulação para Íris como um sujeito, envolvendo um
grande apaziguamento da tão intensa excitação que a invadia e afetava seu corpo
anteriormente, de forma tão avassaladora.
Cabe aqui uma ressalva para indicar que, na Conferência em Genebra sobre
o sintoma (1975), Lacan assinala que, após anos de experiência, Freud escreveu os Três
Ensaios sobre a Sexualidade (FREUD, 1905), na tentativa de construir alguma coisa que
seria a escansão regular do desenvolvimento para cada criança. Tal escansão está
intimamente ligada, diz Lacan, a certos “patterns” da linguagem. Desta forma, as assim
chamadas fases oral, anal e mesmo a urinária estão muito profundamente ligadas à
aquisição da linguagem.
Nesta via, fez-se marcante o fato de, em determinado momento, a paciente
ter passado a utilizar o banheiro para defecar, pois até então procurava o lavatório só
para urinar. Anteriormente, acomodava-se em algum canto do cômodo onde estivesse e
defecava. Dessa forma, a passagem para a utilização do banheiro se articulou como
efeito desse momento em que já se tornava possível para a paciente dirigir-se ao analista
e, a partir de então, exprimir-se com uma palavra específica: “Cô!”, assim como havia
estabelecido outro significante para beber água. Passou, assim, a dizer: ‘Cô!” e “Sissi”
quando ia ao banheiro, articulação esta construída como efeito do trabalho realizado
pela paciente ao longo de seu tratamento.
Assim, demarcou-se este como um terceiro tempo do tratamento, no qual,
em seus endereçamentos ao analista, por meio de palavras, a paciente passou a
estabelecer, de forma bem singular, um certo laço de comunicação com o Outro.
Neste período surgiu algo que a posteriori foi possível assinalar como uma
nova articulação em termos do “trabalho’ que a paciente vinha realizando ao longo das
42
sessões. Numa delas, Íris, como num jogo, “empurrou” o analista para fora da sala do
consultório. Ao fazê-lo, fechou a porta e permaneceu do lado de dentro, tendo sido
possível nesse instante escutar suas gargalhadas. Passado um pequeno intervalo, a
paciente voltou a abrir a porta para conferir se o analista ainda estava lá. E o fez com
um sorriso, voltando a fechar a porta e a dar novas gargalhadas, o que não havia
ocorrido até então.
Este novo jogo articulado pela paciente fez surgir uma nova dimensão, pois,
a partir do momento em que Íris fez o analista desaparecer e reaparecer, este jogo,
marcadamente com o cunho de uma presença em um fundo de ausência, além de seu
caráter simbólico, envolvia uma satisfação. A articulação desse jogo apontava
claramente para o estatuto de um brincar, bem como para uma outra posição subjetiva
desta paciente.
1.1.8 Um atravessamento do lugar que o sujeito ocupava para o Outro
Neste terceiro tempo do tratamento, quando já se posicionava de forma
diferente, como foi mencionado, Íris passou a falar algumas palavras com um certo
endereçamento ao Outro, o que, de alguma forma, constituiu uma nova dimensão nos
efeitos de seu tratamento para seus pais, o que se abordará a seguir.
Após todo o período de modificações em termos da posição subjetiva de Íris,
a mãe disse ao analista que a filha, de forma inusitada, inesperada, havia em seus termos
“descoberto o poder da comunicação!”. A mãe afirmou que “nunca” esperara que sua
filha - como agora passava a ocorrer - viesse a entender o que os outros lhe falassem.
Indicando a constatação de uma mudança, a mãe acrescentou que, anteriormente,
achava que, quando alguém se dirigia à filha, esta só escutava um “blá-blá-blá” sem
sentido. A surpresa da mãe refere-se ao já citado fato de que, antes, apenas ela, a mãe,
entendia o que se passava com a filha. E isto prescindia de qualquer palavra: a mãe
simplesmente sabia. Com isto queria significar que somente com a mãe Íris tinha
alguma ligação: com ela, e com mais ninguém.
Conforme assinalado, em um segundo momento a mãe chegou a afirmar que,
em muitas situações, já não sabia o que a filha queria, deste modo indicando que algo
passou a lhe escapar, ou seja: a pretensa completude entre mãe e filha já não se
sustentaria mais. Isto abriu uma questão para a mãe, pois, neste percurso, por sua vez, a
43
filha não mais respondia de forma a dar consistência ao que a mãe sabia ou adivinhava
sobre ela. Ao longo de algumas entrevistas com o analista, a mãe concluiu de certa
forma que, a partir de então, nem tudo ela saberia e que seria necessário perguntar a Íris.
E, logicamente, esperar que, pela via da fala, fosse possível uma “outra forma” de laço
entre elas.
Este novo laço se evidenciou de certo modo em uma sessão em que, ao
deixar Íris no consultório, a mãe, ainda na porta, disse-lhe que iria até a lanchonete
próxima e voltaria para buscá-la. Frente a esta fala, Íris, com uma expressão aflita, disse
à mãe: “casa?!”, iniciando um choro intenso, ao que a mãe tentou explicar que não iria
para casa, mas somente até a esquina. Contudo, em face da atitude de Íris, que não
parava de chorar, a mãe elaborou a seguinte interpretação: “Acho que ela não quer que
eu vá; acho melhor esperar”. Ao escutar o que disse a mãe, a paciente acalmou-se e
entrou no consultório.
Diferentemente de um primeiro momento - em que ao chamado da filha
(“Mamãe!”) era impossível para a mãe ocupar o lugar de um Outro que se dispusesse a
escutar um apelo -, agora não só Íris faz entender ao Outro sua carência, mas a mãe, por
sua vez, além de escutá-la, interpreta seu choro, lidando com esta situação de tal forma
que se torna possível um “acordo”.
A mudança no posicionamento de Íris produziu efeitos em seus pais, uma
vez que estes - não sem à custa de muito trabalho ao longo das entrevistas com o
analista da paciente -, passaram a acolher a filha como um sujeito a quem deveriam
dirigir palavras. Com isso, se desestabilizou ou ainda, se modificou o lugar que essa
paciente, com seu alheamento, era chamada a dar consistência, na dinâmica familiar.
Contudo, um certo limite, na possibilidade de mudança do lugar
anteriormente ocupado por esta filha, evidencia-se para os pais, na medida em que,
apesar dos efeitos que surgiram ao longo do tratamento de Íris, os pais insistiam na
tentativa de “ensinar-lhe” uma linguagem de sinais.
Dessa forma, quando Íris, em determinado momento, chegou a esboçar um
gesto, unindo as mãos, a mãe repetiu insistentemente a palavra “casa”, na tentativa de
que a filha a pronunciasse em seguida. No momento em que um gesto, colocado como
um significante, podia remeter a vários outros significantes, fazendo surgir como efeito
um sujeito (segundo a concepção lacaniana do significante, a ser abordada
oportunamente), os pais (como um primeiro campo do Outro que se apresenta ao
44
sujeito) procuraram fixar o significante ao significado, como num sistema fechado.
Gesto e palavra, assim unidos, deixavam poucas condições para o advento do sujeito.
Cabia, contudo, ao analista em seu desejo - desejo do analista - sustentar
uma “aposta” na possibilidade do advento do sujeito como efeito do “trabalho” que a
paciente vinha realizando ao longo das sessões, como ocorrera anteriormente.
1.2 FRAGMENTOS DE UM CASO CLÍNICO – PAULO
Na primeira sessão, antecedida de um período de entrevistas com os pais,
Paulo, um menino de quatro anos, ao entrar no consultório, olhou rapidamente à sua
volta, para então se dirigir ao local onde ficava o aparelho de ar condicionado. Durante
algum tempo, ali permaneceu entretido com as ligações dos botões, com o abrir-e-fechar
das portinholas. Parecia interessado, mas também fixado nos mecanismos que
envolviam o funcionamento do aparelho.
Nos momentos em que se afastava do aparelho, era tomado de uma intensa
agitação, correndo de um lado para o outro, circulando pela sala. Em uma dessas
corridas, passou perto do analista, chegando depois a esbarrar nele. O analista então
falou algo com ele, pronunciou seu nome. E pela primeira vez, muito fugazmente, o
menino lhe dirigiu um olhar.
1.2.1 Uma primeira palavra: “Pedra”
Em uma dessas corridas pela sala, ocorreu uma nova situação, pois dessa
vez Paulo corria como se pensasse em se aproximar para, surpreendentemente, segurar o
anel que estava na mão do analista. Ao segurar o anel, ele o fez de forma bastante firme
e, olhando detidamente para o analista, falou: “Pedra”. A seguir, puxou o anel, tentando
retirá-lo. Tendo conseguido seu intento, passou a manter o anel guardado na mão.
Em determinado momento, retornou ao condicionador de ar, mas desta vez
para colocar a “pedra” dentro do aparelho e retirá-la. Aproximou-se então, pela primeira
vez, de um armário com brinquedos cuja porta estava entreaberta. Não pegou
simplesmente um brinquedo; escolheu um especialmente: uma caixa com uma
portinhola transparente, que permitia ver o interior. Feito isso, sentou-se, o que não
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havia ocorrido até então, e passou a colocar o anel dentro da caixa e a retirá-lo, sem,
contudo, falar qualquer palavra ou emitir um som sequer.
Foi então que, em determinado momento, Paulo deixou o objeto (o anel em
sua mão) cair. Chegando ao término da sessão, o menino foi caminhando até a porta,
mantendo o anel na mão. Quando o analista falou com ele sobre o objeto, Paulo o
segurou com mais força e o escondeu debaixo da camisa, continuando a andar bem
‘devagarinho’ até sair.
Tal acontecimento sinalizou que, em meio a um posicionamento inicial um
tanto indiferente e disperso, Paulo parecia ter-se deparado com alguma coisa que o tinha
interessado, algo que queria decididamente manter consigo, o que levou o analista a
considerar que a atitude do paciente apontava para a possibilidade de ele vir a falar em
um outro momento. E assim, Paulo partiu ao final dessa primeira sessão, levando o que
nomeou como “Pedra”.
1.2.2 Sobre o lugar do sujeito no fantasma do Outro
Na Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975), já citada, Lacan
destacou a importância, para o sujeito, da maneira como foi desejado. Certamente, isso
apresenta toda sorte de variações e aventuras. Contudo, uma criança não desejada, em
nome de um “não-sei-quê” que surge de seus primeiros balbucios, pode vir a ser mais
bem acolhida mais tarde. No entanto, isso não impede que algo conserve a marca do
fato de o desejo não ter existido antes de certo tempo.
Seguindo essa linha de pensamento, serão destacados alguns fragmentos do
discurso dos pais de Paulo, que indicaram de alguma forma o lugar que esse filho viria a
ocupar no desejo do Outro. Segundo o pai, a criança significou para a mãe a realização
do sonho de Cinderela, já que era muito pobre e ficou grávida do primeiro namorado,
que veio a ser seu marido, após poucos meses de namoro. Já para a mãe de Paulo, a
gravidez a fez remontar ao fato de ter ficado órfã quando criança; afirmou não ter tido
mãe, não propriamente pelo abandono e posterior morte da genitora, mas por só se
lembrar da mãe batendo nela.
De uma gravidez conturbada, passando por um parto difícil, a mãe de Paulo
disse que, ao se deparar com o filho nos braços, não sabia o que fazer com ele. Sentiu-se
tomada por um estranhamento em relação à criança, não suportando seu choro. Afirmou
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ainda que, no primeiro mês de vida do filho, quando permaneceu sozinha, pois o marido
estava fora, tinha uma única intenção: a de que o bebê dormisse o tempo todo. Por fim,
que o filho permanecesse ali, mas ausente.
O pai afirmou ser “um filho de laboratório”, pois nascera como resultado de
um tratamento hormonal feito para o nascimento de um varão. Com relação ao próprio
filho, declarou que, mesmo à distância, Paulo sentia quando algo de mau havia
acontecido a ele, pai. Ao chegar a casa após um dia de trabalho sob tensão, já sabia que
o filho estaria agitado e com o estado geral agravado. Nesse momento o pai disse que
não era preciso falar nada com o filho, situando-o como um “puro reflexo” dele próprio,
o pai.
Após o nascimento de Paulo, o casal fora morar com o avô paterno, por
motivos financeiros. Isso trouxe conseqüências, na medida em que o avô intervinha em
várias situações, inclusive impedindo que a mãe amamentasse o filho, argumentando
que, pelo fato de a mãe ter sido pobre e desnutrida, seu leite não conteria os nutrientes
necessários. Dessa forma, o avô destituía os pais, sem que eles na época tivessem
condições de se posicionar.
Quando Paulo contava com um ano, os pais assinalaram que o filho já
falava algumas palavras. Contudo, após o nascimento da irmã, quando ele tinha dois
anos, parece ter-se rompido, de certa forma, o que havia-se estabelecido em termos de
um laço com o Outro. A partir de então, Paulo passou a não mais se interessar por seus
brinquedos, a expressar uma agitação motora praticamente ininterrupta, deixando por
fim de falar de forma articulada com um endereçamento ao Outro, restando apenas
algumas palavras.
Um ponto que convém ressaltar refere-se a um ato da mãe, quando Paulo
tinha três anos. Durante uma das viagens do pai, ela precipitou uma mudança para o
apartamento em que viriam a morar, “forçando”, como disse, um afastamento do sogro.
Essa mudança ocorreu, contudo, para um apartamento que ainda estava em obras. A
partir de então, segundo a mãe, algo ocorreu com Paulo, que parecia ter retomado
alguma “ligação com o mundo”, visto que novamente se ligava em alguns objetos – o
que havia-se perdido anteriormente. Tais objetos eram bem característicos do lugar onde
passaram a morar (havia uma obra em andamento), ou seja: canos, pedaços de madeira,
caixas e pedras.
No momento em que o paciente chegou para a primeira sessão, quando
contava com aproximadamente cinco anos, os pais não o levavam para comprar
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brinquedos, pois estes não o interessavam. Ao andarem com ele na rua, Paulo os
conduzia invariavelmente para locais onde se encontravam materiais de construção.
1.2.3 Materiais de construção
Na segunda sessão, Paulo retornou, trazendo a “pedra”. Naquele momento,
ao adentrar a sala, ele o fez segurando algumas caixas, umas com as mãos, outras
debaixo do braço. Conforme ia caminhando, as caixas iam caindo; por fim, ao deixá-las
no chão, ele se dirigiu ao analista para colocar-lhe o anel. Nesse momento o analista lhe
diz: “Ah! a ‘pedra’?!”.
Em um primeiro momento dessa sessão, Paulo se manteve circulando pela
sala, com grande agitação, chegando a subir na janela, como se fosse precipitar-se. No
exato momento, o analista interveio, segurando seu corpo, para dizer: “Não! Espere, não
saia pela janela”. A seguir, Paulo passou a abrir e a fechar a porta do consultório, saindo
da sala e retornando, até tomar novamente o anel da mão do analista, para então, de
certa forma tranqüilizado, sentar-se e retomar o trabalho de colocar e tirar o objeto,
agora utilizando uma das caixas que havia trazido. Ao término dessa sessão, o paciente
recolheu suas caixas, sendo que, ao sair, deixou uma delas cair. Após alguns instantes,
retornou à sala aflito, como se a tivesse esquecido e, dirigindo-se ao analista, falou com
a entonação de uma pergunta: “caxa?”. Contudo, ao achar a caixa, jogou-a com um
gesto brusco dentro do armário, embora fechasse as portas deste como se a guardasse.
Depois disso, saiu apressadamente.
1.2.4 Sobre a possibilidade de um tratamento
Para o analista, naquele momento se apresentava uma pergunta sobre a
possibilidade de tratamento. Seguindo, porém, a direção de estar presente sem que tal
presença se colocasse como intrusiva, foi justamente em torno dos objetos que
passaram, se assim se pode dizer, a “circular”, que se abriu uma possibilidade para o
surgimento de uma palavra.
Nesta via, algo foi-se operando em função de um trabalho em torno dos
objetos que o paciente trazia para a sessão, daqueles que deixava ali e de outros que
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queria levar consigo. Dentre os que queria levar, estavam em questão, num primeiro
momento, objetos que o analista portava e que poderiam ser destacados do corpo do
Outro - objetos que, ao serem “extraídos”, faziam falta ao Outro. De início o anel,
passando como um desdobramento à pulseira e depois ao relógio.
Poder-se-ia considerar que esses objetos “extraídos” do analista - naquele
momento no lugar do Outro - apontavam para uma tentativa do paciente em promover
uma negativação, ou ainda fazer valer um “furo” no Outro. Como efeito do “trabalho”
deste paciente ao longo das sessões, criou-se de certa forma um circuito de objetos que
passaram a se substituir uns aos outros. Se de início Paulo fez valer uma “extração” de
um objeto do Outro, isto ocorreu para, em um segundo momento, ser ele próprio a ceder
um de seus objetos privilegiados: a caixa, deixando-a guardada no armário até a
próxima sessão. Assim, alguns objetos eram guardados para serem retomados nas
sessões seguintes, enquanto outros eram simplesmente deixados para trás como algo da
ordem de um excesso, deixado como resto.
É importante assinalar que, na abordagem do autismo, alguns autores, como
Francis Tustin, destacaram o estatuto do objeto autístico como sendo aquele do qual,
para a criança autista, é impossível se separar. No caso de uma substituição desse
primeiro objeto, é possível que este seja modificado; contudo, retorna invariavelmente o
caráter de uma inabalável fixidez.
No percurso do tratamento de Paulo, pôde-se constatar que o “trabalho” que
o paciente começou a realizar ao longo das sessões - na medida em que não só deixava,
mas também “cedia” alguns de seus objetos para reencontrá-los em uma sessão
seguinte-, foi-se operando na via de que o paciente passou a emitir muito mais sons e a
articular novas palavras, as quais surgiram a princípio em torno do trabalho com esses
objetos, inclusive no sentido de nomear alguns deles: “caxa”, “pau”, “pedra”, etc.
De início, como abordado anteriormente, um dos poucos momentos em que
o paciente em sua intensa agitação se detinha em alguma coisa era para se dedicar a algo
da ordem de um “jogo”, de fazer sumir e aparecer o objeto, como a “pedra” dentro da
caixa transparente e fora dela. Contudo, no tempo das primeiras sessões, ao fazê-lo,
Paulo não chegava a emitir nenhum som. Somente em um segundo momento, ao passar
à realização de um jogo em torno da presença e da ausência dos objetos que deixava no
armário do consultório, é que se abriu um novo tempo, em que o paciente passou a falar.
É importante destacar que tal jogo - um trabalho do paciente na sessão -
estaria na via do que disse Lacan com relação à possibilidade de instauração do
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processo de simbolização. Desta forma, pelos primeiros jogos que a criança articula, o
objeto passa para o plano da linguagem. Neste sentido, como efeito desses jogos que
promovem novas articulações, é que “o símbolo emerge e se torna mais importante que
o objeto” (LACAN, 1953).
É importante destacar que tal jogo - um trabalho do paciente na sessão -
estaria na via do que disse Lacan com relação à possibilidade de instauração do
processo de simbolização. Neste sentido, como efeito desses primeiros jogos que
promovem novas articulações, o objeto passa para o plano da linguagem: “o símbolo
emerge e se torna mais importante que o objeto” (LACAN, 1953).
1.2.5 Na via da articulação de um apelo verbalizado
Ao longo do primeiro momento do tratamento, Paulo freqüentemente fazia
com que sua mãe permanecesse com ele no consultório. De alguma forma, isso parecia
ter uma função, pois chegava a interromper sua grande agitação para escutar a mãe,
quando esta dizia algo sobre ele ao analista. A partir desta situação a palavra passou de
certa forma a circular pela sala, pois a mãe se deu conta do olhar e de algo da ordem do
interesse do filho quando ela falava sobre ele. Surgiu então para ela uma questão sobre o
fato de Paulo praticamente não falar, ou falar muito pouco, por conta do pouco ou do
nada que ocorria no dia-a-dia da casa ser dirigido a ele, o que não era sem
conseqüências.
Em uma determinada sessão, quando Paulo já falava mais palavras,
inclusive com um endereçamento ao Outro, chegou a pronunciar: “Aba!”, dirigindo-se à
mãe que ainda estava na sala. Como esta não o escutou de início, o menino repetiu, mas
ainda assim a mãe não decifrou o que ele queria dizer. Então, Paulo se aproximou do
analista e, como se pedisse algo da ordem de uma mediação, disse: “Ábua”. Só então foi
possível para a mãe escutar o que ele pedia; só então ela o levou até o bebedouro para
que ele bebesse água.
Ao longo dessa primeira etapa do tratamento, o analista, aos poucos, dirigiu
ao paciente uma fala, indagando-lhe se ele concordaria que a mãe o esperasse fora da
sala. E as sessões foram transcorrendo, de tal forma que, embora a mãe tenha
permanecido na sala por mais algum tempo, ele aceitou que ela se separasse dele, como
ela própria disse: “um pouquinho”.
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Após algumas sessões, Paulo falou claramente: “cocô!”. A mãe se levantou
rapidamente para levá-lo ao banheiro. Mas então o paciente fez um gesto para que ela
ficasse sentada e, tomando a mão do analista, pediu que ela o acompanhasse. Ao
retornar à sala, a mãe estava esperando-o à porta, quando então ele falou para a mãe:
“lá!”, indicando que ela deveria ficar na sala de espera.
A partir de então, Paulo passou a entrar sozinho no consultório, fato que
marcou um outro tempo do tratamento, quando então ele se autorizou a constituir aquele
espaço como seu - particular.
Ao chegar para uma das sessões seguintes, Paulo chamou o analista pelo
nome. Havia trazido uma de suas caixas com a tampa fechada e, dirigindo-se ao
analista, falou: “Ajuda!”, endereçando-lhe um pedido para que o auxiliasse na tentativa
de abrir a caixa. Neste momento, e na medida em que passou a ter maiores condições de
articular uma fala, o paciente o fez endereçando essa fala ao Outro, na via de um apelo.
Segundo Lacan (1953, p.), a articulação de algo da ordem de um apelo verbalizado pelo
sujeito não é sem conseqüências, na medida em que este só se articula no momento
lógico em que o Outro já conta para o sujeito como um Outro suposto escutar e a
responder ao chamado do sujeito em seu desamparo4.
1.2.6 Um segundo momento
Nesta via, pode-se considerar que uma outra possibilidade para o tratamento
do paciente começou a ocorrer quando este, para além das circulações que realizava
com os objetos, passou a fazer “construções” com os que levava para a sessão.
Certa vez, Paulo levou algumas ferramentas de plástico, de brinquedo. Tirou
com um certo esforço todas as almofadas do sofá da sala do consultório para, com suas
“ferramentas”, martelar todos os pregos que encontrou na estrutura de madeira. Feito
isso, decidiu colocar, sobre a base de madeira do sofá, as cadeiras, o tapete e os quadros,
promovendo toda uma reviravolta na sala, dispondo-os cuidadosamente, uns em cima
dos outros, para então dirigir-se ao analista e, apontando para o que tinha realizado,
dizer : “Obra!”.
Foi marcante que, após essa sessão, Paulo tenha passado a levar não só os
objetos que anteriormente fixavam o seu interesse, como também as pedras e as caixas
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e, mais do que isso, tenha sido capaz de associar esses objetos a outros como as
ferramentas, os carrinhos e os bonecos. Contudo, durante essa fase do tratamento, se se
deparasse com qualquer falha, como a quebra de uma mínima parte de qualquer objeto,
o paciente se afligia intensamente, desfazendo, quebrando e jogando para o alto o que já
havia construído.
Em determinada sessão, ele retomou a caixa que havia trabalhado
anteriormente, para colocar nela um dos três bonecos que havia levado. Então se dirigiu
ao analista para dizer que tal caixa estava cheia d água e encenou um pedido de socorro
por parte do boneco (o menor deles) que estava no interior da caixa. A seguir, fez com
que uma boneca, bem maior do que o primeiro boneco, tentasse (subindo o que seria
uma escada) tirar, sem conseguir, o boneco pequeno daquela situação. Surgiu então um
terceiro boneco, ainda maior, que girou um botão da caixa, sendo que nesse momento o
paciente se levantou para pegar a chave da porta do consultório e dizer : “esta chave !”.
E, girando essa chave no local onde ficava o botão de seu brinquedo, Paulo fez com que
o terceiro boneco, juntamente com a boneca, salvassem o pequeno de se afogar. Ao que,
para concluir, o paciente levou o bonequinho a apertar a mão do terceiro dizendo:
“Obrigado, obrigado, amigo!”.
Assim, nessa fase do tratamento, o paciente passou a ter, aos poucos,
maiores condições de articular em uma frase o sujeito, o verbo e o objeto. Dessa vez não
mais referindo-se tanto a si próprio como um outro, como dizia: “Paulo quer água”, mas
passando a articular em sua fala o pronome “eu”.
1.2.7 Efeitos do tratamento para os pais
Retomando a Conferência em Genebra (1975), na qual Lacan afirmou que,
em nome de um “não-sei-quê” que surge dos primeiros balbucios, ou ainda de algo que
surge quando a criança começa a falar, esta pode vir a ser mais bem acolhida. Nesse
sentido, é oportuno fazerem-se algumas pontuações em termos do que surge para os pais
a partir do momento em que o filho passa a se endereçar a eles, de um outro lugar, ou
seja, tal como um sujeito que fala.
4 Como se abordará no Capítulo II, a respeito da experiência de satisfação teorizada por Freud (1895).
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Essa questão se torna decisiva quando o paciente passa a dizer “não!” para a
mãe. Isso passa a ocorrer principalmente com relação à alimentação, quando passa a
dizer “não!”, que não quer mais comida, e a mãe por fim o escuta. Assim, ela começa a
aceitar de alguma forma uma barra, uma hiância na relação com o filho. Esse momento
se torna crucial em função do que retorna para a mãe, na via de uma possibilidade de
abertura em relação ao lugar que o filho ocupava em seu fantasma. Uma abertura que
gera conseqüências para o paciente.
De alguma forma tornou-se possível para a mãe articular em um discurso,
em uma entrevista que solicitou à analista, algo não dito anteriormente. Havia ficado
sob seus cuidados um irmão que sofria de doença degenerativa dos músculos e que veio
a falecer em seus braços. Naquele momento da entrevista, retornou para ela que algo
havia-se “congelado” em sua relação com o filho, pois ela fora tomada de grande
estranhamento quando este nasceu, não suportando que ele chorasse, como foi dito,
virando-o no berço contra a parede para que não tivesse que se confrontar com seu
olhar. Tinha muito medo de que se repetisse com o filho o que havia vivido com o
irmão. Falou isso com grande sofrimento, ao pensar nas conseqüências desse fato para o
filho. Contudo, afirmou ser este um outro momento, em que já distingue a problemática
do filho da do irmão. E que agora, finalmente, podia dizer que era mãe!
Na medida em que Paulo passou a articular uma fala cada vez mais
elaborada, o pai declarou que o filho passou a questioná-lo ao perceber que alguma
situação o deixava nervoso. Como efeito, o pai não tinha como deixar de responder, e o
filho se tranqüilizava com a resposta do pai, atravessando de certa forma o lugar em que
o pai o situava como um “puro reflexo”.
Nesse momento surgiram preocupações dos pais com relação à filha, o que
não havia sido explicitado até então, pois, em função de uma mudança na posição de
Paulo, que agora inclusive fazia questão de se posicionar perante a irmã de forma
diferente, algo retornou também para a filha, em termos de uma nova dinâmica familiar.
Operava-se toda uma modificação para este sujeito em sua forma de estar no
mundo. Quando iniciou o tratamento, Paulo não apresentava condições de permanecer
na escola. Sua grande defasagem em termos de aprendizagem e seu grande isolamento
impossibilitavam a tentativa de estar no ambiente de uma escola regular, na medida em
que permanecia isolado e mesmo segregado com relação às outras crianças de sua faixa
etária. De uma recusa, portanto, a permanecer na escola, passou à inserção em outra
escola, onde iniciou o processo de alfabetização.
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1.2.8 Um terceiro tempo do tratamento
Nesse terceiro tempo do tratamento, ocorreu um marcante apaziguamento
no estado de Paulo: passou a deitar-se no sofá do consultório, permanecendo em
silêncio por algum tempo, até decidir falar algo. Foi, inclusive, um momento em que
articulou um endereçamento ao analista com um outro cunho. Em determinada sessão,
chegou entristecido e dirigiu ao analista algo da ordem de uma queixa: Disse que a mãe
é má, que é brava, que bate nele. Ao falar isto, aproximou-se do analista buscando
acolhimento para dizer que tinha “Um dodói na boca” e, aflito, expressando um
sofrimento: “não consigo falar!”.
Em determinado momento passou toda uma sessão deitado no sofá, sem
nada dizer. Em alguns momentos segurava e balançava um dente. Após o término da
sessão, voltou até a sala, agora com o dente na mão, para dizer ao analista, esboçando
um sorriso: “Caiu!”. Na sessão seguinte, levou um recorte com a gravura de um dente.
Rabiscou todo o desenho, enquanto falava do dente que caíra, contudo, dizendo que um
maior iria nascer no lugar. Pode-se considerar que essa fala apontaria para alguma
possibilidade de o sujeito promover uma substituição, levando-se em conta que
anteriormente, em muitos momentos, Paulo chegava a ter graves crises ao se deparar
com uma falha, tomando-a como uma destruição. Nesta via, ao finalizar “o trabalho” de
riscar o desenho do dente, dobrou o papel várias vezes, reduzindo-lhe o tamanho até não
ser mais possível a dobra, para então deixá-lo, no fundo da gaveta, como um resto.
Suas “construções” pareciam tomar um novo cunho. Em determinada
sessão, levou um ralo de metal e, colocando-o em um prego na estrutura de madeira do
sofá, passou a girá-lo, contudo, em silêncio. Permaneceu dessa forma durante um longo
tempo até que, em determinado momento, a peça caiu, promovendo uma
descontinuidade no que o paciente vinha fazendo. Nesse ponto, o analista disse do
término da sessão. O paciente se dirigiu-se ao analista, chamando-o a se aproximar do
lugar aonde estava realizando seu “trabalho” para então pronunciar a única fala que
articulou na sessão: “Aqui! Um cata-vento!”
Para finalizar a apresentação destes fragmentos do caso clínico de Paulo,
vale acrescentar breve relato de uma das últimas sessões. O paciente trouxe uma caixa
de papelão com uma abertura no centro, afirmando ser uma lixeira - uma “lixeira de
brinquedo”, onde ele, se quisesse jogar algo fora, poderia pegar de volta, diferentemente
de uma lixeira “de verdade”, onde o que jogasse estaria “perdido para sempre”. A partir
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disto, passou a procurar no armário do consultório vários papéis e brinquedos e, ao
“organizá-los de certa forma em uma caixa, fazia com que um mínimo pedaço do papel
ou alguma parte destacável de algum objeto fosse para o lixo. Concentrou-se nesse
trabalho por todo o tempo da sessão e ao longo de várias outras, chegando em
determinado momento a dizer: “Uff! Tenho muito trabalho a fazer!”
Pinçados alguns fragmentos significativos dos dois casos clínicos aqui
apresentados, proceder-se-á, no Capítulo II, ao estudo de um primeiro momento da
constituição do sujeito, a denominada “experiência de satisfação”, a partir do Projeto,
de Sigmund Freud (1895). Nesta via, será abordada uma primeira questão, que se
formula nesta pesquisa, a respeito do autismo, pois cabe indagar-se, a partir das
questões suscitadas pela clínica, se a grave problemática apresentada no autismo não se
configuraria, inclusive, em uma resposta do infans frente a um radical desencontro com
o primeiro Outro, cuja função primordial para a possibilidade de estruturação do
psiquismo Freud descreve no texto que será abordado a seguir.
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CAPÍTULO II
Então para que serve a linguagem? Se ela não é feita para significar as coisas expressamente, quero dizer, se esta não é em absoluto a sua primeira destinação, e se a comunicação tampouco o é? Pois bem, é simples e é capital: ela faz o sujeito. (LACAN, 1975).
Este Capítulo compreende uma releitura do Projeto (1895), de Freud, com o
objetivo de abordar mais detidamente a “experiência de satisfação” como um momento
crucial para o ingresso do sujeito na linguagem. Ao pontuar este texto, inclusive,
intenta-se circunscrever, mesmo que parcialmente, os postulados que levaram o autor,
naquele momento de sua elaboração teórica, a formular o caráter radical da estruturação
do psiquismo como tributária do Outro.
O Projeto para uma psicologia científica (FREUD, 1895/1985) é um
manuscrito só publicado postumamente, em 1950. Nele Freud procede a uma tentativa
de formulação hipotética da estrutura psíquica, que se apresenta com um caráter único.
Texto de difícil leitura, apresenta em uma linguagem ainda em termos neuronais,
algumas das formulações fundamentais da psicanálise, elaboradas pelo autor ao longo
de sua obra.
A partir da leitura que Jacques Lacan (1954/55) faz do Projeto (Entwurf),
torna-se possível situar nesse texto, entre descontinuidades e rupturas, a problemática já
delineada por Freud: a incidência da linguagem na estruturação do aparelho psíquico.
Na abordagem desse texto, que aponta para os primeiros momentos da
elaboração da teoria freudiana, interessa analisar, em função desta pesquisa sobre o
autismo, as indicações dadas, naquele momento, por Freud sobre as condições de
ingresso do sujeito na linguagem.
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2.1 A QUESTÃO DA QUANTIDADE
Em 1895, Freud inicia o texto mencionado baseando-o em duas idéias
principais: a) A noção de quantidade, Q5, definida como o que distingue a atividade do
repouso; e b) A concepção dos neurônios como partículas materiais que constituem o
sistema nervoso.
Freud vincula o sistema nervoso, como herdeiro da irritabilidade geral do
protoplasma, com a superfície externa irritável de um organismo elementar ao receber
estímulos ou excitações provenientes do mundo exterior (luz, calor, frio,etc.).
Desta forma, o sistema nervoso, ao realizar uma função que Freud designa
como primária, trataria de lidar com as Qs provenientes do exterior, por meio de sua
descarga. Procedendo assim, segundo o modelo do arco reflexo6, o aparelho é mantido
livre do estímulo.
A partir desta primeira articulação, Freud estabelece o princípio básico de
funcionamento do aparelho psíquico, em um estágio primitivo, a saber: o princípio de
inércia. Sua função consiste em neutralizar a recepção de Q, através de sua descarga,
reduzindo a zero a energia no interior do aparelho.
Todavia, aqui existe espaço para o desenvolvimento de uma função
secundária do sistema nervoso, pois, entre as vias de descarga de Qn, são preferidas e
conservadas aquelas que envolvem a cessação do estímulo, constituindo o que Freud
denomina a “fuga do estímulo”.
Como assinala o autor, à proporção que aumenta a complexidade do interior
do organismo, o sistema nervoso recebe estímulos não só do mundo externo, mas
também do próprio elemento somático - os estímulos endógenos, que também têm de
ser descarregados. Esses estímulos criam as grandes necessidades de vida (Not des
Lebens): fome, respiração e sexualidade. Destes, diferentemente dos estímulos externos,
o organismo não pode esquivar-se, não sendo possível empregar a Q recebida para
realizar a fuga do estímulo. Assim, sujeito a condições que podem ser descritas como as
grandes “exigências de vida”, o aparelho psíquico é levado a abandonar sua tendência
inicial à inércia. Portanto, é necessário tolerar uma certa carga de energia para satisfazer
5 Q são as quantidades de energia que, provenientes do mundo exterior (Q), ou do interior do organismo (Qn), sempre se apresentam como exteriores ao aparelho psíquico. 6 O movimento reflexo, neste sentido, refere-se a um sistema nervoso primário que se vale da Qn adquirida, em função dos estímulos externos recebidos, para descarregá-la pelas vias correspondentes, de forma mais curta.
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essas exigências primordiais, que demandam um esforço, ou seja, um dispêndio maior
de energia para uma ação específica (spezifische Aktion), que, ao promover uma
mudança no mundo externo, como a alimentação, por exemplo, satisfaz a urgência da
nutrição, assegurando a sobrevida.
Nesta via, o aparelho passa a evitar a descarga total. No entanto, diz Freud, a
maneira como o sistema psíquico o realiza demonstra que a mesma tendência original à
inércia persiste, embora modificada pelo empenho em manter a Q no “nível mais baixo”
(FREUD, 1895) possível e em se resguardar contra qualquer aumento dessa mesma
energia.
2.2. A TEORIA DO NEURÔNIO
No modelo de aparelho psíquico descrito no Projeto, Freud refere-se à idéia
de que o sistema nervoso compõe-se de neurônios que estão em contato recíproco. Entre
eles acham-se estabelecidas determinadas “vias de condução”, no sentido de que as
excitações são captadas pelas extremidades dos neurônios (dendritos) e descarregadas
por cilindros axiais (axônios).
Dessa forma, para Freud o aparelho psíquico consiste em uma rede, ou ainda
uma trama, com várias ramificações entre os neurônios, que, em determinadas
circunstâncias, podem estar catexizados, ao passo que em outras, vazios. Ou seja: um
sistema de neurônios de certa forma articulados entre si possibilita a circulação de
quantidades de energia.
Como se afirmou anteriormente, sob a pressão das “exigências de vida” o
sistema nervoso viu-se forçado a fazer uma reserva de Qn. Todavia, este acúmulo de Q
só foi possível em função de certas resistências, que passaram a funcionar como
barreiras à livre passagem de Q nos contatos entre os neurônios.
2.2.1 As barreiras de contato
A partir de então, ao prosseguir em sua formulação sobre a estruturação do
aparelho psíquico, Freud define que os neurônios se vinculam entre si, por intermédio
das denominadas barreiras de contato.
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Em 1895, a teoria do neurônio não estava em parte alguma, diz Lacan (1954-
55). As idéias de Freud sobre a sinapse são absolutamente novas. Ele toma partido dessa
idéia como tal, ou seja, a ruptura da continuidade entre uma célula nervosa e outra.
Ao justificar a hipótese das barreiras de contato, Freud recorre ao
pressuposto de que a possibilidade de condução da Qn no sistema nervoso esteja ligada
à diferenciação. Ou seja, de início pode-se esperar que o próprio processo de condução
no protoplasma, indiferenciado, crie, em um primeiro momento, uma diferenciação e,
com isso, uma capacidade condutora maior para quando ocorrer novamente um novo
fluxo de Qn.
Na tentativa de formular uma teoria para o funcionamento do aparelho
psíquico, Freud parte do pressuposto de que o mesmo grupo de neurônios não poderia
servir, ao mesmo tempo, à memória e à percepção. Isto porque, para que o processo
perceptivo possa ocorrer com a fluidez que lhe é própria, torna-se necessário que ele
sempre encontre uma estrutura que permaneça inalterada a cada nova percepção.
Portanto, o sistema de neurônios perceptivos consistirá em um sistema diferente do
responsável pela memória. Nesta direção, Freud distingue duas classes de neurônios:
a) Os neurônios permeáveis, assim denominados por permitirem a passagem
de Qn sem oferecer resistência, na medida em que a magnitude da Qn que passa por
suas vias de condução é maior que a resistência oferecida pelas barreiras de contato.
Dessa forma, permanecem inalterados pela passagem da excitação, constituindo o
sistema de neurônios ϕϕϕϕ, que permanecem livres para a recepção de novas impressões,
destinando-se, assim, à percepção;
b) Os neurônios impermeáveis, cujas barreiras de contato se fazem sentir - já
que a resistência de suas barreiras de contato se manifesta com magnitude maior do que
a de Qn que os atravessa -, de modo que a passagem de Qn ocorre apenas parcialmente,
possibilitando também um certo acúmulo de Qn no sistema. Estes neurônios possuem a
capacidade de se alterar permanentemente por simples ocorrência, conservando, porém,
o registro da passagem da excitação e assim oferecendo uma possibilidade de
representar a memória - o que constitui o sistema ψψψψ.
O processo constituidor da memória torna-se possível na medida em que, a
cada passagem de Qn, as barreiras de contato se modificam. Mas o grau de sua
modificação depende da magnitude da impressão e da freqüência com que se dá a
passagem do fluxo de Qn por uma determinada via. Assim, quanto mais vezes e com
59
maior intensidade acontecerem passagens de Qn em uma via, menor será a resistência
exercida pelas barreiras de contato. Como efeito, uma nova excitação tomará a direção
das barreiras mais facilitadas.
É preciso que a cada neurônio ψψψψ correspondam, em geral, diversas vias de
conexão com outros neurônios, isto é, várias barreiras de contato. Disto depende a
possibilidade da escolha por determinada facilitação. Isto posto, torna-se evidente que o
estado de facilitação de cada barreira de contato deve ser diferenciado de todos os
demais, pois do contrário não haveria motivo para o estabelecimento de vias
preferenciais, ou seja, de escolha de uma determinada via de condução.
Assim, no sistema ψψψψ as barreiras de contato se diferenciam em função do
grau de facilitação entre elas, o que determina a direção a ser seguida pelo fluxo
energético. Dessa forma, a memória, como função deste sistema, está representada pelas
diferenças entre as facilitações das “vias de condução” de Qn entre os neurônios ψψψψ.
Sob a pressão das “exigências de vida”, como se afirmou, o sistema nervoso
viu-se forçado a guardar um suprimento de Qn. Para este fim, teve que aumentar o
número de neurônios que precisariam ser impermeáveis. Na estruturação do aparelho
psíquico, este é o tempo do estabelecimento dos trilhamentos (Bahnungen). A partir de
então, o sistema ψψψψ recorre aos trilhamentos estabelecidos, em função das diferentes
resistências promovidas pelas barreiras de contato, evitando, pelo menos em parte, ficar
cheio de energia, como forma de lidar com o acúmulo necessário de Qn.
Assim o sistema ψψψψ constrói uma possibilidade para o armazenamento de
energia, o que lhe permite estabelecer a memória, o pensamento e o suprimento de
energia necessário à realização das ações específicas como resposta às exigências de
vida.
Seguindo a linha de pesquisa já indicada, prosseguir-se-á destacando,
pontualmente, alguns dos tópicos do Projeto (FREUD,1895) que permitem a articulação
das hipóteses formuladas no presente trabalho. Contudo, cumpre assinalar que não se
pretende aqui abordar a totalidade das questões desenvolvidas por Freud no texto citado.
60
2.3. SOBRE O MODO DE FUNCIONAMENTO DO APARELHO
PSÍQUICO
A partir destas primeiras noções, como foi assinalado, Freud constrói um
modelo de aparelho psíquico centrado ainda em uma linguagem neuronal. Contudo, em
sua pontuação do texto freudiano, Lacan (1954/55) vai indicar que esse aparelho, no
momento de sua formulação teórica, constitui-se em uma “topologia da subjetividade”,
edificada e constituída na superfície do organismo.
Esse aparelho é representado por três letras: ϕϕϕϕ, sistema de neurônios
permeáveis; ψψψψ ,sistema de neurônios impermeáveis, e ωωωω, percepção de qualidades que
correspondem ao registro de sensações conscientes.
As quantidades que circulam pelo aparelho provenientes do mundo externo
ou ainda do interior do organismo apresentam-se, contudo, sempre como exteriores ao
sistema psíquico. Essa exterioridade aponta para o caráter excessivo e, portanto,
intrusivo da energia, com a qual o aparelho desde os seus primórdios é confrontado,
sem, no entanto, estar preparado para proteger-se contra essa quantidade. Isto é que
permite considerar-se, no presente estudo, a questão de que o aparelho está sempre
“atrasado” em relação à possibilidade de defesa frente a essas excitações.
O aparelho psíquico, portanto, estrutura-se de forma a afastar a Qn dos
neurônios. Deste modo, sua função seria a de descarregá-la.
Conforme citado anteriormente, a hipótese freudiana de designar um sistema
de neurônios ϕϕϕϕ, formado por elementos permeáveis, e outro, ψψψψ, por elementos
impermeáveis, parece fornecer a explicação para uma das peculiaridades do sistema
nervoso: a de reter informações e ainda assim ser capaz de receber novas impressões.
Os dois tipos de neurônios já referidos diferenciam-se pelas respectivas
localizações e funções em relação à quantidade, que se apresenta sempre como
“exterior” ao aparelho:
- ϕ - Neurônios periféricos. Na medida em que o mundo externo é fonte de
grandes quantidades de energia, este sistema estaria mais exposto aos possíveis danos
da invasão de Q. Todavia, a terminação destes neurônios não está em contato direto com
o mundo externo. Esse contato se faz pela intermediação de proteções celulares que
captam o estímulo, inicialmente, evitando que as Qs exógenas incidam com o máximo
61
de intensidade sobre o sistema ϕϕϕϕ. Essas estruturas mediadoras exercem, assim, a função
de telas protetoras que deixam passar somente frações de Qn.
A característica fundamental do sistema ϕϕϕϕ, constituído de neurônios que
apenas conduzem a energia proveniente de fonte exógena, é, como já mencionado, a
permeabilidade exigida no processo da percepção.
(Convém destacar que, segundo Freud, os processos até aqui abordados
devem ser considerados, antes de mais nada, como inconscientes.)
- ψ - Não estão diretamente em contato com o mundo externo. Todavia,
recebem quantidades de dois lugares, o que determina serem divididos em dois grupos:
os neurônios do pallium, catexizados a partir de ϕϕϕϕ, e os neurônios do nucleum,
catexizados, por sua vez, a partir dos elementos celulares do interior do corpo.
Para os neurônios ψ do pallium é transferida uma parte da Qn que
provavelmente corresponde à magnitude de um estímulo intercelular. Na transferência
desta fração de Qn manifesta-se um dispositivo especial, em que a via de condução em
ϕ se estrutura de forma peculiar. Ela se ramifica continuamente e apresenta vias de
espessura variável que vão desembocar em numerosos pontos terminais.
Se a Qn em ϕϕϕϕ produzir uma catexia em ψψψψ, isto se expressará por uma catexia
QI + QII + QIII. Logo, uma quantidade em ϕϕϕϕ se expressa por um enredo (Komplication)
em ψψψψ e, por meio deste processo de transmissão que fragmenta a Q inicial e chega ao
sistema ψψψψ, a energia fica afastada deste, ao menos dentro de certos limites.
Contudo, o sistema ψψψψ recebe excitações do interior do corpo, por meio dos
neurônios nucleares que estão expostos, sem proteção frente as Qns provenientes dessa
direção.
As excitações endógenas atuam como uma força constante (konstant Kraft),
diferentemente da excitação decorrente dos estímulos internos, que atuam com uma
força momentânea. Por um processo que Freud denomina “soma” (Summation), tais
estímulos internos transformam-se em estímulos psíquicos. A partir de então, as vias
diretas que os estímulos endógenos percorrem até atingir o sistema ψψψψ colocam-no à
mercê da Qn, situação esta decisiva para se produzir em ψψψψ o impulso (Drang) que
sustenta toda a atividade psíquica, “o impulso motor do mecanismo psíquico” (FREUD,
1895).
62
Os sistemas ϕϕϕϕ e ψψψψ atuariam conjuntamente na percepção; no entanto, a
recordação (memória) seria um processo psíquico efetuado exclusivamente em ψψψψ, que é
desprovido de qualidade. Assim, diz Freud, faz-se necessário supor um terceiro sistema
– os neurônios ωωωω - sistema este que produziria as diversas qualidades, ou seja, as
sensações conscientes.
- ω – Ao se voltar para a questão de esclarecer a origem da qualidade,
Freud expõe no Projeto (1895) as dificuldades de abordar como algo na mente poderia
vir a se tornar consciente. Em sua concepção sobre o funcionamento do aparelho
psíquico, Freud considera a quantidade como um quantum, finito e determinado, de
energia circulante pelo sistema. As qualidades, contudo, não são redutíveis à quantidade
e dizem respeito aos aspectos sensíveis da percepção. Ou seja: uma cor, um som, uma
textura constituem qualidades. Apresentam-se ainda como séries, semelhanças e
diferenças, como síntese das impressões elementares.
Ao se referir ao sistema ωωωω, Freud abre uma questão sobre a hipótese
fundamental da passagem de Qn, ao considerar que, para além da possibilidade de
transferência de Qn de um neurônio para outro, a passagem da excitação deve ter uma
outra característica, de natureza temporal, denominada “período”7.
Deste modo, Freud infere que a resistência das barreiras de contato só se
aplicaria à transferência de Qn, enquanto o período do movimento neuronal seria
transmitido a todas as direções, sem inibição, como um processo de indução.
Neste sentido, Freud formula que os neurônios ωωωω se apropriariam do período
de excitação, que lhes chegaria através de ϕϕϕϕ, via ψψψψ, fazendo com que a base da
consciência consista no fato de os neurônios ωωωω serem afetados por um período,
enquanto recebem somente um mínimo de Qn.
A consciência fornece o que se convencionou chamar de sensações
conscientes. Além da série das qualidades sensoriais, a consciência exibe outra muito
diferente: a série de sensações de prazer e desprazer. Como assinala Freud nesse
momento de sua teorização, existe uma tendência da vida para evitar o desprazer. Neste
7A noção de “período” diz respeito não a uma quantidade determinada, mas a uma diferença entre essas quantidades. Ou seja, uma modificação do ritmo temporal das alterações quantitativas e não consideradas em si mesmas. Assim, o período não diz respeito a uma grandeza absoluta, mas à mudança dessas grandezas num determinado período de tempo.
63
caso, o desprazer coincidiria com o aumento do nível de Qn em ψψψψ. Por sua vez, o prazer
corresponderia a uma sensação em ωωωω, quando ocorresse a descarga da quantidade.
A função principal do sistema ωωωω é fornecer informações ao sistema ψψψψ - ou
seja, signos de qualidade (Qualitätszeichen) ou signos de realidade (Realitätszeichen). É
essa indicação em ψψψψ de uma descarga em ωωωω que funciona como signo?
2.4 A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA DE SATISFAÇÃO
Como foi afirmado, o estímulo endógeno atua de forma constante. Quando
ocorre o acúmulo de Q nos neurônios nucleares em ψψψψ, a tendência do aparelho psíquico
é promover a descarga. Esta situação denomina-se “estado de urgência”. A primeira via
recorrida nessa tentativa de descarga corresponde aos aparelhos fonador e muscular: a
criança grita e esperneia. Assim, a primeira via de alteração interna é este estado que
culmina com o grito. Embora o grito já represente uma descarga, não é satisfatório,
porque o nível de Qn permanece, e a tensão não é passível de ser suprimida. Neste caso,
o estímulo só pode ser abolido por meio de uma intervenção (fornecimento de víveres,
aproximação do objeto sexual) que suspenda provisoriamente a descarga de Qn.
Como, de início, é impossível ao organismo humano promover essa “ação
específica”, esta se efetua por “ajuda alheia”, quando a atenção de uma pessoa
experiente volta-se para o estado infantil de descarga por meio da via de alteração
interna: o grito da criança.
O aumento insuportável da quantidade em ψψψψ vai encontrar o recém-nascido
em um estado de desamparo (Hilflösigkeit) - desamparo perante as necessidades, as
pulsões e o mundo externo.
Frente a essa carência inicial, o adulto que cuida do recém-nascido - a mãe -,
como situa Freud, é chamado pelo grito da criança a socorrê-la, ou seja, a realizar a ação
que suspenda transitoriamente essa tensão. Todavia, a ação específica não se reduz a dar
o alimento para suspender a necessidade. Esta ação representa algo da ordem da palavra
do Outro8, em torno destes primeiros momentos de encontros e desencontros com o que
é emitido pelo recém-nascido.
8 O Outro, com maiúscula, é definido por Lacan (1953/54) como uma exterioridade radical, tesouro do significante, lugar do código desde o qual o sujeito se constitui.
64
Dessa forma, o grito, como uma primeira via de descarga, ao chamar a
atenção do Outro para o estado em que se encontra o desamparado, adquire uma função
de linguagem, constituindo assim uma forma de introdução do sujeito na ordem
simbólica. O grito é ouvido pelo Outro como vetor de um pedido de ajuda. A partir do
momento em que o Outro atende este pedido, o sujeito passa a fazer parte da troca
simbólica especificamente humana.
Assim, diz Freud, em um segundo momento, após ter sido escutado pelo
Outro, o grito adquire a “importantíssima função secundária da comunicação” (FREUD,
1895).
Como foi dito, a tensão do organismo só é mitigada com a intervenção de
ajuda alheia. Quando a pessoa que ajuda executa o trabalho da “ação específica” no
mundo externo para o desamparado (infans), este fica em posição, por meio de
dispositivos reflexos, de executar imediatamente no interior do corpo a atividade
necessária para remover, mesmo que temporariamente, o estímulo endógeno.
A totalidade deste evento, que envolve o grito e a resposta do Outro,
constitui a “experiência de satisfação”, que apresenta os mais radicais efeitos para a
constituição do aparelho psíquico.
Isso se deve a três ocorrências no sistema ψψψψ:
1.ª) Efetua-se uma descarga tal que elimina a urgência que causou desprazer
em ωωωω;
2.ª) Produz-se nos neurônios do pallium o investimento dos neurônios que
correspondem à percepção do objeto que proporcionou a satisfação;
3.ª) A outros pontos do pallium chegam as informações sobre a descarga do
movimento reflexo liberado que se segue à ação específica.
Estabelece-se, assim, uma facilitação (Bahnung) entre esses investimentos e
os neurônios, apontando para a noção de um aparelho psíquico como uma superfície de
inscrição de traços mnêmicos. Dessa forma, a experiência de satisfação produz no
sistema ψψψψ, que constitui a memória, um trilhamento duradouro entre duas imagens
mnêmicas e os neurônios nucleares que ficam catexizados em estado de urgência.
65
Ao se abordar a primeira experiência de satisfação, pode-se considerar que
há uma estrutura potencial de linguagem no próprio aparelho psíquico. Neste sentido,
destacam-se dois tempos na formulação freudiana, a saber:
1.º) Na ficção dos neurônios, a primeira via de alteração interna (gritos,
expressão de emoções, inervação muscular) apresenta-se como a única possibilidade de
descarga frente à Qn que invade o organismo. Neste tempo “mítico”, anterior à ação
específica realizada pelo Outro, estas primeiras vias de descarga atuam como uma
“válvula de escape” frente às oscilações de Qn. Este é um primeiro momento em que é
possível ao aparelho deslocar quantidades, mas ainda não possibilita nenhuma inscrição
que se vai constituir posteriormente em termos da memória ψψψψ. Contudo, este primeiro
tempo prepara de certa forma as condições do acesso ao tempo da palavra, que somente
será possível a partir da intervenção do Outro.
2.º) Sendo assim, em um segundo tempo - quando ocorre a ação específica
inicialmente realizada pelo adulto que cuida da criança -, este primeiro encontro (da
criança com o Outro) deixaria uma modificação permanente, um traço inscrito no
aparelho, fazendo com que a experiência de satisfação, como articulação entre os traços
mnêmicos, seja um “ponto primeiro” de toda a estruturação do aparelho psíquico. Pode-
se, então, afirmar que esse ponto primeiro seria o registro que instaura um sujeito na
linguagem. Assim, a experiência de satisfação se constitui em uma primeira inscrição
ou, ainda, em um primeiro enodamento que denota toda a sua importância para a
constituição do psiquismo.
Ante o reaparecimento de um novo estado de urgência, o investimento passa
para as duas lembranças, reativando-as. O que ocorre então é em tudo semelhante a uma
percepção. Contudo, estando ausente o objeto de desejo, o que esta reativação provoca é
uma alucinação. A esse estado de urgência Freud denomina “desejo”.
Ao se analisar a formulação freudiana da primeira experiência de satisfação,
evidencia-se, como se afirmou, que a incidência da linguagem na estruturação do
aparelho psíquico é uma problemática fundamental abordada por Freud no Projeto
(1895). Na articulação realizada por Freud e retomada posteriormente por Lacan
(1959), as condições para a entrada do infans na linguagem se devem ao atravessamento
da necessidade pela linguagem, em função da escuta, da palavra e da ação do Outro. Daí
decorre que o recém-nascido “troca” suas necessidades por demandas, demandas estas
que se articulam na medida em que são enlaçadas ao Outro.
66
Na clínica do autismo apresenta-se, como já mencionado, uma primeira
questão relacionada ao fato de o autista não conseguir verbalizar nenhum apelo. Dessa
forma, cabe uma indagação sobre a gravidade da problemática que interferiu na
possibilidade de estabelecimento de um primeiro laço do infans com o Outro, em nível
tão radical, que gerou, como única resposta, o autismo.
Na abordagem desta questão, será analisado o percurso de cada um dos
casos apresentados, na construção de uma possibilidade do paciente vir a se inscrever de
alguma outra forma na linguagem, passando pela promoção de uma abertura para que
uma palavra endereçada ao Outro pudesse advir.
2.5 A EXPERIÊNCIA DE DOR
Como assinalado anteriormente, o aparelho psíquico tem como função
proteger a vida frente aos investimentos excessivos. Contudo, apesar dos dispositivos
protetores, perante a irrupção de grandes quantidades em ψψψψ, a eficácia destes
mecanismos mostra-se precária, sobrevindo a dor, que, como assinala Freud, “é o mais
imperioso dos processos” (1895, p. 338), podendo chegar até o limite da morte.
No caso da dor, os neurônios ψψψψ tornam-se tão impermeáveis quanto os
neurônios ϕϕϕϕ, na medida em que as barreiras de contato não são suficientemente
resistentes para impedir a passagem de uma tal magnitude de energia, fazendo com que
as diferentes vias de condução estabelecidas pelos trilhamentos constitutivos do
aparelho não tenham como operar.
Tal como ocorre na experiência de satisfação, em termos da articulação dos
traços mnêmicos, quando a imagem do objeto -e, no caso da experiência de dor, a do
objeto hostil -, for reinvestida em função de novas percepções, o efeito não será
novamente a dor, mas o que Freud (1895) denomina afeto (Affekt)9. Neste sentido, o
termo afeto está sendo empregado por Freud para designar a reprodução de uma
experiência de dor, reprodução esta que não implica propriamente dor, mas desprazer.
É oportuno fazer-se aqui uma consideração a respeito dos conceitos de dor e
desprazer. No Projeto (1895), Freud teoriza a questão do desprazer como uma sensação
em ωωωω correspondente a um aumento de tensão em ψψψψ. Aborda ainda este ponto em
9 Pode-se considerar afeto as inervações motoras ou descargas correspondentes ao aspecto quantitativo do afeto, e as sensações de prazer e desprazer como o aspecto qualitativo, ou afeto propriamente dito.
67
termos de um diferencial desprazer/prazer, em que o prazer, por sua vez, corresponde a
uma sensação ωωωω quando ocorre uma diminuição da tensão10.
Em termos do funcionamento do aparato psíquico, a vivência de dor produz
em ψψψψ:
1.º) aumento de tensão, sentido como desprazer em ωωωω;
2.º) tendência à descarga;
3.º) facilitação entre a tendência à descarga e uma imagem-lembrança do
objeto que provocou a dor.
Assim, a dor possui uma quantidade que invade o aparelho psíquico e
também uma qualidade especial, dada pelo sentimento de desprazer em ωωωω.
No primeiro momento, em que no sistema nervoso irromperam grandes Qs
em ψψψψ, provenientes do mundo externo, sem que fosse possível uma defesa apropriada, o
resultado inevitável foi a dor. Contudo, em um momento segundo, quando ocorreu
novamente aumento de Qn no aparelho, isto se deu de forma diferente, pois o objeto que
originalmente causou a dor não estava presente.
Ao abordar esta questão, Freud formula uma outra noção em termos da
teoria do neurônio: os “neurônios-chave” (Schlüsselneuronen), para falar de um tipo
especial de descarga que se produz no interior do sistema ψψψψ a partir desses neurônios.
Assim como há neurônios motores que conduzem Qn aos músculos e a descarregam,
devem existir também os secretores (aos quais se referem os neurônios-chave), que,
quando excitados, produzem no interior do corpo estímulos que atuam sobre as
conduções endógenas de ψψψψ.
Neste sentido, aos neurônios-chave é atribuída a responsabilidade pela
descarga que se produz internamente no sistema ψψψψ, a qual, ao invés de reduzir a tensão,
provoca excitações que a aumentam ainda mais. É, portanto, essa excitação provocada
pelos neurônios-chave que promove o aumento de Qn na experiência da dor (no caso da
repetição, já mencionado). Com o resultado da experiência de dor, a imagem
mnemônica do objeto hostil estabeleceu uma facilitação para esses neurônios-chave, em
virtude da qual é liberado o desprazer no afeto.
10 Apesar de dor e prazer/desprazer não se situarem no mesmo registro, esta questão é tratada ao longo da obra de Freud em função, inclusive, da teoria da sexualidade, na qual o autor admite que um aumento de excitação pode ser vivido como prazeroso. A partir de 1920 (Além do princípio do prazer), com a teoria da pulsão de morte, na abordagem do masoquismo (1926) Freud chega a formular uma articulação entre dor e prazer sexual.
68
No que concerne à questão da dor, é oportuno pontuar, em um fragmento do
segundo caso clínico, que, nas primeiras entrevistas com o analista, a mãe mencionava
(não tanto como uma questão que a angustiasse, mas como uma constatação) o fato de
que o filho não sentia dor. Assim lhe parecia porque, somente ao ver uma mancha de
sangue na roupa, percebia que o filho havia-se machucado. Punha-se então a procurar o
lugar do corpo de Paulo em que se encontrava a ferida. Contudo, fazia isto sem
endereçar ao filho nenhuma palavra, pois, na medida em que este não falava, a mãe não
supunha que ele pudesse entender o que lhe fosse dito. Frente a esta situação, Paulo
permanecia indiferente, sem condições de dizer ao Outro sobre o próprio sofrimento.
Após um longo percurso de seu tratamento, Paulo foi ao consultório para
uma determinada sessão com um machucado no lábio. Nesse momento, em que já
possuía outras condições de articular uma fala endereçada ao analista, disse: “Dodói!”,
expressando um pesar, para em seguida acrescentar: “Caiu!”.
Na Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975), texto que será
trabalhado mais detidamente no Capítulo IV, Lacan afirma: “Se não houvesse palavras,
de que poderia o homem testemunhar?” Nesta via, cabe perguntar-se do que o paciente
poderia testemunhar, inclusive a respeito de sua dor ?
2.6 DESEJO E DEFESA PRIMÁRIA
Assim, às vivências de satisfação e de dor correspondem, como resultados,
os estados de desejo (Wunschzustande) e os afetos (Affekte), ambos caracterizados por
aumento de tensão no sistema de neurônios ψψψψ, produzido, respectivamente, por somação
e pela liberação súbita de Qn, como já foi afirmado.
Nesta via, Freud compreende que a defesa ou recalque (Verdrängung)
constitui-se em uma aversão, por manter catexizada a imagem mnêmica hostil, enquanto
os estados de desejo resultam numa atração positiva para o objeto desejado ou, mais
precisamente, para sua imagem mnêmica. São, portanto, dois mecanismos básicos do
aparelho psíquico: a defesa primária ou recalque e a atração de desejo.
No Seminário 2 - O eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica (1954-
55) -, Lacan, no que tange aos estados de desejo, assinala que Freud põe em jogo uma
correspondência entre o objeto que se apresenta e as primeiras estruturações que passam
69
a se constituir no aparelho, como efeito de suas experiências no nível do “eu” (Ich) -
tópico a ser abordado mais adiante nesta Dissertação.
Assim, como afirma Lacan:
“...ou bem o que se apresenta é o que é esperado, e não é nem um pouco interessante – ou bem não dá muito certo e isso é interessante, pois qualquer espécie de constituição do mundo objetal é sempre um esforço para redescobrir o objeto’’. (1954-55, p.131)
Neste sentido, Freud distingue duas estruturações inteiramente diversas: a
da reminiscência, que supõe uma harmonia entre o homem e o mundo dos objetos,
fazendo com que ele os reconheça porque de certa forma os conhece desde sempre, e a
via da repetição, na qual o que se apresenta ao sujeito coincide apenas parcialmente
com aquilo que já lhe proporcionou satisfação.
A partir desta não-coincidência, impõe-se ao sujeito uma busca, que se
traduz em um esforço de trabalho, no sentido de reencontrar o objeto. Como, nessa
busca, o objeto encontrado nunca é exatamente igual ao original, a procura não cessa
jamais, isto é, o sujeito continua a engendrar objetos substitutivos, com relação ao
objeto de seu desejo. É nesta medida que Lacan apresenta a função da repetição como
responsável pela estruturação do mundo humano, como aberta a uma imensa variedade
de objetos que, pelo fato de o ser humano estar na linguagem, já “não tem mais nada a
ver com objetos, em sua função radical de símbolos” (LACAN, 1954-55, p.132).
Assim, pode-se considerar que a condição estrutural para tornar possível
uma constituição do mundo objetal no ser humano é a atualização de uma falta a cada
vez que a experiência de satisfação se repete. Ou seja: o mundo propriamente humano
estrutura-se pelo confronto do sujeito com uma discordância radical entre o que era
esperado (como objeto que promoveria a satisfação) e o encontrado.11
11 No processo da estruturação dos objetos, a referência ao Outro é fundamental, ponto este a ser tratado no próximo capítulo. É importante assinalar que, na concepção da teoria da sexualidade, ao formular o conceito de sexualidade infantil, Freud (1905) aborda nos seguintes termos os primeiros momentos da estruturação psíquica: “Numa época em que os inícios da satisfação sexual ainda estão vinculados à ingestão de alimentos, a pulsão sexual tem um objeto sexual fora do corpo do próprio infante, sob a forma do seio da mãe” (1905, p. 228). Há, portanto, “bons motivos” (idem, ibid.) para que uma criança que suga o seio da mãe se tenha tornado o protótipo de toda relação de amor que se estabeleça posteriormente. Dessa forma, ao longo do percurso de estruturação do sujeito, o encontro de um objeto que cause o desejo deste é, na verdade, sempre “um reencontro dele” (FREUD, 1905, p.229).
70
2.7 A ESTRUTURAÇÃO DO “EU” (ICH)
Como foi mencionado, a condição de constituição do mundo dos objetos,
que envolve o reencontro sempre faltante com o objeto do desejo, implica
necessariamente um primeiro esboço de constituição do “eu” (Ich).
Os dois processos já citados - de desejo e de defesa primária - indicam que,
na estrutura do sistema ψψψψ, formou-se, mesmo que de modo incipiente, uma
“organização” constituída por um grupo de neurônios constantemente investidos, que
interfere na passagem de Qn no aparelho. A esta organização Freud denomina “eu”
(Ich).
A função dessa “organização” é essencialmente inibidora. Neste sentido,
quando se reapresenta o estado de urgência, indicado por Freud (1895, p.) na repetição
da experiência de satisfação, o “eu” intervém para impedir que o investimento da
imagem mnésica adquira uma força tal que desencadeie um “índice de realidade”
semelhante ao que ocorre com a percepção de um objeto real, evitando a descarga que
fatalmente traria desprazer.
Contudo, para que o índice de realidade fornecido pelo sistema ωωωω assuma
um valor de critério, isto é, para que a alucinação seja evitada e a descarga não se
produza até que se tenha uma confirmação da existência do objeto, é necessária a
inibição do processo primário12, que consiste em uma livre propagação do investimento,
pelo trilhamento estabelecido entre os traços que restaram da primeira experiência de
satisfação.
No Projeto Freud define que o “eu” corresponde à provisão de energia
(Vorrat) necessária ao aparelho para a realização da função secundária, que envolve
12 No “Projeto” (1895, p.342), Freud define que, no processo primário, a energia psíquica escoa livremente, passando sem barreiras de um neurônio para o outro, tendendo, no processo que envolve a tentativa da repetição da experiência de satisfação, a reinvestir plenamente os traços mnêmicos que restaram de um primeiro evento, traços esses constitutivos do desejo, podendo chegar até a alucinação. No caso do processo secundário, a energia não mais circula livremente, mas de forma “ligada”. Os traços mnêmicos das experiências vividas pelo sujeito, em função da inibição promovida pelo “eu”, são investidos de forma mais estável, sendo possível, portanto, adiar a descarga, permitindo, por meio dos juízos (ponto a ser tratado mais à frente), explorar outros possíveis caminhos de satisfação. É importante assinalar que nesta dissertação não se abordará o conceito de “eu” em sua totalidade na obra de Freud. A discussão acerca da distinção entre os termos “primário’ e“secundário” acentua-se no quadro da segunda teoria do aparelho psíquico, em que o “eu” é definido como resultado de uma diferenciação progressiva do “Id” (Freud, 1926).
71
uma regulação dos investimentos, consistindo assim “na totalidade dos investimentos
em ψψψψ existentes em determinado momento” (1895, p. 340).
A função reguladora do fluxo de Qn atribuída ao ego, como já se afirmou, é
descrita no Projeto (p.341) como inibição. Este processo consiste no seguinte: uma Qn
que investe em um neurônio, a partir de um ponto qualquer, continuará em direção à
barreira de contato que se apresentar mais facilitada, estabelecendo uma corrente nessa
direção. A isto Freud (1895, p.) denomina energia livre, que tende para a descarga
imediata e completa. Todavia, se um neurônio vizinho é investido simultaneamente,
cria-se, em face da proximidade de ambos e da simultaneidade de investimento, algo
análogo a um campo de forças unificado. Nesse campo, a Qn, em vez de se dirigir à
descarga, tem seu curso alterado em função de um investimento colateral que ocorre no
processo de constituição do “eu”. Desta forma, dá-se a inibição do livre escoamento da
Qn, através dos trilhamentos estabelecidos na rede de neurônios. Nesta via, diz Freud, é
função primordial do “eu” inibir os processos psíquicos primários, abrindo caminho
para o estabelecimento de processos secundários, nos quais se pode conceber a energia
a partir de então ligada.
No processo de constituição do “eu”, uma noção importante -
conjuntamente com as de trilhamento e de investimento colateral - é a idéia de ligação
(Bindung): a possibilidade de transformação da energia livre em ligada. São ligações
como esta que, com efeito, vão possibilitando a estruturação do “eu”. A ligação é uma
síntese a priori que opera a passagem de um estado de pura dispersão de excitações (em
um momento primevo do sistema nervoso) a estados de integração de excitações ou
organizações parciais. Nesta via, o “eu” não é um dado a priori, mas algo que é efeito,
ou ainda, que vem a ser constituído a partir da relação do sujeito com o Outro.
Conforme assinalado anteriormente, na direção desta pesquisa sobre a
possibilidade de entrada do sujeito na linguagem, proceder-se-á, no próximo Capítulo, à
abordagem do texto Interpretação de sonhos (FREUD, 1900). Nos termos em que
formula o sistema inconsciente, Freud retoma nesse texto a experiência de satisfação
como um momento fundamental para a estruturação do psiquismo. No entanto, ao
realizar-se esta passagem do Projeto para A Interpretação de sonhos, caberá breve
comentário sobre a Carta 52, que, como assinala Lacan (1959), constitui-se em um
ponto de articulação entre os dois momentos da formulação teórica de Freud.
72
2.8 A CARTA 52
Na carta que escreve a Fliess, em 6 de dezembro de 1896 - “a carta 52” -,
Freud fornece uma nova concepção acerca do funcionamento do inconsciente:
[...] estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico tenha-se formado por um processo de estratificação: o material presente em forma de traços da memória estaria sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas circunstâncias - a uma retranscrição. Assim, o que há de essencialmente novo a respeito de minha teoria é a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos: que ela é registrada em diferentes espécies de indicações. Postulei a existência de um tipo parecido de rearranjo (Afasia) há algum tempo, para as vias que vão da periferia do corpo para o córtex. (FREUD, 1896, p.254)
Neste esquema, a percepção corresponde à impressão do mundo exterior,
como bruta, original, não conservando nenhum traço do que correu. As percepções vão
dar lugar a uma primeira inscrição, correspondente aos signos de percepção,
organizados segundo o princípio da simultaneidade, e inacessível à consciência. O
registro seguinte, próprio ao inconsciente, é organizado em função da associação por
causalidade. A pré-consciência consiste em uma terceira transcrição ligada às
representações verbais onde não há registro novo, e sim a possibilidade de acesso à
consciência.
Neste esquema, Freud elabora uma teoria da memória em função da
sucessão das inscrições (Niederschriften), fazendo corresponder os diferentes registros a
momentos do desenvolvimento do sujeito. A passagem de um registro para o outro se
faz através de uma “tradução” do material psíquico. Esta “tradução” refere-se aos
reordenamentos aos quais são submetidos os traços mnêmicos segundo novas
circunstâncias ou, ainda, novos nexos.
Neste sentido, Freud situa o recalcamento como uma falha na tradução, ou
seja, na medida em que a tradução produza desprazer, este desprazer provocará uma
perturbação no pensamento, e o trabalho de tradução não se completará. Dessa forma,
quando não ocorre a transcrição de uma parte do material, a excitação segue
obedecendo às leis do período anterior. Assim, diz Freud, persiste um anacronismo,
como fueros, em uma alusão a antigas leis espanholas que vigoravam em determinada
cidade ou província, apesar das leis atuais que as deveriam ter substituído.
73
No seminário A Ética da psicanálise (1959-60), Lacan ressalta que, no
esquema da Carta 52 (FREUD, 1896), o que ocorre entre as duas extremidades do
aparelho situa-se ao nível do inconsciente. Em outros termos, entre percepção e
consciência formula-se a cadeia que vai do mais “arcaico inconsciente” à possibilidade
de acesso pelo sujeito a uma forma articulada da fala.
Aos traços de percepção (WZ), Lacan vai dar “seu verdadeiro nome de
significante” (1964, p. 48). Dessa forma, pode-se considerar que o termo “significante”
não se superpõe ao de representação-palavra, sendo aplicado aos traços mnêmicos que
se inscrevem nos diversos registros do aparelho psíquico. No nível deste primeiro
registro, os traços não permaneceriam isolados, mas já constituiriam uma rede
articulada segundo a simultaneidade entre eles.
Nessa organização pela simultaneidade, segundo Lacan (1964, p.49), o que
estaria em jogo, seria justamente a sincronia significante. Contudo, não se trata, nessa
sincronia, de uma rede formada simplesmente por associações de acaso e contigüidade,
pois os significantes só puderam constituir-se na simultaneidade, em razão de uma
estrutura muito definida da diacronia constituinte. A diacronia é orientada pela
estrutura. E Freud indica bem que no segundo registro, o do inconsciente - onde se
estabelecem as pré-relações entre o processo primário e o que dele será articulado no
nível do pré-consciente -, as associações se constituem por causalidade.
Vale, portanto, indagar-se em que nível seria possível conceber-se algo da
ordem de uma marca ou ainda da inscrição de um traço mnêmico, no caso do autismo.
Em uma passagem da Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975), Lacan assinala
que os autistas “articulam muitas coisas. Contudo, se trataria de precisar de onde
escutaram o que articulam”. Nesta via, pode-se considerar que o autismo não constitui
uma ausência total de inscrições no psiquismo; contudo, caberia precisar-se em que
nível tais inscrições estariam articuladas.
Na abordagem desta questão, considera-se, no presente trabalho, que os
traços dos quais o autista possa valer-se em suas articulações estejam inscritos aquém
do registro da segunda inscrição, denominada por Freud de inconsciente. Contudo, na
medida em que a retranscrição para o registro do inconsciente esteja radicalmente em
questão, convém que se pergunte sobre as conseqüências para o modo de
funcionamento de um psiquismo que se sustentaria nessas condições.
A formulação de um novo modelo de aparelho psíquico, realizada por Freud
no texto da Carta 52 (1896), situa-se, como já se afirmou, no percurso de sua
74
elaboração teórica entre o Projeto (1895) e a Interpretação dos sonhos (1900). Apesar
de em muitos termos a Carta 52 se referenciar ao Projeto, a ênfase dada por Freud à
noção de inscrição (Niedeschrift) antecipa de certa forma o modelo da Interpretação de
sonhos, a ser abordado no Capítulo que se segue.
75
Capítulo III
A descoberta do inconsciente, tal como ela se mostra, no momento de seu surgimento histórico, com sua dimensão plena, é que o alcance do sentido ultrapassa infinitamente os sinais manipulados pelo indivíduo. Sinais, o homem solta sempre muito mais do que ele pensa. É disto que se trata na descoberta freudiana – de uma nova impressão do homem. O homem, depois de Freud, é isso.”(LACAN, 1954-55, p.158)
Retomando a primeira questão formulada nesta dissertação acerca da
primeira experiência de satisfação, este Capítulo focalizará inicialmente essa noção em
Freud, com os desdobramentos que se sucedem a partir do texto de 1900. Em seguida se
retornará ao Projeto, todavia, à luz das pontuações efetuadas por Lacan no seminário
sobre a Ética (1959), como um desdobramento da questão inicial, pois se abordará de
um lado a questão do grito do infans, em seu estado de desamparo, e de outra parte o
complexo do Nebenmensch, este Outro suposto que exerce função primordial para a
estruturação do sujeito.
Na Interpretação dos sonhos (Traumdeutung, 1900), é importante assinalar
que se opera na teoria freudiana uma passagem da concepção de um modelo de aparelho
psíquico, constituído em função das facilitações entre neurônios, para a construção de
um aparelho formal, que prescinde da ficção neuronal, articulado em termos de
representações (Vorstellungen). Contudo, nessa passagem, elidem-se preciosas
referências de Freud à função da linguagem. Sendo assim, considera-se aqui importante
uma leitura recorrente desses textos, no sentido de se destacarem algumas das
formulações fundamentais da psicanálise elaboradas por Freud.
76
3.1. SOBRE A ESTRUTURAÇÃO DO APARELHO PSÍQUICO
Em Interpretação dos sonhos (1900), ao abordar a experiência de satisfação
como a possibilidade de inscrição do sujeito no campo da linguagem, Freud, ao retomar
algumas das idéias já articuladas no Projeto (1895), refere-se à concepção de um
primitivo aparelho, cujos esforços se dirigiam para mantê-lo tanto quanto possível livre
de estímulos. Sua primeira estrutura corresponderia à de um aparelho reflexo, de
maneira que qualquer excitação sensorial, ao chocar-se com ele, poderia ser
prontamente descarregada ao longo de uma via motora. Neste sentido, as atividades
desse aparelho seriam reguladas por um esforço para evitar acúmulo de excitação e
mantê-lo o quanto possível livre de excitação.
Contudo, as exigências de vida (Not des Lebens) confrontam o sistema
psíquico sob a forma das principais necessidades, interferindo nessa função simples. E é
a elas que o aparelho deve seu impulso para novos desenvolvimentos. Neste ponto,
Lacan (1959-60) afirma que a expressão Not des Lebens, utilizada por Freud desde o
Projeto (1895), não se refere tão simplesmente às “necessidades vitais”. No texto em
alemão, apresenta-se como uma “fórmula infinitamente mais forte” (LACAN, 1959-60,
p.62), “alguma coisa que quer” (idem, ibid.). Neste sentido pode-se considerar que Not é
o estado de urgência, de urgência da vida.
Em 1900, Freud escreve que os estímulos internos buscam, primeiramente,
uma descarga por meio do movimento, o que pode ser descrito como uma modificação
interna ou expressão de emoções. Assim, um bebê sujeito à atuação desses estímulos
grita e esperneia. Mas a situação permanece inalterada porque a excitação surgida de
uma necessidade interna não se deve a uma força que produz um impacto momentâneo,
mas que atua de forma contínua.
Assim, de início, em função do estado de desamparo (Hilflösigkeit) em que
se encontra o recém-nascido, uma mudança só pode surgir por meio de um auxílio
externo - o Outro -, que, por meio de uma ação específica (no caso, a nutrição), coloque
o bebê em condições de executar no interior do corpo a atividade necessária para pôr
fim ao estímulo, mesmo que por um determinado intervalo de tempo.
A totalidade desse evento consiste na “experiência de satisfação”, que
produz os mais radicais efeitos para a estruturação do aparelho psíquico. Neste sentido,
a partir da exigência promovida pelos estados de urgência que se apresentam ao recém-
nascido, uma decisiva modificação ocorre no funcionamento do aparelho psíquico. Ou
77
seja: passa a ser necessário que o sistema, cuja tendência inicial era a descarga total da
energia, “tolere” um certo acúmulo de Qn para que esse mesmo sistema participe no
processo de resolução da tensão interna criada pelos estímulos endógenos.
Assim, em uma certa modificação da tendência primária para levar o nível
de excitação a zero, Freud formula o “Princípio do desprazer” como um dos que regem
o funcionamento mental13, com a função de regular o inconsciente, sistema apresentado
por Freud no capítulo VII de Interpretação dos sonhos (1900).
Como já foi afirmado, a “experiência de satisfação” produziu como efeito
um trilhamento entre o traço de memória da excitação produzida pela necessidade e a
imagem mnemônica do objeto da satisfação. Quando o acúmulo de excitação endógena
ocorre novamente no aparelho, esse incremento é sentido como desprazer. Assim,
imediatamente surge no aparelho um impulso psíquico que procurará reinvestir a
imagem mnemônica da percepção do objeto.
A esse tipo de impulso, que parte de uma situação de desprazer visando ao
prazer, denomina-se desejo. Segundo Freud (1900), somente o desejo é “capaz de
colocar o aparelho em movimento”, sendo o curso da busca pelo seu objeto
automaticamente regulado pelo princípio do desprazer.
O desejo é, pois, o retorno sobre os traços da “primeira experiência de
satisfação”, a repetição deste traço primeiro. O caminho mais curto para essa realização
do desejo - a ânsia de reencontrar o objeto da satisfação - é uma via que conduz
diretamente a um investimento completo da percepção. Contudo, na medida em que o
objeto está ausente, este caminho culminará em uma alucinação.
Deste modo, é possível presumir, diz Freud (1900), que houve um estado
primitivo do aparelho psíquico em que esse caminho era realmente percorrido, isto é,
em que o desejo terminava em alucinação. O objetivo dessa primeira atividade psíquica
consistia em produzir uma “identidade perceptiva”, ou seja, uma repetição da percepção
que se achava ligada à satisfação da necessidade.
Percebe-se, assim, que o aparelho, não obstante tender para o objetivo de
manter o organismo vivo, dirige-se ao engodo e ao erro (LACAN, 1959-60, p.), na
13 Menciona-se aqui o “princípio do desprazer” como um dos princípios do funcionamento mental que Freud expõe na “Interpretação dos sonhos”, na medida em que, em oposição a este, Freud designa o “princípio de realidade”, a ser abordado mais à frente. Contudo, considera-se importante assinalar que somente em “Dois princípios de funcionamento do aparelho mental” (1911) é que Freud enuncia propriamente o termo “Princípio do prazer”. Anteriormente, no Projeto (1895), referia-se a um “diferencial prazer-desprazer”.
78
medida em que parece não ser construído para satisfazer a necessidade, mas para
aluciná-la.
Tais alucinações, contudo, mostram-se inapropriadas para determinar a
cessação da necessidade. O estabelecimento de uma identidade perceptiva dentro do
aparelho não apresenta o mesmo resultado noutras partes da mente como a catexia vinda
de fora: “A satisfação não se segue e a necessidade persiste” (FREUD, 1900, p. 603).
Dessa forma, foi apenas a ausência da satisfação esperada, o desapontamento
experimentado que levou o aparelho a transformar essa primitiva atividade alucinatória
numa atividade secundária mais conveniente (o que será abordado mais adiante).
Tomando por referência o Seminário VII (1959-60) de Lacan, nesta
Dissertação considera-se importante ressaltar algumas das diferenças promovidas na
teorização freudiana, a partir da formulação de um novo modelo de funcionamento do
aparelho psíquico, no texto Interpretação dos sonhos (1900).
No primeiro esquema apresentado no Projeto (1895),
Freud tentava representar verdadeiramente um aparelho, que em seguida tentava fazer funcionar como um gânglio autônomo, a regular a pulsação entre as pulsões internas ao organismo, e as manifestações de procura do ser vivo em busca do que precisa. (LACAN, 1959-60)
Em Interpretação dos sonhos (1900), o esquema construído por Freud “se
refere a algo de muito mais imaterial”, passando a prescindir de um suporte anatômico
para sua estruturação. Além disto, ressalta Lacan (1959-60), Freud introduz em seu
funcionamento a dimensão temporal.
Assim, é para exprimir uma característica essencial do sonho que Freud
introduz a noção de regressão. A formulação desta característica exige uma concepção
“tópica” do aparelho psíquico como sendo formado por uma sucessão orientada de
sistemas.
No estado de vigília, esses sistemas são percorridos pelas excitações num
sentido progressivo (da percepção para a motilidade); em contrapartida, no estado de
sono os pensamentos (aos quais é recusado o acesso à motilidade) percorrem o circuito
do aparelho no sentido regressivo até o sistema da percepção.
A análise deste modelo de aparelho psíquico conduz à constatação de que
esse aparelho se estende como uma superfície entre dois pólos: percepção e motilidade.
Recebe os estímulos pelo pólo perceptivo, sendo que, no estágio primitivo, na ficção do
79
arco reflexo, esses estímulos tendem a ser descarregados imediatamente pelo pólo
motor.
Como efeito da circulação da energia no aparelho e da interposição de
obstáculos a esse fluxo, restam marcas duradouras - os traços de memória -, que se
inscrevem no sistema inconsciente. Estes traços se articulam segundo a lógica que rege
o funcionamento do sistema inconsciente, definida por Freud em termos dos processos
de condensação e deslocamento.14
Neste esquema, Freud introduz a função da censura - uma “barragem
seletiva” no acesso dos desejos inconscientes ao pré-consciente-consciente. Como esse
processo de barragem leva ao desprazer, a censura situa-se na origem do recalque
(Verdrängung). Contudo, diz Freud (1900, p.604), quando no estado de sono, a censura
se abranda e permite que os impulsos suprimidos do inconsciente encontrem expressão,
possibilitando uma “realização” do desejo, na medida em que a regressão alucinatória
ocorre mais uma vez.
Dessa forma, o desejo inconsciente é esse retorno a uma experiência
satisfatória, viabilizado pela regressão aos traços inscritos, os quais, como indica Freud
(1900, p.604), vinculam-se às impressões que causaram maior efeito na primeira
infância. Configura-se assim a importância e a eficácia do traço na constituição do
sujeito.
Como foi anteriormente assinalado, Lacan alerta para o fato de que o
aparelho, não obstante tender para o objetivo de manter o organismo vivo, dirige-se ao
engodo e ao erro, na medida em que parece não ser construído para satisfazer a
necessidade, mas para aluciná-la.
A fim de chegar a um dispêndio mais eficaz da força psíquica, é necessário
dar um basta à regressão antes que ela se torne completa, de maneira que não avance
além da imagem mnemônica e seja capaz de buscar outros caminhos que finalmente a
conduzam à desejada identidade perceptiva que está sendo estabelecida a partir do
mundo externo. Noutras palavras, torna-se evidente que tem de haver um meio de
“verificação da realidade” (FREUD, 1919), isto é, de constatação da correspondência
entre o que foi percebido como real e a realidade propriamente dita (assunto a ser
abordado mais adiante).
14 Aos processos de condensação e deslocamento Lacan vai fazer corresponder, no funcionamento do inconsciente, as operações da metáfora e da metonímia, coerentemente com sua afirmação: “O inconsciente é estruturado como uma linguagem”.
80
Essa inibição da regressão e o conseqüente desvio da excitação tornam-se
matéria do sistema pré-consciente-consciente, que se encontra no controle do
movimento voluntário. Contudo, o processo que envolve a atividade de pensamento
(desviada da imagem mnemônica até o momento em que a identidade perceptiva é
estabelecida pelo mundo exterior) ainda assim constitui, mesmo indiretamente, a
realização do desejo que se tornou necessário pela experiência, “uma vez que nada
mais, a não ser um desejo, pode colocar nosso aparelho mental em ação” (FREUD,
1900, p.604).
Nesta via, um outro princípio entra em jogo para exercer uma instância de
realidade e se apresentar essencialmente como da ordem de uma “correção”, ou ainda de
uma “retificação” do princípio do prazer – o princípio de realidade.
Em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, Freud
(1911) retoma as linhas de pensamento já desenvolvidas no Projeto (1895) e,
posteriormente, na Interpretação dos sonhos (1900), segundo as quais o estado de
repouso psíquico foi originalmente perturbado pelas exigências peremptórias das
necessidades internas. Quando isto aconteceu, tudo o que havia sido desejado foi
simplesmente apresentado de maneira alucinatória, tal como ainda acontece a cada noite
com os pensamentos oníricos.
Foi apenas a ausência da satisfação esperada, o desapontamento
experimentado que levou ao abandono desta tentativa de satisfação por meio da
alucinação. Em vez disso, o aparelho psíquico teve de decidir formar uma concepção
das circunstâncias reais no mundo externo e empenhar-se por efetuar nelas uma
alteração real. Assim, um novo princípio de funcionamento mental, o “princípio da
realidade”, passou a operar, promovendo um passo na estruturação do psiquismo.
O modo pelo qual o princípio da realidade opera é apenas rodeio, precaução, retoque, retenção. Ele corrige, compensa o que parece ser a tendência fundamental do aparelho psíquico, e opõe-se a ela.” (LACAN, 1959-60, p.45).
O conflito é introduzido aqui na base, na origem mesmo de um organismo
que parece afinal, sobretudo, destinado a viver. No seminário A Ética da Psicanálise
(1959-60), Lacan afirma que “nunca antes de Freud se havia chegado tão longe na
explicação do organismo no sentido de uma inadequação radical”, na medida em que o
desdobramento dos princípios é efetuado para ir contra a tendência manifesta no
princípio do prazer: a de levar o aparelho a uma realização alucinatória do desejo.
81
Contudo, afirma Freud (1911), a substituição do “princípio do prazer” pelo
“princípio da realidade” não implica a total deposição daquele, mas, de certa forma, o
seu prolongamento, no sentido de que um prazer momentâneo, incerto quanto a seus
resultados, é posto de lado, mas apenas a fim de ganhar mais tarde, ao longo do novo
caminho, um prazer seguro.
No pensamento de Freud (1900), quando no sistema psíquico se reatualiza
um estado de desejo, prontamente ocorre o investimento da lembrança do objeto, na
tentativa de repetição da primeira experiência de satisfação, abrindo, assim, uma via
direta para o processo de descarga. Nesse caso, deixa de ocorrer a satisfação porque o
objeto não é real, estando presente apenas como alucinação.
3.2 UM RETORNO AO PROJETO FREUDIANO
Esta questão, já mencionada, encontra-se ainda mais fortemente articulada
no Projeto, como afirma Lacan (1959-60). A partir desta indicação, convém retomar-se
o texto de Freud (1895). Na medida em que o sistema ψψψψ não dispõe de acesso direto ao
mundo externo, não tem condições, por si só, de distinguir entre a idéia (Vorstellung)
que se inscreve como traço na memória ψψψψ e a nova percepção (Wahrnemung) de um
objeto.
Para que essa diferenciação ocorra, evitando uma descarga ineficaz, que
conduziria ao desprazer, seria necessário que o sistema ψψψψ tivesse acesso a informações
sobre o mundo externo provenientes da percepção. Esta função é desempenhada pelo
sistema percepção-consciência, ωωωω, por meio do seguinte mecanismo: no surgimento de
cada uma das novas percepções externas, produz-se em ωωωω uma excitação qualitativa que
leva a uma descarga, a qual, por sua vez, conduz a informação a ψψψψ. Deste modo, a
informação de descarga proveniente de ωωωω constitui uma indicação de qualidade
(Qualitätszeichen)15,que vai indicar a ψψψψ que se trata de uma percepção.
15 Os signos de qualidade (Qualitätszeichen) fornecidos pelo sistema ωωωω são, em última instância, índices de descarga motora, que, por sua ligação com a percepção, tornam-se também signos de realidade (Realitätszeichen).
82
Contudo, quando a imagem (Vorstellung) do objeto desejado é fortemente
investida a ponto de ser reativada de forma alucinatória, uma dificuldade se apresenta,
na medida em que, também neste caso, produz-se inadequadamente uma indicação de
descarga em ωωωω, tal como no momento da percepção externa. A tese de Freud é que isto
ocorrerá, a menos que uma inibição por parte do “eu” impeça que se produza o signo de
realidade.
Freud postula que os signos de qualidade, quando provenientes do mundo
exterior, sempre se produzem independentemente da intensidade do investimento
naquele objeto da percepção. Contudo, quando ligados a estímulos provenientes do
interior do sistema ψψψψ, eles somente ocorrem se a intensidade do investimento for
elevada.
Neste sentido, somente com a inibição por parte do “eu”, o investimento do
objeto do desejo se faz de forma moderada, permitindo ao aparelho reconhecer esse
objeto como real ou não. Caso a inibição não ocorra, como já se afirmou, a intensidade
do investimento dos traços mnêmicos correspondentes à lembrança ou à idéia do objeto
será semelhante à produzida pelo objeto da percepção externa. A função da inibição por
parte do “eu” é, portanto, fundamental para que, conjuntamente com as indicações de
realidade, seja possível estabelecer-se um critério eficaz para distinção entre idéia e
percepção.
Fazendo parte deste processo, que possibilitará ao aparelho psíquico
diferençar lembrança e idéia, Freud (1895) inclui o mecanismo da atenção psíquica. A
atenção é um mecanismo ψψψψ que estabelece um estado de expectativa voltado para
aquelas percepções que apenas parcialmente coincidem (ou simplesmente não
coincidem) com o investimento-desejo16. Este mecanismo mostra-se de extrema
importância porque é ele que vai abrir maiores oportunidades de encontrar, dentre as
múltiplas percepções, aquela que é desejada.
A experiência ensinará a não iniciar a descarga até chegar a indicação de
realidade e, tendo em vista esta possibilidade, ensinará a não exercer o investimento das
lembranças desejadas além de certa quantidade.
16Mais adiante será abordada a análise das três possibilidades que põem em curso o processo de pensamento tal como formulado por Freud (1895).
83
Ainda com referência a este ponto, Freud (1895) questiona se seria possível
o surgimento de indicações de qualidade, não somente com relação ao objeto da
percepção, mas à “passagem associativa da quantidade” (Freud, 1895, p.379) no interior
do aparelho psíquico. Para tanto, tratar-se-ia de obter uma indicação desta passagem de
Qn que, ao se vincular a uma descarga (além da mera circulação), forneceria uma
informação sobre o movimento. Afinal, afirma Freud, as próprias indicações de
qualidade do objeto da percepção externa constituem informações de descarga. Assim,
durante a passagem de Qn, pode ocorrer que também fique catexizado um neurônio
motor, que então descarregará a Qn, fornecendo uma indicação de qualidade.
Neste contexto, Freud introduz a noção de “associações da fala”
(Sprachnoziationem): conexões de neurônios ψψψψ com neurônios utilizados nas
representações sonoras, estas, por sua vez, intimamente associadas com imagens verbais
motoras. Quando as imagens mnêmicas são de tal natureza que um investimento pode
partir delas para as imagens sonoras e para as imagens verbais, este investimento é
acompanhado por informações de descarga, o que constitui uma indicação de qualidade,
mas também cumpre a função de possibilitar a indicação de que a lembrança é
consciente, o que não era possível até então.
Ainda com relação à função das associações da fala, Freud assinala que ψψψψ
não dispõe de meios para discernir entre os resultados dos processos de pensamento
(ligados à memória) e os resultados dos processos perceptivos, na medida em que o
“eu” também investe os neurônios ψψψψ e aciona passagens que certamente devem deixar
traços na forma de facilitações. Nesta via, as indicações de descarga verbal permitem
uma diferenciação, ao equiparar os processos de pensamento aos processos perceptivos,
conferindo-lhes realidade e possibilitando o seu reconhecimento e a sua lembrança.
Seguindo com as considerações acerca da importância das associações da
fala, Freud (1895, p.380) retoma a experiência de satisfação para afirmar que a primeira
via de descarga para o recém-nascido em seu estado de desamparo - o grito - constitui-
se em uma “inervação da fala”. Tal inervação, designada por Freud não como da ordem
do orgânico, mas da fala, atua como “válvula de segurança”, servindo para regular as
oscilações de Qn frente à invasão promovida pelo aumento da excitação.
Essa primeira “inervação da fala” adquire, como anteriormente mencionado,
uma função secundária ao atrair a atenção da pessoa que auxilia (o Outro) para o estado
de anseio e aflição da criança, passando a servir ao propósito da comunicação.
84
No início da função judicativa (tópico a ser abordado a seguir), quando as
percepções despertam interesse devido a sua possível conexão com o objeto desejado,
emergem dois vínculos em relação ao enunciado da fala:
1.º) Existem objetos - percepções - que fazem o bebê gritar porque lhe
provocam dor. É de extrema importância, diz Freud (1895, p. 381), notar que essa
associação de um som (grito), que também desperta imagens motoras do próprio sujeito,
a uma imagem perceptiva ressalta o caráter hostil do objeto e tem como função dirigir a
atenção para a imagem perceptiva. Em uma situação em que a dor impede o
recebimento de boas indicações da qualidade do objeto, a “informação sobre o grito do
próprio sujeito” (FREUD, 1895, p. 381) serve para caracterizar o objeto, no caso
configurando-o como hostil. Essa associação é, portanto, um recurso para conscientizar
as lembranças que provocam desprazer e convertê-las em objetos da atenção. Dessa
forma cria-se uma primeira categoria de “lembranças conscientes”. E diz Freud: “Pouco
falta agora para inventar a fala”.
No Seminário 7 (1959/60), Lacan afirma que sem o grito o infans, em seu
estado de desamparo, só teria do objeto desagradável a mais confusa noção, pois o grito
circunscreve a existência do objeto hostil (feindliche Objekt), promovendo uma
diferenciação no contexto das percepções do sujeito. Neste sentido, o grito cumpre a
função de descarga e a de ponte, em cujo nível algo do que ocorre pode “ser pegado” e
identificado na consciência do sujeito. “Este algo permaneceria obscuro, não destacável
e nem mesmo diferenciável se o grito não viesse conferir seu valor, sua presença, sua
estrutura” (1959/60, p.68).
Neste ponto, cumpre destacar, no primeiro caso clínico apresentado, a
importância do surgimento do grito da paciente, em um momento do tratamento em que,
diferentemente do que havia ocorrido até então, o grito, passou a fazer diferença,
inclusive para os pais, a quem esse grito remeteu a um não-saber o que ocorria com a
filha. Essa falha no modo como a mãe “adivinhava” aquilo de que a filha precisava,
promoveu, como foi assinalado, uma mudança a partir do momento em que, sem outra
alternativa, os pais passaram a falar com a filha, na tentativa de interpretar a que
apontava o seu grito.
Neste ponto, é oportuno sublinhar esse momento do tratamento de Íris, que,
de um estado inicial de uma tão grave indiferenciação da realidade, passou a realizar
85
toda uma rearticulação, com efeitos na possibilidade de vir a falar ao Outro sobre o que
estava acontecendo com o próprio corpo.
2.º) Freud assinala ainda que existem outros objetos que emitem
constantemente certos sons. Em virtude da tendência à “imitação” que surge durante o
processo judicativo (abordado mais à frente), é possível encontrar informações de
movimento que correspondam a essa imagem sonora. Ou seja, conforme referência
anterior, quando uma percepção, um grito desperta a imagem mnêmica de uma sensação
de dor do próprio sujeito, de modo que este sinta o desprazer correspondente, ao mesmo
tempo se repete o movimento defensivo adequado. Neste sentido, também essa espécie
de lembranças pode agora, por meio dessas associações, vir a se tornar consciente.
Por serem inconscientes esses processos e unicamente na medida em que se
produzem palavras, é que o sujeito tem acesso aos pensamentos. Este ponto é de grande
importância para a presente pesquisa sobre o autismo, especificamente com relação ao
primeiro caso clínico, em que tal era a gravidade do estado da paciente no momento
inicial do tratamento, que não lhe era possível, aos seis anos, articular nenhuma palavra
que expressasse o que se passava em sua mente, ou melhor, que estabelecesse qualquer
laço de comunicação com as pessoas a sua volta.
Nesta via, como assinalado anteriormente, Lacan (1974, p.125) formula que
o homem pensa com a ajuda de palavras. Portanto, no encontro entre essas palavras e o
próprio corpo, algo se esboça, na via de um laço com o Outro. Faz-se, assim, oportuno
abordar o complexo do Nebenmensch, a seguir.
3.2.1. O complexo do Nebenmensch
No Seminário A Ética da Psicanálise (1959-60), Lacan indica que é por
intermédio do Outro,
[...] àquele que Freud designa com uma belíssima expressão - o Nebenmensch, como sujeito falante, que tudo o que se refere aos processos de pensamento pode tomar forma na subjetividade do sujeito. (LACAN, 1959-60, p.53)
86
No Projeto (1895), ao avançar em sua análise sobre o processo de
subjetivação, Freud introduz a noção do Nebenmensch, a partir do estudo de três
situações nas quais o aparelho psíquico é chamado a distinguir entre a representação-
lembrança, decorrente do investimento do desejo, e a representação-percepção,
decorrente do objeto externo. Seguem-se as três referidas situações.
1.ª) Simultaneamente à catexia de desejo da imagem mnêmica acha-se a
percepção dessa mesma imagem. Assim, as duas catexias coincidem, fazendo com que a
descarga seja eficaz. Freud considera este um caso-limite ideal, que possivelmente não
corresponda a nenhum momento real da experiência do sujeito.
2.ª) Nesta situação, a mais comum, a coincidência entre a catexia de desejo e
a percepção é apenas parcial, na medida em que as catexias perceptivas nunca se
apresentam na forma de neurônios isolados, mas sempre de complexos de neurônios.
Expresso em letras, os complexos podem ser decompostos em:
- Complexo perceptivo: a+ b;
- Complexo desiderativo: a+ c.
Comparando-se os dois complexos, percebe-se que o primeiro elemento de
cada um, o neurônio a, nomeado “a coisa” (das Ding), mantém-se “idêntico”. Já o
segundo elemento, o neurôno b, nomeado “o predicado”, é “variável”, na medida em
que apresenta os atributos do objeto. Assim, no processo de análise comparativa dos
complexos perceptivo e desiderativo, a parte constante, de identidade, é a = a, e a
variável, que estabelece uma diferença, b ≠ c.
Assim, na medida em que entre os complexos ocorre apenas semelhança e,
não, identidade, não é indicado iniciar a descarga.
Dessa forma, de um lado há um adiamento da ação, por meio da inibição da
descarga por parte do eu, e de outro lado inicia-se uma atividade do pensamento que
envolve um juízo17.
Os processos de judicação podem ser distinguidos em primários e
secundários. A função primária pressupõe um grau menor de influência inibitória por
parte do “eu”. Toda judicação secundária, em função da inibição promovida pelo “eu”,
17 Freud (1895, p.344) denomina juízo a esse processo de análise que busca “aperfeiçoar” a semelhança, convertendo-a em identidade.
87
surge por atenuação dos processos puramente associativos, e talvez seja esta a sua
função primordial: implica um reconhecimento (Erkennem) do objeto, presente ou não
na realidade, por meio da associação de catexias do interior do corpo com as do
exterior. Como o objetivo do juízo é promover de certa forma a coincidência entre as
catexias, uma vez concluído este processo, torna-se possível a descarga na via da
realização da ação específica.
A “coisa”, das Ding, é o que resta como o “não-comparável”, o
“inassimilável” à articulação dos juízos primário e secundário. É uma konstante
Structur, uma constante presente no estado de desejo e na percepção, mas sem pertencer
propriamente a nenhum dos dois. É resto, mas funciona também como causa desses
processos. Está fora, apesar de todo o sistema de substituição apoiar-se nela.
Ao aprofundar a análise deste processo, Freud (1895, p.346) indica que, se o
neurônio a coincide (nos complexos desiderativo e perceptivo), mas o neurônio c é
percebido em lugar de b, o processo de julgar, posto em curso em ψψψψ, segue as conexões
desse neurônio c e, mediante uma corrente de Qn ao longo dos trilhamentos já
estabelecidos em ψψψψ, faz surgirem novas catexias até ser encontrado um acesso possível
para o neurônio b, ainda não encontrado.
Neste sentido, convém destacar a exemplificação deste processo no lactente:
Suponhamos, por exemplo, que uma imagem mnêmica desejada (pela criança) seja a do seio materno com o mamilo, visto de frente, e que a primeira percepção obtida seja uma visão lateral, do mesmo objeto, sem o mamilo. Na memória da criança há uma experiência casualmente adquirida no ato de mamar, segundo a qual a imagem frontal se converte em lateral mediante determinado movimento de cabeça. A imagem lateral agora percebida conduz à imagem do movimento da cabeça; um teste experimental mostra que o equivalente desse movimento deve ser executado para se obter a percepção da imagem frontal. (FREUD, 1895, p .380)
Assim, neste caso, como já mencionado, o objetivo da atividade judicativa é
promover o estabelecimento de uma identidade, o que viabiliza a descarga.
3) Chega-se agora a uma terceira possibilidade, que pode surgir no estado de
desejo. Na catexia de desejo, pode emergir uma percepção que não coincide, de modo
algum, com a imagem mnêmica desejada. Surge, então, um interesse em conhecer essa
imagem perceptiva. Suponha-se que o objeto apresentado pela percepção seja similar ao
próprio sujeito - um outro ser humano. Freud nomeia este complexo perceptivo como o
88
“complexo do Nebenmensch” (Neben: próximo; Mensch: homem). Assim, esta
expressão corresponde ao homem próximo, o vizinho ou, ainda, o semelhante.
O complexo do Nebenmensh divide-se em dois componentes: a + c. Um,
por sua estrutura constante, produz uma impressão que persiste, idêntica: a coisa (das
Ding), enquanto o outro pode ser compreendido pela atividade da memória, isto é, pode
ser rastreado até as informações sobre o próprio corpo do sujeito. Essa análise do
complexo perceptivo descreve como o conhecimento desse processo envolve um juízo e
chega ao término uma vez atingido seu objetivo.
3.2.2 O real como das Ding
Retomam-se agora as questões lançadas por Freud acerca de das Ding no
Projeto, articuladas com a interpretação dada a esta noção por Lacan.
Ao abordar a problemática relativa a das Ding, Freud (1895, p.) destaca que
“a coisa” é a porção que não resulta da compreensão. Pode-se ainda afirmar que “a
coisa” não se integra no sistema mnêmico, ou seja, na memória que o sujeito tem de
seus próprios movimentos e dos movimentos do outro. A coisa é sempre alheia,
estranha, assumindo o caráter de irredutível a toda compreensão, juízo ou pensamento.
No Seminário A ética da psicanálise (1959-60), Lacan assinala que, a partir
dessa formulação freudiana,
Tudo aquilo que é qualidade do objeto, que pode ser formulado como atributo, entra no investimento do sistema ψ e constitui as Vorstellungen primitivas em torno das quais estará em jogo o destino do que é regulado segundo as leis do Lust e do Unlust, do prazer e dos desprazer, naquilo que se pode chamar de as entradas primitivas do sujeito. Das Ding é absolutamente outra coisa. (LACAN, 1959, p. 68)
O que ocorre, portanto, é uma divisão original da experiência da realidade.
No texto Verneinung (1926), Freud vai ressaltar a função daquilo que, do
interior do sujeito, encontra-se originalmente levado para um primeiro exterior - um
exterior que não se refere diretamente a essa realidade, na qual o sujeito terá, em
seguida, de distinguir as Qualitätszeichen que vão indicar os trilhamentos pelos quais
deve seguir em busca de sua satisfação.
89
Ainda nesse Seminário, Lacan aborda das Ding como o elemento
originalmente isolado pelo sujeito em sua experiência do Nebenmensch e identificado
como estranho (Fremde) por sua natureza.Em torno do Ding como estranho e podendo
até mesmo ser hostil, mas em todo caso como primeiro exterior, é que se funda toda a
orientação do ser humano em direção ao objeto de seu desejo. Este objeto que se trata
de reencontrar é definido como “objeto perdido”.
O “princípio do prazer”, como foi afirmado, governa a busca do objeto
perdido e lhe impõe os rodeios, promovidos pela transferência da quantidade entra as
Vorstellungen, mantendo a busca sempre a uma certa distância da coisa (das Ding) e
marcando, dessa forma, a impossibilidade de o sujeito reencontrar a satisfação da
primeira experiência.
Nesta via, das Ding é originalmente o que Lacan denomina “o fora-do
significado” (1969), excluído definitivamente do campo da palavra. É em função desse
“fora do significado” e de uma relação com ele que o sujeito conserva sua distância e
constitui-se num mundo de relação, de afeto primário, anterior a todo recalque
(Verdrängung). Toda a primeira articulação do Projeto (1895), afirma Lacan (1969),
gira em torno deste ponto. Sendo assim, em relação a das Ding original é feita a
primeira orientação, a primeira escolha, o primeiro assento da orientação subjetiva a que
se chamará Neurosenwahl - a escolha da neurose. Essa primeira articulação regulará
doravante toda a função do aparelho psíquico.
Seguindo no Seminário sobre a Ética (1969), Lacan articula que Freud, em
sua descoberta do inconsciente, define que a lei fundamental, aquela a partir da qual
começa a cultura, por oposição à natureza, é a lei da interdição do incesto. Esta lei
determina a inacessibilidade da mãe. É o que está no fundamento de das Ding, uma vez
que “a coisa” encontra-se no registro da impossibilidade.
Lacan (1969) situa das ding como a mãe, o “Outro absoluto”, a primeira
experiência de satisfação, os primeiros traços como restos desta experiência que o
sujeito visa a reencontrar. E como Das Ding se refere ao “intangível”, o desejo humano
se constitui, em sua essência, em desejo sempre de outra coisa.
Nesta via, Lacan (1959-60) reafirma que a impossibilidade de realização do
incesto referida à manutenção da distância entre o sujeito e este objeto primeiro, a mãe,
é o que orienta toda a estruturação do psiquismo. Assim, é justamente nesta distância
entre o sujeito e o objeto primeiro de seu desejo que reside a condição da fala.
90
3.2.3 O Outro da linguagem
A abordagem da noção freudiana do complexo do Nebenmensch (Freud,
1895, p.) possibilita agora focalizar-se a questão que norteia este trabalho: as condições
de viabilidade para que o infans aceda à linguagem.
No Projeto, como foi assinalado, a primeira experiência de satisfação é
inteiramente suspensa ao Outro. O Nebenmensch foi para o recém-nascido, em seu
estado de “desamparo” (Freud, 1895), o primeiro objeto satisfatório, mas também o
primeiro objeto hostil, além de sua única força auxiliar na realização das ações
específicas que promoveriam uma alteração no mundo externo.
O grito é, a princípio, um meio de descarga da tensão acumulada e, ao
mesmo tempo, a expressão do estado de desamparo primordial em que se encontra o
infans. De início, nos termos do Seminário III de Lacan (1957), pode-se afirmar que o
grito, como pura descarga, toma o caráter de “uivo”, apresentando, por um lado, uma
função vocal absolutamente a-significante e, por outro lado, contendo todas as
significações possíveis, assim se constituindo em um “puro significante”.
Contudo, no momento em que o Outro decide compreender o estado de
urgência em que se encontra a criança e não somente escuta o grito-uivo, mas o
interpreta, dando-lhe uma significação (por mais elementar que seja), o grito passa ao
estatuto de “apelo”. Assim, o grito atravessa o Outro constituindo, em sua função
primordial, a porta de entrada do infans na linguagem.
Dessa forma, somente em um segundo momento o grito se torna apelo ao
outro. Como Outro, a mãe está em posição de interpretar este apelo como significante.
Elevada assim à posição de Outro para a criança, a mãe assujeita-a ao universo de seus
próprios significantes, visto que mobiliza, por meio de sua ação específica, uma
resposta ao que ela mesma previamente interpretou como um suposto pedido de ajuda.
Em sua função, a mãe apresenta-se ao bebê como um Outro falante18 que,
por meio dessa fala, indica-lhe insistentemente os primeiros pares de significantes; ela
faz o infans ouvir as diferenças de sons, demanda-lhe a repetição destes sons, mostra-
lhe o que ele experimenta. Nesta via, o que está em jogo nesse primeiro encontro do
18 Lacan assinala que os objetos mais importantes em questão para o sujeito são “objetos falantes”, que permitirão ao infans apreender no discurso dos outros os processos que habitam efetivamente o Inconsciente. Neste sentido Lacan afirma que “O inconsciente é o discurso do Outro” (LACAN,1959, p.).
91
bebê com a mãe é a apresentação de um lugar para o enodamento e a produção da
cadeia significante.
Neste ponto, convém retomar a questão do grito, já citada anteriormente, a
partir do Seminário Problemas cruciais da psicanálise (1965). Nesse texto Lacan indica
que o grito se diferencia de qualquer outra forma de linguagem por fazer ressoar um oco
do Outro que se encontra no próprio sujeito, esse oco infranqueável do qual o sujeito se
aproxima com precaução.
Assim, o grito constitui o vazio por onde o silêncio se precipita. Se Lacan,
em sua primeira articulação sobre o grito (1953-54) o situa na dimensão de uma
anterioridade lógica à articulação da cadeia significante, ao retomar a questão em 1965
enfocará o grito na sua relação com o vazio do Outro que ele próprio (o grito) cava.
Neste contexto, Lacan cita o quadro de Munch, em que o sujeito, ao gritar,
tampa os ouvidos. Quem escuta esse grito? - pergunta-se.
O contorno de duas figuras sobre a ponte presentifica o Outro. Há uma borda feita de três barras, que divide o quadro no sentido diagonal e separa a ponte de um turbilhão de linhas curvas que apresentam o vazio aspirante, esse abismo que é a face real do Outro, onde o grito repercute sobre uma baía azul num céu cor de sangue. Nós estamos frente ao quadro que nos requer um olhar. Munch dá o suporte para o insuportável... Quem escuta este grito? Pois nós temos o silêncio. O grito produz o silêncio. (VIDAL, 1994, p.121)
Nesta via, pode-se afirmar que o grito constitui uma hiância em função da
qual se configura a borda do vazio do Outro, necessária para a constituição do ser
falante.
3.2.4 O outro do imaginário
Retomando o Projeto (1895), Freud afirma que, a partir do semelhante, o
sujeito aprende a reconhecer. É, portanto, em relação aos semelhantes que o ser
humano, de início, aprende a (re)conhecer, pois os complexos perceptivos emanados
desse ser serão, por um lado, novos e incomparáveis e, por outro, o sujeito neles
reconhecerá os seus próprios traços. Assim, na esfera visual, as percepções do
movimento das mãos coincidirão no sujeito com a lembrança de impressões visuais
muito semelhantes experimentadas no próprio corpo do sujeito.
92
Neste caso, com base em Lacan pode-se ressaltar que o semelhante, como
outro (com minúscula) e imagem, informa o sujeito sobre os movimentos de seu próprio
corpo. Nesta via, o semelhante permite a constituição do infans como corpo, em
especularidade à imagem do corpo do outro.
No começo o próprio corpo é o corpo do outro; a imagem do outro é a
própria imagem, fundamento da identificação pela qual o “sujeito da superfície” quer se
ver como unidade: “O corpo do outro lhe é tão próximo como o seu. Teria podido amá-
lo da mesma forma que a ele mesmo antes que ele fosse outro e que ele lhe seja tão
próximo como o seu”. (LACAN, 1974, p.75)
Neste sentido, é possível concluir que, em sua função primordial, a mãe
aparece no lugar do outro nas três dimensões que a partir de Lacan podem ser
distinguidas na experiência analítica:
- No Real, como das Ding;
- No Simbólico, como o Outro da linguagem;
- No imaginário, como semelhante.
Ao abordar a experiência de satisfação como uma questão crucial para o
tema desta Dissertação, faz-se necessário levar em conta que esse primeiro momento da
constituição do sujeito ocorre em função do lugar em que a criança se situe no desejo do
Outro. A mãe, ao ocupar o lugar do Outro, conforme assinalado, apresenta a falta que o
infans é chamado a suturar. Na abordagem deste ponto se recorrerá à carta de Lacan a
Jenny Aubry (1969), em que o autor situa o lugar da criança como objeto no fantasma
do Outro.
3.3 O LUGAR DA CRIANÇA NO FANTASMA DO OUTRO
Nas duas notas a Jenny Aubry, Lacan assinala que a criança é tomada como
objeto da mãe e, tanto na neurose quanto na perversão ou na psicose, a criança é
chamada a revelar a verdade desse objeto a19 que tampona a falta materna.
Lacan distingue dois casos que se apresentam na experiência clínica. No
primeiro, o sintoma da criança está em posição de responder ao que há de sintomático
19 O conceito de objeto “a” em Lacan será abordado posteriormente.
93
na estrutura familiar. Este é o caso mais complexo, mas também mais aberto às
intervenções do analista.
No segundo caso, o sintoma que chega a dominar a problemática da criança
compete diretamente à subjetividade da mãe. Neste caso, a criança está implicada como
objeto do fantasma da mãe sem que uma mediação - o que normalmente é assegurado
pela função paterna - possa operar eficazmente. Assim, a criança encarna, com seu
corpo, o objeto a, e sua única função é revelar a verdade deste objeto.
No Seminário RSI (1977) Lacan ressalta que a dissimetria entre os sexos
produz lugares diferentes para o homem e a mulher como pais. Assim, para o homem
torna-se crucial transformar uma mulher em sua falta, no objeto que causa seu desejo,
no objeto “a”, já que através desse movimento mostra sua relação com a falta própria da
estrutura. Para a mulher, os filhos estão colocados neste lugar do objeto “a”, enquanto
se tornam uma forma de abordar a questão de seu Penisneid20. Neste sentido, evidencia-
se uma ênfase na posição de cada um dos pais frente à castração. A questão, portanto, é
que, no caso em que a mediação da função paterna não opera, a criança como objeto
venha a “saturar” e a “suturar” a falta da mulher, trazendo-lhe um “complemento de
ser”, acarretando as mais graves conseqüências para a possibilidade de uma constituição
do sujeito como desejante.
Como mencionado anteriormente, Rosine Lefort destaca que na clínica do
autismo a depressão materna tem as mais decisivas conseqüências para a problemática
que vem a se instaurar na criança autista. Em sua depressão, a mãe, de certa forma
“tomada” pela impossibilidade de realizar o luto, em função de uma perda vivida como
impossível de se confrontar, colocaria em questão a própria falta e o próprio desejo, no
momento do nascimento dessa criança. Desta forma, a mãe, “preenchida” por um gozo
mantido por esse estado depressivo, não teria condições de se apresentar à criança como
um Outro a quem falta algo, um Outro que em sua falta esperaria que a criança viesse a
se acomodar como objeto de sua falta. Neste sentido, sem esta falta, a mãe não saberia o
que esperar da criança, nem mesmo o que lhe dar, em termos de palavra, colocando em
questão todo um primeiro momento em função do qual, conforme o texto de Freud, faz-
se um primeiro laço do infans, em seu desamparo, com o Outro primordial.
No primeiro caso clínico citado nesta Dissertação, é possível circunscrever
que a depressão materna que se apresentou no período da gravidez, abrangendo o
20 No artigo Sobre a teorias sexuais infantis (1908), Freud refere-se a Penisneid (inveja do pênis) como uma das características da sexualidade feminina.
94
nascimento de Íris, pareceu de certa forma “tomar” a questão subjetiva da mãe, sendo
marcante que do nascimento da filha ela só falasse do estado depressivo e da iminência
da própria morte, quando então pôde dizer o que havia calado até então: sua tristeza por
estar “isolada”em um outro país. Contudo, sobre a filha, propriamente, a mãe não
chegou a enunciar nenhuma palavra.
Após o nascimento de Íris, segundo o discurso da mãe, as duas haviam
passado tantos sofrimentos juntas, principalmente quando da ausência do pai, que de
certa forma “nada faltava” entre elas, a tal ponto que, sem ser necessário falar, a mãe
sabia do que a filha precisava. Nesta pretensa harmonia entre mãe e filha, a mãe afirmou
que pareciam “uma” única pessoa. Contudo, havia pelo menos “um espaço de tempo”
em que a mãe se dirigia à filha: o momento do banho, Quando então a mãe brincava
com a filha, emitindo sons, e lhe dava a mamadeira enquanto a menina ainda estava na
banheira.
No segundo caso clínico, a mãe dizia-se em uma grave depressão quando do
nascimento do filho, segundo ela devida não só às circunstâncias de seu casamento, mas
inclusive pela grande dificuldade de se colocar em posição de exercer a função materna,
como conseqüência das marcas das muitas agressões que haviam ficado para ela em
relação à própria mãe. Em decorrência, a mãe de Paulo não se sentiu em condições de
acolher o filho nos braços, nem mesmo de escutar os choros do bebê. Esperava que ele
dormisse o tempo todo para não ter que se deparar com seus apelos.
No entanto, ao longo do tratamento de Paulo, quando este já falava algumas
palavras endereçadas ao Outro - o que promoveu uma grande mudança em seu
posicionamento perante as pessoas a sua volta -, tornou-se possível para a mãe revelar
ao analista que, a partir das mudanças efetuadas durante o tratamento, principalmente a
partir do momento em que o paciente passou a uma fala articulada, ela finalmente
pudera concluir que a problemática de seu irmão (dela), do qual cuidara até a morte,
causada por doença degenerativa dos músculos era diferente da de Paulo. Foi uma perda
que até há pouco tempo não tinha condições nem mesmo de mencionar. Ao dizer isto,
falou de uma mudança em sua condição em acolher o filho de uma outra forma,
enunciando que agora poderia nomear-se “mãe!”.
Pode-se considerar, portanto, que se operou uma análise com a criança; seus
efeitos repercutiram, inclusive, no campo do Outro, na medida em que a criança deixou
de ser o objeto que completava o “furo” do Outro, ou ainda não mais respondeu com
seu alheamento a algo da ordem do lugar em que era esperada.
95
Ainda nas notas a Jenny Aubry (1969), Lacan formula que, para um sujeito
advir, ele deve estar descentrado da satisfação das necessidades, ou seja: que a
possibilidade de uma constituição subjetiva, a partir do campo do Outro, implica a
relação com um desejo do Outro que não seja anônimo. Assim, a função materna
envolve a sustentação de um desejo que porte uma marca particularizada que situe o
sujeito em um lugar frente ao qual esse sujeito dê uma resposta. Nesse contexto, a
função do pai21, só é possível operar, na medida em que seu nome se constitua no “vetor
de uma encarnação da lei no desejo” (LACAN, 1969, p.57).
No desdobramento da questão sobre a qual se discorreu ao longo desta
Dissertação, que envolve, como se afirmou, as condições de entrada do infans na
linguagem, será destacada, a seguir, a articulação promovida por Lacan (1959) em torno
das primeiras experiências do sujeito nos termos de necessidade, demanda e desejo.
3.4 NECESSIDADE, DEMANDA E DESEJO
Antes do nascimento, por sua condição de ser falante, o sujeito já está
submetido ao mal-entendido de habitar a linguagem.
O Outro é primordialmente o lugar de um saber, da suposição de um saber
responder às demandas do sujeito. A mãe, ao ocupar o lugar do Outro, veicula uma
palavra que, ao decidir sobre as significações das manifestações do recém-nascido,
porta a marca do capricho do Outro, de seu “caráter insensato”. A entrada do vivente na
linguagem faz-se ao preço dessa submissão na qual o Outro, em um primeiro momento,
representa o poder da palavra sobre o sujeito.
Quando a necessidade se manifesta novamente, a criança pode então utilizar
por sua própria conta o sentido que foi dado à vivência psíquica da primeira experiência
de satisfação. Eis aqui o processo descrito por Freud, no qual o surgimento do desejo é
sustentado pela reativação de um traço mnêmico por ocasião do estado de urgência.
21 No Seminário As formações do inconsciente (1957/58), Lacan formaliza que o pai é uma metáfora. Ou seja, o Nome do pai é um significante que vem substituir o significante do desejo da mãe. Como efeito dessa operação metafórica surge a significação fálica.
96
A imagem mnêmica, reinvestida com o reaparecimento do estado de desejo,
molda-se doravante numa vivência alicerçada pela rede significante do Outro. Assim, a
criança passa a querer fazer-se entendida pelo Outro e, em seu endereçamento ao Outro,
mobiliza-se na via de uma demanda de satisfação esperada. Ao propor o termo
“demanda”, Lacan ressalta a estrutura da linguagem que está em jogo na relação do
sujeito ao Outro. Se a demanda é expressão do desejo, é de imediato dupla.
Para além da demanda de satisfação da necessidade, perfila-se a demanda do
“a mais”, que é antes de tudo demanda de amor. Ainda que ela incida sobre um objeto
da necessidade, esta é fundamentalmente “inessencial”, porquanto demanda de amor, na
qual a criança deseja ser o único objeto de amor do Outro. Com esta demanda é
entabulada a comunicação simbólica com o Outro, que encontrará posteriormente uma
resolução através da metáfora do nome do pai com o domínio da linguagem articulada.
Por intermédio desta demanda, a criança testemunha sua entrada no universo de desejo,
desejo este que, como formula Lacan, sempre se inscreve entre a necessidade e a
demanda.
A partir da resposta do Outro, como mencionado, articula-se a primeira
experiência de satisfação, inscrevendo o sujeito no campo do desejo. Quando da falta do
objeto, são investidos simultaneamente os traços da experiência de satisfação, e o desejo
emerge presentificando a dimensão de perda e de retorno a uma satisfação já
experimentada. Dessa forma, não há primeiro encontro; trata-se sempre de um
reencontro, pois o objeto é desde sempre perdido.
Dessa forma, pode-se considerar que o sujeito deseja, na medida em que a
satisfação de suas necessidades vitais passa pelo apelo dirigido ao Outro, o que vem a
alterar de certa forma a satisfação, transformada assim em demanda de amor.
A seguir se fará uma breve consideração a respeito da noção do apelo
formulada por Lacan, no Seminário Os escritos técnicos de Freud (1953), no qual o
autor realiza algumas pontuações que constituem importantes indicações para a
abordagem do tema do autismo.
97
3.5 SOBRE O APELO
No Seminário Os escritos técnicos de Freud (1953-54), Lacan afirma que a
primeira comunicação do sujeito refere-se à possibilidade de este vir a fazer um apelo, e
neste ponto o autor ressalva: um apelo verbalizado, diferente, portanto, do apelo afetivo,
mimetizado por todo ser.
Basta que vocês observem um animal doméstico para verem que um ser desprovido de linguagem é inteiramente capaz de lhes endereçar apelos, apelos para atrair sua atenção para alguma coisa que , em certo sentido, lhe falta. Ao apelo humano está reservado um desenvolvimento posterior, mais rico, porque se reproduz justamente num ser que já adquiriu o nível da linguagem. (LACAN, 1953, p.101)
Neste contexto Lacan faz referência ao caso Dick22, assinalando que
linguagem e palavra “não são a mesma coisa” (1953, p.103), o que se evidencia neste
caso, em que a criança, embora já possua seu sistema de linguagem, não acede ao nível
da palavra, ou seja, não fala.
Este ponto se faz importante para esta pesquisa porque, segundo Lacan, no
caso Dick - cuja posição na transferência assemelha-se à das crianças autistas no
tratamento analítico -, o sujeito não fez ouvir nenhum apelo.
Neste ponto, pode-se perguntar o que representa, portanto, o apelo no campo
da palavra. E Lacan assinala que se trata da possibilidade de recusa, pois o apelo, neste
nível, ainda não implica nenhuma dicotomia, nenhuma bipartição. No momento em que
se produz o apelo é que se estabelecem no sujeito as relações de dependência com o
Outro ou, ainda, um laço fundamental.
É então que Lacan assinala que o mundo exterior, o que se chama de um
mundo humanizado, simbolizado, feito da transcendência do símbolo na realidade
primitiva, só se pode constituir quando se produz no “bom lugar” uma série de
encontros. O apelo, portanto, é a condição sine qua non para que o sujeito aceda à
realidade humana.
A partir da pergunta inicial sobre a possibilidade de uma criança que se
encontra no autismo vir a falar com um endereçamento ao Outro, como efeito do
tratamento analítico, realizou-se neste trabalho um primeiro percurso acerca das
condições de entrada do sujeito na linguagem, para então se proceder, em torno de
22 O caso Dick é apresentado por Melanie Klein em seu escrito A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do eu, in Contribuições à psicanálise. São Paulo: Mestre Jou.
98
alguns pontos, à abordagem da problemática que se abateu sobre o infans, cuja única
resposta foi o autismo, em sua ligação ao Outro.
Dando prosseguimento à investigação que norteia esta pesquisa, serão
estudadas mais detidamente, no Capítulo IV, antes das considerações sobre a direção do
tratamento no autismo, algumas passagens ao longo da obra de Lacan, acerca da
estrutura da linguagem na qual o sujeito se constitui.
99
CAPÍTULO IV
É com a dimensão da palavra que se cava no real a verdade... cava-se no real o buraco, a hiância do ser enquanto tal. A noção de ser, desde que tentamos apreendê-la, mostra-se tão inapreensível quanto a palavra. Porque o ser, o verbo mesmo só existe no registro da palavra. A palavra introduz o oco do ser na textura do real, um e outro se mantêm, são exatamente correlativos. (LACAN, 1953/54, p.261)
Na primeira parte desta Dissertação, com o objetivo de interrogar sobre as
condições de entrada do infans na linguagem, fez-se um percurso em Freud partindo da
abordagem de um momento princeps da constituição do aparelho psíquico, a
denominada “experiência de satisfação”. Este percurso, como se mencionou, foi
marcado pelo ensino de Lacan, em seu retorno à letra de Freud. Ressaltou-se que essa
“primeira experiência” se articula em função de um “encontro”, desde sempre marcado
pelo mal-entendido de o ser humano habitar a linguagem, entre as manifestações do
infans, em especial de seu grito e a interpretação a este dada pelo Outro. Esta
interpretação dos sinais emitidos pelo recém-nascido é determinada pelo lugar que a
criança vem a ocupar no desejo do Outro. Dessa forma, somente pela possibilidade de
ao grito ser dada uma primeira significação pelo Outro é que se abre a via para a
articulação de um apelo que vem a constituir um primeiro laço do sujeito ao Outro.
É importante assinalar que desde o Projeto (1895) Freud já formulara que a
possibilidade de estruturação do psiquismo está condicionada a algo que resta exterior
ao processo de articulação dos traços mnêmicos que se inscreveram como resultado da
experiência de satisfação. Dessa forma, a própria inscrição do significante já envolve a
perda da coisa (das Ding), que, ao se constituir no “inassimilável’, refere-se ao estatuto
do objeto perdido. A entrada do sujeito na linguagem, portanto, somente ocorre ao preço
de uma perda.
A partir do presente Capítulo serão focalizadas passagens ao longo da obra
de Lacan que evidenciam algumas das reformulações promovidas pelo autor acerca de
100
sua concepção da estrutura da linguagem, na qual o sujeito se constitui. Este percurso
será realizado, inclusive, com o objetivo de contextualizar o pronunciamento da
Conferência em Genebra sobre o sintoma, em 1975, em que Lacan realiza algumas
pontuações que constituem indicações fundamentais para a direção de um tratamento
possível do autismo, ao articular: Autismo, linguagem e fala.
No texto Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953),
Lacan assinala que os símbolos23 efetivamente envolvem a vida do homem numa rede
articulada, que “conjuga”, antes que ele venha ao mundo, aqueles que irão gerá-lo em
“carne e osso”. São estes que fornecem palavras que se constituem em dons, os quais
farão dele um fiel ou um renegado e constituirão a lei dos atos que o seguirão dali, de
onde ele ainda não está, para além de sua morte.
Neste ponto, Lacan aborda a questão da palavra como “dom”:
Ninguém deve desconhecer a lei: essa fórmula, transcrita do humor de um Código de justiça, exprime, no entanto, a verdade em que nossa experiência se fundamenta e que ela confirma. Nenhum homem a desconhece, com efeito, já que a lei do homem é a lei da linguagem, desde que as primeiras palavras de reconhecimento presidiram os primeiros dons, tendo sido preciso haver os detestáveis daneses, que vinham e fugiam pelo mar, para que os homens aprendessem a temer as palavras enganosas com os dons sem fé. Até então, para os pacíficos Argonautas que uniam pelos laços de um comércio simbólico as ilhotas da comunidade, esses dons, seu ato e seus objetos, sua instituição como signos e sua própria fabricação estavam tão misturados com a fala que eram designados pelo seu nome. (LACAN, 1953, p.273).
O que se depreende, portanto, desse fragmento do texto de Lacan é que a
palavra é um dom e, dessa forma, a fala se constitui por sua vez em um dom de
linguagem.
Neste momento de sua formalização teórica, Lacan (1954) ressalta a
preexistência do simbólico e seu papel determinante na constituição do sujeito.
Desde antes de seu nascimento, o sujeito já está inserido em algo
relacionado com a linguagem sem ser idêntico a ela - o “discurso universal”, concreto,
que vai prosseguindo desde a origem dos tempos: aquilo que foi verdadeiramente dito
ou ainda realmente dito. Frente a esta primeira determinação, que é a de um registro
23 Símbolo: 1) O que representa ou substitui outra coisa; 2) O que evoca, representa ou substitui algo abstrato ou ausente; 3) Insígnia. Ao se mencionar o símbolo neste contexto de 1953, convém ressalvar que Lacan nesse momento está utilizando esta noção diferentemente do que fará a partir do Seminário A carta roubada (1955), quando é introduzida a noção do simbólico própria à formulação lacaniana, ou seja, quando o símbolo passa a ser definido como significante que se articula em uma cadeia.
101
totalmente diferente do das determinações do real, dos metabolismos materiais que
fizeram o sujeito advir “nesta aparência de existência que é a vida” (Lacan, 1954, p.87),
é preciso que, por meio de uma resposta singular, o sujeito venha a se constituir como
tal.
O sujeito, portanto, não tem apenas de tomar conhecimento do mundo: ele
precisa “orientar-se” nele. Escreveram-lhe uma mensagem na cabeça, e assim o sujeito
se acha situado inteiramente na sucessão das mensagens. Cabe-lhe, entretanto, em sua
singularidade, realizar escolhas, cada uma das quais é uma fala.
4.1 A FALA PLENA NA REALIZAÇÃO DA PSICANÁLISE
Lacan, em 1953, assinala que a fala vem marcar a própria descoberta da
psicanálise, na medida em que a escuta do analista promove o advir o sujeito como
efeito das novas articulações que surgem no discurso. Em: Estudos sobre a histeria
(1895), Freud relata o que lhe diz sua paciente: “...ela me diz então, em um tom muito
áspero, que não devo estar sempre lhe perguntando de onde vem isso ou aquilo, mas
deixá-la contar o que tem para dizer”. Nesta via, somente pelos efeitos da fala é possível
ao paciente advir como sujeito, o que se constitui fundamental para a sustentação da
ética da psicanálise.
Ao abordar a função da fala, Lacan o faz pelo aspecto que lhe parece o mais
ingrato: o da “fala vazia”. O método instaurado por Breuer e Freud foi batizado de
“talking cure” por uma das pacientes de Breuer, Anna O. A experiência foi inaugurada
com a escuta da histérica, que levou à descoberta do acontecimento patogênico
chamado “traumático”. Se na primeira teorização freudiana esse acontecimento
patogênico foi reconhecido como a causa do sintoma, isto se deve à colocação desse
acontecimento traumático em palavras, o que determinou a eliminação do sintoma, na
medida em que a paciente o fez “passar ao verbo”, ou seja, verbalizou-o.
Em contraponto à questão da “fala vazia”, Lacan ressalta, como efeito do
tratamento de Anna O., o nascimento da verdade na fala. A ambigüidade da revelação
histérica do passado não decorre tanto da oscilação de seu conteúdo entre o imaginário e
o real, pois esse conteúdo se situa em ambos. Tampouco se cogita de estar a paciente
mentindo. A questão é que, nos primórdios da psicanálise, Freud já apontava que, na
anamnese psicanalítica, o foco não era a realidade, mas a verdade.
102
Ao abordar as relações do sujeito com a função da fala e o campo da
linguagem, Lacan (1953, p.281) indica que a palavra, ao se dirigir ao Outro, implica
também um retorno do Outro a respeito do que foi falado pelo sujeito, ou seja, o sujeito
não se atém simplesmente ao fato do Outro ter recebido a mensagem, mas espera pelo
sentido dado a sua própria mensagem, no qual está implícita um demanda de
reconhecimento.
Neste ponto Lacan (1953) refere-se à loucura, com a ressalva de que,
qualquer que seja ela, ou ainda, qualquer que seja sua natureza, na loucura se constata a
presença de uma fala que renunciou a se fazer reconhecer pelo Outro. Neste caso, a
ausência da fala manifesta-se pelas estereotipias de um discurso em que o sujeito, pode-
se dizer, é “mais falado do que fala”. (LACAN, 1953, p.281).
Neste ponto, faz-se importante assinalar, no primeiro caso clínico citado,
que os pais não endereçavam a palavra a Íris por não suporem que a filha tivesse
condições de entender o que lhe estivesse sendo dito. Transcorrido um primeiro tempo,
quando Íris já falava algumas palavras dirigidas ao Outro, a mãe apresentou uma
questão, mencionando o fato de a filha ter passado a noite em claro. Ao longo da
entrevista, na qual o analista perguntou o que poderia ter causado esse problema, a mãe
afirmou não saber. Somente após algum tempo, o pai mencionou a morte do animal de
estimação, vivida por todos da família como um momento de grande tensão.
À indagação do analista sobre como Ìris havia-se posicionado, os pais
responderam que “ela não deve ter entendido o que havia ocorrido”. Contudo, como
efeito da pontuação do analista na via de que caberia endereçar a Íris uma palavra sobre
a questão da morte, a mãe conclui que talvez a insônia da filha tivesse alguma relação
com o fato e que talvez, mesmo sem saber se ela iria entender “tudo”, talvez devesse
“dar à Ìris uma palavra”.
Lacan assinala que, durante a análise de um comportamento instintivo,
pode-se negligenciar por certo tempo a posição subjetiva (1953-54, p.225). Mas essa
posição subjetiva não pode absolutamente ser negligenciada quando se trata de um
“sujeito que fala”.
Assim, deve-se forçosamente admitir como sujeito aquele que fala. E isto
decorre do fato de que esse indivíduo pode mentir, o que aponta para a constatação de
que ele é distinto do que diz. Nesta via, a dimensão “enganador” do sujeito que fala é o
que Freud, ao escutar a histérica, descobre no inconsciente.
103
Nesta direção, a fala engaja o sujeito:
Antes da fala, nada é nem deixa de ser. Provavelmente, já está tudo lá, mas é somente com a fala que as coisas são o que são e coisas que não são. É com a dimensão da fala que se cava no real a verdade, e também a mentira e outros registros. (LACAN, 1953/54, p.61)
No segundo caso clínico apresentado, a questão da possibilidade de
articulação de uma fala constitui um momento de “virada” da posição subjetiva do
paciente, quando, após um determinado tempo em que já falava várias palavras, Paulo
passou a ter condições de dizer “Não!” à mãe. Isto ocorreu principalmente em relação
aos alimentos. Quando passou a dizer não, que não queria mais, a mãe por fim o
escutou, aceitando de alguma forma uma barra, uma hiância na relação com o filho.
Neste contexto a mãe enunciou: “Agora ele é gente!”, o que teve como conseqüência
que, a partir de então, seria necessário entrar em “acordo” com ele.
Neste contexto, Lacan assinala que convém voltar mais uma vez à estrutura
da comunicação na linguagem e desfazer o mal-entendido da “linguagem-signo”,
concebida como um sinal pelo qual o emissor informa o receptor de alguma coisa, por
meio de um certo código.
Para tanto, Lacan refere-se à comunicação entre as abelhas. Após voltar à
colméia, a abelha transmite às demais, por meio de dois tipos de dança, as informações
para encontrarem o local onde se situa a fonte de alimento. Os sinais que emite indicam,
inclusive, se o butim está perto ou longe. Dessa forma, se o alimento estiver a pouca
distância, a abelha executará uma dança em círculos, da direita para a esquerda, e, em
seguida, da esquerda para a direita. Se a distância for maior, a abelha fará um
movimento em 8, que não só aponta para a direção determinada em função da
inclinação solar, como também para a distância em função da velocidade empreendida
nesse circuito.
Lacan assinala que essa modalidade de mensagem estabelecida entre as
abelhas constitui realmente um código, ou ainda, um sistema de sinalização. Mas a
fixidez deste tipo de codificação não deixa lugar para o advento de um sujeito. Sendo
assim, esse sistema se apresenta como radicalmente distinto de uma linguagem
propriamente dita, em que os signos adquirem valor por sua relação uns com os outros.
104
4.2 O ESQUEMA “L”
Para ilustrar uma possibilidade de distinguir radicalmente a fala de um
registro de linguagem, Lacan propõe o esquema “L” (1954-55), a seguir:
Este esquema aponta, fundamentalmente, para uma distinção entre o eixo da
relação simbólica ( S-O) e o eixo da relação imaginária (a-a).
Há dois outros que devem ser distinguidos: um outro com “A” maiúsculo e
um outro com “a” minúsculo.
Esta esquematização, ressalta Lacan (1954/55, p.), não parte de um sujeito
isolado e absoluto, pois, desde o momento em que houve no mundo homens e eles
falaram, a ordem simbólica está em jogo. Para todos os sujeitos, a relação entre A e S
passará sempre por intermédio destes substratos imaginários, que são o eu (a) e o
outro(a).
O sujeito, diz Lacan (1954/55), está aí situado não em sua totalidade, mas
em sua abertura. Ele se vê em “a”, e é por isso que ele tem um “eu” (moi). O que a
análise traz é que, por outro lado, o eu é uma forma absolutamente fundamental para a
constituição dos objetos. É, pois, sob a forma do outro especular que ele vê aquele que,
por razões estruturais, é chamado de “semelhante”.
Assim, em oposição ao plano do espelho, ou seja, da linha a-a, o autor
distingue um outro plano, denominado “muro da linguagem” (LACAN, 1954/55, p.307).
É a partir da ordem definida pelo muro da linguagem que o imaginário toma sua “falsa
realidade”, que é, contudo, uma realidade verificada. O eu, ou seja, o outro, ou ainda o
semelhante, estes imaginários todos são objetos. Quando o sujeito fala com seus
semelhantes, coloca-os em relação com sua própria imagem. Dessa forma, aqueles com
quem fala são também aqueles com quem se identifica.
105
Desse modo, essa dimensão não se confunde mais com o “ego”. Passa a
ocorrer um radical descentramento entre o “ego” (moi) e o sujeito do inconsciente (Je).
O “ego” é destituído de sua posição absoluta no sujeito. Sendo assim, assume estatuto
de miragem: não é mais do que um elemento das relações objetais do sujeito. Neste
sentido, a cada vez que o sujeito pronuncia uma fala verdadeira24, é sempre ao Outro
que o sujeito visa; contudo, dele separado pelo muro da linguagem, somente lhe é
possível alcançar “a” por reflexão.
Neste momento de sua teorização, portanto, Lacan, define que a fala se
fundamenta na existência do Outro. E a linguagem é feita para promover a volta ao
outro objetivado “com o qual podemos fazer tudo que quisermos, inclusive pensar que é
um objeto, ou seja, que ele não sabe o que diz” (LACAN, 1954/55, p.308).
A partir desta ótica, o esquema de Lacan ainda se mostra linear: é a palavra
que humaniza o homem, que lhe dá seu estatuto. Como já se afirmou, a palavra não se
direciona aqui, como no esquema da comunicação simples, a um outro, ou semelhante,
mas ao Outro, colocado assimetricamente em relação ao sujeito. Isto leva Lacan a
ressaltar que o sujeito recebe do Outro sua própria mensagem sob a forma invertida; ou
seja: a fala inclui subjetivamente sua resposta. Assim, a forma pela qual se exprime a
linguagem define por si só a subjetividade, pois se refere ao discurso do Outro. Essa
expressão envolve a mais alta função da fala, na medida em que implica seu autor ao
investir o destinatário de uma nova realidade: por exemplo, quando por um “Tu és
minha mulher” um sujeito marca-se como sendo o homem do “conjungo”.
O Outro se apresenta, neste contexto, como um “Outro absoluto”, que
autentica o que é dito pelo sujeito, autoriza a palavra do sujeito e a reenvia como plena
de subjetividade. Neste sentido, a palavra endereçada ao Outro se sustenta no desejo do
sujeito em se fazer reconhecer como tal.
24 Como assinalado anteriormente, ao abordar a função da fala na análise em Função e campo da fala e linguagem em psicanálise (1954/55, p.254), Lacan procede à diferenciação entre a fala vazia, em que o sujeito na análise parece falar em vão (o método da associação livre implica que o sujeito se ponha a falar), e a fala plena, cujo efeito de verdade promove um reordenamento das contingências passadas, possibilitando ao sujeito assumir sua história, o que serve de fundamento para o método que Freud nomeou de psicanálise.
106
Assim, o que o sujeito busca na fala é a resposta do Outro:
Quando chamo aquele com quem falo pelo nome, seja este qual for o que lhe dou, intimo a função subjetiva que ele retomará para me responder, mesmo que seja para repudiá-la. A partir daí, surge a função decisiva de minha própria resposta, e que não é apenas, como se diz, a de ser aceita pelo sujeito como aprovação ou rejeição de seu discurso, mas realmente a de reconhecê-lo ou de aboli-lo como sujeito. É essa a responsabilidade do analista toda vez que intervém pela fala”. (LACAN, 1953, p.281)
A possibilidade de articulação de uma fala, que procede à captura do desejo
no ponto exato em que ele se humaniza, fazendo-se reconhecer pelo Outro, só se torna
possível, portanto, na medida do advento do sujeito.
4.3 A PRIMAZIA DO SIGNIFICANTE
Lacan opera uma modificação, em sua elaboração teórica, com o escrito A
instância da letra no inconsciente freudiano ou a razão desde Freud (1956), com
relação à função da “palavra” no campo da linguagem, passando a privilegiar, a partir
da utilização de determinadas noções da lingüística, o “significante” e as leis que regem
sua articulação.
Enquanto a lei que rege a palavra, como assinalado em 1953, é a do
reconhecimento, a que rege o significante é aquela cuja aplicação está de acordo com o
funcionamento do inconsciente, tal como descrito por Freud em Interpretação dos
sonhos (1900).
Nesta via Lacan assinala (1956, p.) que no texto de 1900 - a Ciência dos
sonhos - Freud fornece não apenas a teoria do sonho, mas abre a “Via régia do
inconsciente”:
Nela se encontra a segunda elaboração feita por Freud, do esquema do aparelho psíquico. Com a primeira ele punha um ponto de arremate a seus trabalhos de neurologista. A segunda corresponde ao seu avanço no campo particular das neuroses, e naquilo que vai ser o campo próprio da análise. Trata-se, pois, do sonho, mas também mais atrás, do sintoma neurótico, cuja estruturação se revela a mesma – ela põe em jogo a estrutura da linguagem em geral, e mais exatamente a relação do homem com a linguagem. (LACAN, 1954-55, p.159)
107
Em sua concepção, Lacan ressalta ainda a importância de o sonho ser
abordado de início por Freud como um “rébus”. Neste contexto, Freud (1900) assinala
que, para além do caráter de “absurdo” apresentado no conteúdo manifesto, ou seja,
mesmo quando se apresentam os esquecimentos e as degradações do sonho, estes
fenômenos são incluídos na leitura de sentido, na medida em que o sonho tem a
intenção de fazer passar uma mensagem.
Neste sentido, Lacan evidencia (1954-55) que a mensagem transmitida pelo
sonho assume seu caráter obscuro, em função da operação da censura (Zensur), que,
situada entre o sistema inconsciente e pré-consciente, submete os pensamentos oníricos
a um processo de deformação, denominado por Freud (1900) como o trabalho do sonho.
O sonho, portanto, é um enigma que se apresenta em imagens, que contudo
não devem ser abordadas como correspondentes a um significado específico, mas em
seu valor de significante25. Freud exemplifica de todas as maneiras, diz Lacan, que esse
valor de significante não tem uma relação direta com a sua significação. O que está em
questão no cerne do inconsciente é a articulação de um significante a outro ao longo de
uma cadeia associativa.
Na medida em que ao sonho só se tem acesso por meio de seu relato, Lacan
afirma que, para além desse relato, ou seja, dessa fala que constitui um texto, é toda a
estrutura da linguagem que a experiência analítica descobre no inconsciente. Freud vincula a possibilidade de interpretação do sonho à regra fundamental
do trabalho analítico: o método da associação livre, que consiste em o paciente exprimir
os pensamentos que surgirem em sua mente abstendo-se de julgá-los. Neste sentido, ao
longo do processo de interpretação, ou ainda de apreensão do sentido do sonho, o
analista deve escutar, na cadeia de associações realizadas pelo paciente, a freqüência
com que certas palavras se repetem e o peso a elas conferido pelo sujeito. Dessa forma,
partindo de um elemento do conteúdo manifesto no caso do sonho, o sujeito pode vir a
percorrer diversas cadeias associativas que levem aos pensamentos oníricos, ensejando
a apreensão do sentido.
Freud postula que o sonho é uma realização do desejo. Os desejos
provenientes do inconsciente são os desejos infantis recalcados, que possuem o caráter
de “indestrutibilidade”, na medida em que os trilhamentos (Bahnungen)
25 Como será abordado mais adiante, Lacan assinala que a imagem por si só não consiste em seu próprio significado. Há um deslizamento incessante do significado sob o significante. É a rede dos significantes, em função de um se articular a outro, que vai constituir a significação do sonho.
108
correspondentes nunca ficam “desertos”, conduzindo à descarga sempre que
reinvestidos. Estes desejos insistem em encontrar uma expressão no sonho, e isso pode
ocorrer quando surge uma oportunidade de estabelecerem uma associação com os restos
diurnos26, transferindo para eles sua intensidade. Contudo, o desejo27 inconsciente, que forneceu o impulso para a formação
do sonho, nunca é totalmente desvendado. O que é revelado ou ainda nomeável pela
interpretação “se passa nos degraus, nas etapas, nos diferentes escalões da revelação
deste desejo” (LACAN, 1955, p.511), ou seja, nas etapas da elaboração do sonho, que
envolve um trabalho. Este trabalho do sonho (Traumarbeit) consiste no processo de
transformação dos pensamentos latentes no conteúdo manifesto e se articula, como
efeito da censura onírica, por meio dos seguintes mecanismos:
- Condensação (Verdichtung) - traduz-se no sonho pelo fato de o conteúdo
manifesto ser reduzido em comparação ao conteúdo latente. Isto se dá na medida em
que cada elemento do sonho manifesto é determinado por várias significações latentes,
sendo que inversamente cada uma destas pode encontrar-se em vários elementos.
Justamente pelo fato de um elemento condensar uma série de pensamentos latentes, o
sonho não possui uma única linha associativa que o determina; assim, ele é
sobredeterminado28 por diferentes cadeias significantes;
- Deslocamento (Verschiebung) - opera pela substituição de um elemento
intensamente investido por um outro menos importante, ou mesmo indiferente, que
funcione em relação ao primeiro apenas como uma alusão. Assim, opera uma
modificação, na medida em que o que é importante nos pensamentos latentes passa a
não possuir tanta importância ou nem mesmo surge no conteúdo manifesto.
Estes dois mecanismos, circunscritos a partir da análise do sonho, vão
constituir as leis do funcionamento do inconsciente em sua extensão mais geral.
26 Pensamentos pré-conscientes que podem constituir pensamentos suprimidos durante o dia, impressões diurnas indiferentes, inclusive aquilo que foi colocado em ação pela atividade pré-consciente diurna. 27 Lacan, em Função e campo da fala e da linguagem (1953), assinala que em parte alguma mais claramente do que em Interpretação dos Sonhos o desejo do homem encontra seu sentido no desejo do Outro. Não tanto porque o Outro detenha as chaves do objeto desejado, mas porque seu primeiro objeto é ser reconhecido por ele. 28 A noção de sobredeterminação será abordada mais adiante.
109
Os outros dois mecanismos a seguir são específicos do processo do sonho:
- A Consideração à figurabilidade (RücKsicht auf Darstellbarkeit) - refere-
se aos meios utilizados pelo processo do sonho, em função das vias de associação, para
representar em imagens os pensamentos oníricos;
- A elaboração secundária (sekumdäre Bearbeitung) - indica um segundo
momento de trabalho do sonho, pois incide sobre os produtos já elaborados pelos outros
mecanismos citados, com o intuito de tirar do sonho a aparência de absurdo e de
incoerência, aproximando-o de um devaneio diurno (Tagtraum).
Assim, desde o sonho até o chiste, passando por todos os fatos da
psicopatologia da vida cotidiana, trata-se sempre de uma outra lógica de funcionamento
psíquico, submetida às leis da condensação e do deslocamento, que faz surgir uma
descontinuidade no discurso regido diferentemente pelas leis do consciente.
Baseado nestas premissas, Lacan afirma que o inconsciente, na via traçada
por Freud, tem uma estruturação precisa. Trata-se, portanto, de reencontrar, nas leis que
regem essa “outra cena” (eine andere Schauplatz) - que a propósito dos sonhos Freud
designa como a do inconsciente -, os efeitos que se descobrem no nível da cadeia dos
elementos significantes constituidores da linguagem. Assim, valendo-se dos avanços na
lingüística introduzidos por Saussure, Lacan fará equiparar as leis do inconsciente,
decifradas por Freud, às leis da linguagem, a seguir:
Condensação (Verdichtung) – metáfora.
A condensação é a estrutura de superposição dos significantes em que ganha campo a metáfora, e cujo nome, por condensar em si mesmo a Dichtung, indica a conaturalidade desse mecanismo com a poesia, a ponto de envolver a função propriamente tradicional desta. (LACAN, 1959, p.513)
- Deslocamento (Verschiebung) – metonímia.
[...] é mais próxima do termo alemão, o transporte da significação que a metonímia demonstra e que, desde seu aparecimento em Freud, é apresentado como o meio mais adequado do inconsciente para despistar a censura. (Idem)
110
Tal formulação levou o autor a afirmar que “O inconsciente é estruturado
como uma linguagem”. (LACAN, 1953).
4.3.1 A estrutura da linguagem
Ao abordar, na presente Dissertação, a formalização da teoria do
inconsciente por Lacan, desde a perspectiva da linguagem, considera-se necessária,
inicialmente, uma pontuação acerca de algumas noções desenvolvidas por Saussure.
4.3.1.1 O signo lingüístico
A noção de signo lingüístico elaborada por Ferdinand de Saussure29 refere-
se a uma associação entre um conceito e uma imagem acústica. A imagem acústica se
define por não ser o som, em sua materialidade, mas a representação deste som, dada
pelos sentidos. Assim, a palavra “árvore” (imagem acústica) não remete diretamente à
coisa árvore, mas ao conceito de árvore, de tal modo que ambas as partes dessa unidade
linguística são de “natureza psíquica”30.
Deste modo, a formulação de Saussure distancia-se de uma concepção da
linguagem que se constituiria simplesmente por “nomes dados às coisas”. Se fosse
possível estabelecer-se uma relação fixa neste sentido, a linguagem seria transformada
num mero sistema de sinais, análogo aos que se verificam no mundo animal.
Assim, o signo exprime uma unidade lingüística, sendo que Saussure
substitui conceito por “significado” e imagem acústica por “significante”. Assim, faz
com que o signo passe a estabelecer a relação de um significado a um significante, da
seguinte forma:
Conceito Significado
___________ ⇔ ____________
Imagem acústica Significante
29 SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de lingusitique general. Paris: Payot, 1980. 30 Como assinala Garcia-Roza em Introdução à metapsicologia freudiana 2. Jorge Zahar editor,1996.
111
Em sua formulação, Saussure destaca o caráter arbitrário do signo, na
medida em que a associação entre o significado e o significante se estabelece de forma
convencional e não-natural:
A palavra arbitrário não deve dar a idéia de que o significante depende da livre escolha do sujeito... Queremos dizer que ele é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhuma ligação natural na realidade. (SAUSSURE, 1980)
Entretanto, uma vez escolhido, este significante impõe-se à comunidade
lingüística, ou ainda à “massa falante” (idem, ibid.), e neste sentido toma o caráter de
imutável.
Neste contexto, Saussure indica que se apresentam dois fatores antinômicos,
a saber: a convenção arbitrária do signo e o tempo graças ao qual o signo é fixado.
Contudo, com o resultado da prática social da língua ao longo do tempo, promove-se
uma alteração do signo, que, no nível do significante, constitui uma alteração fonética e,
no nível do significado, uma modificação do conceito enquanto tal.
A introdução do fator tempo na lingüística refere-se também ao significante,
na medida em que este por si só já é uma seqüência fonemática que se desdobra no
tempo. Neste sentido, Saussure postula um caráter linear para o significante, que, por
ser de natureza auditiva, desenrola-se unicamente no tempo, representa essa extensão e
é mensurável numa linha. Dessa forma, os significantes se apresentam uns após os
outros, em uma sucessão temporal formando uma cadeia. É esta seqüência orientada na
organização significante que Lacan designará, posteriormente, como “cadeia
significante” (1959).
4.3.1 2. O valor do signo
Destaca-se na formulação saussuriana a noção de valor do signo lingüístico,
na medida em que o signo não é significativo somente por seu conteúdo, mas sobretudo
pelas relações de oposição que mantém na cadeia falada. A realidade do signo
lingüístico só existe, pois, em função de todos os outros signos. Dessa forma, o “Valor”
é o que torna um fragmento acústico real e concreto, com sentido, vindo a se constituir
em um signo lingüístico.
112
O signo, portanto, só se constitui em unidade, dentro da concepção
saussiriana de que a língua se consiste num sistema de diferenças. Nesta via, a língua
não comporta nem idéias nem signos preexistentes ao sistema lingüístico - somente
diferenças conceituai e fônicas resultantes desse sistema.
4.3.2 O inconsciente e a estrutura da linguagem
A partir da noção de inconsciente, radicalmente Outro, Lacan reformula o
conceito de signo lingüístico proposto por Saussure, na medida em que promove uma
ruptura em sua unidade.
Assim, pode-se distinguir a concepção lacaniana de significante daquela
formulada por Saussure, na medida em que Lacan passa a escrever o seguinte algoritmo:
S ___
s
Neste contexto Lacan destaca o caráter distintivo e diferenciado do
significante, passando a afirma a “primazia do significante” sobre o significado:
S significante _____ ⇒ ________
s significado
O algoritmo lacaniano escreve a tópica do inconsciente. O significante sobre
a barra constitui a significação como efeito e resto da articulação significante. A barra
situada entre significante e significado representa o conceito freudiano do recalque
(Verdrängung), colocando-se como resistente à significação.
Em Interpretação dos sonhos, quando Freud introduz a associação livre
como método para abordagem do inconsciente na análise, apóia-se no princípio de
113
sobredeterminação31 do inconsciente. Nesta via, Freud assinala que não se encontra uma
única interpretação que abarque todos os sentidos do sonho, inclusive por não ser
possível esgotarem-se todas as vias associativas; daí a denominação “umbigo dos
sonhos” como um ponto insondável do sonho.
Em seu retorno a Freud, Lacan afirma que se pode considerar que na
associação livre postulada por Freud nenhum significante se refere a um significado
preestabelecido. Tratando-se da articulação do desejo no inconsciente, cada significante
se refere a outro, com o qual forma cadeia, tendo como efeito uma dentre outras
significações.
Em geral, diz Lacan (1965, p.251), é sempre o significado que se coloca no
primeiro plano, numa primeira abordagem, por ser o que há de mais sedutor. Mas isto
ocorre na medida em que se desconhece o papel mediador primordial do significante,
pois o desconhecimento de que o significante é o “elemento-guia” não somente
inviabiliza uma abordagem dos fenômenos neuróticos, como também torna impossível a
escuta do que se passa nas psicoses.
Assim, na formulação lacaniana, o significante não mais se refere
diretamente ao significado nem mesmo responde “por sua existência” a título de uma
significação qualquer. Neste sentido, “o significante por si só não significa nada”
(LACAN, 1953, p.89), na medida em que sua estrutura está em sua articulação.
4.3.3 O sujeito como efeito do significante
Como abordado anteriormente, a partir do conceito do inconsciente
freudiano Lacan procede a uma concepção particular da estrutura da linguagem, que
inclui a questão do sujeito.
O sujeito, a partir de Lacan, é efeito da cadeia significante. Esta concepção é
abordada no texto “A subversão do sujeito e dialética do desejo” (1959)32, em que o
31 A noção de sobredeterminação já estava presente na elaboração teórica de Freud desde Estudos sobre a histeria (1894), em que se encontra a definição de que a gênese das neuroses é sobredeterminada, ou seja: vários fatores convergem para sua formação, dentre eles os de ordem constitucional e os de ordem acidental, correspondentes aos acontecimentos traumáticos. 32 O grafo do desejo foi sendo formulado ao longo dos Seminários As formações do inconsciente (1957-58) e O desejo e sua interpretação (LACAN,1959), adquirindo sua forma final no texto já citado acima: A subversão do sujeito e a dialética do desejo (1960). Contudo, convém assinalar que, na presente disertação, será apresentada deste grafo somente uma primeira parte.
114
autor apresenta um gráfico da articulação significante, do qual será aqui focalizado o
primeiro nível que constitui sua “célula elementar”.
Neste grafo se articula o que Lacan denomina: “o ponto de basta”, pelo qual
o significante opera um corte no deslizamento de outro modo indefinido da significação.
A cadeia significante está suportada pelo vetor S ⇒ S’. Já a segunda cadeia,
representada pelo vetor ∆ ⇒ $, determina um entrecruzamento em dois pontos:
- O ponto A constitui o lugar do tesouro do significante, o que não significa
o código, na medida em que não se trata da correspondência unívoca entre o signo e
alguma coisa, mas sim que o significante só se constitui por uma reunião sincrônica, na
qual cada elemento só se sustenta pelo princípio de sua oposição a cada um dos demais -
o que se pode designar como o lugar do Outro;
- O ponto s(A) é designado como o lugar onde se dá a significação, na
medida em que esta se articula a partir do efeito a posteriori do vetor AS, o que indica a
estrutura temporal do inconsciente.
Neste ponto, Lacan relaciona as duas cadeias significantes expressas no
grafo com as dimensões sincrônica e diacrônica da linguagem. A partir do ponto de
basta, apresenta-se a dimensão diacrônica da frase, na medida em que somente com o
último termo, por um efeito de retroação, é que surge a significação. A estrutura
sincrônica, contudo, é “mais oculta” sendo ela que nos remete à origem:
115
“É a metáfora como aquilo em que se constitui a atribuição primária, aquela que promulga que ‘o cachorro faz miau, o gato faz au-au’ com que a criança, de um só golpe, desvinculando a coisa de seu grito, eleva o signo à função do significante e eleva a realidade à sofística da significação, e, através do desprezo pela verossimilhança, descortina a diversidade das objetivações a serem verificadas de uma mesma coisa.” (LACAN, 1960, p.820)
Lacan afirma ainda que o sujeito é constituído desde o campo do Outro, que
preexiste a ele. O autor situa que o dito primeiro do Outro decreta, legifera, é oráculo,
conferindo ao outro real, este primeiro Outro que se apresenta ao sujeito, o estatuto de
uma “obscura autoridade”. E nesta via, Lacan diz:
Tomem apenas um significante como insígnia dessa onipotência, ou seja, desse poder todo em potência, desse nascimento da possibilidade, e vocês terão o traço unário, que, por preencher a marca invisível que o sujeito recebe do significante, aliena esse sujeito na identificação primeira que forma o ideal do eu. (LACAN, 1960, p.82).
Neste sentido, antes mesmo de vir a ter acesso à fala, o sujeito é falado pelo
Outro, em função do lugar que vem a ocupar em seu desejo, desejo do Outro. Assim, a
constituição do sujeito opera a partir da referência ao significante que surge no campo
do Outro, vindo na trama da linguagem a representar o sujeito para um outro
significante.
A seguir, concluindo esse percurso em que o sujeito se constitui a partir do
discurso do outro como sujeito do inconsciente, Lacan (1959) apresenta um segundo
esquema: a cadeia inconsciente S (A) - SD, que também apresenta pontos de
cruzamento com a cadeia do discurso.
116
No ponto (S D) encontra-se agora a junção entre a demanda e a pulsão.
Decerto a origem da pulsão encontra apoio na necessidade (fome e sede), mas o que
Lacan ressalta é que quem comanda o chamado “desenvolvimento” pulsional não é a
maturação orgânica, mas sim a demanda do Outro (da mãe), que institui uma espécie de
normalização.
No algoritmo da demanda encontra-se ainda a notação S do sujeito cindido,
para indicar que o sujeito da enunciação desaparece, é recalcado no momento em que
seu grito se transforma em demanda, a partir do significante fornecido pelo Outro.
No ponto AS, encontra-se a única referência possível da cadeia significante.
Esse algoritmo designa o significante que simboliza a falta fundamental do campo da
linguagem, sua impossibilidade de representar totalmente o objeto. Assim, falta um
significante no campo do Outro, que impossibilitaria ao sujeito identificar-se totalmente
como objeto que suturaria a falta do Outro.
A condição para o advento do sujeito “barrado” corresponde a uma falta de
significante no Outro, uma vez que nem tudo é passível de se tornar significante,
restando algo da ordem do impossível. O sujeito, portanto, advém como efeito da
articulação dos significantes, na medida em que, para essa articulação se efetuar,
apresenta-se uma hiância ou ainda uma lacuna entre os significantes.
Neste ponto, cumpre destacar-se uma questão fundamental para a
abordagem da possibilidade do surgimento da fala no tratamento do autismo. Conforme
assinalado no primeiro caso clínico, a articulação de palavras endereçadas ao Outro
modifica de forma radical o lugar a que a paciente era chamada, com o autismo, a
responder no fantasma do Outro. Contudo, um ponto surge como uma questão, na
medida em que mesmo após a filha já ter começado a falar, a mãe insistia em “ensinar-
lhe” uma linguagem de sinais, cujo princípio se baseia em uma correlação fixa entre
significante e significado, elidindo justamente a dimensão do equívoco. Colocava-se
assim, como um limite, a impossibilidade de a mãe vir a ocupar o lugar de um Outro
faltante, de modo a escutar o que de novidade pudesse advir da fala de Íris. E isto
problematizava uma abertura para novos efeitos de sujeito.
117
Contudo, o tratamento de Íris prosseguia, com o analista avisado em sua
escuta de considerar as produções linguageiras da paciente, que se apresentavam como
da ordem do não-sentido, como algo que poderia vir a se constituir, mesmo que de
forma pontual, em alguma mensagem. Ou seja, algo que em função do efeito do
trabalho da paciente nas sessões viesse a se dirigir ao Outro.
Dando continuidade à abordagem da constituição do sujeito como efeito da
articulação da cadeia significante, retomar-se-á agora a primeira experiência de
satisfação teorizada por Freud (1895, p. 304).
4.3.4 O sujeito e o Outro
No primeiro grafo, pode-se situar o nível da experiência de satisfação, na
medida em que este refere-se ao encontro das primeiras manifestações (o grito) do
recém-nascido com o discurso do Outro, que lhe confere alguma significação.
Assim, como citado anteriormente, o infans grita em seu estado de
desamparo, o que ainda não possui qualquer significação. Contudo, a partir do momento
em que a mãe interpreta esse grito como demanda, em função do desejo de apaziguar o
bebê, ao mesmo tempo em que lhe oferece o alimento para a satisfação da necessidade
nomeia a demanda, fornecendo à criança os significantes que, ao se articularem,
promovem a significação.
É nesta hiância - em que se encontra essa dupla referência ao objeto da
satisfação da necessidade e ao significante no discurso da mãe - que o desejo do sujeito
se constitui.
Assim, neste primeiro momento da constituição do sujeito, Lacan (1959-60)
assinala que a própria inscrição do significante já envolve a perda da “coisa”. Desta
forma, das Ding, não sendo marcada pelo significante e assim constituindo-se no
“inassimilável”, refere-se ao estatuto do objeto perdido.
Portanto, a dimensão fundamental no processo de entrada do sujeito na
linguagem consiste em que o sujeito se identifique na linguagem, mas somente ao preço
de uma perda. Para abordar mais detidamente esta questão, no subitem a seguir, serão
focalizadas as operações lógicas que estão em jogo na constituição do sujeito.
118
4.4 AS OPERAÇÕES DE ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO
No Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964),
Lacan retoma a formulação de que “Um significante é aquilo que representa um sujeito
para outro significante” (1964, p. 75). Para ilustrar este axioma, o autor refere-se à
situação na qual alguém encontra uma pedra no deserto coberta de hieróglifos. Neste
caso, é certo que tenha havido um sujeito para inscrevê-los. Contudo, cada um deles
somente adquire valor de significante não por se dirigir àquele que o lê, mas por se
reportar cada um aos outros. É disto que se trata na a relação do sujeito ao Outro, que,
como se verá a seguir, engendra-se por inteiro num processo de hiância.
Conforme assinalado, o Outro precede o sujeito em sua constituição,
preexistindo mesmo ao seu nascimento, determinando neste sentido um lugar a partir do
qual o sujeito, em função de uma resposta singular, virá a se estruturar.
No Seminário 11 (1964), por meio da operação de alienação, Lacan
apresenta o fato de que o advento do sujeito está condicionado, em um primeiro
momento, ao surgimento de um significante no campo do Outro. A este significante
Lacan denomina S1, que aponta para o “traumático da incidência como um raio do
desejo do Outro” (VIDAL, 1994, p.127).
Para explicitar esta operação, Lacan recorrerá à lógica matemática dos
conjuntos, pela qual inicialmente abordará a forma da “reunião”. Distingue-se reunião
de adição na medida em que adicionar dois conjuntos implica somá-los, enquanto reuni-
los resulta não em reduplicar seu número, mas produzir um enlace entre ambos,
correspondendo o laço justamente à intersecção deles. Assim, se em dois círculos há
cinco elementos em cada um, a soma será dez; já a reunião significará somente oito
elementos, o que aponta algo da ordem de uma perda.
O “vel” da alienação se define por uma escolha, na medida em que na
reunião há um elemento que, seja qual for a escolha, tem por consequência um “nem um
nem outro”. A escolha neste caso consiste apenas em saber se se pretende guardar uma
das partes, deixando a outra desaparecer.
Se a escolha recair sobre o ser, o sujeito desaparece, ou seja, cai no não-
senso. Se a escolha recair sobre o sentido, o este só subsistirá “decepado” dessa parte de
não-senso que se constitui no inconsciente.
119
Nesta via, Lacan formula que a constituição do sujeito se articula em função
de sua reunião com o Outro, sendo que esta operação envolve uma perda, já que o
sujeito não se representa por inteiro no Outro, perdendo, na operação de alienação, parte
de seu ser.
Contudo, cumpre assinalar que não é o fato de essa operação se iniciar no
Outro que a qualifica como alienação:
Que o Outro seja para o sujeito o lugar de sua causa significante só faz explicar, aqui, a razão por que nenhum sujeito pode ser a causa de si mesmo. O que se impõe não somente por ele não ser Deus, mas porque o próprio Deus não poderia sê-lo, se tivéssemos que pensar nele como sujeito - Sto Agostinho percebeu isso muito bem, recusando o atributo de causa de si mesmo ao Deus pessoal. (LACAN, 1960/64, p.855)
Articulada a esta primeira operação, a da alienação, Lacan introduz uma
segunda operação denominada “separação”33. Assim, enquanto o primeiro tempo está
fundado na subestrutura da reunião, o segundo refere-se à intersecção ou produto.
Neste contexto, uma falta se evidencia no Outro. Assim, nos intervalos do
discurso do Outro, surge na experiência da criança a questão: “ele me diz isso, mas o
que é que ele quer?” É justamente em função destes intervalos, daquilo que não cola,
nas faltas do discurso do Outro que o sujeito se vê confrontado com o desejo do Outro.
E neste sentido todos os porquês da criança testemunham menos um avidez de saber das
coisas do que uma pergunta que remete ao enigma do desejo do Outro.
Para abordar esta questão, o sujeito traz a resposta da falta antecedente de
seu próprio desaparecimento, que ele vem aqui situar no ponto da falta percebida no
Outro. Neste sentido, uma falta recobre a outra. Portanto, o primeiro objeto que o sujeito
propõe é sua própria perda – “Pode ele me perder”? - sendo a fantasia de sua morte o
primeiro objeto que o sujeito põe em jogo nessa dialética com relação ao desejo do
Outro.
Neste ponto mostra-se oportuna a passagem em que Lacan afirma:
33 Ao abordar a operação da separação, Lacan (1960/64) ressalta, como questão, na etimologia do latim o deslizamento de sentido do verbo separare ,separar, até se parere, “gerar a si mesmo”.
120
Que o sujeito como tal está na incerteza em razão de ser dividido pelo efeito de linguagem é o que lhes ensino seguindo os passos da escavação freudiana. Pelo efeito da fala, o sujeito se realiza sempre no Outro, mas ele aí já não persegue mais que uma metade de si mesmo. Ele só achara seu desejo sempre mais dividido, pulverizado, na destacável metonímia da fala. O efeito de linguagem está o tempo todo misturado com o fato, que é o fundo da experiência analítica de que o sujeito só é sujeito por seu assujeitamento sincrônico a esse campo do Outro. É por isso que ele precisa tirar-se disto, no fim ele saberá que o Outro tem tanto quanto ele, que se tirar disso, que se safar disto...” (LACAN, 1964, p187)
Nos termos do Seminário 11, portanto, convém assinalar-se que o primeiro
significante, S1, que surge no campo do Outro, representa o sujeito para um outro
significante, S2. Contudo, este segundo significante tem por efeito a afânise, disto
decorrendo a divisão do sujeito. Tal como expresso no desenho anterior, quando o
sujeito aparece em algum lugar percebido como se fora outro lugar, ele (o sujeito) se
manifesta como desaparecimento (fading).
“Há então, se assim podemos dizer, questão de vida e de morte entre o
significante unário e o sujeito enquanto significante binário, causa de seu
desaparecimento” (LACAN, 1964, p.207). Portanto, o sujeito tão logo acede à
linguagem perde-se nesta mesma linguagem que o determinou. O sujeito que advém
pela linguagem só se insere nela como um efeito, um efeito de linguagem que o faz
existir, para logo a seguir eclipsá-lo na “autenticidade de seu ser”.
Em: Posição do inconsciente (1960, retomado em 1964), ao abordar a
questão da constituição do sujeito, Lacan articula que, na medida em que o significante
(S1) se produz no lugar do Outro (ainda não situado), faz surgir ali o sujeito do ser que
ainda não tem a palavra. Este ser Lacan o nomeia infans: “Na palavra fatalite – fatum-
já existe uma sorte de prefiguração da noção mesma de inconsciente. Fatum vem de
fari, o mesmo radical de infans” (LACAN, 1975, p.16).
Todavia, a partir do momento em que no ser humano as primeiras palavras
“se cristalizam”, da ordem de uma “cristalização material” disto que o condiciona como
humano, não se pode mais dizer que ele é infans.
A partir desta concepção da constituição do sujeito articulada por Lacan,
podemos considerar que o autismo, longe de se reduzir a transtornos da afetividade,
mostra-se como um efeito da forma pela qual uma grave problemática se apresentou, na
impossibilidade de articulação do primeiro par significante S1-S2 no campo do Outro.
121
O S1,como se pôde observar, constitui-se em função do surgimento de um
significante que represente o sujeito no campo do Outro. Entretanto, é essencial que, a
partir do segundo significante, haja um retorno e se conte o sujeito - o que vem a
determinar a série de significações do sujeito em relação ao desejo do Outro, fazendo
com que o S1 fosse articulado ao S2, produzindo a cadeia significante.
Contudo, em função da problemática relativa ao estabelecimento de uma
articulação entre os primeiros significantes envolvidos na constituição do sujeito, “o
autista constitui-se num império do S1, que não faz cadeia, um S1 congelado que não o
representa ante um outro significante, o S2, e retorna no real dos automatismos da
linguagem” (VIDAL & VIDAL, 1995, p.127).
Na medida em que se prosseguirá com algumas pontuações na obra de
Lacan sobre a questão da entrada do sujeito na linguagem, é importante abrirem-se
parênteses, para uma breve abordagem do conceito de objeto a, termo já mencionado
neste trabalho.
4.5 O OBJETO a
O objeto a é um conceito elaborado por Lacan, de forma ampla e revisto de
modo significativo desde sua formulação na década de1950, examinado em minúcias a
partir de perspectivas diferentes que exigem várias modificações na forma de pensar a
constituição do sujeito. Embora o assunto mereça uma exposição mais ampla, proceder-
se-á a uma breve abordagem do que sobre este conceito Lacan realiza no Seminário 11.
A partir da formulação lacaniana, pode-se considerar que o objeto a não é
representável como tal, ou seja, nenhum objeto real pode corresponder a ele. Dessa
forma, só pode ser circunscrito por fragmentos parciais, a saber: o seio, as fezes, o olhar
e a voz.
Retomando Freud (1895) em sua concepção inicial sobre o desejo, pode-se
assinalar que sob a tensão da necessidade, ou ainda, sob o estado de urgência, o recém-
nascido percorre as marcas de uma primeira experiência de satisfação. “Neste percurso,
se impõe e se abre entre o bebê e o leite, o campo das representações, da linguagem,
fazendo com que nenhum alimento possa vir a cumprir, ou a satisfazer, a demanda do
seio” (FERNANDES, 2000, p. 97).
122
Nesta via, o objeto a surge na hiância que a ordem da fala faz operar em
relação à experiência, na medida em que é impossível dizê-la toda. Dessa forma, abre-se
um hiato como resto da operação de simbolização, do qual se origina sempre um novo
dizer, um novo caminho a ser percorrido pelos traços deixados como marcas. A este
resto, que por outro lado funciona como causa, causa do desejo do sujeito, Lacan
denomina objeto a.
Ao retomar a questão da constituição do sujeito no Seminário Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise (1964), como foi afirmado, em função das
operações de alienação e separação, Lacan acentua dois campos: do sujeito e do Outro.
O Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer. E eu disse – é do lado desse vivo, chamado à subjetividade que se manifesta essencialmente a pulsão. (LACAN, 1964, p.194)
Neste ponto cabem algumas considerações sobre o conceito de pulsão:
4.6 SOBRE A PULSÃO
Em Pulsão e seus destinos (1915), Freud determina os quatro termos da
pulsão: Drang, o impulso; Quelle, a fonte; Objekt, o objeto, e Ziel, o alvo. O impulso
vai ser de início identificado a uma pura e simples tendência a descarga. Esta tendência
é o que se produz pelo fato de um estímulo: Qn do Projeto (Entwurf). A excitação (Reiz)
concernente à pulsão é diferente de qualquer estimulação vinda do exterior; é, portanto,
uma excitação interna, proveniente do organismo, cuja característica é atuar como uma
força constante (Konstant Kraft).
Neste ponto, ressalte-se a questão da Befriedigund, a satisfação. Para
abordar este ponto Lacan (1964, p.158) destaca que, na análise, os pacientes expressam
que “não se satisfazem com o que são”. E, no entanto, segue Lacan, tudo o que eles
vivem, mesmo seus sintomas, depende da satisfação:
Eles satisfazem algo que vai sem dúvida ao encontro daquilo com o que eles poderiam satisfazer-se, ou talvez melhor, eles dão satisfação a alguma coisa. [...] Toda questão é justamente saber o que está aí contentado. Digamos que, por essa espécie de satisfação, eles se fazem sofrer demais. Até certo ponto é sofrer demais que é a única justificativa de nossa intervenção. (LACAN, 1964, p.158).
123
O princípio do prazer caracteriza-se por algo que toca a impossibilidade de
se atingir uma satisfação total, na medida em que nenhum objeto pode satisfazer a
pulsão, já que não é justamente aí que ela se satisfaz.
O objeto da pulsão oral, por exemplo, não trata do alimento nem de sua
lembrança, mas de algo que se chama o seio. A esse seio Lacan (1964, p.160) dá o
estatuto de objeto a, causa do desejo. Seu lugar na satisfação da pulsão é aquilo que a
pulsão contorna. “O que a pulsão integra de saída em toda a sua existência é uma
dialética do arco, diria mesmo do arco e flecha. Por aí, podemos situar seu lugar na
economia psíquica”. (LACAN, 1964, p.168)
Neste grafo, Lacan delineia o percurso realizado pela pulsão, na via de obter
sua satisfação sem, contudo, atingir o alvo diretamente. Neste sentido, é importante
abordar o tema do alvo e os dois sentidos que ele pode representar, e que se evidenciam
de forma expressiva na língua inglesa. Assim, aponta para alguém que é encarregado de
uma missão cuja importância reside no caminho que deve percorrer. Neste sentido, the
aim é o trajeto. O alvo tem uma outra forma, que é o goal. O alvo não é o objeto, como,
por exemplo, a ave que se abate com arco e flecha, mas é ter acertado o tiro e, assim,
nisto ter atingido o alvo. Portanto, se é possível uma satisfação da pulsão, sem que se
tenha atingido uma “totalização biológica”, que consistiria na satisfação de seu fim de
reprodução, é porque ela é pulsão parcial, e seu alvo não é outra coisa a não ser o
retorno em circuito.
124
Desde os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud coloca a
sexualidade como essencialmente polimorfa, aberrante. O encanto de uma pretensa
inocência infantil foi rompido com a formulação do conceito de sexualidade infantil.
Neste sentido, Lacan (1964, p.167) afirma que a sexualidade só se realiza pela operação
das pulsões, contudo, no que elas são “pulsões parciais”.
Neste sentido Freud (1905) afirma que o modelo ideal a ser dado ao auto-
erotismo34 é de uma “boca que beijaria a si mesma”. Nesta via, Lacan assinala:
Em todo caso o que força a distinguir essa satisfação do puro e simples auto-erotismo da zona-erógena, é esse objeto que confundimos muito freqüentemente com aquilo sobre o que a pulsão se refecha – este objeto, que de fato é apenas a presença de um cavo, de um vazio, ocupável, nos diz Freud, por não importar que objeto, e cuja instancia só conhecemos na forma de objeto perdido, a minúsculo não é a origem da pulsão oral. Ele não é introduzido a título de alimento primitivo, é introduzido pelo fato de que nenhum alimento jamais satisfará a pulsão oral, senão contornando-se o objeto eternamente faltante. (LACAN, 1964, p.170).
Neste ponto se coloca uma questão, pois a passagem da pulsão oral para a
anal não se produz por um processo de maturação, mas pela intervenção da demanda do
Outro, frente à qual o sujeito dá uma resposta.
A “escansão regular do desenvolvimento” (LACAN, 1975, p.14). para cada
criança em sua singularidade, é articulada por Freud ,como assinalado no texto Três
ensaios. Cada uma destas escansões estaria intimamente ligada a certos patterns da
linguagem. Assim, as chamadas fases oral, anal, fálica35 e genital estão profundamente
entrelaçadas com a aquisição da linguagem. É o que demonstra, por exemplo, a
problemática que pode vir a se instalar em torno da “aprendizagem” pela criança do uso
do banheiro. Esta aprendizagem está manifestamente ancorada na concepção do que a
mãe espera da criança - nomeadamente os excrementos.
Na clínica do autismo, evidencia-se de forma marcante a grave problemática
em torno do que se poderia designar como “desordens pulsionais”. No primeiro caso
clínico citado, como foi afirmado, a paciente, no primeiro atendimento, aos seis anos,
34 Auto-erotismo: Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud formulou o termo auto-erotismo em função do momento da estruturação psíquica, em que a pulsão se satisfaz no próprio corpo do sujeito, sem dirigir-se a outros objetos. Posteriormente em Sobre o narcisismo: Uma introdução (1914), Freud formula que “É necessário admitir que não existe desde o início, no indivíduo, uma unidade comparável ao eu; o eu tem que sofrer um desenvolvimento. Mas as pulsões auto-eróticas existem desde a origem; alguma coisa, uma nova ação psíquica, deve então vir a se acrescentar ao auto-erotismo para dar força ao narcisismo.” À luz do ensinamento de Lacan, é importante assinalar que o auto-erotismo, como a satisfação da pulsão em torno de uma zona erógena, já implicaria algo da ordem de uma perda.
125
não olhava , não dava provas de escutar o que lhe era dito, não se alimentava a não ser
com a mãe e somente se dirigia ao banheiro para urinar, sendo que procurava um canto
da sala para defecar, o que fazia em suas calças. Sem condições de dormir nos mesmos
horários, muitas vezes se apresentava, durante o dia, prestes a dormir a qualquer
momento.
Para abordar essa perturbação que se apresenta no autismo, recorreu-se ao
momento da teorização de Lacan em que é em função do Outro que esta ordem se
articula. Neste sentido, pode-se considerar que este desregramento citado no fragmento
deste caso clínico e também esta desagregação são efeitos de uma grave problemática
na relação do sujeito com o Outro. Este ponto será retomado na parte final desta
Dissertação.
Ainda no texto do Seminário 11 (1964), Lacan afirma que a sexualidade se
instaura no campo do sujeito por uma via que é a da falta.
Duas faltas aqui se recobrem. Uma é alçada do defeito central em torno do qual gira a dialética do advento do sujeito a seu próprio ser em relação ao Outro - pelo fato de que o sujeito depende do significante e de que o significante está primeiro no campo do outro. Esta falta vem retomar a outra, que é a falta real, anterior, a situar no advento do vivo, quer dizer na reprodução sexuada. A falta real é o que o vivo perde, de sua parte de vivo, ao se reproduzir pela via sexuada. A falta real é o que o vivo perde, de sua parte de vivo, ao se reproduzir pela via sexuada. (LACAN, 1964, p.195).
Neste momento, faz-se necessária uma breve pontuação, em torno do
conceito de libido.
Em Posição do inconsciente (1960, retomado em 1964), texto escrito no
mesmo ano do Seminário 11, Lacan recorre à forma do mito para marcar sua concepção
da libido. Ao abordar o mito da unidade do andrógino primordial, enunciado por
Aristófanes no Banquete, Lacan refere-se ao “mito do ovo”. No ventre vivíparo, em que
o ovo não é provido de casca, cada vez que se rompem as membranas de onde vai sair o
feto em vias de vir a ser recém-nascido, alguma coisa delas se vai. Neste sentido, o mito
da lâmina representa essa parte do vivente que se perde por se reproduzir pela via do
sexo.
35 A fase fálica foi formalizada por Freud no texto A organização genital infantil: uma interpolação na teoria sexual infantil (1923).
126
“A esta representação mítica do mistério do amor, a experiência analítica substitui a procura, pelo sujeito, não do complemento sexual, mas da parte para sempre perdida dele mesmo, que é constituída pelo fato de ele ser apenas um vivo sexuado, e não ser mais imortal” (LACAN, 1964, p.195)
Ao seguir a formulação lacaniana, a lâmina se constitui em uma borda. Ela
vem se inserir em uma zona erógena, no que estas estão ligadas à abertura-fechamento
da hiância do inconsciente. Descobriu-se que é precisamente o órgão da libido, que liga
ao inconsciente a pulsão dita oral, a anal, às quais Lacan acrescenta a pulsão escópica e
a que será preciso quase chamar pulsão invocante, que tem esse privilégio de não poder
se fechar.
Quando Freud introduz a noção de libido36, ele o faz para dar conta desse
movimento; não existe outro termo que faça com que um ser humano se dirija, ou
melhor, se aproxime de um outro que poderá aqui ser designado como objeto. A libido é
o que faz o sujeito procurar uma parte de si fora de si mesmo, o que assegura uma
extensão do próprio sujeito. A idéia de Lacan (1964) é que esta extensão só é possível a
partir de uma subtração prévia, ou seja, a partir de alguma coisa que de início foi
perdida, em função da reprodução no ser humano, passar pela via sexuada.
Dito de outra forma, esta perda, esta subtração que funda a libido como
vetor em direção ao objeto do desejo, está identificada à “subtração’ como efeito da
castração, o que aponta a uma negativação do gozo. Contudo, algo resta nesta
negativação do gozo que vai ser redistribuído “fora-do-corpo”. Ele é “fora-do-corpo”,
precisamente pelo fato do corte significante que opera pelo viés da demanda do outro -
o que vai localizar o gozo em volta das bordas anatômicas e em ligação com o objeto
correspondente, mas fora do corpo.
A relação com o Outro é justamente o que faz surgir o que representa a
lâmina: do lado do vivente, como ser que deve ser captado na fala, trata-se de assinalar
o modo pelo qual o organismo chega a se prender na dialética do sujeito. Do lado do
36 Libido: Conceito formulado por Freud como a energia da pulsão sexual. Na primeira concepção da teoria das pulsões, a libido opõe-se às pulsões do ego ou pulsões de autoconservação (1910). Em: Introdução ao Narcisismo (1914), Freud articula que o ego podia tomar a si próprio como objeto de amor, fazendo com que o dualismo pulsional apesar de ainda mantido entre pulsões do ego, cuja energia seria o interesse, e pulsões sexuais, estas, todavia, passam a ser divididas entre libido do eu e libido objetal Após 1920, com a formulação do conceito de pulsão de morte, as pulsões de autoconservação passam a ser consideradas, juntamente com as pulsões sexuais como de natureza libidinal, passando a ser denominadas como pulsões de vida dessa forma, o novo dualismo pulsional passa a ser entre as pulsões de vida, e as pulsões de morte.
127
Outro, do lugar onde a fala se confirma por encontrar a troca de significantes, os ideais
que eles sustentam, a metáfora do pai como princípio da separação, a divisão sempre
reaberta no sujeito em sua alienação primária, estas vias devem instaurar a ordem e as
normas que dizem ao sujeito o que ele deve fazer como homem e mulher.
Na via do que foi acima assinalado, Lacan vai afirmar que
[...] pela mesma razão que faz com que seja pelo logro que o vivo sexuado seja induzido à sua realização sexual – a pulsão, a pulsão parcial, é fundamentalmente pulsão de morte, e representa em si mesma a parte da morte no vivo sexuado. (LACAN, 1964, p.98)
Passa-se a seguir a uma breve abordagem da questão da pulsão de morte.
4.7 PULSÃO DE MORTE
A partir de 1920, com o texto Além do princípio do prazer, Freud promove
uma mudança radical na teoria das pulsões, com a introdução do conceito de “pulsão de
morte”.
Para a abordagem desse ponto, é necessária uma breve exposição sobre a
teoria das pulsões ao longo da obra de Freud. Inicialmente em A perturbação
psicogênica da visão segundo a psicanálise”(1910), Freud distingue dois grupos de
pulsões: as de autoconservação, ou pulsões do ego, e as pulsões sexuais. As primeiras
visam à autoconservação do indivíduo, e as últimas ao prazer do órgão.
Esta primeira distinção é submetida a uma modificação em 1914, em função
do texto Para introduzir o narcisismo. Até a introdução deste conceito, Freud
sustentava a idéia de que apenas as pulsões sexuais tinham por energia a libido, sendo as
pulsões de autoconservação não-libidinais. No entanto, a partir de 1914, Freud conclui
que também o “eu” é objeto de investimento libidinal, o que trouxe uma questão frente à
primeira distinção realizada anteriormente.
Contudo, somente a partir de 1920, quando Freud conceitua a “pulsão de
morte”, promove-se, como foi assinalado, uma modificação na teoria pulsional, na
medida em que as pulsões de autoconservação e as pulsão sexuais passam a se constituir
nas pulsões de vida, estabelecendo um novo dualismo - o das pulsões de vida em
oposição às pulsões de morte.
128
Freud apontava que tanto as pulsões de vida como a de morte não se
apresentavam em seu estado puro. Ou seja, como no exemplo do sadismo e do
masoquismo, agressividade ligada a sexualidade, trataria-se muito mais de pulsões
sexuais e no caso da compulsão a repetição das pulsões apropriadas pelo aparato
psíquico, do que as pulsões elas mesmas.
Todavia, em “O mal-estar na cultura” (1930), Freud define a pulsão de
morte com o caráter de absoluta autonomia. Ela passa então a ser concebida como
pulsão de destruição, tomada no sentido de uma disposição pulsional autônoma
originária do ser humano. A partir de então destrutividade e sexualidade passam a ser
consideradas com autonomia uma com relação a outra.
O conceito de pulsão de morte introduz na teoria analítica a possibilidade de
se pensar uma região do campo psicanalítico, concebida como o caos pulsional, oposto
à ordem do aparato psíquico. Isto tem como efeito a delimitação de um além do
princípio do prazer, distinguindo as pulsões de vida como aquelas que operam na
construção de laços e uniões das pulsões de morte que se presentificam no psiquismo
disjuntivamente, “fazendo furo”.
Neste ponto, abordar-se-á, de forma sucinta, o jogo do fort-da ao qual se
retornará, a partir de uma articulação com os casos clínicos apresentados.
4.8 O JOGO DO FORT-DA
Em Além do princípio do prazer (1920), Freud aborda o primeiro brincar
criado por um menino de um ano e meio. Esta criança, identificada como neto de Freud,
não apresentava qualquer sinal de precocidade. Falava poucas palavras compreensíveis
e emitia, além disso, alguns sons significativos, compreendidos pelas pessoas ao seu
redor. Segundo a descrição de Freud, a criança não incomodava os pais durante a noite,
obedecia às ordens de não tocar em certos objetos e aceitava sem chorar a partida ou a
separação da mãe, apesar de ser bem ligada a ela. Ao abordar propriamente o jogo,
Freud afirma:
129
A criança tinha um carretel de madeira que estava enrolado com um barbante. Nunca lhe ocorreu, por exemplo, a idéia de puxá-lo, atrás dela no chão, isto é, brincar de carrinho com ele; porém, jogou o carretel amarrado ao barbante, com grande habilidade, sobre a beira de sua caminha coberta, de tal modo, que este desapareceu ali dentro; disse então seu significativo o-o-o [Fort] e, depois, puxou de volta o carretel pelo barbante para fora da cama, saudando então, seu aparecimento com um alegre ‘Da” (“aqui”). Essa era, portanto, a brincadeira completa, desaparecer e voltar, da qual, na maior parte dos casos, se chegava a ver apenas o primeiro ato, e, esse seria incansavelmente repetido por si só como brincadeira, apesar de que o maior prazer, sem dúvida estivesse ligado ao segundo ato. (FREUD, 1920, p.115)
O jogo consiste no trabalho de apoderar-se psiquicamente da pena que a
criança experimenta ante a perda da mãe. Assim, no fundamento do brincar há um
empuxo (Drang) a dominar ativamente a situação traumática. Tornando-se o agente do
ato, a criança podia fazer desaparecer o objeto de acordo com seu desejo. O jogo
possibilita uma renúncia à satisfação pulsional e traz uma recompensa: a de perder e
recuperar a mãe com os objetos a seu alcance. Em termos metapsicológicos, com a
repetição do ato, o sujeito tende a efetuar o enlace de uma compulsão à repetição
primária com o ganho de prazer inerente aos processos inconscientes.
No contexto do Seminário 11 (1964), Lacan assinala que fort e da são os
significantes em que o sujeito é representado no campo do Outro. São dois significantes
que operam, em sua materialidade, a alienação do sujeito: fort, o significante primeiro,
representa o sujeito ante o Da. O sujeito ali representado está ausente da cadeia e, a
partir de então, dividido. Neste sentido, em uma ênfase dada ao simbólico, o fort-da
consistiria na simbolização primordial da ausência da mãe, baseado na formulação
lacaniana de que o primeiro símbolo porta a morte da coisa que ocasiona.
Nesta via, ao registrar a repetição no brinquedo na criança, em que surge o
fort-da reiterado, Freud assinala que ao realizar este trabalho que está em questão no
jogo, a criança obstrui o efeito de desaparecimento da mãe fazendo-se o agente dele,
com seu ato em arremessar ao longe a bobina. Contudo, Lacan ressalta que este
fenômeno é secundário, pois, em função do vazio produzido pala ausência da mãe, o
jogo do carretel é a resposta do sujeito frente àquilo que a ausência da mãe veio criar na
fronteira de seu domínio – a borda de seu berço - isto é um fosso em torno do qual ele
não tem mais nada a fazer a não ser em uma decisão que põe em jogo um risco: “fazer o
jogo do salto” (LACAN, 1964, p.63).
Assim, o sujeito se encontra instaurado na cena, sustentado pelo limite que a
beirada da cama erige ante si: “ a beirada como marco da porta por onde a mãe foi
130
embora desempenha a função de uma janela com a qual o sujeito é protegido de
precipitar-se aspirado pelo vazio deixado pelo Outro. (VIDAL, 1994, p.107) O vazio
deixado pela ausência do Outro aponta inclusive ao desejo do Outro, que naquele
momento se voltou para um terceiro, um para-além da relação da criança e a mãe.
Em função da teorização do objeto a, opera-se uma modificação essencial
na concepção deste jogo realizado pela criança. Dessa forma, o carretel não poderia ser
considerado como a mãe reduzida a uma bolinha; é, mais propriamente, uma pequenina
parte do sujeito que se destaca embora ainda a segure. É com seu objeto que a criança,
portanto, salta as fronteiras de seu domínio.
O conjunto da atividade simboliza a repetição, mas não de modo algum a de
uma necessidade que pediria o retorno da mãe e que se manifestaria pelo grito, como no
primeiro momento da articulação do apelo verbalizado e endereçado ao Outro. O jogo
do fort-da aponta a um outro momento da constituição do sujeito, que envolve a mãe
enquanto um Outro a quem já se é possível apelar, ou seja, um Outro que supostamente
responderia ao apelo do sujeito.
Nesta via, no jogo do fort-da envolve “[...] de um lado significantes que
façam a mediação entre a criança e o Outro e um objeto que constitua um duplo corte:
ser destacado do campo do Outro e do corpo próprio”. ( RIBEIRO, 2003, p.22).
O jogo do fort-da encena, portanto, o efeito de “significância” de uma
marca: “Fort”, que surge frente à ausência do Outro, envolvendo, no entanto, uma perda
de gozo, que a compulsão à repetição visa a reencontrar. Como efeito, o campo do
Outro fica marcado por uma falta, e o sujeito resta dividido.
A operação de entrada do sujeito na linguagem, como abordado
anteriormente, só se faz em função de uma perda, ou ainda de uma subtração. Contudo,
na formulação que Lacan vai empreender no Seminário 17 (1968), no processo de
articulação do significante, há alguma coisa que vai ser restituída, uma sorte de
compensação: o mais-de-gozar.
Vale aqui acrescentarem-se algumas considerações sobre este tema:
4.9 O MAIS-DE-GOZAR
No seminário O avesso da psicanálise (1969-70) Lacan retoma a
importância de abordar o significante e sua “eventual” articulação, afirmando que
131
insiste nesta via por esta se encontrar traçada nas bases ou ainda nos fundamentos da
Psicanálise. Está no que surgiu “a um espírito tão pouco afeito a essa espécie de
elaboração como poderia ser um Freud” (LACAN, 1969/70, p.35), em função mesmo de
sua formação, realizada com forte influência das ciências parafísicas e, especialmente,
termodinâmica.
Em um primeiro tempo de sua formulação teórica, Freud, ao escrever a
Traumdeutung (1900), articula o conceito do inconsciente, permitindo situar o desejo.
Isto já está formalizado quando, em um segundo tempo, aberto pelo texto Além do
princípio do prazer (1920), Freud é levado pelo veio de sua experiência a afirmar que se
deve levar em consideração a função da “repetição”. É no nível da repetição que Freud
se vê de algum modo obrigado, pela própria estrutura do discurso, a articular a “pulsão
de morte”. E neste ponto Lacan assinala:
Hipérbole, extrapolação fabulosa, e na verdade, escandalosa, para quem quer que tome ao pé da letra a identificação entre inconsciente e instinto. É, a saber, o seguinte - a repetição não é apenas função de ciclos que a vida comporta, ciclos que acarretam a desaparição da vida como tal, que é o retorno ao inanimado. O inanimado. Ponto de horizonte, ponto ideal, ponto fora do traçado, mas cujo sentido se revela à análise estrutural. Revela-se perfeitamente pelo que há de gozo. (Lacan, 1969-70, p.43)
Neste sentido, Lacan assinala que basta partir do princípio do prazer, que
nada mais é do que o princípio de menor tensão, da tensão mínima a manter, para que
subsista a vida. Isto demonstra que, em si mesmo, o gozo o transborda, e o que o
princípio do prazer mantém é o limite em relação ao gozo. Como tudo indica - nos fatos,
na experiência e na clínica -, a repetição se funda em um “retorno do gozo”.
Ao apontar o caráter mítico da primeira “experiência de satisfação”, Freud
(1895) articula que esta primeira experiência deixa uma inscrição, uma associação entre
traços mnêmicos que restaram do evento que promoveu a satisfação. A articulação
destes traços define os meios pelos quais, em um segundo momento, a partir de sua
repetição será buscada novamente a satisfação.
No entanto, Freud introduz a idéia de que para o ser humano a experiência
de satisfação é sempre marcada por um índice de “desperdício”. Freud refere-se ao fato
de que todas as experiências posteriores estarão marcadas por uma perda da ordem da
satisfação em relação a esse momento mítico primeiro. Portanto, “há algo que é perda”
(LACAN, 1969/70, p.44), determinando que, na própria repetição, haja desperdício de
gozo. Este ponto se articula a concepção de Lacan de que o efeito primeiro do
132
significante é a anulação da coisa, onde supomos o gozo pleno. Assim, com o
surgimento do significante, não se poderia dizer que não há gozo, mas que não poderia
ser mais considerado como “pleno”.
Ainda do seminário O avesso da psicanálise (1969/70), Lacan formula a
função do traço unário, ou seja, a forma mais simples da marca, que é propriamente a
origem do significante. Nesta via, o significante se articula por representar um sujeito
junto a outro significante. É daí, dessa primeira experiência de satisfação, que se parte
para dar sentido a essa repetição inaugural, na medida em que ela é repetição que visa
ao gozo.Assim, é no lugar dessa perda introduzida pela repetição que se vê aparecer a
função do objeto perdido designado por Lacan como “objeto a”. Esta definição leva à
fórmula pela qual, no nível mais elementar, o da imposição do traço unário, produz-se,
como efeito do trabalho, uma “entropia”37:
Desafio vocês a provarem de algum modo que descer 500metros com um peso de 80 quilos às costas e uma vez que o tenham descido reerguê-lo 500 metros é igual a zero, a nenhum trabalho. Façam a tentativa, ponham mãos à obra, vocês verão que vão ter a prova do contrário. Mas se em cima disso sobrepõem os significantes, quer dizer, se entram na via energética, é absolutamente certo que não houve nenhum trabalho. Quando o significante se introduz como “aparelho de gozo”, não temos que ficar surpresos ao ver aparecer uma coisa que tem relação com a entropia, posto que se definiu precisamente a entropia quando começou-se a sobrepor esse aparelho de significantes à sonda física. (Lacan, 1969/70, p.46)
Esse efeito de entropia, nesse desperdiçamento em que o gozo se apresenta,
“adquire um satuts”. Assim, é por ser apreendida na dimensão da perda que alguma
coisa é necessária para compensar. Só a dimensão da entropia, portanto, dá corpo ao
seguinte: há um mais-de- gozar a recuperar.
Para finalizar o percurso traçado ao longo de alguns textos de Lacan, sem
contudo, pretender-se esgotar a complexidade do tema, convém focalizar-se, neste
momento, uma certa modificação operada na elaboração teórica de Lacan sobre a
estrutura da linguagem, a partir da noção de lalangue. A seguir se abordará a
Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975), em função das indicações realizadas
por Lacan acerca da direção do tratamento do autismo.
37 Entropia. Fís Medida da quantidade de desordem de um sistema.
133
4.10 LALANGUE
No Seminário Mais, ainda (1974), Lacan coloca em questão o conceito
mesmo de linguagem, que neste momento de sua elaboração teórica passa a ser tomado
como um conceito derivado, e não originário. Esta nova formulação do conceito de
linguagem está referida à noção de lalangue.
No seminário: O saber do psicanalista (1971/72), o termo lalangue surge
por um a primeira vez a partir de um lapso ou ainda de um ato falho cometido por
Lacan, quando, na lição de 4 de novembro de 1971, referindo-se ao Dicionário de
psicanálise, elaborado por Laplanche e Pontalis, diz: “vocabulário de filosofia”
denominado: Lanande. Neste sentido, Lacan assinala que lalangue é o que justamente
rompe com o efeito de dicionário. Pois o inconsciente tem a ver antes de tudo com a
gramática e muito a ver com a repetição, quer dizer, uma vertente totalmente contrária
àquela para que serve o dicionário.
Ainda na década de 1970, Lacan afirma, na Conferência em Genebra sobre
o sintoma (1975), que a linguagem, na medida em que não tem nenhuma existência
teórica, intervém sempre segundo a forma de uma palavra, o mais próximo possível da
palavra francesa lallation, ou seja: lalangue.
Não é por acaso que, seja qual for lalangue, em que alguém tenha recebido
uma primeira marca38, uma palavra é equívoca:
“Certamente, não é por acaso, em francês que a palavra ne [não] se pronuncia de maneira equívoca com a palavra noeud [nó]. Pois nada é por acaso que a palavra pás [não] em francês, contrariamente a muitas outras línguas, redobra a negação e designa também um passo. Se me interesso tanto pelo pas isto não se deve a nenhum acaso. Isto quer dizer que lalengua constitui de modo algum um patrimônio. É totalmente certo que algo voltará a surgir logo nos sonhos, em toda sorte de tropeços, em toda sorte de maneiras de dizer, em função da maneira pela qual lalengua foi falada e também escutada por cada um em sua particularidade.”(Lacan,1974,p.127)
38 No texto original em francês encontramos a palavra empreinte que poderia ser traduzida por marca, ou ainda pegada sendo que também chega a se articular a noção de impressão, no sentido de impressão digital. Na tradução em espanhol realizada pela editora manantial, encontramos no lugar de empreinte a palavra, impronta: que significa reprodução de imagens em fundo ou em relevo, como seria no caso da marcação de brasões como autenticação de uma assinatura em uma carta, em matéria moldável que se adapta ao molde e somente depois endurece.
134
O inconsciente habita lalangue, que, como foi dito, está submetida ao
equívoco. Nesta direção, ao abordar a questão da interpretação, na clínica analítica,
Lacan diz que nenhuma interpretação deve ser teórica ou sugestiva, quer dizer,
imperativa, pois a interpretação - na medida em que trabalha com lalangue, não
consistindo uma interpretação de sentido mas um jogo com o equívoco - não é para ser
compreendida, mas para “provocar ondas” (LACAN,1975, p.14).
Em Conferências e entrevistas norte-americanas (1975), especificamente na
realizada na Universidade de Yale, Lacan vai dizer que se o psicanalista sustenta que
existe um inconsciente, isso está fundamentado na experiência. A experiência de que se
trata consiste em que, desde a origem, existe uma relação com lalangue. Nesta via,
lalangue merece ser chamada, a justo título, maternal, já que, ressalte-se, é pela mãe
que a criança a recebe e, não, a apreende.
A partir desta formulação de Lacan, passa-se à consideração de que, para o
sujeito que se encontra no autismo, algo se apresenta na relação com esse Outro
materno que tornou impossível para a mãe doar uma palavra à criança. De outra parte,
algo se apresentou como problemático para que a criança pudesse vir a receber essa
palavra.
Ao abordar a condição de o infans ter acesso a uma fala endereçada ao
Outro, ressalte-se a afirmação de Lacan de que há um verdadeiro abismo entre a relação
com o que é escutado e a possibilidade de o ser humano chegar a dizer algo.
Não somente poder dizê-lo, senão inclusive esse chancro que defini como sendo a linguagem, porque não sei de que de outro modo chamá-lo, este chancro implica desde sempre uma espécie de sensibilidade. (Lacan, 1975, p.131)
Nesta via, o fato de que crianças muito pequenas chegam a dizer “quiçá” ou
“todavia”, antes de serem capazes de construir verdadeiramente uma frase, prova de que
algo ocorreu nelas - um crivo (peneira) através da qual a água da linguagem chega a
deixar algo atrás de seu passo, alguns detritos com os quais o sujeito terá que se haver.
Isto indica, portanto, que a criança escutou essas palavras; mas que ela tenha entendido
o seu sentido é alguma coisa que merece toda a atenção.
135
4.10.1 Lalangue e a estrutura da linguagem
Convém aqui tecer-se uma consideração a respeito da teoria de Lacan acerca
de lalangue e do conceito de linguagem. Para tanto se fará um contraponto com a tese
de Saussure, à qual Lacan havia-se remetido anteriormente: “Na língua só existem
diferenças”.
A partir desta formulação de Saussure, pode-se considerar que a língua não
é uma substância. E se tal não é, como abordar essas diferenças?
Frente à pergunta: “O que é o significante?”, a definição lacaniana “Um
significante é o que representa o sujeito para outro significante” refere-se ao fato de que,
para se estabelecer uma diferença, é preciso no mínimo haver dois significantes: S1 e
S2.
Neste sentido Lacan (1974) cria a palavra lalangue, unindo o artigo definido
“a” à palavra “língua”, distinguindo, dessa forma, linguagem de lalangue. Contudo, se
“O inconsciente é estruturado como uma linguagem”, é porque na linguagem se trata de
traços comuns que se encontram em lalangue. Nesta via, apesar de lalangue estar
sujeita a uma grande variedade de traços, que apontariam a uma grande dispersão,
encontram-se constantes, no nível desses traços.
Para o estruturalismo, a conclusão extraída da citada tese Saussuriana é que
na língua só existem diferenças, sendo cada termo definido relativamente aos outros e
todos formando um sistema: A estrutura é um sistema, quer dizer, no estruturalismo a
estrutura é um “todo”. Assim, todo objeto estruturalista é elemento de um todo, ou
ainda, ele mesmo é “um todo” constituído de partes solidárias.
No Seminário 20 (1972/73, p.40), Lacan assinala que o discurso analítico é
um modo novo de relação, fundado apenas pelo que funciona como fala, e isto em algo
que se pode definir como um campo:
Função e campo, eu escrevi, da fala e da linguagem, e terminei em psicanálise, o que era designar o que constitui a originalidade desse discurso que não é homogêneo a um certo número de outros que oficiam e que, só por este fato, distinguimos como discursos oficiais. Trata-se de distinguir qual é o ofício do discurso analítico, e de torná-lo, se não oficial, pelo menos oficiante. (Lacan, 1974, p.40)
136
Neste ponto, Lacan se distingue do estruturalismo na medida em que
formula o matema que se escreve: S (A), que, como foi abordado, aponta não para uma
totalidade, mas para uma falta, “um a menos”.
Ao dizer do significante do Outro (A) no que ele é barrado – S(A), Lacan
acrescenta uma dimensão a esse lugar do A, assinalando: “que como lugar, ele não se
agüenta, que ali há uma falha, um furo, uma perda. O objeto a vem funcionar em relação
a essa perda. Aí está algo de completamente essencial à função da linguagem” (1974, p.
41).
4.10.2 O inconsciente – “uma elucubração de saber sobre lalangue”.
No Seminário Mais, ainda, Lacan lembra a afirmação de que se “a
linguagem é aquilo com o que o inconsciente é estruturado, é mesmo porque, a
linguagem, de começo, ela não existe. A linguagem é o que se tenta saber
concernentemente à função da lalangue”. (LACAN, 1972-73). Lalangue afeta o sujeito,
primeiro por tudo que ela comporta como efeitos que são afetos. Se se pode dizer que o
inconsciente é estruturado como uma linguagem, é no que os efeitos de lalangue, vão
bem além de tudo o que o ser que fala é suscetível de enunciar. É nisto que o
inconsciente, em sua cifragem, só pode estruturar-se como uma linguagem, uma
linguagem sempre hipotética com relação ao que a sustenta, isto é, lalangue. (Dito de
outro modo, a linguagem não é somente comunicação; este fato se impõe pelo discurso
analítico.)
A linguagem, portanto, neste momento da teorização de Lacan é “segunda”,
como foi assinalado, ou ainda, é feita de “lalangue”. Nesta via, Lacan (1974, p.190)
define que a linguagem é o resultado de um trabalho realizado pelo sujeito, uma
elucubração de saber sobre “lalangue”. Contudo, o inconsciente é um saber-fazer com
lalangue, que ultrapassa o que se pode chamar de linguagem.
Assim, Lacan formula a hipótese de “que o indivíduo que é afetado pelo
inconsciente é o mesmo que constitui o que chamo de sujeito de um significante” (1972-
73, p. 194). O que Lacan enuncia nesta fórmula mínima é que um significante
representa um sujeito para outro significante. Em si mesmo, o significante não é nada de
definível senão como uma diferença em relação a um outro significante. É a introdução
da diferença como tal que permite extrair de lalangue o que é do significante.
137
4.10.3 O Significante-Um
O Um encarnado em lalangue é algo que permanece indeciso entre o
fonema, a palavra e a frase, mesmo todo o pensamento. É, portanto, o significante Um o
de que se trata no que Lacan (1974, p.87) denomina de “significante-mestre” - que
instaura, portanto, a ordem significante, a partir da qual se articula toda a cadeia de
significantes.
Pode-se considerar que o “significante-mestre” trabalha com lalangue para
extrair um conceito de linguagem. Dizer lalangue em uma só palavra é justamente
designar lalangue do som, lalangue suposta, aquela anterior ao “significante-mestre”.
Desta forma, lalangue é o depósito, o recolhido dos traços dos outros sujeitos, quer
dizer, isto pelo qual cada um inscreveu, por assim dizer, seu desejo em lalangue.
Seguindo sua formulação no Seminário 20, Lacan introduz que, a estrutura
como efeito de linguagem é feita pela impossibilidade de se estabelecer o “Um” da
relação sexual - o que Lacan expressa em sua fórmula: “Não há relação sexual’ (1972-
73, p.105). Nesta via, dizer “Il y a de l’un” ou seja, “Há do Um” é dizer do impossível
de fazer Um com o ser, de pensar o Um como único, de restituir ao Um sua esfera
totalizante.
Portanto, “Há do Um” indica a dimensão de gozo introduzido pelo
significante.
‘Um-entre-outros, e se trata de saber se é qualquer um, se levanta um S1, S1 que soa em francês essaim, um enxame significante, se eu coloco a questão deles, dois, dos, que eu falo? Eu a escreverei primeiro por sua relação com S2. E vocês podem pôr quantos quiserem. É o enxame de que falo: S1(S1(S1(S1-S2)”. (Lacan, 1974, p.89)
A noção de enxame interroga o alcance do elemento que não se reduz à
unidade, mas, como assinalado acima, comporta os parênteses que produzem o envelope
formal da série de significantes Uns, de modo que o sujeito possa vir aí a falar.Esse
enxame zumbidor é o que se apresenta enquanto gozo da lalangue.
138
4.11 O GOZO
Neste ponto, faz-se importante articular alguns pontos que concernem à
relação do sujeito com o gozo e a modificação que isto promove na teorização
lacaniana. Devido à complexidade do tema, convém assinalar que neste momento deve-
se fazer somente um breve delineamento da questão, abordando apenas alguns pontos
em que se evidencia uma torção na concepção de Lacan sobre este tema, sem se
pretender esgotar todas as passagens na obra do autor.
Preliminarmente, pode-se considerar que, no ensino de Lacan, a questão do
gozo se apresentava de tal forma que o gozo surgia como “secundário’ em relação ao
significante:
O gozo substitutivo primeiro na enunciação freudiana, o desejo evocado de uma metonímia que se inscreve por uma demanda suposta dirigida ao Outro, desse núcleo que chamei das Ding em meu Seminário A Ética da psicanálise. Ou seja, a Coisa freudiana, e em outros termos, o próximo mesmo que Freud se recusa a amar além de certos limites. (Lacan, 1974, p.135)
- Na Ética da psicanálise (1969), ao se referir a Totem e Tabu (FREUD,
1913), Lacan assinala o mito construído por Freud da existência de um pai primevo que
gozava de todas as mulheres. Após o assassinato do pai por seus filhos, instaura-se a lei
e estes sofrem uma interdição do incesto. Neste sentido, o acesso ao gozo, na medida
em que este se refere à mãe, consistiria em procurar alcançar das Ding, consistindo em
uma transgressão da lei.
- Em 1960, no escrito A subversão do sujeito e a dialética do desejo, Lacan
introduz novas coordenadas na teoria do gozo, na medida em que formula que “o gozo é
próprio do ser” (LACAN, 1960). Nesta via, se assim pode dizer, o gozo estaria para o ser
como o significante para o sujeito.
Lacan vai dizer “que o gozo é proibido àquele que fala como tal, ou ainda
não pode ser dito senão em entrelinhas, para quem quer que seja o sujeito da lei, posto
que esta lei se funda sob esta interdição mesma” (LACAN, 1960).
O sujeito só teria acesso ao gozo já barrado, a esse que restou da operação
da castração, que tem como resultado um gozo atrelado ao falo. Sendo a pulsão sexual
interditada, ela estará necessariamente sob o domínio da significação fálica, e o gozo,
como gozo fálico, terá que passar por aí. Dessa forma, é a partir do significante que se
139
pode delimitar o que fica fora dele. O gozo ilimitado, mítico, que se apresenta como
excesso, pela via da compulsão a repetição, refere-se à pulsão de morte.
- Em 1964, no Seminário Os quatro conceitos da psicanálise, para Lacan o
gozo se apresentaria fragmentado em objetos a pequenos (o seio, a voz, o olhar e as
fezes), fazendo com que o acesso ao gozo se desse por meio não de uma transgressão
heróica, como formulado anteriormente em 1969, mas por uma pulsão que faz um
percurso em torno deste objeto, sem, contudo, alcançá-lo diretamente.
- No seminário O avesso da psicanálise (1968), contudo, Lacan vai dizer
que “o aparelho significante é o gozo”, apontando ao ser prévio a entrada do sujeito na
linguagem, que, sob uma forma mais precisa, faz com que este ser, na anterioridade
lógica à constituição do sujeito barrado, seja um ser de gozo. Assim, o acesso ao gozo
se faz essencialmente pela via da entropia, ou seja, do desperdício de gozo introduzido
pelo significante. A entropia assinala uma perda que, no entanto, aponta para um mais-
de-gozar a ser recuperado.
- A seguir, no Seminário 20 (1972/73), Lacan se refere à diferenciação entre
o gozo fálico e o gozo do Outro: “O que chamo propriamente gozo do Outro, no que ele
aqui só é simbolizado, é ainda coisa inteiramente outra, a saber, o não-todo que terei que
articular” (p.75) O gozo do outro é esse gozo não barrado, gozo infinito, ou ainda gozo
masoquista propriamente dito.
Pode-se considerar que a formalização de Lacan no Seminário 20 (1972)
conduziu à formulação do conceito de “gozo” até uma relação originária, com
referência ao significante. Nesta via, é necessário evocar este momento da teorização de
Lacan marcado pelo Seminário Mais, ainda (1974), para que a linguagem e sua
estrutura, que eram tratadas como um dado primeiro, apareçam secundárias com relação
a lalangue, como já se mencionou.
Este momento da elaboração teórica de Lacan constitui uma mudança de
paradigma, como assinalado por Jacques Alain-Miller (1999, p. 24), que se funda
essencialmente na questão da disjunção. A disjunção do significante e do significado, a
disjunção do gozo e do Outro e a disjunção do homem e da mulher sob a forma: “Não
há relação sexual”.
Assim, gozo da palavra quer dizer que “a palavra é gozo”, que ela não é
comunicação com o Outro por sua fase essencial. É o que quer dizer o “Blá-blá-blá”,
que Lacan exprime como o último grau da qualificação pejorativa da palavra. O “Blá-
blá-blá” quer dizer exatamente que, considerada na perspectiva do gozo, a palavra não
140
visa ao reconhecimento, nem à compreensão; ela é justamente uma modalidade de gozo,
sem estar enlaçada ao Outro.
O conceito de não-relação merece ser posto em face do de estrutura. Com
efeito, ao fazer-se referência à estrutura, mostra-se necessário articular uma
multiplicidade de relações que seriam denominadas simplesmente como articulação.
Esta articulação refere-se, inclusive, ao mínimo estrutural S1-S2 (abordado
anteriormente) na constituição do sujeito.
Nesta via, o Seminário “Mais, ainda” (LACAN, 1974) abre uma outra
perspectiva no que se refere a uma outra espécie de relação que limita o “império da
estrutura” (MILLER, 1999, p.26) da linguagem. Assim, a noção de “não-relação” põe
em questão aquilo que anteriormente era tido como prévio ou dado, ou seja, o Outro,
enquanto prescrevia as condições de toda a experiência, bem como a metáfora paterna
como articulação nodal do “Édipo freudiano”.
Assim, esse novo paradigma, em um movimento inverso, toma sua partida
do fato do gozo. Neste sentido, não há relação sexual. Há gozo.
O ponto de partida inaugural de Lacan em 1952, era em definitivo Il y a la psychanalyse. Ela existe, ela funciona, quer dizer, do ponto onde estamos, existe nas condições da psicanálise, uma satisfação que resultou do fato de falar a alguém e um certo número de efeitos de mutação que se seguem. Falamos para alguém - a psicanálise o coloca em evidência - e ao falar para alguém isso promove efeitos de verdade... A relação ao Outro aparece aí inaugural, inicial, dada”. Seu ponto de chegada –La psychanlyse ne fonctione pas - é para se perguntar por que ela não funciona. É em todo caso, outra coisa partir da evidência de Il y a jouissance. Há gozo enquanto propriedade de um corpo vivente, quer dizer de uma definição que relaciona o gozo unicamente ao corpo vivente. Não existe psicanálise a não ser de um corpo vivente e sem dúvida que fala. (Miller, p.26).
4.12 O AUTISMO
Ao falar sobre o autismo no texto: Conferência em Genebra sobre o sintoma
(1975), como resposta a alguns de seus interlocutores, Lacan faz determinadas
pontuações, que, como foi dito anteriormente, se constituem em balizas importantes
para pensarmos na questão do autismo como uma resposta do sujeito frente a um
impasse no momento lógico de sua entrada na linguagem.
Inicialmente, Lacan (1974, p.124) afirma que como o nome indica, os
autistas “escutam a si mesmos’. Escutam muitas coisas, sendo que, em alguns casos, o
141
fato de escutarem pode, inclusive, desembocar em uma alucinação. E nesse ponto,
Lacan ressalta que a alucinação tem sempre um caráter mais ou menos vocal.
Seguindo o texto, destacamos como referência para a abordagem do
autismo, neste trabalho, o ponto em que Lacan formula que nem todos os autistas
escutam vozes, embora articulem muitas coisas. Nesse caso, trata-se dever precisamente
“de onde escutaram o que articulam” (Idem, ibidem). Essa passagem, portanto, nos
aponta para uma questão acerca da possibilidade de algo da ordem de uma alteridade se
apresentar para o autista. Dissemos ‘algo da ordem, já que o lugar de onde os autistas
escutaram o que articulam não está devidamente situado. Contudo, diz Lacan, seria
necessário precisá-lo, o que se constitui em uma importante indicação em termos da
direção do tratamento.
Em um ponto seguinte, Lacan vai dizer que se trataria de saber por que há
algo no autista ou no chamado esquizofrênico que se gela. Nessa passagem, Lacan
aproxima diretamente o autismo e a psicose sendo que não os iguala totalmente,
deixando uma margem para abordarmos o autismo sem toma-lo imediatamente no
campo das psicoses.
Apesar de algo que se gela, diz Lacan, não se pode dizer que o autista não
fale. A problemática que atinge radicalmente o laço com o Outro - fazendo com que em
muitos momentos não seja possível a este dar o devido alcance ao que o autista diz, na
maneira como se expressa - não impede que os autistas sejam, como enuncia Lacan:
“seres mais verbais do que qualquer outra coisa” ( 1975, p. 130).
Na medida em que não se poderia considerar que o autista não fala, tratar-
se-ia, portanto, de fazer uma pergunta a respeito da ordem dessa fala. Uma fala que,
inclusive, conforme foi apontado, não faz laço de comunicação com o Outro. Nada
disso, porém, impede que os autistas sejam “seres verbosos” - o que leva à questão de
os autistas estarem inseridos de alguma forma na linguagem.
Em uma outra passagem, Lacan aponta que o autista não dá provas de ter
escutado o que alguém tem a dizer-lhe, uma vez que este “se ocupa dele”. Ressalte-se
que tal marcação poderia vir a ser uma indicação para o lugar do analista na direção do
tratamento, na medida em que o “ocupar-se” do paciente que se encontra no autismo
poderia vir a se configurar em uma postura “invasiva” por parte do analista, o que
poderia acarretar um agravamento do caso.
Dessa forma, considera-se que o analista deveria sustentar, ao longo do
tratamento, um acolhimento das manifestações trazidas pelo paciente, uma escuta de
142
suas articulações, para que viesse a surgir, o momento em que fosse possível realizar
alguma intervenção. Lacan, ao final de seu comentário sobre o autismo, enuncia que, na
via de uma sustentação de um tratamento possível para ao autismo, “sem dúvida, há
algo a dizer-lhes”. (1974, p.130)
Este novo momento da articulação teórica de Lacan vai colocar uma
questão, sobre um tratamento que abordasse as manifestações apresentadas pela criança,
na transferência, pelo viés do sentido, e afirmar uma possibilidade para a direção do
tratamento do autismo, sustentada pelo desejo do analista, que se abordará a seguir, nas
considerações finais.
143
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao retomar alguns dos pontos discutidos ao longo desta Dissertação, é
importante assinalar que esta pesquisa se realizou a partir dos vários impasses com os
quais o psicanalista se confrontou na clínica do autismo.
A partir da apresentação dos fragmentos de dois casos clínicos,
circunscreveu-se uma questão relativa ao modo pelo qual cada um dos pacientes
citados, na singularidade de seu percurso na análise, chegou a articular, por meio de
uma palavra, um endereçamento ao analista.
A escolha em abordar o advento de uma outra forma de articulação destes
pacientes na linguagem decorreu do fato de essa possibilidade de articulação ter
constituído um momento crucial para a modificação do estado de alheamento em que se
encontravam anteriormente as duas crianças. Na medida em que passaram a endereçar
uma palavra na via de um apelo ao Outro, já não era mais possível, como anteriormente,
ficarem tão à margem.
Na via de se investigar a possibilidade para o autista de vir a articular uma
palavra dirigida ao Outro, em função do tratamento analítico, a proposta inicial deste
trabalho foi interrogar as condições de entrada do sujeito na linguagem, realizando um
percurso teórico que tomou como referência principal a obra de Freud e o ensino de
Lacan.
Preliminarmente recorreu-se ao Projeto (Freud, 1895) na abordagem de um
momento princeps para a constituição do aparelho psíquico, a assim denominada
“experiência de satisfação”. Seguindo a teorização freudiana, assinalou-se que a criança,
ao nascer, encontrando-se em estado de desamparo, precisa de um “adulto experiente”,
associado posteriormente, ao Nebenmensh, que escute as suas manifestações, dentre elas
o grito, e proceda a uma interpretação destes sinais, chegando a realizar uma ação
específica que ponha termo ao estado de urgência no qual se encontra o recém-nascido.
Neste ponto, é importante destacar que a escuta das manifestações do desamparo da
144
criança pelo adulto que dela se ocupa são decisivas para o estabelecimento de um
primeiro laço de comunicação com o Outro.
Desde o Projeto (1895), conforme se assinalou, Freud já havia indicado que
o sujeito só faz sua entrada na linguagem a partir de algo que resta como exterior ao
processo de articulação dos traços mnêmicos inscritos no aparelho psíquico como
resultado da experiência de satisfação. Esse algo que resta foi denominado por Freud
das Ding, a coisa, que, ao se constituir no “inassimilável”, refere-se ao estatuto do
objeto perdido, em função do qual girará todo o encaminhamento desejante do sujeito
em busca de sua satisfação. Dessa forma, o que se gostaria de assinalar aqui é que a
articulação do sujeito na linguagem só se faz ao preço de uma perda.
A escuta e a interpretação das manifestações do recém-nascido por esse
Outro primordial dependem do modo pelo qual seus pais o acolhem como um objeto
privilegiado. Assim, é preciso assinalar, uma certa modificação pode ocorrer, na via de
que uma criança não desejada pode vir a ser mais bem acolhida a partir do momento em
que surgem seus primeiros balbucios, o que marca a importância do surgimento da fala
para o sujeito na sua ligação ao Outro.
Neste sentido, foram comentadas as Duas notas a Jenny Aubry (1969), em
que Lacan formaliza o lugar que uma criança, como objeto, vem a ocupar no fantasma
do Outro. No autismo considera-se, inclusive a partir dos casos citados, que a depressão
materna de alguma forma impossibilitou que a criança fosse acolhida como um objeto
que pudesse vir a ser desejado pela mãe.
Nos casos abordados, cada um em sua singularidade, a mãe, em seu estado
depressivo, estava “ocupada”, no momento do nascimento da criança, por alguma
questão subjetiva que não havia sido elaborada. Apesar de não se ter podido definir qual
seria a questão para cada uma dessas mães, conseguiu-se ao menos delinear essa
questão nas entrevistas com o analista. No caso da mãe de Paulo, tratava-se da
impossibilidade de luto pela morte de um irmão dela. No caso de Ìris, percebeu-se que o
único desejo de sua mãe era sair de uma situação vivida por ela como insuportável, em
um país estrangeiro.
Neste sentido, formulou-se uma das indagações que nortearam este trabalho:
quais as conseqüências, para a constituição do sujeito, do “impasse” em torno do
comparecimento de um Outro que, ao acolher as manifestações do recém-nascido,
responda não só fornecendo o alimento, mas também decidindo sobre a significação dos
primeiros sinais da criança?
145
Na busca de resposta para essa questão, chegou-se à grave problemática
instaurada naquele primeiro momento, em que deveria articular-se um primeiro laço do
infans ao Outro, em torno das primeiras experiências do sujeito. Na impossibilidade
dessa articulação, desse enlace, configura-se o autismo - em que não é possível para a
criança a realização de nenhum apelo verbalizado ao Outro - como a única resposta do
infans, para ainda se manter vivo, mesmo que seja no limite da linguagem. Emprega-se
“limite”, neste caso, como o ponto extremo que determina os contornos de um
determinado campo, mas que ainda pertence a ele.
Num segundo momento desta dissertação, focalizaram-se alguns textos que
constituem marcos importantes da teorização de Lacan e que evidenciam algumas das
reformulações promovidas pelo autor acerca de sua concepção da estrutura da
linguagem, na qual o sujeito se constitui.
Sem pretender esgotar todas as referências às modificações operadas ao
longo da obra de Lacan com relação ao conceito de linguagem, neste percurso
objetivou-se contextualizar A conferência em Genebra sobre o sintoma (1974), na qual
Lacan realiza alguns comentários que se constituem em indicações fundamentais para a
abordagem do tema desta pesquisa, articulando autismo, linguagem e fala.
Uma das questões abordadas neste percurso refere-se a um primeiro
momento do ensino de Lacan: a entrada do vivente na linguagem está relacionada a um
Outro que aparece como inaugural, ou ainda como prévio. No momento da realização
da Conferência em Genebra (1975), Lacan já havia formulado as noções que articula no
Seminário 20 (1972/73), em que, numa mudança de paradigma, o Outro não se
apresentaria de forma tão consistente, de modo que o ser falante se utilizaria da
linguagem para então vir a fazer um laço ao Outro.
A partir do trabalho de pesquisa realizado ao longo desta dissertação e, em
especial, com referência ao texto de 1975, já citado, serão apresentadas aqui algumas
considerações sobre a possibilidade de um tratamento analítico do autismo.
Em uma das indicações ressaltadas da Conferência em Genebra (1975),
Lacan aponta que o autista não responde, na medida em que o Outro “se ocupa dele”.
Esta passagem remete ao questionamento sobre qual seria a posição do analista no
tratamento do autismo. Neste sentido, recorreu-se à contribuição de Rosine Lefort
(1992) quanto à direção do tratamento, em que a autora sublinha a importância de o
analista adotar uma “atitude passiva”, indicando, com este termo, que o analista deve
146
abster-se de uma “intrusão” na forma encontrada pelo autista para, com seu alheamento,
sobreviver no mundo.
Nesta via, a formulação de Lacan (1975) de que o analista, em sua escuta,
deve “se deixar guiar” pelos termos verbais utilizados pelo paciente, toma um cunho
ainda mais radical no que concerne à possibilidade do tratamento do autismo. Segundo
Lacan, neste caso o analista, em sua aposta, toma as manifestações do paciente
(produções sonoras, movimentações corporais) como termos verbais, mesmo que estes
não cheguem a estabelecer uma comunicação.
A título de conclusão, serão retomadas algumas questões referentes ao
primeiro caso clínico citado. Como foi assinalado, em meio à grave desarticulação
apresentada pela paciente no primeiro atendimento, destacava-se uma certa “atividade”,
que envolvia alguma ordem, ou ainda, uma articulação. Com base na formulação de
Lacan de que “os autistas articulam muitas coisas” (1975), ou seja, apesar do grave
estado de alheamento em que se encontram, não se pode considerar que estejam em um
“deserto psíquico”, em uma total desagregação.
Assim, ao escutar essas primeiras articulações da paciente, que consistiam
em retirar pequenos fragmentos de tinta de uma parede e jogá-los para o alto, emitindo
determinados sons, o analista considerava essa atividade como algo que apresentava
uma certa ordem, ou ainda uma certa lógica, na singularidade deste sujeito.
Em um segundo momento, Íris passou a um desdobramento fundamental, na
medida em que a referida atividade, que envolvia um “trabalho” da paciente ao longo
das sessões, circunscrevia-se ao ambiente do consultório, promovendo de alguma forma
a localização da tão grande dispersão anterior.
A partir desse importante desdobramento, a atividade de Íris passou a
configurar-se como um “jogo” em torno dos pequenos pedaços de papel que a paciente
arremessava da janela da sala e, em um segundo momento, passou a ir buscá-los no
andar térreo da casa onde se situava o consultório. Como efeito desta nova articulação, a
paciente passou a pronunciar mais fonemas, chegando a realizar um endereçamento ao
analista. Apesar de este “jogo” envolver uma possibilidade de “trabalho” da paciente
nas sessões, em torno da presença e ausência do objeto, não se pode concluir que tal
articulação já constituísse uma simbolização primordial, como foi formulada por Lacan
(1964), ao comentar o jogo do fort-da (Freud, 1920).
Nesse mesmo tempo do tratamento, Íris formulou uma palavra, ou melhor,
“inventou” uma palavra: “Ram!’, pronunciada com um endereçamento ao analista, o
147
que não havia ocorrido até então. Neste sentido, pode-se considerar que em momentos
pontuais o analista veio a ocupar o lugar do Outro, ao possibilitar inclusive que a
paciente, como efeito de seu “trabalho” ao longo das sessões, chegasse a articular um
apelo.
Com relação ao caso Íris, considerou-se oportuna uma pergunta sobre o que
se apresenta como “excesso”, ou ainda, sobre o gozo no autismo. De uma posição
inicial (no limite da linguagem, como foi aqui denominada), em que: “o peso das
palavras é muito sério” (Lacan, 1975), ou seja, em que a escuta de uma palavra do
Outro pode vir a ser invasiva, surgiu a pergunta sobre a importância do momento do
tratamento em que a paciente passou não só a realizar “jogos” mas a brincar.
Este brincar se articulou, como assinalado, em torno da presença e ausência
do analista, o que envolveu o surgimento de diferentes sons e palavras que vieram a se
constituir em um novo laço ao Outro. Nesta via, indagou-se, neste momento, se já seria
possível falar não mais de um “peso tão grande das palavras” para esta paciente, mas
sim de um certo ‘brincar com as palavras” o que apontaria a uma outra articulação do
sujeito na linguagem, com relação ao que Lacan denomina: Lalangue.
Para concluir, retorna-se à pergunta inicial sobre uma possibilidade de
tratamento, com relação ao segundo caso clínico citado. Considera-se, como foi
assinalado, que o analista deva sustentar uma posição, de tal forma que sua presença não
se torne por demais intrusiva, o que só agravaria o estado do paciente. A posição do
analista envolve, porém, um contorno que muitas vezes implica o próprio corpo, na
medida em que, como no caso de Paulo, o paciente iniciou, por assim dizer, o percurso
de seu tratamento ao “extrair” da mão do analista um anel. Nessa direção, o analista
deve suportar, inclusive, um tempo, para que algo como efeito dessa posição venha a
surgir. São pequenas marcações, cortes de sessões e uma palavra, que em alguns
momentos circula em torno do que ocorre nas sessões e, em outros, se dirige
pontualmente ao sujeito.
Tomando como referência o caso de Paulo, apresentou-se ainda a questão da
transferência no tratamento do autismo. Por que via seria possível abordá-la? Ao
retomar-se o caso citado, considerou-se, a posteriori, que algo do que poderia ser
interpretado como da “ordem da transferência” passou a se articular, a partir de uma
situação inicial em que o paciente retirou o anel da mão do analista. Como abordado,
isto não se deu sem conseqüências , pois de alguma forma, em torno de algo que vem a
faltar literalmente no Outro, é que se cria uma circulação de objetos, abrindo uma
148
possibilidade para o sujeito deixar, ceder um de seus objetos e, inclusive, deixar cair
algo como resto.
Dessa forma, o trabalho analítico vai produzindo efeitos para o sujeito,
inicialmente pela via de uma circulação de objetos: da “pedra”, retirada da mão do
analista, para a caixa que o paciente havia trazido de casa; das diversas caixas, para o
apoio na estrutura de madeira do sofá, onde, em função de uma de suas “ferramentas”,
Paulo enunciou: “Obra!”.
Essa circulação passaria então a operar algo pela via da presença e da
ausência do objeto, pois, na medida em que deixa alguns objetos na sala para
reencontrá-los novamente na sessão seguinte, tais reencontros do objeto constituem
momentos cruciais, quando surgem novas palavras. Assim, vai-se operando uma
possibilidade de esses objetos assumirem um valor simbólico. Na medida em que o
significante surge, ao representar o objeto em sua ausência, abre-se uma via para o
advento de um sujeito que fala. E que chega a falar com uma palavra endereçada como
um apelo ao Outro, nos termos mencionados: “Ajuda!”.
Para finalizar, destaque-se um outro ponto importante para o sujeito que de
início se encontrava, ele próprio, “petrificado”, na posição de objeto do fantasma do
Outro. Como efeito de seu trabalho, operou-se uma mudança em seu posicionamento. A
partir de então, enquanto ser falante que dirige uma fala ao Outro e inclusive diz
“Não!”, ele não mais se encaixa, não mais satura o lugar em que era chamado a
responder como objeto tamponador da falta do Outro.
Assim, na medida em que se posiciona de forma diferente, o sujeito passa a
um outro lugar, atravessando, inclusive, a suposição inicial de um autismo. Apesar de
não ser possível afirmar-se que uma entrada na linguagem tenha operado de forma a
promover a divisão do sujeito, este paciente, a partir do momento em que começou a
falar, mesmo que de modo bem singular, passou a ser acolhido como um sujeito com
uma singularidade, um sujeito que, portanto, não poderia mais deixar de ser escutado,
como não poderia igualmente deixa-se ficar à margem.
Ressaltou-se, a partir da pontuação de Lacan (1975) acerca da estrutura da
linguagem na qual o sujeito se constitui, que desde a origem existe uma relação com
lalangue, que a justo título deve ser chamada materna, já que é da mãe que a criança a
recebe e, não, a apreende. Nesta via, considerou-se que para o sujeito cuja resposta foi o
autismo, apesar deste “não escapar” (Lefort, 1992) totalmente a lalangue, algo se
apresentou de tal modo na ligação a esse Outro materno, que se tornou impossível para
149
a mãe “doar” uma palavra à criança. Por outro lado, esse algo pode ter vindo a se
apresentar como problemático para que a criança tivesse condições de receber essa
palavra.
Em cada um dos casos apresentados, abordaram-se algumas questões ao
longo desta dissertação, relativas ao lugar que cada um destes pacientes poderia ter
vindo a ocupar para o Outro, na medida em que sua resposta foi o autismo. Na
singularidade de cada caso, considerou-se que o analista, em momentos pontuais, veio a
ocupar um lugar terceiro na ligação “sem hiância” entre a criança e sua mãe.
No caso de Íris, como exemplo, isto se configurou a partir do momento em
que a mãe presenciou a escuta do analista ao apelo: “Mamãe!”, endereçado por Íris à
própria mãe. Desde esse momento, a mãe não só passou a dizer que a filha estava
emitindo mais sons, como também começou a se interessar em tentar distinguir o que
não fazia antes, os tipos de sons e o que a filha poderia estar querendo dessa forma
comunicar. Passou ainda a incluir o pai na relação com a filha, inclusão essa que não
existia até então.
No caso de Paulo, após um longo percurso de entrevistas com o analista, a
mãe conseguiu elaborar algo em torno do lugar que o filho ocupava em seu fantasma,
passando, em uma mudança de posição, a ter outras condições de fazer valer uma
função materna.
Neste ponto, destacou-se uma questão sobre a possibilidade de trabalho com
os pais. Nos dois casos citados, as entrevistas com o analista não se deram somente no
início do tratamento, mas em momentos cruciais, em que os pais se angustiavam com
relação às mudanças promovidas como efeito do tratamento de seus filhos. Nesta via, o
analista, com sua escuta, realizava uma função de sustentar a abertura de uma
possibilidade para o tratamento.
Chegado o momento de concluir, sem, no entanto, responder à totalidade
das questões aqui levantadas, convém assinalar-se que a clínica do autismo, em sua
radicalidade, põe à prova o desejo do analista, na medida em que este é confrontado
com pacientes que se encontram no limite da linguagem, com muito poucos elementos -
ou, em alguns casos, quase nenhum - que possibilitem uma ligação ao Outro. Contudo,
ao se formular uma questão sobre a possibilidade de tratamento no autismo, é
importante ressalvar que isto se faz na direção da concepção de Lacan (1975) sobre a
função da linguagem, cuja função não é, prioritariamente, a de significar as coisas, nem
mesmo de comunicá-las, mas sim de produzir o sujeito.
150
Constatou-se que uma possibilidade para ao tratamento dos dois casos
apresentados, cada um em sua singularidade, decorreu do “trabalho” que os pacientes
passaram a realizar na situação analítica. A partir desse trabalho se promoveram novas
articulações na linguagem, não sem uma perda de gozo, o que permitiu que uma
palavra, mesmo que pontualmente, criasse um enlace ao Outro, na via de um apelo, que
é a condição sine qua non para que o sujeito aceda à realidade humana.
Ao finalizar este trabalho, é importante lembrar a pontuação de Lacan ao
afirmar que os autistas são “seres sobretudo verbosos” (1975), o que assinala uma certa
posição do autista na linguagem , mesmo que no limite, como já foi dito; por outro lado,
aponta, com o termo “verboso”, algo que se poderia considerar como um excesso, um
gozo nesta posição.
Uma das questões que poderá ser desenvolvida em uma pesquisa posterior
surge do percurso realizado nesta dissertação, sobre o fato de as condições de entrada do
vivente na linguagem estarem submetidas a uma perda. Assim, como uma questão a ser
investigada, indaga-se sobre de que ordem seria essa perda envolvida na possibilidade
do advento do sujeito como efeito do tratamento analítico do autismo.
151
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