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Estilos da Clínica, 2006, Vol. XI, n o 21, 150-169 150 Psiquiatra da infncia e adolescŒncia. Psicanalista. Mestre em Psicologia, UFMG. Psicanalista. Doutor em Psicologia. Orientador do Programa de Ps-Graduaªo em Psicologia da UFMG. Artigo O ATENDIMENTO PSICANAL˝TICO DO BEB˚ COM RISCO DE AUTISMO E DE OUTRAS GRAVES PSICOPATOLOGIAS. UMA CL˝NICA DA ANTECIPA˙ˆO DO SUJEITO 1 I sabela S antoro C ampanÆrio J eferson M achado P into E ste trabalho articulou subsdios terico-clni- cos que sustentam a psicanÆlise aplicada a bebŒs em situaªo de risco psquico (autismo e outras psico- patologias graves). Esse risco configura-se atravØs de sinais de dificuldades no estabelecimento de uma RESUMO Este trabalho articulou subsdios terico-clnicos que sustentam a psicanÆlise aplicada a bebŒs em situaªo de risco psquico (autismo e outras psicopato- logias graves). Esse risco se configura atravØs de sinais de dificuldades no estabele- cimento de uma relaªo com seu agente maternante que esteja restringindo a singularizaªo subjetiva. HÆ um consenso entre profissionais das diversas Æreas que tratam da criana autista em considerar que, nesses casos, quanto mais precoce o incio do atendi- mento, melhor a evoluªo. A medicina explica o fato pela maior neuroplasticida- de cerebral. Como a psicanÆlise pode explicÆ-lo, se o tempo para a psicanÆli- se Ø lgico e nªo cronolgico? Descritores: psicanÆlise; bebŒs; risco psquico; criana autista; atendimento precoce Mestre nªo Ø quem sempre ensina, mas quem, de repente, aprende. Guimarªes Rosa (1976) Isabela CAMPANARIO e Jeferson PINTO.pmd 21/03/07, 12:15 150

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Psiquiatra da infância e adolescência. Psicanalista. Mestreem Psicologia, UFMG.

Psicanalista. Doutor em Psicologia. Orientador do Programade Pós-Graduação em Psicologia da UFMG.

Artigo

O ATENDIMENTOPSICANALÍTICO DOBEBÊ COM RISCODE AUTISMO E DEOUTRAS GRAVES

PSICOPATOLOGIAS.UMA CLÍNICA DA

ANTECIPAÇÃO DOSUJEITO1

I sabe l a S anto ro Campaná r ioJe fe r son Machado P in to

Este trabalho articulou subsídios teórico-clíni-cos que sustentam a psicanálise aplicada a bebês emsituação de risco psíquico (autismo e outras psico-patologias graves). Esse risco configura-se atravésde sinais de dificuldades no estabelecimento de uma

RESUMOEste trabalho articulousubsídios teórico-clínicosque sustentam a psicanáliseaplicada a bebês emsituação de risco psíquico(autismo e outras psicopato-logias graves). Esse risco seconfigura através de sinaisde dificuldades no estabele-cimento de uma relação comseu agente maternante queesteja restringindo asingularização subjetiva.Há um consenso entreprofissionais das diversasáreas que tratam da criançaautista em considerar que,nesses casos, quanto maisprecoce o início do atendi-mento, melhor a evolução.A medicina explica o fatopela maior neuroplasticida-de cerebral. Como apsicanálise pode explicá-lo,se o tempo para a psicanáli-se é lógico e não cronológico?Descritores: psicanálise;bebês; risco psíquico; criançaautista; atendimento precoce

�Mestre não é quem sempre ensina,mas quem, de repente, aprende.�

Guimarães Rosa (1976)

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relação com seu agente maternante que esteja restringindo a singu-larização subjetiva. Ressaltamos que bebês são aqui consideradosaqueles sujeitos na condição infans, palavra que etimologicamentesignifica aqueles que ainda não adquiriram a fala, para evitarmosum referencial puramente cronológico.

Kanner (1943/1997), o primeiro psiquiatra a considerar o au-tismo uma síndrome específica, já em seu artigo inaugural, aponta-va alguns sinais para a detecção precoce, a partir do primeiro anode vida: bebê que não se aninha no colo, que não faz movimentode estender os braços para ser carregado, que não apresenta res-posta ao sorriso, que evita o contato visual e corporal, entre outros.No entanto, apesar de descritos desde o início, até pouco tempo ossinais precoces foram pouco valorizados.

Na verdade, durante os primeiros anos de vida, são poucopercebidos e ou valorizados pelos clínicos os sinais indicativos deque algo não vai bem com a criança. Os pacientes passam porpediatras e especialistas, são submetidos a vários exames e, porfim, somente quando persiste o atraso da fala é que são encami-nhados para tratamento em saúde mental.

Nos serviços de atenção à saúde mental da infância e adoles-cência da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH), por exem-plo, até o ano de 2003 (dados do Seminário interno de saúde men-tal da criança e do adolescente da PBH), constatou-se o predomí-nio de encaminhamentos de pacientes entre seis e doze anos. Entreesses pacientes, incluíam-se, também, as crianças cujo diagnósticoindicava psicopatologias graves como o autismo infantil.

Para ilustrar clinicamente o encaminhamento tardio dessascrianças aos serviços de saúde mental, e as dificuldades do trata-mento de uma criança autista que nos chega nessa idade, trouxe-mos fragmentos de um caso clínico de uma criança que inicioutratamento apenas aos oito anos de idade, e que chamamos deMaurício2. Ele tinha quase todos os sintomas descritos por Kanner(1943/1997). Recusava alimentos sólidos, por isso teve uma des-nutrição grave na primeira infância. Contudo, apesar de ir ao pedia-tra freqüentemente para controle de peso, só foi encaminhado paraa saúde mental pela escola, aos seis anos. Depois houve atraso paraconseguir atendimento, passando por outras instituições. Supomosque vários casos como o dele ainda passem pelas mesmas dificul-dades. Maurício ficou aos nossos cuidados por quase seis anos,continuando o tratamento com outros profissionais da equipe emrazão de nossa mudança de centro de saúde. Apesar de uma gran-de melhora inicial, na adolescência houve piora clínica, não apre-sentando boa evolução, apesar de todo o investimento da equi-pe durante mais de dez anos.

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Uma de nossas hipóteses é a de que um dos maiores proble-mas enfrentados no tratamento do autismo é seu início muito tar-dio, ou seja, depois de muitos anos de cristalização dos sintomas,mesmo que tenham sido constatados precocemente. O tratamen-to de autistas nessa faixa etária (mais de seis anos) é muito difícil.Além de o contato com a criança ser mais limitado, é especialmen-te o próprio alcance do tratamento que ficará restrito ao seu obje-tivo terapêutico e ao tempo maior que este demanda.

A suposta incurabilidade do autista deve-se, portanto, emsua maior parte, acreditamos, aos encaminhamentos tardios, umavez que o alcance do tratamento é maior em uma idade precoce,como veremos à frente, nesta pesquisa. A medicina explica o fatocom base na maior neuroplasticidade cerebral. Como a psicaná-lise pode explicá-lo, se o tempo para a psicanálise é lógico e nãocronológico?

O trabalho na rede municipal de Belo Horizonte

Essas constatações, dos melhores resultados diante do atendi-mento precoce, surgiram a partir de uma experiência clínica. Tra-balhamos atualmente em um serviço da PBH, na Regional Centro-Sul, que serve de referência aos casos mais graves de saúde mentalda infância e adolescência da regional. A partir da demanda espon-tânea da mãe de um primeiro bebê, iniciamos um trabalho ativode sensibilização dos pediatras e generalistas através de reuniões de�capacitação� para a possibilidade de atendimento precoce às crian-ças em saúde mental. É importante frisar que, a partir do primeiroante-projeto de intervenção precoce, elaborado pela Regional Cen-tro-Sul, o atendimento precoce com crianças foi implantado pelacoordenação de saúde mental da PBH, desde 2003, após discussãoem Seminário interno de saúde mental, em todas as regionais dacidade, já constando como uma das novas diretrizes do Projeto desaúde mental infantil desse município.

Houve então encaminhamento, para o serviço da PBH, decasos que sinalizavam, desde as primeiras relações da maternagem,uma dificuldade no laço da mãe com seu bebê. Curiosamente,essas dificuldades surgiam, em alguns casos, não na atividade dematernagem em si, mas na qualidade das respostas da criança aoque lhe estava sendo oferecido pela mãe. Como explicar esse fato?

Passamos a entender que o bebe é ativo na determinação desua posição e que a mãe não é �culpada�, ela desanima, caso obebê não se faça olhar, não se faça escutar, não se faça �comer�.Laznik (2004) alerta-nos para a importância fundamental de o bebê

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causar o desejo da mãe e em mantê-lo vivo, de tal forma que possa ocor-rer a subjetivação da criança.

Passaram então a chegar outroscasos graves, revelando dificuldadesna relação de maternagem ou no laçodo bebê com a mãe (ou seu agente):trata-se de pequenas crianças grave-mente enfermas, com infecções derepetição clinicamente injustificadas;anorexia; depressões; casos de �hos-pitalismo domiciliar� (p. 40), que noslembram a depressão anaclítica3 des-crita por Spitz (1979), sem serem, noentanto, crianças institucionalizadas;crianças �coladas� à mãe; bebêsalheios ao mundo, característica dacriança autista.

O interesse deste trabalho cen-trou-se nesses últimos casos, ou seja,em bebês com sinais que apontavampara o autismo. Abordamos tambémoutros quadros psicopatológicos gra-ves do infans (psicoses não decidi-das da infância, debilidade e fenô-menos psicossomáticos), ainda quede maneira menos aprofundada,visando chamar a atenção tambémpara a importância de seu tratamen-to precoce.

Psicogênese ouorganogênese -uma questão estéril

Karl Popper (citado por Pimen-ta, 2003), o epistemólogo das ciên-cias, propõe concebermos três mun-dos do real: o mundo 1 é o do cam-po físico das forças, onde se inserema biologia, a química e a física; omundo 2 é o mundo psicológico das

experiências conscientes e inconscien-tes; o mundo 3 é o do saber humanoe da linguagem. O real para Popperseria a realidade, não havendo o mes-mo sentido do Real lacaniano.

Em um importante trabalho noqual aplica a proposta popperiana aoautismo, Berquez (1991, citado porPimenta, 2003) diz que no mundo 1encontram-se as descrições do realbiológico relativas à síndrome, compossibilidades de alterações genéticas,bioquímicas ou metabólicas. Nãonegamos essas possibilidades, e faze-mos o mesmo neste trabalho, men-ções a estudos de medicina fetal so-bre as habilidades acústicas do fetono último trimestre de gestação; a tra-balhos de psicolingüística sobre aprecoce capacidade do neonato deentrar num diálogo recíproco com amãe ou seu substituto; a estudos ge-néticos que mostram uma maior in-cidência da síndrome entre familia-res de crianças autistas, ou a umamaior incidência de autismo entrecrianças portadoras de algumas sín-dromes genéticas, por exemplo.

Apesar de o mundo 1 não cons-tituir o principal foco de nossa abor-dagem, ele não é desconsiderado,apenas colocamos esses achados adialogar com a psicanálise; diálogomuitas vezes tenso, como em relaçãoà psiquiatria, quando questionamos asúltimas classificações que apresentamo autismo apenas como sinal feno-menológico, ampliando em muito aincidência da síndrome e abandonan-do a nosologia clássica.

No mundo 2 estão as teorias psi-cológicas, desenvolvimentistas e cog-nitivas sobre a síndrome. Com a con-tribuição do referencial da psicolo-

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gia do desenvolvimento, detectamosos sinais clínicos precoces de suspei-ção de autismo, que nos auxiliam nodiálogo com profissionais não psica-nalistas. É o caso de médicos pedia-tras e de outros profissionais do Pro-grama de saúde da família com quemse fizeram necessárias interlocuçõespara que a parte prática do projetoacontecesse.

O mundo 3 é o mundo da clíni-ca, da teoria de signos que permitediferenciar as doenças entre si, sem anecessidade de apontar suas causas.Esta pesquisa surge exatamente a par-tir de inquietações advindas do mun-do 3. Após cerca de 12 anos de clíni-ca como psiquiatra infantil e comopsicanalista, e com mais de uma cen-tena de casos de autismo atendidos,começamos a perceber que, quantomais precoce o tratamento de crian-ças portadoras de autismo ou de psi-copatologias graves como psicosesinfantis e debilidade, melhores resul-tados clínicos obtínhamos.

Voltando à proposta de Berquez,compreendemos com Popper quemodelos teóricos biológicos passemdiretamente do mundo 1 para omundo 3, desconsiderando o mun-do 2. O mesmo acontece com mo-delos psicológicos que desconside-ram a existência do mundo 1. Talvezpor isso tão pouco caminhamos emtermos psicoterápicos ou medica-mentosos com essas crianças.

As teorias biológicas e psicoge-néticas não são opostas, nem com-plementares, pertencem apenas a ní-veis epistemológicos diferentes. Umaquestão essencial para quem estudao autismo, segundo Berquez, seria ade estabelecer interfaces produtivas

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entre o mundo 1 e o mundo 2, fazendo avançar o mundo 3, omundo da clínica. A despeito da dificuldade de articulação, já quese trata de mundos epistêmicos diferentes, procuramos neste tra-balho seguir a proposta de Berquez, trazendo no primeiro capítulouma tentativa de diálogo com a psiquiatria, com a psicologia do de-senvolvimento e com a psicanálise em suas várias linhas teóricas. Pri-vilegiamos os autores mais relevantes em nosso estudo teórico-clíni-co do autismo na linha psicanalítica, destacando os casos Dick (porKlein), o caso Timmy (Meltzer), o caso Marie-Françoise (casal Le-fort) e o caso Marina (Laznik), procurando correlacionar a idade noinício do tratamento com a melhor evolução clínica. Realmente, oscasos que foram atendidos mais cedo pela psicanálise tiveram a me-lhor evolução clínica. A partir do segundo capítulo, aprofundamosnossa abordagem da psicanálise de orientação lacaniana, principal focode nosso trabalho. Como todo trabalho que percorre diversas orien-tações, sabemos que podemos estar sujeitos a críticas de defensoresferrenhos de ambos os mundos; porém, tentamos sustentar nossaposição, apesar delas, em prol da clínica.

Consideramos importantes pesquisas de todos os campos dosaber sobre o assunto, exatamente por ser um quadro psicopatoló-gico tão grave e difícil de abordar. Eis um quadro que expõe afragilidade desta dualidade � psíquico e orgânico �, herança daciência moderna inaugurada por Descartes.

Para Volnovich (1993, p. 44), na releitura do termo freudiano�sobredeterminação�, proposta por Lacan em 1955, torna-se pos-sível compreender que, para a psicanálise, não existe organogêneseou psicogênese dos quadros psicopatológicos.

Lacan (1955, citado por Volnovich, 1993) amplia o sentidodesse termo ao defini-lo como uma rede significante que precedetodo sujeito em sua existência. Ou seja, um sujeito já vem ao mun-do submetido a uma história, uma árvore genealógica, numa ca-deia de gerações que vai influenciar seu desejo inconsciente como osomatório de desejos de todos que desejaram por ele e para ele, eque lhe é passada através dos significantes vindos do Outro. Osujeito tem que aceitar esses significantes na alienação fundante parasair da condição de puro ser vivo e humanizar-se, podendo ou nãose separar dessas determinações posteriormente.

Podemos concluir também do estudo da obra de Lacan que,além disto, a criança vem ao mundo com um real orgânico que seapresenta em seu corpo � perfeito em alguns casos, sindrômico emoutros � e que pode facilitar ou não seu caminho em direção àsubjetivação.

Em nosso ponto de vista, os estudos psicanalíticos sobre oautismo não pertencem nem ao mundo 1, nem ao mundo 2, apro-

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ximando-se do mundo 3, o mundoda clínica, do saber humano e da lin-guagem.

Uma das características dos mé-todos qualitativos é tomar o pesqui-sador como um bricoleur, termo res-significado por Lévi-Strauss e resu-mido por Chauí (1995, p. 161, cita-do por Turato, 2003, p. 259), enten-dido como aquele que produz umobjeto novo a partir de fragmentosde outros objetos; reunindo, sem ri-gidez, tudo o que encontra e que ser-ve para o objeto a ser composto.Nossa pesquisa tem essa característi-ca, a de um trabalho manual com-posto pela clínica a partir de mundosepistêmicos diversos.

Os casos clínicos surgem nestetrabalho como testemunhos do quenos provocou a clínica. Trouxemosestudos de casos como recurso me-todológico, como caminho de cujopercurso o leitor pode depreenderum método. A vantagem da com-posição é a de permitir que cada umfaça sua construção como leitor,mesmo que seja para refutar. A frag-mentação é o ponto de incompletu-de do escrito que possibilita que cadaleitor se interrogue; o que não é umadesvantagem, pois sabemos que osaber é sempre não-todo.

Referências teóricas

Utilizamos como principal refe-rência teórica, neste trabalho, as obrasda psicanalista brasileira radicada naFrança Marie-Cristine Laznik, desen-volvidas a partir do corpo teórico deJacques Lacan. Laznik (1991, 1997,

2004) sustenta uma intervenção clí-nica precoce em crianças com sinaisde autismo e sua hipótese é a de queé possível uma evolução clínica mui-to mais favorável para os casos derisco de autismo, desde que atuemosprecocemente com a mãe e o bebê.A autora já tem três casos publica-dos em seu livro Rumo à palavra: Trêscrianças autistas em psicanálise (1997).Atualmente, coordena uma pesquisamulticêntrica sobre o tema da inter-venção precoce em bebês com riscode autismo na França e na Itália, quedeverá estudar cerca de 25.000 be-bês. Falamos aqui em risco de autis-mo porque alguma intervenção quepossibilite uma adaptação dos pais àespecificidade da hipersensibilidade edo fechamento autístico de seu bebêainda pode acontecer. Contamos ain-da com certa permeabilidade da es-trutura a novas inscrições.

Com cerca de 2.000 bebês já es-tudados, analisando vídeos caseirosdos primeiros meses de vida, Laznikescreve nos comentários à minha pes-quisa que considera haver um fecha-mento primário da criança, por umahipersensibilidade a ser esclarecida; eacrescenta que, secundariamente, oagente maternante, por exaustão, párade buscar entrar em contato com obebê que não se oferece. Tambémseguindo a proposta de Berquez,Laznik dialoga com outras áreas dosaber, como, por exemplo, a psico-logia do desenvolvimento, a psico-lingüística, a psicologia comporta-mental, a psiquiatria, a pediatria, en-tre outras.

A preocupação com os sinais derisco para uma singularidade em ins-talação encontra-se também em um

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estudo multicêntrico, realizado emdez capitais brasileiras e financiadopelo Ministério da Saúde, intitulado�Sinais de risco para o desenvolvi-mento infantil�, sob a coordenação-geral de Cristina Kupfer e a coor-denação-científica de Alfredo Jeru-salinsky.

Diagnóstico ou tratamentoprecoce?

Infelizmente, de acordo com asúltimas classificações psiquiátricascomo o DSM IV (1995) e a CID 10(1993), podemos fazer um diagnós-tico precoce de autismo logo nos pri-meiros meses de vida, desde que cer-to número de critérios fenomenoló-gicos seja preenchido. Porém, essediagnóstico precoce de autismo, sefornecido aos pais nas primeiras con-sultas, muitas vezes pode levar a fa-mília a um movimento de fuga do tra-tamento precoce, que é o mais im-portante para a obtenção de melho-res resultados clínicos.

O diagnóstico psiquiátrico pre-coce, neste sentido, talvez traga maismalefícios do que benefícios. Emnossa pesquisa, observamos que osdois casos diagnosticados mais pre-cocemente no artigo inaugural deKanner (1943/1997) não tiverammelhor evolução do que os que fo-ram mais tardiamente diagnosticados;o que trouxe mais um elemento parasustentar a nossa hipótese de que oimportante é o tratamento precoce ede que devemos evitar um diagnós-tico psiquiátrico e/ou psicanalíticoprecoce. Além disto, o diagnóstico psi-

quiátrico não considera a possibilida-de de uma mudança na estrutura, queainda pode acontecer no infans, deacordo com alguns psicanalistas.

Segundo Bernardino (2004, p.30), os psicanalistas lacanianos se di-videm em dois grupos: no primeiro,encontram-se os que consideram umtempo lógico de subjetivação, fun-dando o inconsciente, e que, uma vezdefinida a estrutura, seria impossívelque esta sofresse mudanças, seja noadulto, seja na criança; já no segundogrupo, há os psicanalistas que, embo-ra concebendo o inconsciente referi-do a uma lógica e a um tempo pró-prio, apontam uma diferença ao con-siderar o tempo do desenvolvimen-to refletindo no tempo lógico, ava-liando diferenças essenciais na estru-turação do sujeito na infância. Se-guindo Bernardino (2004), no pri-meiro grupo encontram-se teóricosque se opõem radicalmente a qual-quer especificidade do sujeito en-quanto criança.

Posicionamo-nos no segundogrupo descrito pela autora, sustentan-do uma especificidade do sujeito in-fante. Autores como Soler (1994) eMiller (1992), citados por Bernardi-no (2004), apesar de compartilharemcom a posição estruturalista, deixamdepreender de alguns de seus textosque há uma interferência do desen-volvimento em relação à palavra dacriança e a seu modo de gestão degozo.

O diagnóstico psicanalítico, aocontrário do psiquiátrico, vem como tempo e é feito sob transferência,considerando de que modo a inter-dição vige no sujeito. Por isso, deacordo com comunicação oral de

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Laznik (curso ministrado no SedesSapientiae, em São Paulo, em agos-to de 2005), houve um consenso noúltimo Congresso mundial de autis-mo, do qual a autora participou, deque só a partir dos três anos pode-mos fazer um diagnóstico definiti-vo. Até essa idade, podemos apon-tar apenas casos de suspeição; po-rém, já se deve instituir o tratamen-to mesmo antes do diagnóstico de-finitivo, visando aos melhores resul-tados clínicos. De toda forma, seessas crianças não forem autistas, jáapresentam um laço frágil com seuagente maternante, que tem riscos denão dar conta de sustentar uma sub-jetividade a se constituir para elas.

Autismo e sujeito

Para apreender os indícios pre-coces do autismo, considera-se, naperspectiva deste trabalho, que a lin-guagem preexiste ao sujeito, comonos diz Lacan. O infans está já imer-so na linguagem antes mesmo depoder falar. Portanto, consideramosque os autistas estão na linguagem,mesmo que não falem. Essas crian-ças são sujeitos, na medida em queelas são faladas; no Outro, há signifi-cantes que as representam. São sujei-tos, mas não enunciadores, aparecen-do como puro significado do Outro(Soler, 1994). Porém, qual estatuto desujeito é possível para eles?

Tanto a clínica com bebês quan-to a com o autismo são clínicas emque podemos ou não ver acontecera subjetivação. Dedicamo-nos a apro-fundar o conceito de pulsão abor-dado por Lacan (1985), iniciando

com o chamado �proto-sujeito�acéfalo da pulsão. Entramos em se-guida nas operações de alienação eseparação e em que elas nos auxiliamna clínica da primeira infância. Pas-samos em seguida ao conceito deholófrase e sua incidência na primeirainfância, �holófrase que possui vá-rias manifestações na clínica, aindaque em cada uma dessas manifesta-ções o sujeito não ocupe o mesmolugar� (p. 225). Vemos o apareci-mento de um �novo sujeito�, ter-mo controverso usado por Lacan(p. 169), no momento da holófrasee quando o infans é capaz de com-pletar o terceiro tempo do circuito pul-sional, ao se oferecer, provocando ogozo em seu agente maternante.

A voz da sereia. O manhêse a subjetivação

�A questão é saber se aquilo que osmanuais parecem expor - ou seja,

que a literatura é uma acomodaçãode restos - é um caso de colocar

no escrito o que primeiro seriacanto, mito falado ou procissãodramática.� (Lacan, 2003, p. 16)

O artigo de Cavalcante (2005),traz pesquisas que Cláudia de Lemosconduz desde 1999 na área de aqui-sição da linguagem em interlocuçãocom a psicanálise. A mãe passa a criarmanifestações de subjetividade porparte do bebê através do manhês, amaneira particular que cada mãe temde falar com seu filho.

Essa subjetividade antecipadapela mãe faz do bebê um interlocu-tor desde as protoconversações. �A

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instauração da especularidade mater-na, através do pseudodiálogo, traz apossibilidade de configurar a rela-ção mãe-bebê, desde o início, comode uma constituição subjetiva� (2005,p. 36).

Depois aparece a fala atribuída,que se caracteriza por curvas ascen-dentes e descendentes, voz em falsettoe infantilizada, por meio da qual a mãe�faz de conta que o bebê está falan-do�. Depois dessas falas, aparecempausas longas, em que o lugar locu-tório do bebê se faz presente. Aqui,através das pausas prolongadas, opróprio lugar de falante do bebê égarantido.

Aos nove meses, diante de umbebê mais ativo vocalmente, a mãerealiza outro deslocamento, agorapara seu próprio lugar de mãe. A falamaterna passa a pontuar as produ-ções do bebê através da fala ritma-da, possibilitando à criança inserir-seno compasso da língua. A mãe usa afala recortada nesse momento pararecortar produções do infante por elaespelhado. A mãe se cala, cedendolugar ao bebê.

A criança, a partir dos 15 meses,passa a assumir seu próprio lugar desujeito e também assume outros lu-gares, como faz a mãe. É o momen-to da fala enfática.

Em um de seus últimos escritos,Laznik (2004) compara a voz da mãeno primeiro momento à voz da se-reia, que tem ou não o poder de atrairo olhar de seu filho. Segundo a auto-ra, retomando elementos de um clás-sico grego, A Odisséia, há três tiposde canto da sereia. Um primeiro can-to, Op�s, é ligado à fala. É o canto se-dutor, que atrai os homens e os leva

a se afogar no fundo do mar. A au-tora compara esse canto ao manhês,que tem picos prosódicos acentua-dos e atrai o olhar do bebê, provo-cando a alienação fundante.

Laznik, Maestro, Muratori e Par-lato (2005) vêm desenvolvendo umapesquisa muito interessante em rela-ção à fala materna dirigida a seu bebê.Os autores têm analisado as falas depais de crianças que se tornaram au-tistas, em gravações domésticas fei-tas nos primeiros meses de vida, en-focando seus picos prosódicos.Ainda não temos acesso à pesquisacompleta, mas parece haver uma di-minuição de entonações de alegria esurpresa. Esses picos prosódicos,quando emitidos por outras pessoas,outros familiares ou pediatras, porexemplo, atraem o olhar da criançaautista.

Laznik problematiza esses fatos.Haveria uma ausência primária des-ses sons por parte da mãe? Diantede uma criança que não responde, oque pode tornar o bebê mais ativodo que antes supúnhamos em rela-ção à �escolha forçada� estrutural?Há um esgotamento da mãe produ-zido pela falta de respostas? Laznik,depois dos 2.000 primeiros bebês es-tudados, parece posicionar-se emrelação à última opção, segundo co-municação escrita pessoal da autora.

Pela nossa observação, em mãesde crianças com risco de evoluçãopsicótica, ao contrário, esses picosprosódicos são até mais acentuadose duram muitas vezes até a primeirainfância. Enquanto no caso de riscode autismo a sereia não atrai; na pre-sença de risco de evolução psicótica,há um excesso, uma saturação de atra-

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ção, podendo o bebê �se afogar� naalienação fundante provocada pelomanhês. Recordamos um caso deuma criança portadora de um qua-dro grave de psicose infantil que aten-demos por algum tempo. Apesar dea criança já contar com cinco anos, amãe persistia com uma entonaçãocarregada de picos prosódicos. Oque falta no autismo, abunda aqui.

Laznik (2004) nos fala de umsegundo canto, Ftogos, o canto dopuro som inarticulado, o grito dasoprano na ópera, que nos lembrauma descarga pura de pulsão demorte. Aqui é como se houvesse umadesfusão pulsional, e Tânatos com-parece de maneira singular. Laznik(1997) chega a comentar o caso deuma paciente autista, Luisa, que tinhaadoração por um trecho de ópera emque a soprano soltava esse grito. Essegrito remete-nos também ao grito deRobert, o menino lobo, caso atendi-do por Rosine Lefort e comentadopor Lacan (1979, pp. 110-27). É o�caroço da palavra�, nos diz o autor.

Lúcio, outra criança de dois anosrecebida em outubro de 2004, é aten-dida há cerca de um ano. Apresenta-va-se, a princípio, �enroscado no coloda mãe�, que não podia nem fechara porta ao ir ao banheiro. Não tinhabrincar espontâneo, não falava e nãodormia. Apesar disto, não havia si-nais de risco de autismo. Foi umagravidez desejada pela mãe e contraa vontade do pai e da família. Logoque nasceu, a mãe entrou em um qua-dro de agitação extrema, gritandosem parar, não conseguindo tocar nofilho ou falar com ele, porém nãodeixava que o retirassem de perto,por medo de que fosse roubado ou

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trocado. Esse quadro durou três meses, durante os quais mãe ecriança gritavam, em desamparo extremo, só podendo contar como auxílio da medicação da mãe e da ajuda claudicante da avó ma-terna, cansada e doente, com quem Lúcio foi deixado a partir dostrês meses.

Vemos que esse mesmo grito tornou-se a única comunicaçãopossível entre Lúcio e sua mãe. Até 18 meses, o bebê desenvolveu-se normalmente, não apresentando sintomatologia psíquica; contu-do, nessa idade, começou a emitir um �uivo desesperado�, e foisedado pelo neurologista. Há seis meses, os pais reataram o relaci-onamento e buscaram Lúcio, que passara a chorar muito à noite,incomodando a avó.

O interessante é que mesmo esse grito produziu alguma liga-ção, pois Lúcio nunca apresentou sintomatologia de risco de autis-mo. Mesmo através dele foi possível a alienação. Diante do expos-to, será que poderíamos pensar que a simples massa sonora inarti-culada pode investir libidinalmente a criança, alienando-a?

O problema é que aqui só há presença. Falta a ausência. Falta afalta. O que pode se inscrever através da modulação da fala, atravésexatamente dos picos prosódicos, não seria exatamente a falta? Omanhês tornaria possível a primeira abertura para a inscrição donome-do-pai, possibilitando assim a operação da separação?

Segundo Lacan (1973-74, lição de 19/03/74): �... todo ho-mem só chega a se fundar sobre esta exceção de alguma coisa, opai, enquanto que proposicionalmente, ele diz não a esta essência. Odesfiladeiro do significante pelo qual passa ao exercício dessa algu-ma coisa que é o amor, é muito precisamente esse nome do pai, essenome do pai que não é non (não), (n.o.n.) que a nível do dizer e que seamoeda, que se cunha pela voz da mãe, no dizer-não de um certo númerode interdições, isto neste caso, nos casos felizes...� (grifo nosso).

Portanto, segundo Lacan, a voz da mãe �cunha� o nome do pai.Nominé, em comunicação oral (conferência proferida em Belo

Horizonte em 27/09/2005), refere-se a uma passagem na qual La-can, ao tratar da pulsão invocante, comenta que a voz só é ouvidade fato na psicose. O autor lembra que a voz que interessa à psica-nálise não é a que se escuta quando emitida pelo órgão fálico docantor; esta já possui um recobrimento narcisista que veste o obje-to a. O que interessa é o vazio sonoro, o puro objeto lógico voz.Somente depois de privada da voz primordial é que se torna pos-sível a subjetivação da criança, aparecendo então a fala.

Os primeiros gritos do bebê e a eficácia da voz materna ematender seus apelos vão determinar a constituição psíquica particu-lar de cada sujeito. Os primeiros intercâmbios sonoros já marcam oinício da estruturação dos processos psíquicos. Por isso, a fala apon-

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ta para o aparecimento do sujeito do inconsciente, fixando-se comoprincipal forma de expressão psíquica.

Primeiro construímos nossos próprios signos fonéticos, cha-mados por Freud (1895/1980) de �sons verbais primários�. Sóaprendemos a falar a língua das outras pessoas em um segundomomento da comunicação, esforçando-nos por tornar a imagemsonora produzida por nós o mais semelhante possível à que deulugar à nossa inervação motora. Aprendemos a repetir, a dizer imi-tando outras pessoas (David, 2004).

A linguagem verbal se solidifica tardiamente, em um jogo derelações sonoras muito limitadas e codificadas. A palavra evolui atéalcançar uma maior clareza e riqueza expressiva, que a afasta cadavez mais do sentido sonoro puro, que poderíamos aproximar doconceito lacaniano de lalangue, a �massa sonora�.

Laznik (2004) nos fala ainda de um terceiro canto, Aöide, quenão é a voz, mas o hino em si mesmo. Aöide, que não é a voz,também não é um conteúdo, mas promessa de saber, diz-nos aautora. Vejamos um exemplo clínico em que o encontro com amassa sonora de uma língua desconhecida dificultou um laço capazde sustentar uma subjetividade em instalação.

Francesca chega a atendimento aos quatro anos. Teve diagnós-tico de risco de autismo na Itália, onde morava com os pais naprimeira infância, tendo sido atendida precocemente, com excelen-te resultado. Não apresenta mais nenhum sintoma autístico.

A mãe, brasileira, conheceu o pai, italiano, pela Internet. De-pois de poucos encontros, ela engravidou de Francesca e casou-se,tendo ido morar na Itália, sem falar o idioma. Logo se deu contade que o marido era usuário de drogas, não trabalhava e morava aexpensas da família, que não acolheu bem a mãe e a filha. A mãerelata ter entrado em um estado de �estranhamento diante da lín-gua, do país, de sua nova realidade�, do qual só se recobrou após o�susto� tomado pelo diagnóstico de risco de autismo de Frances-ca, então com um ano e três meses. Ficava horas andando a esmopela cidade, sem rumo. O que mais a incomodava era o som danova língua, da qual só conseguiu aprender poucas palavras. Apóscerca de um ano de tratamento dela e da criança, voltou ao Brasilcom a filha e o marido.

Melman (1989, citado por Laznik, 1997) fala-nos da dificulda-de de estrangeiros que não falam a língua ao terem filhos que pas-sam a ser educados no novo idioma. Diz que a função de pai sim-bólico passa a ser exercida pela nova língua, ficando os pais restri-tos ao papel de pais reais, acarretando por vezes dificuldade desubjetivação dessas crianças.

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A música da fala

�No início era o verbo�João, 1; 1, Bíblia

É interessante notarmos que a música, os ritmos e a entonaçãoda voz são essenciais no tratamento do autismo, uma das maisprimitivas patologias humanas. Seria quase impossível abordar umacriança autista sem o acesso aos recursos que a música oferece.

Segundo David (2004), �a música abrange diversos fenôme-nos que ultrapassam a delimitação de uma forma estética. Ela acom-panha o homem desde seus primórdios, das canções de ninar aostranses religiosos e rituais fúnebres�.

Para o autor, a voz é considerada o primeiro instrumentomelódico, e as mãos e os pés, os primeiros instrumentos de per-cussão. O homem primitivo buscava harmonizar seu próprio rit-mo com o dos seus semelhantes; assim, a dança e o canto acompa-nhavam o bater das palmas e dos pés. Ao associar a melodia can-tada a uma representação de tempo, ele podia colocar-se em unís-sono com os demais, representando simultaneamente sua unidadee sua separação com um objeto. Podemos nos remeter aqui aosconceitos lacanianos de alienação e separação?

Na maior parte das civilizações da antiguidade, a música foiconsiderada a maior de todas as artes. De fato, a voz é o registromais primitivo de que dispomos. Como acentua bem Laznik (2004),a voz é anterior ao olhar para o bebê, e, como vimos anteriormen-te, o manhês abre caminho para a subjetivação. Além disto, a falasegue tendo importância fundamental para a psicanálise, visto queé através dela que podemos dizer do que nos marcou.

A voz tem padrões de tom, timbre, ritmo e intensidade variá-veis que já são captados pelo bebê, que já é afetado pelos sonsdesde o último trimestre de gestação, segundo a medicina fetal. Obebê é extremamente precoce em relação ao contato com o estí-mulo sonoro, e muitas mães relatam que seus bebês se mexem nabarriga diante de certos estímulos sonoros específicos, de certasmúsicas ou da fala de algumas pessoas. Pesquisas recentes compro-vam que, nos últimos meses de gravidez, o feto já responde a pa-drões sonoros como a voz da mãe, ou musicais, indicando umamaturação biológica extremamente precoce das sensações acústi-cas (David, 2004).

Seguindo com o autor, a fala e a música originam-se de confli-tos auditivos que remetem à própria origem da capacidade de sig-nificação humana. O autor remete-nos ao Projeto para uma psicologiacientífica, no qual Freud (1895/1980) descreve a origem da lingua-

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gem humana por meio da comuni-cação sonora desenvolvida precoce-mente entre o recém-nascido e oNebenmensch, o ser experiente que cui-da. A inervação da fala é a primeiravia de descarga, e funciona comouma válvula de escape para regularas oscilações do quantum de energiaaté que se descubra a ação específica.Os sons emitidos e percebidos fazemuma primeira mediação, ligando arealidade interna e externa do bebê.

Citemos, como exemplo, a mãeque canta enquanto prepara a mama-deira, e a criança muitas vezes se cala,momentaneamente satisfeita pela vozmaterna.

Para David (2004), a música e afala tomam caminhos diferentes emum segundo momento da comuni-cação humana, mas continuamenterecorrem um ao outro graças à ori-gem sonora comum, como notamosna poesia ou na canção. Do grito atéos significantes verbais, passando pelamúsica, procuramos compreender aposição privilegiada dos sons atravésda pulsão invocante, dando origemà subjetivação humana.

Deixamos o seguinte questiona-mento, que poderá ser investigadoem pesquisas posteriormente: o ma-nhês é um verbo ou um ato?

A capacidade desurpreender-se do Outroprimordial

A capacidade de surpreender-sedo Outro primordial foi ressaltadapor Laznik (citada por Fernandes,2000) como essencial para a consti-

tuição do sujeito, na medida em quefaz um furo no saber do agentematernante, permitindo ao infans po-sicionar-se como sujeito justamenteatravés desse furo.

Tentar furar esse Outro esféricoque se apresenta para o autista é umanecessidade clínica. O Outro deve tera capacidade de se despir de seu sa-ber para poder se surpreender dian-te das produções de pouco sentidoapresentadas pelo bebê, para que es-tas não fiquem localizadas comosem-sentido. Nesses furos do saberdo Outro, o bebê pode se engan-char, aparecendo como sujeito.

A clínica do autismo pode en-sinar muito ao psicanalista. O fatode que muitas crianças melhoramapós um susto concreto tomadopela analista em algum momento doatendimento nos ensina que deve-mos nos surpreender diante de cadacaso. Esse susto pode funcionar fu-rando o Outro esférico do autista.Enquanto atendemos imbuídos deum saber pronto, nada acontece.Devemos nos despir do saber pré-vio, do prognóstico reservado quenos fornece a psiquiatria e mesmo apsicanálise, para possibilitar que algode novo advenha.

A título de conclusão

Trouxemos, ainda que de ma-neira provisória, devido à novidadee dificuldade do tema, nossas con-clusões. O modelo da psicanálisecom bebês confere a eles um esta-tuto de sujeito antes de seu advento.Quando o analista se dirige a umbebê ou a uma pequena criança, não

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importa que ali ainda não haja umsujeito do inconsciente constituído.Ao falarmos com o bebê, fazemosuma antecipação de sujeito que énecessária para que algum dia umsujeito ali possa surgir.

Apresentamos a hipótese deque a suposição de sujeito da partede quem atende justifica o termo�atendimento psicanalítico� paraessas crianças. Porém, esse atendi-mento faz uma aposta que não ofe-rece garantias. Podemos justificar oendereçamento do analista ao bebêdesde os primeiros meses de vida.Provavelmente, este não será capazde compreender o sentido das pa-lavras, mas já é possível que ele sejatocado pela entonação e pelos pi-cos prosódicos de nossa voz. Amúsica da fala abre muitas perspec-tivas de pesquisa clínica e novaspossibilidades de intervenção. Ospicos prosódicos de nossa voz po-dem abrir caminho para a inscri-ção dos nomes-do-pai.

Além disto, o psicanalista fala aobebê também para que o agente dafunção materna possa ouvir. A mãeescuta que o analista dá lugar aobebê, e isso pode abrir caminhopara que ela também passe a anteci-par um sujeito.

O tratamento do Outro tambémse faz necessário, e pode ser feito tam-bém por meio do (r)estabelecimentodo laço com o bebê; em um dos trêscasos clínicos trazidos em nossa pes-quisa, a mãe estabiliza sua psicose semoutro tratamento que não �o da crian-ça�, visto que ela recusa tratamentoindividual.

Deve-se trabalhar clinicamente,além da suposição de sujeito, com

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suas conseqüências: o estabelecimen-to da demanda, a alternância presen-ça-ausência e a alteridade na relaçãodo bebê com seu agente maternante.Se �A criança é o pai do homem�,como nos diz o poeta romântico in-glês William Wordsworth (1770-1850), conforme a maneira comotratarmos o bebê e a criança produ-ziremos sujeitos ou autômatos.

As intervenções e interpretaçõesdevem se dirigir ao bebê, ao agenteque exerce a função materna, e à re-lação do bebê com esse agente. Es-sas intervenções e interpretações têmsido feitas a partir do lúdico, propi-ciando, através do brincar, um laçoentre a mãe e o bebê.

Em caso de risco de autismo enas psicoses não decididas da infân-cia, no nosso ponto de vista, o aten-dimento precoce não é uma preven-ção, pois a criança já apresenta sinaisde que algo não vai bem. Trata-se,sim, de um tratamento que se anteci-pa à estruturação psíquica, podendopermitir ainda que alguma retificaçãoda função paterna e materna aconte-ça. No entanto, achamos interessanteo conceito de prevenção de Dolto(citada por Rohenkhol, 1999), paraquem prevenir é �atender quando al-guém precisa�. Nesse sentido, nossaclínica seria preventiva; contudo, aúnica prevenção possível seria semgarantias, prevenção castrada, �não-toda�, como bem apontado porRohenkhol (1999).

Os atendimentos vêm sendo re-alizados ainda há pouco tempo, e énecessário um trabalho a posterioripara avaliação da estruturação clíni-ca dos pacientes atendidos desdeprecocemente. Todavia, dar ao bebê

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e à criança pequena a possibilidade de ser atendida de forma inte-gral como sujeito e cidadão deve ser o objetivo das novas ações noâmbito da nossa clínica. Faço votos de que este trabalho, ainda queabrindo mais questões do que concluindo, possa ser útil para queessas crianças, ainda desprovidas de fala, mas com outras possibili-dades de linguagem, sejam mais bem acolhidas para tratamentonos Serviços de saúde mental, mais �acostumados� à clientela quefala e demanda.

ABSTRACT

PSYCHOANALYTICAL INTERVENTION TO BABIES AT RISK OFAUTISM AND OTHER INFANTS�SEVERE PSYCHOPATHOLOGIES.A SUPPOSITION OF A SUBJECT�S CLINICS.The author proposed a theoretical and clinical articulation capable of providing support toan earlier psychoanalytical intervention to babies at risk of autism and other severepsychopathologies, as shown by signs of difficulty in establishing mother/child bonds, whichcould restrict the birth of the subjectivity in the infant. Interdisciplinary professionals thattreat autistic children agree that the timing of the beginning of the treatment is essential foraccomplishing the best results, which is explained by Medicine because of children�s greatercerebral neuroplasticity. How could psychoanalysis explain such fact, since psychoanalysis�time is logical, not chronological?Index terms: psychoanalysis; baby; risk of autism; psychoses still changeable inchildhood; debility

RESUMEN

LA ATENCIÓN PSICOANALÍTICA AL BEBÉ CON RIESGO DEAUTISMO Y DE OTRAS PSICOPATOLOGÍAS GRAVES. UNA CLÍNICADE ANTICIPACIÓN DEL SUJETOEste trabajo articuló subsidios teórico-clínicos que sustentan el psicoanálisis aplicado abebés en situación de riesgo psíquico (autismo y otras psicopatologías graves). Este riesgo seconfigura a través de señales de dificultades en el establecimiento de una relación con suagente maternante que esté restringiendo la singularización subjetiva. Hay un asentimientoentre profesionales de varias profesiones que tratan del niño autista en considerar que tantomás precoz iniciamos la atención en estos casos, mejor la evolución. La medicina explica elhecho por la mayor neuroplasticidad cerebral. ¿Cómo el psicoanálisis puede explicarlo, si eltiempo para el psicoanálisis es lógico y no cronológico?Palabras clave: psicoanálisis; bebé; riesgo de autismo; psicosis no decididas de lainfancia; debilidad

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NOTAS

1 Dissertação de Mestrado defendida na Pós-Graduação em Psicologia, Área de Concen-tração em Estudos Psicanalíticos da Univer-sidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em23/02/2006.2 Maurício foi atendido por mim dos oitoaos quatorze anos. Também atuaram no casoMaurício outros profissionais da EquipeComplementar Barreiro (Prefeitura Munici-pal de Belo Horizonte).3 Quadro psicopatológico advindo da sepa-ração precoce mãe-filho, temporária ou defi-nitivamente, ainda no primeiro ano de vida,que pode levar, em casos extremos, à morteda criança.

[email protected]@uai.com.br

Recebido em abril/2006.Aceito em setembro/2006.

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