O Arqueologismo na Escultura de Jorge Vieira - Sara Navarro

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171 O Arqueologismo na Escultura de Jorge Vieira Os objetos criados por Jorge Vieira transmitem algo de primitivo, arcaico ou arqueológico. Algo que evoca a arte e a cultura de outros lugares e de outros tempos, algo que nos desperta ecos de uma “terra antiga”. “Tem sido dito: nesta escultura perpassa a atração, a captação de algo que nos surge como primitivo, quase arcaico (ou “arqueológico” como disse Rocha de Sousa) e entretanto, transhistoricamente presente, no ser histórico e contemporâneo que nós somos.” (Gusmão, 1998, p.28) “Rocha de Sousa, em 1971, dizia: ‘Uma linguagem que é ao mesmo tempo arrancada à memória de civilizações mortas, à visão popular e ao mito, ao percurso e ao poder da imaginação.’ (…) algumas constantes, elementos ou valores que permanecem de civilização para civilização, o espírito da formas que correspondem a uma experiência profunda de muitas gerações…” (Gusmão, 1998, p.28) Num salto entre milénios, que parte de uma atração pelas origens, pela arte antes da arte, a obra de Jorge Vieira faz uma conexão entre os processos criativos dos objetos mais arcaicos ou re- motos e a criação mais atual. Situada num “tempo fora do tempo”, responde a um fascínio pelos artefactos vindos de mundos extintos e enigmáticos. O próprio Jorge Vieira fala da sua admiração pelos tempos antigos, do Mediterrâneo, da cul- tura ibérica, das artes primitivas, da escultura africana, grega, etrusca, micénica. Estas referências mais antigas fundem-se, na sua obra, usando certa liberdade de imaginação, com outras mais recentes, como a obra de Picasso, Marino Marini e Henry Moore. É pois uma dualidade de referências, de um passado remoto �primitivo, arcaico ou arqueoló- um passado remoto �primitivo, arcaico ou arqueoló- gico) e de uma modernidade �com influências abstractas e surrealistas), que transforma a obra de Jorge Vieira num fértil campo de experimentações formais e simbólicas, num trabalho de hibridização e síntese. O antigo e primordial, com a sua sugestão de magia de um fabuloso tempo ancestral, estão na base da criação, em “estilo adaptado” ou “à maneira antiga”, de esculturas arqueologizantes,  gér- menes da época atual. ARTE TEORIA · Sara Navarro

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Artigo na revista Arte Teoria 14/15 (2011/12) da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa

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O Arqueologismo na Escultura de Jorge Vieira

Os objetos criados por Jorge Vieira transmitem algo de primitivo, arcaico ou arqueológico. Algo que evoca a arte e a cultura de outros lugares e de outros tempos, algo que nos desperta ecos de uma “terra antiga”.

“Tem sido dito: nesta escultura perpassa a atração, a captação de algo que nos surge como primitivo, quase arcaico (ou “arqueológico” como disse Rocha de Sousa) e entretanto, transhistoricamente presente, no ser histórico e contemporâneo que nós somos.” (Gusmão, 1998, p.28)

“Rocha de Sousa, em 1971, dizia: ‘Uma linguagem que é ao mesmo tempo arrancada à memória de civilizações mortas, à visão popular e ao mito, ao percurso e ao poder da imaginação.’ (…) algumas constantes, elementos ou valores que permanecem de civilização para civilização, o espírito da formas que correspondem a uma experiência profunda de muitas gerações…” (Gusmão, 1998, p.28)

Num salto entre milénios, que parte de uma atração pelas origens, pela arte antes da arte, a obra de Jorge Vieira faz uma conexão entre os processos criativos dos objetos mais arcaicos ou re-motos e a criação mais atual. Situada num “tempo fora do tempo”, responde a um fascínio pelos artefactos vindos de mundos extintos e enigmáticos.

O próprio Jorge Vieira fala da sua admiração pelos tempos antigos, do Mediterrâneo, da cul-tura ibérica, das artes primitivas, da escultura africana, grega, etrusca, micénica.

Estas referências mais antigas fundem-se, na sua obra, usando certa liberdade de imaginação, com outras mais recentes, como a obra de Picasso, Marino Marini e Henry Moore.

É pois uma dualidade de referências, de um passado remoto �primitivo, arcaico ou arqueoló-um passado remoto �primitivo, arcaico ou arqueoló-gico) e de uma modernidade �com influências abstractas e surrealistas), que transforma a obra de Jorge Vieira num fértil campo de experimentações formais e simbólicas, num trabalho de hibridização e síntese.

O antigo e primordial, com a sua sugestão de magia de um fabuloso tempo ancestral, estão na base da criação, em “estilo adaptado” ou “à maneira antiga”, de esculturas arqueologizantes,  gér-menes da época atual.

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“A sua escultura inscreve na modernidade radical, que consubstancia a metáfora de uma dimensão arqueológica do inconsciente na deriva de um fundo mítico imemorial ao encon-tro de uma corporalidade modernista.” (Lapa, 1995, p.17)

A obra de Jorge Vieira funciona como uma metáfora que opera no deslocamento entre o sentido histórico das suas referências e o imaginário do artista, que possibilita novas relações for-mais e simbólicas. O seu olhar entrou nos gestos dos produtores ancestrais, procurou reproduzi--los e senti-los como seus.

O material de trabalho eleito por Jorge Vieira foi o barro, “mais quente e mais sensual, vivo e agradável”, como ele próprio refere. Este material, pela sua maleabilidade, permitiu-lhe explorar o gesto, ligando-o a um valor simbólico associado a uma substancialidade terrestre, que coloca o acento no primitivismo/arqueologismo como referência essencial da sua obra.

Com o primitivismo ou, melhor dizendo, o arqueologismo como caminho para a criação, Jor-ge Vieira busca uma essência de formas em que procura desenterrar um ideal de autenticidade e pureza criativa.

Jorge Vieira anuncia um retorno da escultura à produção artesanal. A sua obra invoca as práticas primitivas da produção de objetos e conota a prática da escultura com um valor cultural arcaico, quase arquetípico. Explora a relação entre a mão e a matéria, no sentido do “saber fazer” artesanal, como forma geradora da obra.

“A sua mão não esculpia, acariciava o barro como se acaricia o corpo de uma mulher, tudo o que ele fez está ligado à terra, pés fincados no chão (geralmente três), o resto virado para o céu, para a esperança, para a liberdade.” (Castello Lopes, 1998, p.70)

FIG. 1 · Jorge Vieira, Sem Título, 1957, bronze.

MNAC – Museu do Chiado

FIG. 2 · Jorge Vieira, Monumento ao Prisioneiro Político,

(maquete) 1952, bronze. MNAC – Museu do Chiado

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O Arqueologismo na Escultura de Jorge Vieira

Há no trabalho de Jorge Vieira uma série de personagens ou figuras a que o autor ciclicamente retorna: os casais de amantes, as ilustrações alegóricas, os nus eróticos, as personagens dos mitos pagãos mediterrânicos, o touro, o cavalo. Em termos formais, sobressaem as peças assentes em tripés, os jogos de cheios e vazios, a associação livre e automática de formas e o absurdo de algu-mas associações anatómicas: “os corpos fundem-se, derivam uns dos outros, geram uma nova anatomia” �Pinharanda, 1998, p.17).

“A fantasia é posta ao serviço de um propósito escultórico, diretamente relacionado com o tratamento da forma e a sua intervenção no espaço. Os volumes são pesados, permane-cem firmes sobre a terra e as formas sujeitas a um processo esquematizador, de acordo com a essencialidade que o artista teve sempre presente como objectivo, mas agora refor-muladas de pressupostos figurativos, deixando de lado conceitos abstractos e adoptando um novo sentido de modernidade, baseado na construção, ruptura, deformação e adição de anatomias. Ou seja, de volumes escultóricos e de sentidos semânticos subversivos do orgânico onde a modernidade constrói uma desregulada retórica da essencialidade e da recriação, da depuração e da sensualidade, do poético e do popular.” (Lapa, 1995, p.96)

Partindo de realidades perdidas, as formas criadas pelas mãos do escultor põem o tempo presente em comunicação com passados remotíssimos. Pela transfiguração, surgem figuras ar-quetípicas, reconhecíveis, ainda que com novas simbologias. Figuras com significados sempre múltiplos, com sentidos construídos e reconstruídos…

Jorge Vieira coloca-se, de forma mais ou menos consciente, numa “cadeia de sequências formais”, numa história milenar onde não existe nada que não possa voltar a ser atual �Ku-bler, 1962). A atenção do artista dirige-se, muitas vezes, não para o original, mas para a cópia,

FIG. 3 · Jorge Vieira, Sem Título, 1956, bronze.

MNAC – Museu do Chiado

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reprodução ou repetição, que conferem sentido às suas criações artísticas ao mesmo tempo que as tornam reconhecíveis. Jorge Vieira vê a essência da prática artística não na originalidade, que cria a partir do nada, mas na pequena variação� entende o comportamento humano como mani-� entende o comportamento humano como mani-festação essencialmente ritual.

“As coisas possuem uma ‘idade sistémica’ que pouca relação tem com a idade cronológica: as obras humanas são como as estrelas cuja luz partiu em direção ao observador muito antes de lhe aparecer.” (Perniola, 2003)

Esta procura das raízes da arte leva à percepção da grande diversidade estética e cultural da humanidade, assim como à relativização das concepções homogéneas e lineares da história� em última análise, leva a aprender a ver. Permite ampliar as fronteiras da compreensão das formas artísticas e a multiplicidade de normas ou critérios de representação existentes �Jiménez, 1996).

“A arte que desempenha o seu papel tradicional de antecipação tem também a capacid-ade de se relacionar com modos de agir e de pensar que ressoam muito profundamente no imaginário dos homens e os enviam às raízes mesmas da sua civilização” (Tiberghien, 2009)

Nesta mimese de uma simbólica situada entre o imaginário e o histórico, há algo que man-tém a obra de Jorge Vieira no território do sagrado, algo que garante o seu valor de substituição. Os seus objetos, ou esculturas, funcionam como arquétipos que, modernamente, sugerem os ídolos das antigas civilizações.

“Nunca, nunca, a obra de arte se destina às novas gerações. Ela é oferenda ao inúmero povo dos mortos.” (Genet, 1999, p.19)

Referências

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Sol. Lisboa: Parque Expo98.

GUSMÃO, M. �1998). Cinco Pontos Sobre a Escultura de

Jorge Vieira. In Museu Jorge Vieira. Casa das Artes.

Beja: Câmara Municipal de Beja, 27-31.

GENET, J. �1999). O Estúdio de Alberto Giacometti.

Lisboa: Assírio & Alvim.

JIMÉNEZ, J. �1996). Las raíces del arte: El arte

etnológico. In História del Arte. 1: El mundo

antiguo. Alianza Editorial, 41-83.

KUBLER, G. �1962). The Shape of Time: Remarks on the

History of Things. New Haven �CT) Yale Univ. Press.

LAPA, P. �1995). O Immemorial e o Corpo na Escultura

de Jorge Vieira. In Jorge Vieira. Museu do Chiado.

Lisboa: Instituto Português de Museus, 17-26.

LAPA, P. �1995). O Corpo no Corpo. In Jorge Vieira.

Museu do Chiado. Lisboa: Instituto Português de

Museus, 96.

PINHARANDA, J. �1998). Corpos de Dentro de Corpos.

In Museu Jorge Vieira. Casa das Artes. Beja: C.

Municipal de Beja, 17-22.

TIBERGHIEN, G. �2009) “Natureza, arte e formas

arcaicas.” In Resumo das conferências A Arte antes e

depois da Arte. No ano da inauguração do Museu do

Côa. Lisboa: Culturgest.

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