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O “argumento ontológico” e a História da Filosofia

Autor: Sávio Laet de Barros Campos. Bacharel-Licenciado em Filosofia Pela Universidade Federal de Mato Grosso.

1. O argumento ontológico: ideia que nasce eterna

Neste estudo encetamos acompanhar o desenrolar dos fatos que levaram o argumento

– dito “ontológico” – a migrar de Agostinho a Leibniz, da patrística à modernidade. Este

argumento, para muitos equivocadamente denominado ontológico por Kant, é uma dessas

ideias que, por assim dizer, nascem “eternas” e que o espírito humano soube retomar e

renovar ao longo dos séculos.

O “argumento ontológico” foi retomado repetidas vezes, porque parece que a síntese

dos nossos raciocínios e a conclusão dos nossos “porquês” – não importando os vieses

distintos que seguem – nos encaminham para ele. É chamado eterno, porquanto parece

encerrar em si um processo de aprofundamento metafísico que seguiu longos séculos para

chegar ao seu termo último.

Sabemos com alguma razoabilidade onde o argumento nasceu, mas não sabemos onde

vai parar. É uma dessas experiências metafísicas que alcançam o seu limite e que, exatamente

por terem atingindo o seu cume, não podem ser ultrapassadas, mas apenas reformuladas e,

talvez, aprofundadas. Decerto que são diversos os caminhos para se chegar à mesma

conclusão, deveras uns mais felizes do que os outros, mas o ponto final parece ser sempre o

mesmo:

A prova da existência de Deus tirada apenas da sua idéia foi e continua a ser uma dessas experiências metafísicas de que se pode dizer que nascem eternas, porque atingem o termo final de um dos caminhos que o espírito humano pode seguir.1

1 GILSON, Etienne. A Filosofia Na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 303.

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Por conseguinte, na história dos sistemas filosóficos do Ocidente cristão, o argumento

ontológico reaparece como uma exigência indeclinável a que chegamos quando levamos até

as últimas consequências a nossa busca pelo incondicionado e absoluto.

Sem dúvida com nuances diferentes, com rigor e desenvolvimento diversos, mas

perfeitamente reconhecível, lá está ele a brotar como conclusão inalienável de premissas

necessárias. É certo que cada autor que o evoca, algo lhe acrescenta de acordo com o papel e a

função que ele ocupará no seu sistema. No entanto, à parte dos mais variados interesses a que

ele pode servir, o seu fundamento permanece sempre o mesmo.

2. Sua origem agostiniana

Talvez possamos afirmar com alguma precisão, que a ideia de um ser além do qual

nada se possa pensar de maior tenha nascido nas penas de Agostinho. Em mais de uma

passagem Agostinho o insinua, mas nenhuma é mais evidente do que a registrada em sua obra

De Doctrina Christiana:

Ao se representarem o único Deus entre todos os deuses – inclusive aqueles homens que imaginam, invocam e adoram outros deuses, seja no céu, seja na terra-, representam-no de tal modo sublime que a mente não consegue pensar coisa alguma de melhor e mais excelente. (...) Aqueles, por outro lado, que são movidos pela inteligência a se representarem o que seja Deus, antepõem-no a todas as naturezas visíveis e corporais, assim como a todas as naturezas espirituais, inteligíveis e mutáveis. Todos, contudo, porfiam com afinco para dotarem Deus de excelência suprema. E não se pode encontrar pessoa alguma que pense haver um ser melhor do que Deus. Assim, todos pensam unanimemente que Deus está acima de todas as coisas.2

Todos os homens – diz Agostinho – inclusive aqueles que não possuem uma

inteligência elevada e mesmo aqueles cuja religião seja o mais aberrante politeísmo, possuem

uma ideia comum de Deus, qual seja, a de um ser perfeitíssimo acima do qual nada pode

existir.

2 AGOSTINHO, Santo. A Doutrina Cristã. Trad. Ir. Nair de Assis Oliveira. Rev. Honório Dalbosco. São Paulo: PAULUS, 2002. I, 7, 7.

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De resto – continua Agostinho – os que chegam a esta ideia pela via do raciocínio,

concluem, de modo irrefutável, que Deus está no ápice da hierarquia dos seres, acima de

todos os demais seres materiais e espirituais.

Desta feita, vê-se que Agostinho já possuía a fórmula que Anselmo consagraria: Deus

é um ser sumamente perfeito acima do qual nada se pode pensar de maior. Ademais, ele

afirma, ainda, que esta ideia é inata e evidente a todos os homens, embora nem todos

consigam captar a sua insofismável força persuasiva com a mesma intensidade

3. O conceito de ser perfeitíssimo em Boécio

De Agostinho, Boécio retoma e desenvolve a ideia do ser perfeitíssimo, à qual agrega

a de soberano bem. De Deus – diz Gilson interpretando Boécio – temos um conhecimento

inato: concebemo-lo como Soberano Bem, isto é, como “(...) um ser tal que não podemos

conceber nada melhor”3. Portanto – continua Gilson – uma demonstração da existência de

Deus, por ser esta inata, é dispensável.4 Contudo, para fins lógicos e didáticos, Boécio a

expõe.

Ora, para estabelecer a existência deste Ser devemos ter presente o seguinte princípio:

o imperfeito não pode ser senão uma diminuição do perfeito. Por conseguinte, a existência do

imperfeito, pressupõe, em qualquer ordem, a existência do perfeito.5 Na verdade – observa

Gilson, na linha de Boécio – a própria etimologia da palavra “im-perfeito” indica a sua

origem.6 Agora bem, o imperfeito existe. Ora, sendo que o imperfeito não é senão a

diminuição do perfeito, não se pode duvidar, então, que o perfeito exista, qual causa dos seres

imperfeitos e isto em qualquer ordem e até absolutamente falando.7

3 GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 167. 4 Idem. Ibidem: “A rigor, poder-se-ia dispensar a prova de que esse perfeito é Deus, pois o perfeito é melhor do que tudo quanto se possa conceber.” 5 Idem. Ibidem: “Para estabelecer sua existência, Boécio se apóia no princípio de que o imperfeito não pode ser senão uma diminuição do perfeito; a existência do imperfeito, numa ordem qualquer, pressupõe, pois, a do perfeito.” 6 BOEHNER, Philotheus, GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 7a. ed. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: VOZES, 2000. p. 212.: “A própria palavra ‘im-perfeito’ está a indicá-lo.” 7 GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 167: “Ora, a existência de seres imperfeitos é manifesta; não se pode, portanto, duvidar da existência de um ser perfeito, isto é, de um bem fonte e princípio de todos os outros bens.”

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Ora, a partir daí a prova da existência de Deus como o ser perfeitíssimo fica patente.

Na verdade, na hierarquia dos seres perfeitos das mais diversas ordens não se pode retroceder

indefinidamente, pois deve haver um ser perfeitíssimo que contenha todas as demais

perfeições e que seja a causa de todas as perfeições.

Negar a existência deste ser perfeitíssimo – o qual é Deus – seria novamente admitir

que o imperfeito não procede do perfeito, pois, diante deste ser perfeitíssimo, todos os demais

seres se apresentam como imperfeitos. Logo, caso Deus não fosse este ser perfeitíssimo

primeiro, deveríamos postular a existência de um ser que Lhe fosse anterior e mais perfeito

que Ele.8 Ora bem, Deus não pode ter nada que lhe seja anterior e nem mais perfeito do que

Ele, já que a sua própria ideia implica que Ele seja o princípio de todas as coisas.9 Donde, a

menos que admitamos o absurdo de conceber uma regressão infinita na escala dos seres

perfeitos, temos que admitir que exista um ser infinitamente perfeito, o qual é Deus.10

Desta sorte, verifica-se em Boécio uma notória “evolução” “lógico-metafísica” no

argumento, além de uma gama de novas influências tornar-se patenteável. O ser perfeitíssimo

torna-se a causa primeira de todos os seres imperfeitos, porquanto contém, de modo

simpliciter, todas as perfeições destes seres. Se não pelo neoplatonismo, decerto pela

dogmática cristã da “criação” – ou mais exatamente pela conjugação de ambas – Boécio dá

um novo fôlego ao argumento.

De resto, a própria concepção aristotélica, segundo a qual não pode haver um “infinito

atual”11, ajuda na construção do raciocínio. Além disso, a ideia de que o ser perfeitíssimo é

também o soberano bem atesta a influência platônica. Por fim, o fato de este ser possuir todas

as perfeições de modo simpliciter, alude à influência neoplatônica da doutrina “uno” de onde

proveio a multiplicidade.

8 BOEHNER, GILSON. História da Filosofia Cristã. p. 212.: “Pois a menos de ser Ele o Sumo Bem, deveria existir um outro ser perfeitamente bom, e portanto preferível e anterior a Ele, porquanto é evidente que o sumamente perfeito é anterior ao menos perfeito.” 9 GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 167: “Pensemos, porém, que admitir que Deus não seja perfeito seria admitir um ser perfeito que fosse anterior a Deus e, por conseguinte, seu princípio. Ora, Deus é o princípio de todas as coisas, é ele, portanto, que é o perfeito.” 10 Idem. Ibidem. “A menos, pois, que se admita uma regressão ao infinito, o que é absurdo, deve existir um ser perfeito e supremo, que é Deus”. BOEHNER, GILSON. História da Filosofia Cristã. p. 212.: “Logo, para que a razão não se veja forçada a uma regressão ao infinito, cumpre reconhecer que o Deus altíssimo possui a plenitude do bem supremo e perfeito.” 11 Se bem que Aristóteles só nega o infinito atual quantitativo.

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4. A consolidação do argumento com Anselmo

Depois de Agostinho e Boécio, será o Arcebispo de Cantuária que se deterá em nosso

argumento. Coube, sem dúvida, a Anselmo, o mérito cunhar a elaboração clássica do

argumento. Será a ele que os autores posteriores irão retornar para verificar a força da

argumentação. De sorte que podemos dizer que pertence a Anselmo a formulação

propriamente dita da prova da existência de Deus pela chamada via ontológica.

Em Anselmo, mister é constatar, antes de tudo, que “o ser acima do qual nada se pode

pensar de maior” existe ao menos na inteligência. De fato, esta é uma constatação inegável,

porque, quando ouvimos esta definição, compreendemo-la e tudo o que se compreende está na

inteligência.12

Agora bem, “o ser acima do qual não se pode pensar nada de maior”, não pode existir

somente na inteligência. Com efeito, se assim fosse, qualquer outro ser que existisse na

inteligência e na realidade, seria maior do que ele.13 Por conseguinte, “o ser acima do qual não

se pode pensar nada de maior”, não seria o ser do qual nada se pode pensar de maior, pois

haveria um outro ser maior do que ele, a saber, aquele ser que existisse na inteligência e na

realidade. Logo, “o ser acima do qual não se pode pensar nada de maior”, não seria o ser

acima do qual não se pode pensar nada de maior, o que é contraditório.14

Portanto, partindo destas premissas, Anselmo chega a uma primeira conclusão: “‘o ser

do qual não se pode pensar nada de maior’ existe, sem dúvida, na inteligência e na

realidade”15. Sem embargo, a existência é uma perfeição. Destarte, se assim é, “o ser acima do

qual nada se pode pensar de maior” deve existir, necessariamente, fora do pensamento,

porque, se assim não fosse, poder-se-ia pensar num ser mais perfeito do que ele, qual seja,

num ser que não pudesse “não-existir” no pensamento e na realidade.

12 ANSELMO. Proslógio. Trad. Angelo Ricci. São Paulo: Abril Cultural ltda., 2000. II: “O insipiente há de convir igualmente que existe na sua inteligência ‘o ser do qual não se pode pensar nada maior’, porque ouve e compreende essa frase; e tudo aquilo que se compreende encontra-se na inteligência. 13 Idem. Op. Cit: “Mas ‘o ser do qual não é possível pensar nada maior’ não pode existir somente na inteligência. Se, pois, existisse somente na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na realidade; e que seria maior.” 14 Idem. Op. Cit: “Se, portanto, ‘o ser do qual não é possível pensar nada maior’ existisse somente na inteligência, este mesmo ser, do qual não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que, certamente, é absurdo.” 15 Idem. Op. Cit.

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De fato: “(...) aquilo que não pode ser pensado como não existente, sem dúvida, é

maior que aquilo que pode ser pensado como não existente”16. Portanto, “o ser acima do qual

nada se pode pensar de maior”, não seria o ser acima do qual nada se pode pensar de maior, se

pudesse “não-existir” ou no pensamento ou fora dele, o que seria ilógico.17

Anselmo, por fim, conclui a sua argumentação extasiado, e por meio de uma

doxologia, põe fim a todas as dúvidas.18 Será absurdo e ilógico a partir de então, pensar que

Deus não exista, pois Deus não pode “não-existir”. Ante tantas evidências que a própria razão

humana nos atesta, só um insensato poderia continuar afirmando tal coisa.19

No que toca ao argumento houve o seguinte progresso. Anselmo notou que todos os

demais argumentos, inclusive os que ele próprio desenvolveu no Monológio, eram muito

complexos e, conquanto constatassem a existência de Deus na realidade “extra-mental”, não

davam conta de comprová-la em termos lógicos. Outrossim, quando a argumentação partia de

conceitos metafísicos, restava que nunca ficava certo que este ente metafísico realmente

existia fora da mente.

Ora, para sanar estes dois opostos, Anselmo propôs-se a criar um argumento que

pudesse atestar – a simultaneo – que Deus existe e não pode não existir: tanto na mente

quanto na realidade extramental. Doravante, com Anselmo o ateísmo passa a ser também uma

aberração lógica.

5. O argumento na síntese de Boaventura

Prosseguindo nosso itinerário, chegamos ao século XIII. Neste período é no

pensamento de São Boaventura que o “argumento ontológico” encontrará a sua mais

significativa acolhida. Na concepção do mais ilustre nome da Escola Franciscana de Paris,

16 Idem. Op. Cit. III. 17 Idem. Op. Cit: “Por isso, ‘o ser do qual não é possível pensar nada de maior’, se se admitisse ser pensado como não existente, ele mesmo, que é ‘o ser do qual não se pode pensar nada maior’, não seria ‘o ser do qual não é possível pensar nada maior’, o que é ilógico.” 18 Idem. Op. Cit: “Existe, portanto, verdadeiramente ‘o ser do qual não se é possível pensar nada maior’; e existe de tal forma que nem se quer é admitido pensá-lo como não existente. E esse ser, ó Senhor, nosso Deus, és tu.” 19 Idem. Op. Cit: “Então, por que o insipiente disse em seu coração: ‘Não existe Deus’, quando é tão evidente, à razão humana, que tu existes com maior certeza que todas as coisas? Justamente porque ele é insensato e carente de raciocínio.”

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não é o conhecimento de Deus que nos afirma acerca de Sua presença, mas, ao contrário, é a

Sua presença que nos possibilita o seu conhecimento e confirma a sua existência.20

Nem é preciso provar a Sua Existência, esta nos é imediatamente evidente desde que

tomemos em conta, que é justamente a Sua presença que funda o conhecimento que temos

dEle e nos impede, por conseguinte, de pensá-lo como não-existente.21

Vê-se que aqui a impossibilidade de Deus não existir já não é um dado atestado pela

pura lógica, mas se torna patente por meio da presença e da iluminação que o próprio Deus

exerce sobre a alma. A necessidade de Deus existir provém, portanto, não somente de uma

argumentação lógica, mas da própria iluminação divina na alma.

Portanto, aqui, a lógica já não tem mais a primazia na prova, ela está subordinada a um

fato maior: a presença de Deus na alma.22 A respeito desta presença misteriosa, Gilson

conclui: “Quando se toma consciência desse fato, vê-se que a própria noção de Deus implica

sua existência”23, porquanto a sua noção indica a sua presença.

Agora bem, é pela presença da verdade em nós que identificamos a presença de Deus.

A verdade é um conhecimento certo. Ora, todo conhecimento seguro tem que ser sempre

imutável quanto ao seu objeto e infalível quanto ao sujeito que conhece.24

Ora bem, o fundamento da veracidade dos nossos conhecimentos não pode provir nem

do mundo exterior – onde todos os objetos são mutáveis e contingentes – nem do nosso

espírito, que também é igualmente mutável e falível.25 Logo, a única coisa que condiciona e

justifica a existência da verdade em nós é a presença, em nós, de um ser imutável, necessário

e eterno que nos ilumine: Deus.26

20 GILSON. A Filosofia na Idade Média. p.550: “De fato, é que não afirmamos mais aqui a presença de Deus porque conquistamos o seu conhecimento; ao contrário, conhecemos Deus porque ele já nos está presente (...).” 21 Idem. Ibidem: “Se é a presença de Deus que funda o conhecimento que dele temos, nem é preciso dizer que a idéia que temos de Deus implica a existência deste. Ela a implica precisamente porque a impossibilidade em que estamos de pensar que Deus não seja resulta imediatamente da necessidade intrínseca de sua existência (...).” 22 Idem. Ibidem: “Portanto, é a própria necessidade de Deus que, iluminando constantemente nossa alma, torna impossível, para nós, pensar que Deus não existe e sustentar isso sem contradição.” 23 Idem. Ibidem 24 Idem. Ibidem. p. 553: “Um conhecimento certo apresenta duas características: é imutável quanto ao objeto conhecido e infalível quanto ao sujeito cognoscível.” 25 Idem. Ibidem. “Ora, nem o homem é um sujeito infalível, nem os objetos que ele alcança são imutáveis.” BOEHNER, GILSON. História da Filosofia Cristã. p. 438: “Pois um saber seguro pressupõe a presença de um objeto imutável. Ora, tal objeto não se encontra nas coisas mutáveis, nem tampouco o nosso espírito, sujeito, também ele, a numerosas modificações.” 26 Idem. Ibidem. p. 438 e 439: “Em todo conhecimento absolutamente certo, deparamos com algo de imutável , necessário e eterno E no entanto, o nosso conhecimento é contingente. Ora, só Deus é a Verdade são superiores ao nosso espírito.”

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Donde, a simples existência da verdade em nós, mesmo de uma verdade parcial, supõe

a presença de Deus e evidencia, por conseguinte, a sua existência: “Basta, pois, afirmar uma

verdade parcial para afirmar, simultaneamente, a existência de Deus”27.

Além disso, mesmo quando negamos a existência da verdade precisamente quando a

negamos, estamos a afirmar a sua existência, pois dizer que uma verdade não existe já é

propor uma verdade. Por conseguinte, basta que exista uma verdade para que exista uma

verdade primeira, a qual é Deus. Destarte, não se pode negar Deus sem afirmá-lo no mesmo

juízo.28

De fato, a incorporação do “argumento anselmiano” na prova pela verdade

agostiniana, constitui o progresso decisivo que a formulação do argumento por São

Boaventura acrescentou.29 Ademais, conquanto o argumento permaneça fundamentalmente

anímico, porque se desenrola na interioridade da pessoa, ocorre que, em Boaventura, parte-se

da existência como fato para a existência como demonstração apodítica, que se fundamenta

neste fato. Em outras palavras, parte-se de Deus, isto é, da sua presença na alma pela verdade,

para se chegar à demonstrabilidade da sua existência enquanto certeza lógica.

6. O “argumento ontológico” em João Duns Escoto

Já no princípio do século XIV, é Duns Escoto quem retoma o argumento de Anselmo,

menos para consolidá-lo do que para revisá-lo. Depois de chegar à existência de uma causa

primeira, afirma-a como causa incausada. Ora, uma causa incausada não pode ser limitada por

nenhuma causalidade e, por isso, é infinita.30

Agora bem, o que é máximo não pode existir somente na inteligência. Se assim fosse,

ele poderia ser e não ser. Ora, aquilo que pode ser e não ser não foi em algum momento. E se

não foi em algum momento, passou a ser porque foi causado. E, se foi causado não é mais a

27 Idem. Ibidem. p. 442. 28 Idem. Ibidem: “Isto se esclarece ainda melhor, quando atendemos à verdade como tal. Se lhe negássemos a existência, declarando que a verdade não existe, sempre seria verdade que a verdade não existe; e, se há uma verdade, é porque existe uma verdade primeira. E’impossível, pois, negar a existência da verdade ou de Deus, sem afirmá-la no mesmo juízo.” 29 Idem. Ibidem: “O progresso decisivo da formulação boaventurana sobre a de S. Anselmo está em que o Doutor Seráfico incorpora a ‘Ratio Anselmi’ na prova agostiniana pela verdade. 30 GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 742. “Uma causa primeira, e, por conseguinte, incausada, não é limitada por nada em sua causalidade; logo, é infinita.”

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causa incausada. Portanto, a causa incausada deve existir necessária e exclusivamente e por si

mesma (a se).31

Ora, o que existe na inteligência e na realidade é maior do que aquilo que existe

somente na inteligência. De maneira que, se o ser infinitamente perfeito existisse apenas na

inteligência, qualquer outro ser que existisse na inteligência e na realidade seria mais perfeito

do que ele e ele já não seria o ser infinitamente perfeito. De modo que provém da própria

essência do ser maximamente perfeito que ele exista na realidade, além de na inteligência.32

Sem pretendermos nos delongar, digamos apenas em que o argumento do Doutor Sutil

difere essencialmente dos outros. O grande mestre franciscano da tardia Idade Média se

separa de Anselmo, porque a sua prova não parte da definição de Deus para daí tirar a

necessidade da sua existência. A sua prova não é a priori, mas a posteriori, ou seja, vai dos

efeitos à causa.33

Entretanto, note-se bem, ainda que ele tome como base os efeitos de Deus, estes

efeitos não são os de ordem sensível, visto que, para Duns Escoto, não se pode partir do

contingente, quando se quer provar a existência do necessário.

É interessante notar também que, para o Doutor Sutil, o ser perfeitíssimo, o soberano

bem é ainda infinito. Para um grego esta conjugação entre perfeição e infinito seria

impossível, posto que o infinito indica, para o grego, apenas falta de determinação. Todavia,

para um cristão o infinito é signo de perfeição sem limites e Duns Escoto destaca isso na sua

reformulação da “ratio anselmi”.

31 BOEHNER, GILSON. História da Filosofia Cristã. p. 511: “Nada nos impede de fazê-lo, pois o máximo pensável não pode estar apenas na inteligência; do contrário ele poderia existir (por conter contradição) e não existir (por estar só no intelecto), visto que lhe repugna ser produzido porque qualquer outra causa, como se demonstrou mais acima; pois é de sua essência existir exclusivamente por si mesmo.” 32 Idem. Ibidem: “E’ claro, pois, que em qualquer caso aquilo que existe na realidade é um ‘maius cogitabile’; com efeito, aquilo que só existe em pensamento não pode ser ainda o máximo pensável, pois neste caso não existiria necessariamente. Logo, a existência real nada acrescenta à essência, isto é, não a torna maior; antes esta essência é o ‘máximo’ precisamente por dever existir necessariamente (...)”. 33 GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 740: “Tais demonstrações não podem ser feitas a priori, isto é, partindo da definição de Deus, como queria santo Anselmo. (...) Essas demonstrações serão, pois, a posteriori, isto é, ascendendo dos efeitos à causa destes (...)”.

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7. O lugar da prova ontológica na filosofia cartesiana

No século XVII, Descartes – Pai da Filosofia Moderna – retoma o argumento

antológico a fim de que este sirva aos fins do seu sistema racionalista. Na filosofia cartesiana

a existência de Deus tem um propósito muito definido: justificar a verdade das nossas

certezas. Por que devemos preferir os pensamentos que conquistamos pelos estudos aos

pensamentos que nos sobrevêm durante os sonhos? De onde tiramos a certeza de que os

delírios dos sonhos são falsos, se muitas vezes eles são muito mais nítidos e vivos do que as

próprias experiências que vivenciamos quando acordados?34

Dizia Descartes que, mesmo que os mais brilhantes intelectos se dedicassem ao estudo

e à investigação, nada do que eles propusessem seria capaz de dirimir as nossas dúvidas a

respeito das coisas.35 Atormentado por estas dúvidas e pela suposição da existência de um

gênio maligno, Descartes procura uma âncora onde possa fundamentar a veracidade das

nossas ideias.

Ora, segundo ele, somente na existência de Deus é que se poderá encontrar o

argumento decisivo que nos leve a aderir a algo sem sombra de dúvida.36 E’ certo que a

primeira certeza da qual tomamos posse é a do cogito, ergo sum. Porém, a única coisa que me

certifica de que as minhas faculdades não estão me enganando é a existência de um ser

perfeito que as tenha criado. Portanto, a existência de Deus – como ser perfeito e que nos deu,

por conseguinte, faculdades fidedignas – é o fundamento das nossas certezas em Descartes.

Com efeito, apenas mediante a prova da existência de Deus, qual seja, a de um ser

perfeito que não se engana e nem pode enganar a ninguém, podemos dissipar e sanar todas as

nossas dúvidas e chegar à certeza da posse da verdade.37 De fato, clara e distinta é a razão

pela qual Descartes se valeu do argumento ontológico. Com efeito, a ‘ratio anselmi’ se presta

muito bem ao fim a que se propusera. Vejamos a passagem do Discurso do Método em que

Descartes formula de maneira mais nítida o argumento:

34 DESCARTES. Discurso do Método. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Abril Cultural, 2000. IV: “Pois, de onde sabemos que os pensamentos que nos surgem em sonhos são menos verdadeiros do que os outros, se muitos, com freqüência, não são menos vivos e nítidos?” 35 Idem. Op. Cit: “E, mesmo que os melhores espíritos estudem o caso tanto quanto lhes agradar, não acredito que possam oferecer alguma razão que seja suficiente para dirimir essa dúvida (...).” 36 Idem. Op. Cit: “De onde se conclui que as nossas idéias ou noções, por serem reais e oriundas de Deus em tudo em que são evidentes e distintas, só podem por isso ser verdadeiras.” 37 Idem. Op. Cit: “Pois, em princípio, aquilo mesmo que há pouco tomei como regra, ou seja, que as coisas que concebemos bastante evidente e distintamente são todas verdadeiras, não é correto a não ser porque Deus é ou existe, e é um ser perfeito, e porque tudo o que existe em nós se origina dele.”

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Enquanto, ao voltar a examinar a idéia que eu tinha de um ser perfeito, verificava que a existência estava aí inclusa, da mesma maneira que na de um triângulo está incluso serem seus três ângulos iguais a dois retos, ou na de uma esfera serem todas as suas partes igualmente distantes do seu centro, ou ainda mais evidentemente; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo que Deus, que é esse Ser Perfeito, é ou existe quanto seria qualquer demonstração de geometria.38

8. O argumento em Leibniz

Estamos ainda no XVII, quase no “século das luzes” e Leibniz dá novo alento ao

nosso argumento. A Deus – Ser necessário – basta apenas a possibilidade de existir para que

exista de fato. De maneira que, para Ele, a própria condição de possibilidade da sua existência

– isto é, uma vez que se constate que, na admissão da sua existência, não existe contradição

alguma – já implica a necessidade da sua existência de fato. Sem embargo, sendo Ele o ser

necessário, nEle identificam-se essência e existência. Donde, Deus existe em virtude da sua

própria essência de ser necessário. Ademais, ele não pode não existir. De resto, tal

prerrogativa pertence somente a Ele, Ser necessário.39

Na modernidade, tanto em Descartes como em Leibniz a “prova ontológica” sofre

poucas modificações no corpo da argumentação, apenas se altera a sua função. No período

medieval ela era a coroa de sistemas teocêntricos, já na modernidade ela passa a ser apenas

uma coadjuvante de sistemas antropocêntricos e racionalistas.

38 Idem. Op. Cit. E ainda: REALI, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Do Humanismo a Descartes. 2ª ed. Trad. Ivo Storniolo. Rev. Zolferino Tonon. São Paulo: Paulus, 2004. p. 297: “E ainda: Só que, enquanto do fato de não poder ‘(...) conceber uma montanha sem vale não deriva que existam no mundo montanhas e vales, mas somente que a montanha e o vale, existindo ou não existindo, não podem de modo algum ser separados um do outro, (...) já do simples fato de que não posso conceber Deus sem existência deriva que a existência é inseparável dele e, portanto, que ele existe verdadeiramente’. Esta é a prova ontológica de Anselmo, que Descartes retoma e a torna sua.” 39 REALI, Giovanni. ANTISERI, Dario História da Filosofia: De Spinoza a Kant. Trad. Ivo Storniolo. Rev. Zolferino Tonon. São Paulo: Paulus, 2005. p. 56. “Escrevei Leibniz: ‘Assim, somente Deus (ou o Ser necessário) tem esse privilégio de não poder não existir, desde que seja possível. E, como nada pode impedir a possibilidade daquilo que não implica nenhum limite, nenhuma negação, e, portanto, nenhuma contradição, só isso já basta para conhecer a priori a existência de Deus. ’”

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BIBLIOGRAFIA

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