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D iante do fracasso das políticas neoliberais reco-mendadas pelos países ricos para promover a estabilidade macroeconômica e o desenvolvimento, existe, hoje, na América Latina, um claro movimento de rejeição da ortodoxia convencional. Isto significa que os países mais desenvolvidos e com democracias mais sólidas voltarão ao nacional-desenvolvimentismo dos anos 1950, que tanto êxito teve em promover o desenvolvimento, mas afinal sofreu distorções e entrou em crise, ou podemos pensar em um novo desenvolvimentismo?

Neste trabalho, depois de analisar a crise da estratégia nacional de desenvolvimento que foi o antigo desenvolvi-mentismo, compararei o novo desenvolvimentismo, que está surgindo com sua versão anterior, e com o conjunto de diagnósticos e políticas recomendadas e pressionadas pelos países ricos aos países em desenvolvimento, desde que a onda ideológica neoliberal se tornou dominante no mundo: a ortodoxia convencional. A primeira seção, discute o antigo desenvolvimentismo, seu êxito inicial, sua superação por uma série de fatos novos e de distorções, bem como sua substituição pela ortodoxia convencional a partir do final da década de 1980. A segunda seção examina o novo desenvolvimentismo como um terceiro discurso, entre o populismo da esquerda burocrática e o neoliberalismo da ortodoxia convencional; e, a terceira trata da importância da idéia de nação e da instituição

Resumo: A falha das políticas e reformas neoliberais em promover a estabilização macroeconômica e o crescimento na América Latina abriu espaço para o surgimento do novo desenvolvimentismo. Diferentemente da ortodoxia convencional, ele rejeita a estratégia de crescimento com poupança estrangeira

e a liberalização da conta de capitais. Além disso, propõe que a taxa de câmbio seja administrada e acredita que é necessária uma estratégia para superar as altas taxas de juros/valorização da moeda, que mantém a economia brasileira instável.

Palavras-chave: Desenvolvimentismo. Crescimento. Estabilidade macroeconômica.

Abstract: The failure of the neo-liberal policies in promoting macroeconomic stabilization and economic growth in Latin America opened room in each country for the rise of new developmentalism. Differently from the conventional orthodoxy, it rejects the growth strategy with foreign savings and

the opening of capital accounts. Over there, it says that the exchange rate should be administered and believes that a strategy is required to overcome the high interest rate/appreciated currency which maintains the Brazilian economy unstable.

Key words: Developmentalism. Growth. Macroeconomic stability.

O nOvO desenvOlvimentismO e A OrtOdOxiA cOnvenciOnAl

Luiz CarLos Bresser-Pereira

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“estratégia nacional de desenvolvimento”. A quarta seção, traça um paralelo entre o novo desenvolvimen-tismo e o antigo; em seguida, é feita sua comparação com a ortodoxia convencional. A sexta seção, enfim, completa a comparação apresentando o tripé de polí-tica de desenvolvimento convencional e o desenvolvi-mentismo, e o tripé de política macroeconômica con-vencional e desenvolvimentista.

O antigO desenvOlvimentismO e sua crise

Entre os anos 1930 e 1970, o Brasil e os demais países da América Latina cresceram a taxas extraordi-nariamente elevadas, aproveitando o enfraquecimen-to do centro para formular estratégias nacionais de desenvolvimento que, essencialmente, implicavam a proteção à industria nacional nascente e a promoção de poupança forçada por meio do Estado. O nome que essa estratégia recebeu foi desenvolvimentismo ou nacional-desenvolvimentismo.

Esse nome queria salientar, em primeiro lugar, que o objetivo fundamental da política econômica era o de promover o desenvolvimento econômico; em segun-do, que, para isso, era preciso que a nação, isto é, os empresários, a burocracia do Estado, as classes médias e os trabalhadores associados na competição interna-cional definissem os meios que utilizariam para alcan-çar esse propósito nos quadros do sistema capitalista, tendo o Estado como principal instrumento de ação coletiva. Os notáveis economistas que então estuda-ram o desenvolvimento e fizeram propostas de política econômica bem como os políticos, técnicos do gover-no e empresários mais diretamente envolvidos nesse processo foram chamados de desenvolvimentistas, porque colocavam o desenvolvimento como objetivo de sua análise econômica e de sua ação política. Os econo-mistas latino-americanos que, em conjunto com um notável grupo de economistas internacionais, partici-param da formulação da teoria econômica do desen-volvimento (development economics), eram ligados a três correntes que se somavam: a teoria econômica clássica de Smith e Marx, a macroeconomia keynesiana e a teo-ria estruturalista latino-americana.1

O desenvolvimentismo não era uma teoria eco-nômica, mas uma estratégia nacional de desenvolvi-

mento. Usava as teorias econômicas disponíveis para formular, para cada país em desenvolvimento da pe-riferia capitalista, a estratégia que permitisse alcançar gradualmente o nível de desenvolvimento dos países centrais. Teorias baseadas no mercado, porque não há teoria econômica que não parta dos mercados, mas teorias de economia política que atribuíam ao Estado e a suas instituições um papel central na coordenação da economia.

Ao desenvolvimentismo, opunham-se os econo-mistas neoclássicos que praticavam a ortodoxia con-vencional – ou seja, o conjunto de diagnósticos, po-líticas econômicas e reformas institucionais que os países ricos ou do Norte recomendam aos países em desenvolvimento ou do Sul. Eram então chamados de monetaristas, devido à ênfase que davam ao controle da oferta de moeda para controlar a inflação.

Como o Brasil era um país periférico ou dependen-te, cuja revolução industrial estava ocorrendo 150 anos depois da inglesa e mais de 100 anos depois da ameri-cana, o extraordinário desenvolvimento entre os anos 1930 e 1970 só foi possível na medida em que a nação brasileira foi capaz de usar seu Estado como instru-mento de definição e implementação de uma estraté-gia nacional de desenvolvimento, na qual a intervenção do próprio Estado foi significativa. Não se tratava de substituir o mercado pelo Estado, mas de fortalecer o último para que este pudesse criar as condições neces-sárias para que as empresas, competindo no mercado, investissem e seus empresários inovassem.

Todos os países, a partir da própria Inglaterra, precisaram de uma estratégia nacional de desenvol-vimento para realizarem sua revolução industrial e continuarem se desenvolvendo. O uso de uma estra-tégia nacional de desenvolvimento foi especialmen-te evidente entre os países hoje desenvolvidos que se atrasaram, mas que nunca foram colônias, como a Alemanha e o Japão, e, portanto, nunca se carac-terizaram pela dependência. Já os países periféricos, como o Brasil e os demais países da América Latina, que viveram a experiência colonial, ao se tornarem independentes formalmente, continuaram ideologi-camente dependentes do centro.

Tanto os países centrais de desenvolvimento atra-sado quanto os países ex-colônias precisaram formu-

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lar estratégias nacionais de desenvolvimento, mas essa tarefa foi mais fácil para os primeiros. Para os países periféricos, havia a dificuldade adicional de enfrentar sua própria dependência, ou seja, a submissão das eli-tes locais às elites dos países centrais, sendo que estas não estavam interessadas senão no seu próprio de-senvolvimento. Desenvolvimentismo foi o nome que recebeu a estratégia nacional dos países dependentes, que só desencadearam sua industrialização a partir da década de 1930, ou então depois da Segunda Guerra Mundial. Seu desenvolvimentismo era nacionalista porque, para se industrializarem, os países precisavam formar seu Estado nacional. O nacionalismo presente no desenvolvimentismo era a ideologia da formação do Estado nacional: era a afirmação de que, para se desenvolverem, os países precisam definir eles pró-prios suas políticas e suas instituições, sua estratégia nacional de desenvolvimento.2 Embora não tivessem recebido esse nome, os países centrais atrasados tam-bém usaram estratégias desenvolvimentistas, porque foram nacionalistas, sempre usaram seus próprios critérios e não o de seus competidores para formular suas políticas e usaram seus Estados de forma delibe-rada para promover seu desenvolvimento.

Entre as décadas de 1940, 1950 e 1960, os desen-volvimentistas e keynesianos foram dominantes na América Latina: constituíram o mainstream. Os gover-nos adotavam principalmente suas teorias ao fazerem política econômica. A partir dos anos 1970, porém, no contexto da grande onda ideológica neoliberal e conservadora que se iniciava, a teoria keynesiana, a teoria econômica do desenvolvimento e o estrutura-lismo latino-americano passaram a ser desafiados de forma bem sucedida pelos economistas neoclássicos, que, em sua grande maioria, passaram a adotar uma ideologia neoliberal. A partir da década de 1980, no quadro da grande crise da dívida externa que forta-lece politicamente os países ricos, esses economistas conseguiram redefinir, em termos neoliberais, seus preceitos voltados aos países em desenvolvimento. A ideologia neoliberal voltada para esses países torna-se hegemônica, expressando-se pelo que ficou chamado de consenso de Washington, mas que eu prefiro cha-mar de ortodoxia convencional. Em outras palavras, durante os anos 1980, a estratégia nacional de desen-

volvimento, que era o desenvolvimentismo, entra em crise e é substituída por uma estratégia externa: a or-todoxia convencional.

Vários fatores explicam essa mudança. Na me-dida em que o antigo desenvolvimentismo estava baseado na substituição de importações, estavam embutidas nele as razões de sua própria superação. A proteção à indústria nacional, o voltar-se para o mercado e a redução do coeficiente de abertura de uma economia, mesmo que ela seja relativamente grande como a brasileira, está fortemente limitado pelas economias de escala. Para certos setores, a proteção torna-se absurda. Por isso, quando o mo-delo de substituição de importações foi mantido du-rante os anos 1970, ele estava levando as economias latino-americanas a uma distorção profunda. Por outro lado, passada a fase inicial de substituição de importações nas indústrias de bens de consumo, o prosseguimento da industrialização implica em um aumento substancial da relação capital-trabalho, que terá duas conseqüências: a concentração da renda e a diminuição da produtividade do capital ou da relação produto-capital. A resposta à concentração de renda será a expansão da produção de bens de consumo de luxo, configurando-se o que chamei de modelo de subdesenvolvimento industrializado, que, além de perverso, leva embutido o gérmen do rom-pimento da aliança nacional pró-desenvolvimento.

A segunda razão diz respeito ao rompimento, durante a década de 1960, da aliança nacional que constituía a base política do desenvolvimentismo. A abordagem nacional-desenvolvimentista tinha como pressuposto a constituição de nações em cada país latino-americano. Era este um pressuposto ra-zoável já que, depois de um longo período de forte dependência que se seguiu aos movimentos de inde-pendência do início do século XIX, esses países, a partir de 1930, aproveitam a crise do Norte para iniciar suas revoluções nacionais. Baseado nesse fato, o desenvolvimentismo propunha que o novo empresariado industrial em cada país se constituísse em burguesia nacional, como acontecera nos países desenvolvidos, e se associasse aos técnicos do go-verno e aos trabalhadores urbanos na realização da revolução nacional e industrial.

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Dessa forma, em cada país, constituía-se ou refor-çava-se a nação, a sociedade nacional, e tornava-se possível que ela definisse e implementasse uma es-tratégia nacional de desenvolvimento (o desenvolvi-mentismo) usando o Estado como seu instrumento de ação coletiva. Esta era, simultaneamente, uma pro-posta e uma análise da realidade representada pelo acelerado processo de industrialização que então ocorre na América Latina.

A revolução de Cuba, em 1959, porém, ao produ-zir a radicalização da esquerda, e a crise econômica do início dos anos 1960 levaram ao rompimento da aliança nacional e criaram as condições para o estabe-lecimento de regimes militares no Brasil, Argentina, Uruguai e Chile – países que contaram com o apoio de seus empresários e dos Estados Unidos.

Em conseqüência, aquela aliança, essencial para a constituição de nação, é rompida, e a esquerda moderada da América Latina adere às teses da teoria da dependência associada que rejeitava a possibili-dade de uma burguesia nacional. Ao fazê-lo, rejeita a própria idéia de nação e de estratégia nacional de desenvolvimento em que estava baseado o nacional-desenvolvimentismo. A grande crise da década 1980 – a crise definitiva do modelo de substituição de im-portações que o desenvolvimentismo apoiara desde os anos 1940 – o enfraquece ainda mais. A partir de então, o desenvolvimentismo, ainda apoiado pela es-querda burocrático-populista que se formara à som-bra do Estado a partir das distorções por que passou essa estratégia de desenvolvimento, mas sem o apoio dos empresários, da esquerda moderna e de grande parte da própria burocracia do Estado, vai, aos pou-cos, se vendo incapaz de fazer frente à onda ideológi-ca neoliberal que vinha do Norte.3

A terceira razão para a substituição do desenvol-vimentismo pela ortodoxia convencional está na for-ça dessa onda ideológica. No início dos anos 1980, como resposta à crise da dívida externa, a ortodo-xia convencional vai, aos poucos, se constituindo. O Plano Baker (1985), assim denominado por ter sido originado a partir de idéias do Secretário do Tesouro norte-americano, James Baker, completa a definição das novas fórmulas ao adicionar ao ajuste macroe-conômico ortodoxo as reformas institucionais orien-

tadas para o mercado. O desenvolvimentismo passa, assim, a ser objeto de ataque sistemático. Aprovei-tando-se da crise econômica, que, em parte, derivava da superação do modelo de desenvolvimento e das distorções que sofrera nas mãos de políticos e classes médias populistas, a ortodoxia convencional torna o desenvolvimentismo uma expressão depreciativa: identifica-o com o populismo ou a irresponsabilida-de em matéria de política econômica. Em seu lugar, propõe políticas econômicas ortodoxas e reformas institucionais neoliberais que resolveriam todos os problemas. Propõe também que os países em de-senvolvimento abandonem o antiquado conceito de nação adotado pelo nacional-desenvolvimentismo e aceitem a tese globalista, segundo a qual, na era da globalização, os Estados-Nação haviam perdido autonomia e relevância: mercados livres no âmbito mundial, inclusive os financeiros, se encarregariam de promover o desenvolvimento econômico de todos.

Vinte anos depois, o que vemos é o fracasso da ortodoxia convencional em promover o desenvol-vimento econômico da América Latina. Enquanto no período em que o desenvolvimentismo foi domi-nante, entre 1950 e 1980, a renda per capita no Brasil crescia quase 4% ao ano; a partir de então, passou a crescer a uma taxa quatro vezes menor. Não foi muito diferente o desempenho nos demais países la-tino-americanos, com exceção do Chile. No mesmo período, porém, os países asiáticos dinâmicos, entre os quais a China, depois da década de 1980, e a Índia, depois dos anos 1990, mantinham ou alcançavam ta-xas de crescimento extraordinárias.

Por que uma diferença tão grande de taxas de crescimento? No plano mais imediato das políticas econômicas, o problema fundamental relacionou-se à perda do controle do preço macroeconômico mais es-tratégico em uma economia aberta: a taxa de câmbio. Enquanto os países latino-americanos perdiam esse controle, por meio da abertura das contas financei-ras, e, a partir do início da década de 1990, viam suas taxas de câmbio se apreciar ao aceitarem a estratégia de crescimento com poupança externa proposta por Washington e Nova York, os países asiáticos manti-nham superávits em conta corrente em boa parte do tempo, além do controle de suas taxas de câmbio.

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No plano das reformas, enquanto os países latino-americanos aceitavam indiscriminadamente todas as reformas liberalizantes, realizando, de maneira irres-ponsável, privatizações de serviços monopolistas e abrindo sua conta capital, os asiáticos foram mais prudentes. Entretanto, aos poucos foi ficando claro que a principal diferença residiu em um fato novo e fundamental: os países latino-americanos interrom-peram suas revoluções nacionais, viram suas nações se desorganizarem, perderem coesão e autonomia, e, em conseqüência, ficaram sem estratégia nacional de desenvolvimento.

O desenvolvimentismo foi o nome da estratégia nacional que os países da América Latina – particu-larmente o Brasil – adotaram no período compreen-dido entre os anos 1930 e 1980. Nesse período, prin-cipalmente entre as décadas de 1930 e 1960, muitos países latino-americanos estavam firmemente cons-truindo suas nações e, afinal, provendo seus Estados formalmente independentes de sociedades nacionais dotadas de solidariedade básica, quando se trata de competir internacionalmente.

Entretanto, o enfraquecimento provocado pela grande crise dos anos 1980 combinado com a força hegemônica da onda ideológica que tem início nos Estados Unidos ao longo da década de 1970, faz com que a constituição das nações latino-americanas seja interrompida, regredindo. As elites locais deixam de pensar com a própria cabeça, aceitam os conselhos e as pressões vindas do Norte, e os países, sem estraté-gia nacional de desenvolvimento, vêem seu desenvol-vimento estancar.

A ortodoxia convencional, que então substitui o nacional-desenvolvimentismo, não havia sido elaborada no país e não refletia as preocupações nem os interesses nacionais, mas as visões e os objetivos dos países ricos. Além disso, como é próprio da ideologia neoliberal, era uma proposta negativa que supunha a possibilidade dos mercados coordenarem tudo automaticamente, além de proporem que o Estado deixasse de realizar o papel econômico que sempre exerceu nos países desenvolvidos: o de complementar a coordenação do mercado para promover o desenvolvimento econômico e a eqüidade.

Critiquei a ortodoxia convencional desde que ela se tornou dominante na América Latina. Fui, pro-vavelmente, o primeiro economista latino-america-no a fazer a crítica do Consenso de Washington, na aula magna que proferi no congresso anual da As-sociação Nacional de Cursos de Pós-graduação em Economia, em 1990 (BrESSEr-PErEIrA, 1990 [1991]). Minha crítica, entretanto, ganhou nova di-mensão a partir do primeiro semestre de 1999, de-pois de passar quatro anos e meio no governo de Fernando Henrique Cardoso. Escrevo, então, em Oxford, “Incompetência e confidence building por trás de 20 anos de quase-estagnação da América Latina” (BrESSEr-PErEIrA, 1999 [2001]). Logo depois, restabelecendo minha associação com Yoshiaki Nakano, que também voltava de uma experiência de governo, escrevemos, juntos, “Uma estratégia de desenvolvimento com estabilidade” e “Crescimento econômico com poupança externa?” (BrESSEr-PErEIrA; NAkANO, 2002; 2002 [2003]).

Fiéis ao espírito original do desenvolvimentismo e à nossa formação keynesiana e estruturalista, inicia-mos, por meio desses trabalhos, uma crítica sistemá-tica e radicalmente não populista à ortodoxia conven-cional que se tornara dominante na América Latina, além de apresentarmos uma alternativa de política econômica.4 Nossa crítica mostrava que a proposta convencional, embora incluindo algumas políticas e reformas necessárias, na verdade não promovia o de-senvolvimento do país, mas o mantinha semi-estag-nado, incapaz de competir com os países mais ricos. E que se via facilmente vítima de uma das formas do populismo econômico: o populismo cambial.

A alternativa de estratégia econômica, que está implícita ou explicitamente presente nesses tra-balhos e nos demais que produzimos em seguida, além de não incorrer nas distorções que o desen-volvimentismo sofrera na mão de seus epígonos, inovava porque reconhecia uma série de fatos his-tóricos novos, os quais demandavam a revisão da estratégia nacional de desenvolvimento. Que nome dar a esta alternativa? No início de 2003, Nakano sugeriu a expressão novo desenvolvimentismo, que foi aceita imediatamente.5 Nesse momento, termi-nava de ser escrita a quinta edição do livro, Desen-

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volvimento e Crise no Brasil, e este, além de incluir as novas idéias no último capítulo, “retomada da revolução nacional e novo desenvolvimentismo”, foi usada, pela primeira vez, essa expressão em um trabalho escrito (BrESSEr-PErEIrA, 2003).

Em 2004, publiquei um artigo com esse título no jornal Folha de S. Paulo.6 Ainda nesse mesmo ano, João Sicsú, Luiz Fernando de Paula e renaut Michel or-ganizaram o livro Novo-desenvolvimentismo: Um Projeto Nacional de Crescimento com Eqüidade Social, que reúne alguns dos melhores macroeconomistas da nova ge-ração. Dessa forma, o novo desenvolvimentismo dei-xava de ser uma proposta isolada para se constituir em um projeto mais geral.7

Em que consiste o novo desenvolvimentismo? Neste trabalho vou apresentá-lo. Na primeira seção, irei defini-lo como um terceiro discurso e uma estra-tégia nacional de desenvolvimento; na segunda seção, estabelecerei suas diferenças com o desenvolvimen-tismo dos anos 1950; e, na terceira, mostrarei como ele representa uma crítica e uma alternativa à ortodo-xia convencional, ou seja, aos diagnósticos, políticas e reformas elaborados principalmente em Washington para uso nos países em desenvolvimento.

naçãO e naciOnalismO

O novo desenvolvimentismo, assim como o nacio-nal-desenvolvimentismo da década de 1950, ao mes-mo tempo supõe a existência e implica a formação de uma verdadeira nação, capaz de formular uma estratégia nacional de desenvolvimento informal, aberta, como é próprio de sociedades democráticas cujas economias são coordenadas pelo mercado. A nação é uma sociedade de pessoas ou famílias que, compartilhando um destino político comum, logra se organizar na forma de um Estado com soberania so-bre determinado território. A nação, portanto, como o Estado moderno, só tem sentido no quadro do Es-tado-Nação, que surge com o capitalismo.

Para que a nação possa compartilhar um destino comum, ela deve ter objetivos comuns, entre os quais o historicamente mais importante é o desenvolvi-mento. Outros objetivos, como a liberdade e a justiça social são também fundamentais para as nações, mas

estas, como o Estado e o capitalismo, surgem tendo como parte de sua lógica, de sua forma intrínseca de ser, o desenvolvimento econômico.

Nações, Estados-Nação, capitalismo e desenvol-vimento econômico são fenômenos históricos co-etâneos e intrinsecamente correlatos. Na sua forma mais desenvolvida – a da globalização dos dias atuais – o capitalismo não tem como unidades econômicas constitutivas apenas as empresas que operam em ní-vel internacional, mas também, senão principalmen-te, os Estados-Nação ou Estados nacionais. Não são apenas as empresas que competem em nível mundial nos mercados, como pretende a teoria econômica convencional: os Estados-Nação são também com-petidores fundamentais. O critério principal de êxito dos dirigentes políticos de todos os Estados nacionais modernos é o do crescimento econômico compara-do com o dos outros países. Um governante é bem sucedido, do ponto de vista de seu povo e do ponto de vista internacional, se logra taxas de crescimento maiores do que a dos países julgados seus concorren-tes diretos. A globalização é o estágio do capitalismo em que, pela primeira vez, os Estados-Nação cobrem todo o globo terrestre e competem economicamente entre si, por meio das suas empresas.

A nação envolve uma solidariedade básica entre as classes quando se trata de competir internacional-mente. Empresários, trabalhadores, burocratas do Estado, classe média profissional e intelectuais po-dem entrar em conflitos entre si, mas sabem que têm um destino comum, e que este depende de seu êxito em participar de forma competitiva do mundo dos Estados-Nação.

Envolve, portanto, um acordo nacional, o contra-to social básico que dá origem à nação e a mantém forte ou coesa. É o grande acordo entre as classes so-ciais de uma sociedade moderna que permite que esta se transforme em uma verdadeira nação, ou seja, em uma sociedade dotada de um Estado capaz de formu-lar uma estratégia nacional de desenvolvimento.

O grande acordo ou pacto nacional que se estabe-leceu no Brasil, a partir de 1930, unia a nascente bur-guesia nacional industrial à nova burocracia ou aos novos técnicos do Estado; a eles se somavam os tra-balhadores urbanos e setores da velha oligarquia mais

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voltados para o mercado interno, como a própria pecuária da qual Vargas se originava. Os adversários eram o imperialismo, representado principalmente pelos interesses ingleses e americanos, e a oligarquia agrário-exportadora associada. O acordo mais estra-tégico em um Estado-Nação moderno é aquele entre os empresários industriais e a burocracia do Estado, na qual se incluem os políticos mais significativos, mas também dele participam trabalhadores e as clas-ses médias. Além disso, haverá sempre os adversários internos, de alguma forma identificados com o im-perialismo ou com o neo-imperialismo de hoje, sem colônias e com os grupos locais colaboracionistas ou globalistas. No caso do Brasil, hoje, são os rentistas que vivem de altos juros e o setor financeiro que dos primeiros recebe comissões.

Uma nação é sempre nacionalista, na medida em que o nacionalismo é a ideologia da formação, do Es-tado nacional e da sua permanente reafirmação ou consolidação. Uma outra forma de definir nacionalis-mo é dizer, como Ernest Gellner, que é a ideologia que busca a correspondência entre nação e Estado, que defende a existência de um Estado para cada nação.8 Esta é também uma boa definição, embora própria de um pensador originário da Europa Central, que se es-gota no momento em que o Estado-Nação se forma, quando nação e Estado passam a coincidir sobre um determinado território, estabelecendo-se formalmente um Estado soberano. Não considera, assim, a célebre frase de Ernest renan em sua conferência de 1882: “a nação é um plebiscito de todos os dias”.9 Não explica como um Estado-Nação pode ter existência formal sem que haja uma verdadeira nação, como é o caso dos países latino-americanos, que, no início do século XIX, se viram dotados de Estados, não apenas devi-do ao esforço patriótico de grupos nacionalistas, mas também graças aos bons préstimos da Inglaterra, que visava alijar Espanha e Portugal da região.

Dessa forma, esses países se perceberam dotados de Estado, sem possuírem verdadeiras nações, na medida em que deixavam de ser colônias para serem dependentes da Inglaterra, da França e, mais tarde, dos Estados Unidos.

Para que uma nação exista, de fato, é necessário que as diversas classes sociais, não obstante os confli-

tos que as separam, sejam solidárias quando se trata de competir internacionalmente, e que usem critérios nacionais para decidir sobre suas políticas, principal-mente, sobre a política econômica e a reforma de suas instituições. Em outras palavras, é necessário que seus dirigentes pensem com suas cabeças, ao in-vés de se dedicarem ao confidence building, e que toda a sociedade seja capaz de formular uma estratégia na-cional de desenvolvimento.

O novo desenvolvimentismo irá se transformar em realidade quando a sociedade nacional se tornar uma verdadeira nação. Foi o que aconteceu no Brasil entre 1930 e 1980 – principalmente entre as décadas de 1930 e 1960. Sob a liderança que o Brasil teve no século XX do estadista Getúlio Vargas, o país trans-feriu para si as decisões nacionais e formulou uma es-tratégia nacional de desenvolvimento bem sucedida. Naqueles 30 anos (ou 50, se incluirmos também o re-gime militar, que, embora tenha feito aliança política com os Estados Unidos contra o comunismo, man-teve-se nacionalista), o Brasil se transformou, passan-do de país agrário para industrial, de formação social mercantilista para plenamente capitalista, de condição semicolonial para uma nação. Desenvolvimentismo foi o nome que recebeu a estratégia nacional de de-senvolvimento e a ideologia que a orientava. Assim, o processo de definição do novo desenvolvimentismo é também o da retomada da idéia de nação no Bra-sil e nos demais países da América Latina. Implica, portanto, uma perspectiva nacionalista no sentido de que as políticas econômicas e as instituições passam a ser formuladas e implementadas, tendo como crité-rio principal o interesse nacional e, como autores, os cidadãos de cada país.

Esse nacionalismo não visa dotar a nação de um Estado, mas tornar o Estado já existente um instru-mento efetivo de ação coletiva da nação, que permita a nações modernas, vivendo no início do século XXI, buscarem, de forma consistente, seus objetivos po-líticos de desenvolvimento econômico, justiça social e liberdade, em um quadro internacional de compe-tição, mas também de paz e colaboração. Implica, portanto, que esse nacionalismo seja liberal, social e republicano, incorporando os valores das sociedades industriais modernas.

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O “terceirO discursO” e a estratégia naciOnal de desenvOlvimentO

O novo desenvolvimentismo é, ao mesmo tempo, um “terceiro discurso”, entre o discurso populista e o da ortodoxia convencional, e o conjunto de diagnósticos e idéias que devem servir de base para a formulação, por cada Estado-Nação, da sua estratégia nacional de desenvolvimento. É um conjunto de propostas de re-formas institucionais e de políticas econômicas, por meio das quais as nações de desenvolvimento médio buscam, no início do século XXI, alcançar os países desenvolvidos. Como o antigo desenvolvimentismo, não é uma teoria econômica: baseia-se principalmente na macroeconomia keynesiana e na teoria econômica do desenvolvimento, mas é uma estratégia nacional de desenvolvimento. É a maneira pela qual países como o Brasil podem competir com êxito com os paí-ses ricos e, gradualmente, alcançá-los. É o conjunto de idéias que permite às nações em desenvolvimento rejeitar as propostas e pressões dos países ricos de reforma e de política econômica, como a abertura total da conta capital e o crescimento com poupança externa, na medida em que essas propostas repre-sentam a tentativa de neutralização neo-imperialista de seu desenvolvimento – a prática de ‘empurrar a escada’. É a forma por meio da qual empresários, téc-nicos do governo, trabalhadores e intelectuais podem se constituir em nação real para promover o desen-volvimento econômico. Não incluo os países pobres no novo desenvolvimentismo, não porque eles não precisem de uma estratégia nacional de desenvol-vimento, mas porque, tendo ainda que realizar sua acumulação primitiva e sua revolução industrial, os desafios que enfrentam e as estratégias que precisam adotar são diferentes.

Em termos de discurso ou de ideologia, temos, de um lado, o discurso dominante, imperial e globalis-ta, que tem origem em Washington e é adotado na América Latina pela direita neoliberal e cosmopolita, formada principalmente pela classe rentista e o setor financeiro.10 Essa é a ortodoxia convencional: uma ideologia exportada para os países em desenvolvi-mento; uma anti-estratégia nacional, que, embora se propondo a generosamente promover a prosperida-

de dos países de desenvolvimento médio, na verdade atende aos interesses dos países ricos em neutralizar a capacidade competitiva daqueles.

Esse discurso, na forma que foi aplicado ao Bra-sil desde os anos 1990, diz quatro coisas: primeiro, que o maior problema do país é a falta de reformas microeconômicas que permitam o livre funciona-mento do mercado; segundo, que, mesmo depois do fim da alta inflação inercial, em 1994, o controle da inflação continua a ser o principal objetivo da política econômica; terceiro, que, para realizar esse controle, os juros serão inevitavelmente altos devi-do ao risco-país e aos problemas fiscais; quarto, que ‘o desenvolvimento é uma grande competição entre os países para obter poupança externa’, não sendo motivo de preocupação os déficits em conta corren-te implícitos e a valorização do câmbio provocada pelos influxos de capital. O desastre que esse discur-so representou em termos de crises de balanço de pagamentos e de baixo crescimento para os países latino-americanos que o adotaram a partir do final dos anos 1980 é hoje bem conhecido.11

O discurso oposto é o da esquerda burocrático-populista. De acordo com essa perspectiva, os males do Brasil vinham da globalização e do capital finan-ceiro, que impunham ao país um alto endividamento externo e público. A solução seria renegociar a dívi-da externa e a dívida pública do país, exigindo-se um grande desconto. O segundo mal estava na insuficiên-cia de demanda, que poderia ser resolvida com o au-mento do gasto público. O mal maior – a desigual distribuição de renda – seria resolvido pela amplia-ção do sistema assistencialista do Estado brasileiro. Essa alternativa foi aplicada, por exemplo, no Peru de Alan Garcia. No Brasil, jamais foi realmente posta em prática.

O primeiro discurso atendia aos interesses do Norte e refletia sua ampla hegemonia ideológica sobre os países latino-americanos. Localmente, pro-vinha principalmente da classe dos rentistas brasilei-ros, que vivem essencialmente de juros, bem como de economistas associados ao setor financeiro, e era compartilhada por uma ampla classe média superior confusa e desorientada. O segundo, vinha da classe média inferior e de setores sindicais, e refletia a pers-

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pectiva da velha esquerda burocrática. Nenhum dos dois discursos tinha possibilidade de alcançar razoá-vel consenso na sociedade brasileira, dada sua irra-cionalidade e seu caráter parcial. Nenhuma das duas ideologias refletia o interesse nacional.

Existirá um terceiro discurso que possa alcançar um razoável consenso? Sem dúvida, esse terceiro discurso é possível e está sendo formulado aos poucos. É o discurso do novo desenvolvimentis-mo. Mas não se trata o novo desenvolvimentismo também de uma ideologia como a ortodoxia con-vencional e o discurso burocrático-populista? Sim e não. Sim porque toda estratégia nacional tem im-plícita uma ideologia – um conjunto de idéias e de valores orientados para a ação política. Não, por-que, ao contrário da ortodoxia convencional, que é uma simples proposta externa, o novo desenvolvi-mentismo só fará sentido se partir de um consenso interno e, dessa forma, se constituir em uma verda-deira estratégia nacional de desenvolvimento.

Um consenso pleno é impossível, mas um consen-so que una empresários do setor produtivo, trabalha-dores, técnicos do governo e classes médias profis-sionais – um acordo nacional, portanto – está, hoje, em processo de formação, aproveitando o fracasso da ortodoxia convencional. Esse consenso em for-mação vê a globalização não como uma benesse nem como uma maldição, mas como um sistema de in-tensa competição entre Estados nacionais, por meio de suas empresas. Entende que, nessa competição, é fundamental fortalecer o Estado fiscalmente, admi-nistrativamente e politicamente, e, ao mesmo tem-po, dar condições às empresas nacionais para serem competitivas internacionalmente. reconhece, como a Argentina já o fez depois da crise pela qual passou em 2001, que, no Brasil, o desenvolvimento é impedido, no curto prazo, por uma taxa de juros básica de curto prazo altíssima, decidida pelo Banco Central, a qual pressiona para cima a taxa de juros de longo prazo, desconectando-a do risco Brasil. Supõe que, para alcançar o desenvolvimento, é essencial aumentar a taxa de investimento, devendo o Estado contribuir para isso por meio de uma poupança pública positiva, fruto da contenção da despesa de custeio. Finalmente, em um plano mais geral, o novo desenvolvimentismo

que está se delineando como estratégia nacional de desenvolvimento parte da convicção que o desenvol-vimento, além de estar sendo impedido pela falta de nação, é também obstaculizado pela concentração de renda que, além de injusta, serve de caldo de cultura para todas as formas de populismo.

O que é uma estratégia nacional de desenvolvi-mento? É mais do que uma simples ideologia, como é a ortodoxia convencional: é um conjunto de insti-tuições e de políticas orientadas para o desenvolvi-mento econômico. É menos do que um projeto ou um plano nacional de desenvolvimento, porque não é formalizada; não tem documento com definição precisa de objetivos e de políticas a serem adotadas para alcançá-los, porque o acordo entre as classes sociais que lhe é inerente não tem nem texto nem assinaturas. É mais porque envolve informalmente toda ou grande parte da sociedade. Porque dá a todos um rumo a ser seguido, e certas orientações muito gerais a serem observadas. Porque, embora não pres-suponha uma sociedade sem conflitos, envolve uma razoável união de todos, quando se trata de competir internacionalmente. Porque é mais flexível do que um projeto. Porque está sempre considerando as ações dos demais adversários ou competidores. Porque o fator a motivar o comportamento individual não é apenas o interesse próprio, mas a competição com as demais nações.

A estratégia nacional de desenvolvimento reflete tudo isso. Sua liderança cabe ao governo e aos mem-bros mais ativos da sociedade civil. Seu instrumento fundamental é o próprio Estado: suas normas, suas políticas e sua organização. Seu resultado, quando um grande acordo se estabelece – quando a estratégia real-mente se torna nacional, quando a sociedade passa a compartilhar, frouxa mas efetivamente, métodos e objetivos – é a aceleração do desenvolvimento. Um período longo, em que o país experimenta elevadas taxas de crescimento da renda per capita e dos padrões de vida.

Uma estratégia nacional de desenvolvimento im-plica em um conjunto de variáveis fundamentais para o desenvolvimento econômico. São variáveis tanto reais quanto institucionais. O aumento da capacidade de poupança e investimento da nação, a forma pela

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qual incorpora progresso técnico na produção, o de-senvolvimento do capital humano, o aumento da coe-são social nacional que resulta em capital social ou em sociedade civil mais forte e democrática, uma política macroeconômica que garanta a saúde financeira do Estado e do Estado-Nação, levando a índices de en-dividamento interno e externo dentro de limites con-servadores, são elementos constitutivos de uma estra-tégia nacional de desenvolvimento. Nesse processo, as instituições, ao invés de serem meras abstrações válidas em todas as situações, são vistas e pensadas de maneira concreta, histórica. A estratégia nacional de desenvolvimento ganhará sentido e força quando suas instituições – sejam as de curto prazo, ‘políticas’ ou ‘políticas públicas’, sejam as relativamente permanen-tes (as instituições em sentido estrito) – responderem às necessidades da sociedade, sendo compatíveis com a dotação de fatores de produção da economia, ou, mais amplamente, com os elementos que compõem a instância estrutural da sociedade.

antigO e nOvO desenvOlvimentismO

O desenvolvimentismo dos anos 1950 e o novo de-senvolvimentismo diferem em função de duas variá-veis intervenientes neste meio século: de um lado, fatos históricos novos que mudaram o quadro do capitalismo mundial, que transitou dos anos doura-dos para a fase da globalização; de outro, os países de desenvolvimento médio, como o Brasil, mudaram seu próprio estágio de desenvolvimento, deixando de se caracterizarem por indústrias infantes.

A principal mudança em nível internacional foi a de um capitalismo dos anos dourados ou dos anos gloriosos (1945-75), em que se montava o Estado do bem-estar e, no plano macroeconômico, o key-nesianismo era dominante, enquanto a “teoria eco-nômica do desenvolvimento” (de Lewis, Nurkse, Furtado, Prebisch e Myrdal) predominava no plano do desenvolvimento econômico, para o capitalismo da globalização, neoliberal, no qual as taxas de cres-cimento são menores, e a competição entre os Esta-dos-Nação muito mais acirrada. Nos anos dourados, os países de desenvolvimento médio não representa-vam ainda qualquer ameaça aos países ricos. No en-

tanto, desde a década de 1970, com os NICs – New Industrialized Countries, e, desde os anos 1990, com a China, a competição por eles representada passa a ser muito maior: a ameaça para os países ricos represen-tada pela sua mão-de-obra barata torna-se mais clara do que nunca. Naquela época, os países ricos – prin-cipalmente os Estados Unidos, que precisavam de aliados na Guerra Fria –, eram mais generosos; hoje, só os países muito pobres da África podem esperar alguma generosidade – mas mesmo estes devem to-mar cuidado, porque a forma pela qual os países ricos e o Banco Mundial deles se ocupam e para eles orien-tam sua pretensa ajuda é, com freqüência, perversa.

A principal diferença no que tange ao nacional diz respeito ao fato de que a indústria, naquela época, era infante; hoje, já é uma indústria madura. O modelo de substituição de importações foi efetivo, entre os anos 1930 e 1960, para estabelecer as bases indus-triais dos países da América Latina. A partir da crise dos anos 1960, entretanto, esses países já deveriam ter começado a reduzir o protecionismo e orientar-se em direção a um modelo exportador, em que o país se revelasse capaz de exportar produtos manufatura-dos de maneira competitiva. Não o fizeram, porém, a não ser quando a crise dos anos 1980 os obrigou a fazê-lo, muitas vezes de forma apressada e mal pla-nejada. Esse atraso de 20 anos foi uma das maiores distorções que o desenvolvimentismo da década de 1950 sofreu.

O novo desenvolvimentismo não é protecionis-ta. Supõe que os países de desenvolvimento médio já superaram a fase da indústria infante e exige que as empresas sejam competitivas em todos os setores industriais aos quais se dedicarem, e que, em alguns, sejam especialmente competitivas para poderem ex-portar. Ao contrário do antigo desenvolvimentismo, que adotou o pessimismo exportador da teoria eco-nômica do desenvolvimento, o novo desenvolvimen-tismo não sofre desse mal. Como qualquer estratégia de desenvolvimento, não quer basear seu crescimento na exportação de produtos primários de baixo valor agregado, mas, ao contrário dele, aposta na possibi-lidade de os países em desenvolvimento exportarem manufaturados ou produtos primários de alto valor agregado, definindo essa estratégia como central. A

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experiência dos últimos 30 anos deixou claro que esse pessimismo foi um dos grandes equívocos teóricos da teoria econômica do desenvolvimento. Já no fi-nal da década de 1960, os países da América Latina deveriam ter começado a transitar decididamente do modelo substituidor para o exportador, como fize-ram Coréia e Taiwan. Na América Latina, o Chile foi o primeiro país a fazer essa mudança, e, por isso, seu desenvolvimento é, com freqüência, apontado como exemplo de sucesso de estratégia neoliberal. Na ver-dade, o neoliberalismo só foi plenamente praticado no Chile entre 1973 e 1981 e terminou com uma grande crise de balanço de pagamentos em 1982.12

O modelo exportador não é especificamente neoli-beral, inclusive porque, a rigor, a teoria econômica neoclássica, que está por trás dessa ideologia, não tem espaço para estratégias de desenvolvimento. Os países asiáticos dinâmicos, que adotaram estratégia desenvolvimentista desde os anos 1950, já na década de 1960 deram a ela um caráter exportador de manu-faturados, e, pelo menos desde os anos 1970, podem ser considerados países novo-desenvolvimentistas. São duas as grandes vantagens do modelo exportador sobre o substituidor de importações. Em primeiro lu-gar, o mercado para as indústrias não fica limitado ao mercado interno. Isto é importante para os países pequenos, mas é também fundamental para um país com mercado interno relativamente grande como o Brasil. Em segundo lugar, se o país adota essa estra-tégia, as autoridades econômicas, que estão fazendo política industrial em favor de suas empresas, passam a ter um critério de eficiência em que se basear: só as empresas eficientes o bastante para exportar serão beneficiadas pela política industrial. No caso do mo-delo de substituição de importações, empresas muito ineficientes podem estar sendo protegidas; no caso do modelo exportador, essa possibilidade é substan-cialmente menor.

O fato de a estratégia que o novo desenvolvimen-tismo representa não ser protecionista não significa que os países devam estar dispostos a uma abertura de modo indiscriminado. Devem negociar pragma-ticamente aberturas com contrapartida, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) e dos acordos regionais. E, principalmente, não significa

que o país deva renunciar a políticas industriais. O espaço para essas políticas foi reduzido pelos acor-dos altamente desfavoráveis da rodada do Uruguai da OMC, mas ainda há espaço para políticas dessa natureza, que, se pensadas estrategicamente, levan-do em consideração vantagens comparativas futuras, que podem aparecer na medida em que as empresas apoiadas sejam bem sucedidas.

O novo desenvolvimentismo rejeita as idéias equi-vocadas de crescimento com base principalmente na demanda e no déficit público, populares nos anos 1960 na América Latina. Esta foi uma das mais gra-ves distorções que sofreu o desenvolvimentismo nas mãos de seus epígonos populistas. As bases teóricas dessa estratégia nacional de desenvolvimento estão na teoria macroeconômica keynesiana e na teoria econômica do desenvolvimento, que, por sua vez, se fundamenta principalmente na teoria econômica clássica. keynes assinalou a importância da demanda agregada, e legitimou o recurso a déficits fiscais em momentos de recessão. No entanto, jamais defendeu déficits públicos crônicos. Seu pressuposto foi sempre o de que uma economia nacional equilibrada, do ponto de vista fiscal, poderia, por um breve período, sair do equilíbrio para restabelecer o nível de emprego.13

Os notáveis economistas, como Furtado, Presbisch e rangel, formuladores da estratégia desenvolvimen-tista, eram keynesianos e, na promoção do desenvol-vimento, consideravam a administração da demanda agregada como uma ferramenta importante. Contu-do, nunca defenderam o populismo econômico dos déficits crônicos. Seus epígonos, porém, o fizeram. Quando Celso Furtado, diante da grave crise do iní-cio da década de 1960, propôs o Plano Trienal (1963), foi considerado por esses seguidores de segunda cate-goria como tendo sofrido uma recaída ortodoxa. Na verdade, o que Furtado já pensava no equilíbrio fis-cal, o que o novo desenvolvimentismo defende com firmeza. Defende-o não por ortodoxia, mas porque sabe que o Estado é o instrumento de ação coletiva por excelência da nação. Ora, se o Estado é tão estra-tégico, seu aparelho precisa ser forte, sólido, ter ca-pacidade, e, por isso mesmo, suas finanças precisam estar equilibradas. Mais do que isto, sua dívida precisa ser pequena e seus prazos, longos. A pior coisa que

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pode acontecer a um Estado, enquanto organização (o Estado é também ordem jurídica), é ficar na mão de credores, sejam eles internos ou externos. Os cre-dores externos são especialmente perigosos, porque, a qualquer momento, podem se retirar do país com seus capitais. Os internos, porém, transformados em rentistas e apoiados no sistema financeiro, podem im-por ao país políticas econômicas desastrosas, como vem acontecendo no Brasil.

A terceira e última diferença entre o desenvolvi-mentismo dos anos 1950 e o novo desenvolvimentis-mo está no papel atribuído ao Estado na promoção da poupança forçada e na realização de investimentos na infra-estrutura econômica. Tanto uma quanto a outra forma histórica de desenvolvimentismo atribuem pa-pel econômico fundamental ao Estado em garantir o bom funcionamento do mercado e em prover as con-dições gerais da acumulação de capital, como educa-ção, saúde e infra-estrutura de transportes, comuni-cações e energia. Porém, no desenvolvimentismo da década de 1950, o Estado tinha papel fundamental de promover a poupança forçada, contribuindo, dessa forma, para que os países completassem seu processo de acumulação primitiva.Tinham também o papel de investir diretamente nas áreas de infra-estrutura e in-dústria pesada, nas quais os valores necessários eram muito elevados, não havendo poupança suficiente no setor privado.

Este quadro mudou desde os anos 1980. Para o novo desenvolvimentismo, o Estado ainda pode e deve promover poupança forçada e investir em certos setores estratégicos, mas agora o setor privado nacio-nal tem recursos e capacidade empresarial para reali-

zar boa parte dos investimentos necessários. O novo desenvolvimentismo rejeita a tese neoliberal de que o “Estado não tem mais recursos”, porque o Estado ter ou não ter recursos depende da forma pela qual as finanças do aparelho estatal sejam administradas. Mas entende que, em todos os setores em que haja competição razoável, o Estado não deve ser investi-dor, mas tratar de defender e garantir a concorrência. Mesmo excluídos esses, sobram ainda muitos inves-timentos a serem realizados pelo Estado, financiados pela poupança pública e não por endividamento.

Em síntese, refletindo, novamente, o estágio dife-rente em que se encontram os países de desenvolvi-mento médio, o novo desenvolvimentismo vê o mer-cado como uma instituição mais eficiente, mais capaz de coordenar o sistema econômico do que viam os an-tigos desenvolvimentistas, embora esteja longe de ter a fé irracional da ortodoxia convencional no mercado.

nOvO desenvOlvimentismO e OrtOdOxia cOnvenciOnal

Examinemos, agora, as diferenças entre o novo de-senvolvimentismo e a ortodoxia convencional. A ortodoxia econômica convencional ou saber econô-mico convencional é constituído pelo conjunto de teorias, diagnósticos e propostas de políticas que os países ricos oferecem aos países em desenvolvimen-to. Tem como base a teoria econômica neoclássica, mas não se confunde com ela porque não é teórica, mas abertamente ideológica e voltada para propos-tas de reformas institucionais e políticas econômicas. Enquanto a teoria econômica neoclássica dominan-

Quadro 1

antigo e novo desenvolvimentismo comparados

Antigo Desenvolvimentismo Novo Desenvolvimentismo

Estado tem papel central em poupança forçada e investimento em empresas

Estado tem papel subsidiário, mas importante em ambas as atividades

Protecionista e pessimista Exportador e realista

Certa frouxidão fiscal Disciplina fiscal

Certa complacência com inflação Nenhuma complacência com inflação

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te está baseada nas universidades, especialmente nas americanas, a ortodoxia convencional tem origem principalmente em Washington, onde estão o Tesou-ro dos Estados Unidos e as duas agências suposta-mente internacionais mas, de fato, subordinadas ao Tesouro: o Fundo Monetário Internacional – FMI e o Banco Mundial – BIrD, o primeiro cuidando da política macroeconômica, o segundo, do desenvolvi-mento. Secundariamente, origina-se em Nova York, ou seja, na sede ou no centro de convergência dos grandes bancos internacionais e das empresas mul-tinacionais. Por isso, podemos dizer que a ortodoxia convencional é o conjunto de diagnósticos e políticas voltados para os países em desenvolvimento que têm origem em Washington e Nova York.

A ortodoxia convencional muda através do tempo. A partir dos anos 1980, identificou-se com o Con-senso de Washington, que não pode ser entendido como uma simples lista de dez reformas ou ajustes arrolados por John Williamson no paper que deu ori-gem à expressão. Nessa lista havia, inclusive, refor-mas e ajustes que são necessários (WILLIAMSON, 1990). O Consenso de Washington é, na verdade, a forma que a ideologia neoliberal e globalista assu-miu, efetivamente, no plano das políticas econômicas recomendadas aos países em desenvolvimento. Em alguns trabalhos, distingui o primeiro do segundo Consenso de Washington, para salientar que no pri-meiro, a preocupação fundamental expressa naquela lista é com o ajuste macroeconômico que se tornou necessário devido à grande crise da dívida externa dos anos 1980, enquanto que o segundo, dominante a partir da década de 1990, pretende ser também uma estratégia de desenvolvimento baseada na abertura da conta capital e no crescimento com poupança exter-na. Contudo, os dois formam um único consenso – o consenso dos países ricos em relação a seus concor-rentes, de desenvolvimento médio.

Ainda que a expressão Consenso de Washington seja útil, prefiro falar na ortodoxia convencional, porque esta é uma expressão mais geral e apresen-ta como meramente convencional uma determinada ‘ortodoxia’.14

A ortodoxia convencional é a forma pela qual os Estados Unidos, no plano das políticas e instituições

econômicas, expressam a sua hegemonia ideológica sobre o resto do mundo e, principalmente, sobre os países em desenvolvimento dependentes, que não dispõem de uma nação suficientemente forte para fazer frente a essa hegemonia, como têm sido tra-dicionalmente os latino-americanos. Esta hegemonia se pretende benevolente, mas, na verdade, é o braço e a fala do neo-imperialismo – isto é, do imperialis-mo sem colônias (formais) que se estabeleceu sob a égide dos Estados Unidos e dos demais países ricos depois que o sistema colonial clássico foi encerrado logo após a Segunda Guerra Mundial.

Na medida em que a ortodoxia convencional é a expressão prática da ideologia neoliberal, ela é a ideo-logia do mercado contra o Estado. Enquanto o novo desenvolvimentismo quer Estado e mercado fortes e não vê contradição entre ambos, a ortodoxia con-vencional quer fortalecer o mercado pelo enfraque-cimento do Estado, como se houvesse um jogo de soma zero entre as duas instituições.

A ortodoxia convencional é, portanto, a partir da segunda metade do século XX, a versão do laissez faire que foi dominante no século anterior. Ignorando que o tamanho do Estado cresceu em termos de carga tributária e em termos de grau de regulação exercida sobre o mercado como decorrência do aumento da dimensão e da complexidade das sociedades moder-nas, e desprezando que um Estado forte e relativa-mente grande é condição para um mercado forte e competitivo, a ortodoxia convencional é a reação prá-tica contra esse crescimento do aparelho do Estado. É certo que o Estado também cresceu por mero bu-rocratismo, para criar cargos e empregar a burocracia, mas a ortodoxia convencional não está interessada em distinguir o crescimento legítimo do ilegítimo do Estado. É a ideologia do Estado mínimo, do Esta-do polícia, que se preocupa apenas com a segurança interna e externa, deixando a coordenação econômi-ca, os investimentos na infra-estrutura e mesmo os serviços sociais de saúde e educação por conta do mercado. É a ideologia individualista, que supõe que todos são igualmente capazes de defender seus inte-resses. É, assim, uma ideologia de direita, dos mais poderosos, dos mais ricos, dos mais educados – da alta burguesia e da alta tecnoburocracia. Seu objetivo

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é baixar os salários reais diretos e indiretos por meio da desproteção ou precarização do trabalho, e, assim, tornar as empresas mais competitivas em um merca-do internacional de países em desenvolvimento com mão-de-obra barata.

A primeira e mais geral das diferenças entre o novo desenvolvimentismo e a ortodoxia convencional foi referida no último parágrafo da seção anterior. A or-todoxia convencional é fundamentalista de mercado, acreditando que ‘no princípio era o mercado’, uma entidade que tudo coordena de forma ótima se for livre, o novo desenvolvimentismo, não. Considera o mercado uma instituição extraordinariamente eficien-te para coordenar sistemas econômicos, mas conhece suas limitações.

A alocação dos fatores é a tarefa que melhor rea-liza, mas mesmo aí apresenta problemas. O estímulo ao investimento e à inovação deixa muito a desejar. No plano da distribuição de renda, é um mecanismo definitivamente insatisfatório, porque os mercados premiam os mais fortes e os mais capazes. Enquan-to a ortodoxia convencional reconhece as falhas do mercado, mas afirma que piores são as falhas do Es-tado ao tentar supri-las, o novo desenvolvimentismo rejeita esse pessimismo sobre a capacidade de ação coletiva e quer um Estado forte, não às custas do mercado, mas para que o mercado seja forte. Se os homens são capazes de construir instituições para regulamentar as ações humanas, inclusive o próprio mercado, não há razão para que não sejam capazes de fortalecer o Estado enquanto aparelho ou orga-nização, tornando seu governo mais legítimo, suas finanças mais sólidas, e sua administração mais efi-ciente, além de fortalecê-lo enquanto ordem jurídica, tornando suas instituições cada vez mais adequadas às necessidades sociais. A política e a democracia exis-tem exatamente para isso.

Como uma das bases do novo desenvolvimentis-mo é a economia política clássica e que era, essencial-mente, uma teoria da riqueza das nações, de Smith, ou da acumulação de capital, de Marx, as estruturas sociais e as instituições são fundamentais para ele. Além disso, como adota uma perspectiva histórica do desenvolvimento, os ensinamentos institucionalistas da escola histórica alemã e do institucionalismo ame-

ricano do início do século XX são parte essencial de sua visão do desenvolvimento.15 Instituições são, por-tanto, fundamentais e reformá-las é uma necessidade permanente, na medida que, nas sociedades comple-xas e dinâmicas em que vivemos, as atividades eco-nômicas e o mercado precisam ser constantemente re-regulados. O novo desenvolvimentismo, portanto, é reformista.

Já a ortodoxia convencional, baseada na teoria eco-nômica neoclássica, só recentemente se deu conta da importância das instituições, quando surgiu o novo institucionalismo. Ao contrário do institucionalismo histórico que, no plano do desenvolvimento econô-mico, vê nas instituições pré-capitalistas e nas distor-ções do capitalismo obstáculos ao desenvolvimento e procura desenvolver instituições que o promovam ativamente, o novo institucionalismo tem uma pro-posta simplista: basta que as instituições garantam a propriedade e os contratos, ou, mais amplamen-te, o bom funcionamento dos mercados, que estes promoverão automaticamente o desenvolvimento.

No jargão neoliberal, praticado, por exemplo, pelo The Economist, um governo é bom no plano econô-mico se for reformista – e reformista significa fazer reformas orientadas para o mercado. Para o novo de-senvolvimentismo, um governo será bom no plano econômico se for desenvolvimentista – se promover o desenvolvimento e a distribuição de renda pela ado-ção de políticas econômicas e de reformas institucio-nais orientadas, sempre que possível, para o mercado, mas, com freqüência, corrigindo a ação automática desses mercados. Em outras palavras, se contar com uma estratégia nacional de desenvolvimento, porque esta não é outra coisa senão esse conjunto de institui-ções e de políticas econômicas voltadas para o bom funcionamento dos mercados e o desenvolvimento. Para a ortodoxia convencional as instituições devem se limitar quase que exclusivamente às normas consti-tucionais, para o novo desenvolvimentismo, políticas econômicas e, mais amplamente, regimes de políti-cas econômicas e monetárias são instituições a serem permanentemente reformadas, corrigidas, no quadro de uma estratégia mais geral.

Além das instituições relativamente permanentes, políticas industriais são necessárias. Não são elas que

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distinguem fundamentalmente o novo desenvolvi-mentismo da ortodoxia convencional, porque o novo desenvolvimentismo usa a política industrial de forma moderada, atuando apenas estrategicamente, quando a empresa que precisa de apoio revela que tem ou terá capacidade de competir internacionalmente: uma política industrial que acabe se confundindo com o protecionismo não é aceitável.

Muitas das reformas institucionais são comuns ao novo desenvolvimentismo e à ortodoxia convencio-nal. Mas os objetivos são, com freqüência, diferentes. Tome-se, por exemplo, a reforma da gestão pública. O novo desenvolvimentismo a patrocina porque quer um Estado mais capaz e mais eficiente; já a ortodoxia convencional o faz porque vê nele a oportunidade de reduzir a carga tributária.

Para o novo desenvolvimentismo, esta conseqüên-cia pode ser desejável, mas trata-se de uma questão distinta. A carga tributária é uma questão política que depende principalmente das funções que as socieda-des democráticas atribuem ao Estado e, secundaria-mente, à eficiência dos serviços públicos. Em outros casos, o problema é de medida. O novo desenvol-vimentismo é favorável a uma economia comercial-mente aberta, competitiva, mas não radicaliza a idéia e sabe usar as negociações internacionais para obter contrapartidas, já que os mercados mundiais estão longe de serem livres. Em outros, a diferença é de ênfase: tanto o novo desenvolvimentismo quanto a ortodoxia convencional são favoráveis a mercados de trabalho mais flexíveis, mas o novo desenvolvi-mentismo, apoiado em experiências principalmente do norte da Europa, não confunde flexibilidade com falta de proteção, enquanto que a ortodoxia conven-

cional flexibiliza o trabalho para precarizar a força de trabalho e viabilizar a baixa de salários.

dOis tripés cOmparadOs

Para compararmos o novo desenvolvimentismo e a ortodoxia convencional, examinemos os dois pares de tripés em que estão baseados: um par de tripés contraditórios relativos à política mais geral de desenvolvimento, e o outro relativo à política macroeconômica.

O tripé do desenvolvimento da ortodoxia con-vencional pode ser enunciado da seguinte maneira: “Um país irá se desenvolver impelido pelas forças do mercado, desde que: (1) mantenha a inflação e as con-tas públicas sob controle; (2) faça reformas microe-conômicas orientadas para o mercado; e (3) obtenha poupança externa para financiar seu desenvolvimen-to, dada a falta de poupança interna”. Alternativa-mente, o tripé novo desenvolvimentista afirma que: “Um país se desenvolverá aproveitando as forças do mercado, desde que: (1) mantenha a estabilidade ma-croeconômica; (2) conte com instituições gerais que fortaleçam o Estado e o mercado e com um conjunto de políticas econômicas que constituam uma estra-tégia nacional de desenvolvimento; e (3) seja capaz de promover a poupança interna, o investimento e a inovação empresarial”.

Já discuti o item 2 dos dois tripés: para a ortodo-xia convencional, as instituições são estáticas; para o novo desenvolvimentismo, dinâmicas, constituindo uma estratégia nacional de desenvolvimento. Anali-semos agora o item 3, porque ele vai condicionar a política macroeconômica presente no item 1.

Quadro 2

tripés do desenvolvimento comparados

Ortodoxia Novo Desenvolvimentismo

Controlar inflação e as contas públicas Manter estabilidade macroeconômica

Reformar para fortalecer o mercado Reformar para fortalecer mercado e Estado, e ter uma política industrial

Obter poupança externa Promover poupança interna e inovação

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Para a ortodoxia convencional, a necessidade de poupança externa é um ponto central. Segundo Washington e Nova York, os países em desenvolvi-mento só lograrão crescer se contarem com o capital dos países ricos. Esse é um ponto central e indiscutí-vel para a ortodoxia convencional: é um pressuposto. Afirma essa ortodoxia: ‘é natural que os países ricos em capital transfiram seus capitais para os países pobres em capital’. Essa visão foi sempre dominan-te entre os economistas e formuladores de políticas econômicas nos países ricos.

Nos anos 1970, pela primeira vez, a poupança externa tornou-se disponível em abundância para os países em desenvolvimento. Eles aproveitaram essa oportunidade, e o resultado foi a grande crise da dí-vida externa da década de 1980. No início dos anos 1990, quando a crise da dívida externa afinal foi rela-tivamente equacionada, começou uma nova onda de fluxos de capital para os países em desenvolvimen-to, agora nos quadros da globalização neoliberal, e da abertura não apenas comercial, mas também da conta capital. Nesse contexto, Washington e Nova York não tardam em anunciar a nova verdade: “o desenvolvimento econômico é uma grande compe-tição entre os países em desenvolvimento para saber quem consegue maior acesso à poupança externa”. Os países que mais ativa e fielmente se dedicarem ao confidence building, à prática da construção de confiança junto aos credores de Nova York e às autoridades de Washington, aqueles que melhor seguirem suas orien-tações, serão os países que se desenvolverão, porque serão os que mais se beneficiarão dos recursos exter-nos de empréstimo e de investimento direto.

O novo desenvolvimentismo rejeita a idéia de que os países de desenvolvimento médio necessitem de poupança externa para crescer. Vai além: entende que a estratégia de crescimento com poupança externa é o substituto ideológico da lei das vantagens compa-rativas no processo de neutralização do desenvolvi-mento dos países de desenvolvimento médio. O que a história ensina é que os países se desenvolvem quase que exclusivamente com recursos internos. Em cer-tos momentos, quando as oportunidades de investi-mento são muito grandes, déficits em conta corrente podem acelerar de forma benéfica o desenvolvimen-

to, mas estas são situações excepcionais. Nas situa-ções normais, o recurso à poupança externa, ou seja, a déficits em conta corrente deve ser muito limitado por duas razões. A primeira é óbvia: endividamento externo excessivo leva facilmente a desastrosas crises de balanço de pagamentos. A outra, na qual tenho concentrado minha atenção nos últimos anos, é mais sofisticada: déficits em conta corrente são compatí-veis com taxas de câmbio apreciadas, que aumentam artificialmente os salários e o consumo, e diminuem a poupança interna, de forma que, em situações nor-mais, em que a taxa de lucro esperada não é espe-cialmente elevada, o influxo de poupança externa implica elevada substituição de poupança interna por externa. Em conseqüência, o país pouco ou nada se desenvolve no curto prazo devido ao influxo de capi-tais, enquanto cria um ônus em termos de dívida e de obrigações de remessas de lucros e juros para os anos futuros, que certamente reduzirá seu crescimento.16

Para a ortodoxia convencional, a situação de déficits crônicos em conta corrente e de elevado endividamen-to externo seria natural para os países em desenvolvi-mento; para o novo desenvolvimentismo, essa dupla situação não tem nada de natural ou necessária, e os países que mais se desenvolvem – os asiáticos – têm re-corrido muito parcimoniosamente à poupança exter-na. Geralmente crescem com “despoupança” externa, ou seja, com superávits em conta corrente. recebem investimentos diretos, como, aliás, também o fazem os países ricos, mas não para financiar déficits em conta corrente, e sim como contrapartida de investimentos no exterior ou aumento de reservas.

A política macroeconômica está baseada também em dois tripés conflitantes. O tripé convencional diz o seguinte: “A estabilidade macroeconômica entendi-da essencialmente como controle da inflação estará assegurada desde que (1) o governo controle suas despesas alcançando o necessário superávit primário; (2) o Banco Central tenha como único mandato con-trolar a inflação e como único instrumento a taxa de juros, cujo nível não importa; e (3) a taxa de câmbio flutue em um quadro de abertura da conta capital”. Já o tripé macroeconômico novo desenvolvimentista afirma que a estabilidade macroeconômica, enten-dida como taxa de inflação sob controle e razoável

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pleno emprego, será alcançada desde que: (1) o go-verno controle suas despesas e o déficit público, e logre uma poupança pública positiva para financiar seus investimentos; (2) o Banco Central tenha um du-plo mandato: o controle da inflação e o equilíbrio do balanço de pagamentos, e dois instrumentos, a taxa de juros e o câmbio; e (3) a taxa de câmbio seja admi-nistrada para ser mantida competitiva, usando-se para isto dos controles de capital quando for necessário, e a taxa de juros seja mantida a mais baixa possível compatível com a estabilidade de preços.

Para os dois enfoques, a estabilidade macroeco-nômica é fundamental para o desenvolvimento, e a disciplina fiscal, essencial para essa estabilidade, mas a divergência começa pelo conceito de estabilidade. O nível de emprego é um elemento essencial da ver-dadeira estabilidade macroeconômica. A lei america-na, que regula o Federal Reserve Bank, estabelece como seus objetivos não apenas o controle da inflação e a manutenção de um nível de emprego satisfatório, mas uma terceira variável: a taxa de juros moderada. Tanto o novo desenvolvimentismo quanto a ortodo-xia convencional querem o controle firme das contas públicas, mas, no caso da ortodoxia convencional, a medida fundamental é a do superávit primário. Com isso, procura-se assegurar que a relação dívida/PIB não aumente, e os credores fiquem assegurados. O novo desenvolvimentismo é mais ambicioso: quer controlar o déficit público e, mais do que isto, lograr uma poupança pública positiva que financie, senão totalmente, grande parte dos necessários investimen-tos públicos.

Enquanto a ortodoxia convencional defende ape-nas um mandato para o Banco Central – o controle

da inflação –, o novo desenvolvimentismo afirma serem necessários dois mandatos: inflação e empre-go. Enquanto a ortodoxia convencional não vê limi-tes para a taxa de juros, o novo desenvolvimentismo quer que as autoridades monetárias façam o melhor de seus esforços para mantê-la baixa. Finalmente, há uma diferença fundamental em relação à taxa de câmbio. Para a ortodoxia convencional, o mercado dela se encarregará, sendo contraditório e contra-producente, no quadro do câmbio flutuante, procu-rar administrá-la; para o novo desenvolvimentismo, esse é o preço macroeconômico mais estratégico, e, dentro de restrições ou limites razoáveis, precisa e pode ser administrado. Para administrar o câmbio, é necessário que a taxa de juros interna seja modera-da, de forma a permitir a compra de reservas quan-do os influxos de capitais são muito elevados. Em alguns momentos, pode ser necessário o recurso aos controles de capital. O novo desenvolvimentismo é a favor deles nesse momento, na linha do que o Chi-le fez nos anos 1990.

Cada um desses pontos mereceria uma longa aná-lise, a qual, entretanto, não cabe no contexto deste artigo. Limito-me a observar que o tripé macroeco-nômico convencional está fortemente influenciado pela estratégia de crescimento com poupança exter-na que se tornou dominante na década de 1990. An-tes disso, o FMI preocupava-se com a taxa de câm-bio, e, nas crises de balanço de pagamentos, além de exigir ajuste fiscal, exigia sempre desvalorização do câmbio.

A partir dos anos 1990, porém, o FMI esqueceu os déficits em conta corrente (afinal, eram poupança externa) e as depreciações cambiais. A hipótese dos

Quadro 3

tripés macroeconômicos comparados

Ortodoxia Novo Desenvolvimentismo

Obter superávit primário Obter poupança pública

Atribuir ao Banco Central único mandato e único instrumento Atribuir ao Banco Central duplo mandato e duplo instrumento

Abrir conta capital e flutuar câmbio Administrar câmbio usando controles de capital quando necessário

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déficits gêmeos isentava-o da preocupação com o déficit em conta corrente: bastava se preocupar com o superávit primário. Durante algum tempo, preferiu falar em âncoras cambiais e em dolarização; depois do fracasso dessa estratégia no México, no Brasil e, principalmente, na Argentina, o FMI voltou-se para a plena flutuação do câmbio para resolver todos os problemas externos. O novo desenvolvimentismo critica fortemente esta perspectiva e quer um contro-le não apenas das contas públicas do Estado (défi-cit público), mas também das contas totais da nação (conta corrente); quer não apenas que o Estado esteja pouco endividado e apresente poupança pública posi-tiva; quer também que o Estado-Nação tenha contas externas que assegurem sua segurança e autonomia nacional. Quer não apenas a administração da taxa de juros, mas também a da taxa de câmbio, ainda que no quadro de um regime de câmbio flutuante que não chama de ‘sujo’, como o faz a ortodoxia convencio-nal, mas de administrado.

cOnclusãO

Quais os resultados das duas políticas? Os resulta-dos da ortodoxia convencional na América Latina são bem conhecidos. Pelo menos desde 1990, a verdade vinda de Washington e Nova York tornou-se hege-mônica nesta região caracterizada pela dependência. reformas e ajustes de todos os tipos foram realiza-dos, mas não houve desenvolvimento. Os resultados do novo desenvolvimentismo na América Latina, por sua vez, não podem ser medidos. O Chile o tem usa-do, mas é um país pequeno, e as políticas que adota estão a meio caminho entre uma e outra estratégia. A Argentina de kirschner e do ex-ministro da econo-mia roberto Lavagna é a única experiência concreta, mas é muito recente para poder ser objeto de ava-liação definitiva. O novo desenvolvimentismo, entre-tanto, está mais que provado, porque não é outro o nome da estratégia que os países dinâmicos da Ásia vêm usando.

Terá o novo desenvolvimentismo condições de se tornar hegemônico na América Latina como o foi no passado o desenvolvimentismo? O fracasso da pro-posta convencional mostra que sim. A crise da Ar-

gentina de 2001 foi um turning point: foi o réquiem da ortodoxia convencional. Nenhum país adotou mais fielmente seus preceitos, nenhum presidente dedi-cou-se mais ao confidence building do que Menen. Os resultados foram os que se viram. Por outro lado, o pensamento novo desenvolvimentista está sendo re-novado. Conta com uma nova geração (em relação à minha ou mesmo à de Nakano) de economistas de alta qualidade que estão sendo formados principal-mente no Brasil.

Na Argentina e no Chile, existem também emi-nentes economistas que se identificam com essa es-tratégia como Osvaldo Sunkel, Aldo Ferrer, ricardo Ffrench-Davis e roberto Frenkel. Existe aqui, po-rém, um problema de hegemonia ideológica a ser resolvido. Os países da América Latina só retomarão o desenvolvimento sustentado se seus economistas, seus empresários e sua burocracia de Estado se lem-brarem da experiência bem sucedida que foi o antigo desenvolvimentismo, e forem capazes de dar um pas-so à frente. Já fizeram a crítica dos erros cometidos e já se deram conta dos fatos históricos novos que a tornaram superada. Precisam agora reconhecer que a revolução nacional que então estava acontecendo, tendo esse antigo desenvolvimentismo como estra-tégia nacional, foi interrompida pela grande crise dos anos 1980 e pela onda ideológica neoliberal vinda do Norte. Precisam aprofundar o diagnóstico da quase estagnação provocada pela ortodoxia convencional, além de olhar com atenção para a estratégia nacional de desenvolvimento dos países asiáticos dinâmicos. Precisam, ainda, participar da grande obra coletiva nacional que é a formulação do novo desenvolvi-mentismo – da nova estratégia nacional de desenvol-vimento para seus países.

Minha percepção é a de que essa tomada de consciência está em pleno processo. O desenvol-vimento da América Latina sempre foi nacional-dependente, porque suas elites sempre foram con-flitantes e ambíguas, ora se afirmando como nação, ora cedendo à hegemonia ideológica externa. Esse processo, porém, tem um elemento cíclico, e tudo indica que o tempo do neoliberalismo e da ortodo-xia convencional passou, e que novas perspectivas estão se abrindo para a região.

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notas

Agradeço os comentários de Yoshiaki Nakano, Fernando Ferrari, José Luís Oreiro e Luís Fernando de Paula.1. No Brasil, os dois principais economistas da teoria eco-nômica do desenvolvimento corrente foram Celso Furtado e Ignácio rangel. Dada a projeção internacional do primeiro, ele participou também do grupo fundador da teoria econômica do desenvolvimento, entre os quais destacaram-se ronsentein-rodan, Arthur Lewis, ragnar Nurkse, Gunnar Myrdal, raúl Prebisch, Hans Singer e Albert Hirschman. Em inglês, quando se fala de development economics, sabe-se bem do que se está falan-do; em português ou espanhol, teoria econômica do desenvolvimento parece uma expressão genérica, mas aqui eu a usarei no sentido de development economics e, portanto, de um conjunto de teorias sobre o desenvolvimento econômico que surge nos anos 1940, a partir do trabalho dos economistas citados. 2. O nacionalismo pode também ser definido, como fez Gellner, como a ideologia que busca dotar cada nação de um Estado. Esta é uma boa definição, mas própria da Europa Cen-tral. Na América Latina, as nações não estavam ainda plena-mente formadas, e, no entanto, foram dotadas de Estados. As nações, porém, eram incompletas, e o regime, semi-colonial: com a independência, mudou principalmente a potência do-minante, passando da Espanha ou Portugal para a Inglaterra e demais grandes países centrais. 3. Fiz a análise dessa crise que foi, mais amplamente, uma crise do Estado, em Bresser-Pereira (1992).4. Na verdade, já havíamos, na prática, iniciado esse trabalho durante nossa passagem (minha e de Yoshiaki Nakano) pelo Ministério da Fazenda (1987), eu como Ministro, ele como Se-cretário de Política Econômica. Travamos, então, uma batalha contra os populistas dentro do Partido do Movimento Demo-crático Brasileiro (PMDB), ao mesmo tempo em que rejeitáva-mos a simples adoção da ortodoxia convencional que, então, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial ofereciam ao Brasil.5. Aventou-se, também, a possibilidade de se usar a expressão ‘ortodoxia desenvolvimentista’, dado que o novo desenvolvi-mentismo é tão ou mais rigoroso que a ortodoxia convencional em matéria de disciplina fiscal. A expressão ortodoxia, porém, sugere uma falta de flexibilidade e, portanto, de pragmatismo, que é incompatível com uma estratégia nacional de desenvolvi-mento.6. “O novo desenvolvimentismo” (BrESSEr-PErEIrA, 2004).

7. No momento em que escrevo (início de 2006), Sicsú e de Paula submeteram à Revista de Economia Política um artigo com o título, “Novo Desenvolvimentismo”, que ainda deverá passar pela análise dos pareceristas. Um seminário sob a coordena-ção de José Luís Oreiro e Luiz Fernando de Paula ocorreu na Universidade Federal do Paraná, em 2006, tendo como tema o novo desenvolvimentismo.

8. Gellner (1983, 2000) filósofo tcheco refugiado do comu-nismo na Inglaterra, foi provavelmente o mais arguto analista do nacionalismo na segunda metade do século XX.

9. No trecho imediatamente anterior, diz renan: “Uma na-ção é uma grande solidariedade, constituída pelo sentimento dos sacrifícios que foram feitos e daqueles que as pessoas se dispõem ainda a fazer. Ela supõe um passado; ela se resume no presente em um fato tangível: o consentimento, o desejo claramente expresso de continuar a vida comum.” (rENAN, 1882 [1992], p. 55)

10. Entende-se, aqui, por ‘classe rentista’ não mais a classe dos grandes proprietários de terra, mas a dos capitalistas inativos que vivem de rendas, principalmente de juros. O ‘setor finan-ceiro’, por sua vez, além de ser constituído de rentistas, é tam-bém formado por empresários e administradores que recebem comissões dos rentistas.

11. Ver Frenkel (2003).

12. Ver Dias-Alejandro (1981); Ffrench-Davis (2003).

13. Ver Bresser-Pereira e Dall’Acqua (1991).

14. Não tenho simpatias por ortodoxias, que são formas de renunciar ao pensamento, como não tenho interesses por he-terodoxias quando o economista, ao se identificar como hete-rodoxo, renuncia a ver suas idéias e políticas sendo aplicadas, e se reserva o papel de eterna oposição minoritária. O bom economista não é ortodoxo ou heterodoxo, mas pragmático: sabe fazer boa política econômica, tendo como base uma te-oria econômica aberta e modesta que o obriga a permanente-mente pensar e decidir em situação de incerteza.

15. A escola histórica alemã é a escola de Gustav Schmoller, Otto rank, Max Weber, e, correndo por uma trilha diferente, de Friedrich List; a escola institucionalista americana é a escola de Thorstein Veblen, Wesley Mitchell e John r. Commons.

16. Tenho feito críticas à estratégia de crescimento com pou-pança externa desde o início da década. Ver principalmente Bresser-Pereira (2002, 2004), Bresser-Pereira e Nakano (2002 [2003]) e Bresser-Pereira e Gala (2005).

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Luiz CarLos Bresser-Pereira

Professor de Teoria Econômica e de Teoria Política na Fundação Getúlio Vargas – SP.([email protected]; www.bresserpereira.org.br)

Artigo recebido em 30 de março de 2006. Aprovado em 20 de abril de 2006.

Como citar o artigo:BrESSEr-PErEIrA, L.C. O novo desenvolvimentismo e a ortodoxia convencional. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 20, n. 3, p. 5-24, jul./set. 2006. Disponível em: <http://www.seade.gov.br>; < http://www.scielo.br>.

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A s eleições se aproximam e é chegado o momento da sociedade olhar para trás, avaliar o desempenho do atual governo, e fitar o futuro, para divisar possibilidades e fazer escolhas. Do ponto de vista do crescimento econômico, podemos afirmar que houve uma piora relativa. Se compararmos nosso desempenho com o de um conjunto de economias emergentes, notamos que se agra-vou na atual gestão em comparação com a anterior. No período entre 1994 e 2002, crescemos a 2,7% ao ano, contra 3,9% dos emergentes, enquanto que, no último quadriênio, chegaremos, a se confirmar, a taxa de 4,0% em 2006 – 2,9% contra 5,3%, respectivamente.

A economia brasileira se consolida como de baixo crescimento. Tal característica é fruto da continuidade e aprofundamento de políticas adotadas no quadriênio anterior. O padrão da política econômica caracteriza-se por carga tributária e gasto público crescentes, juros reais altos e política fiscal conservadora, mantendo supe-rávits primários elevados e inflação em queda. Embora este padrão tenha sido suficiente para produzir uma bem-vinda estabilidade da economia, ele não está conseguindo encontrar o caminho para o desenvolvimento.

Neste artigo, são alinhavadas seis questões que acredito serem centrais para o entendimento das carac-terísticas mais importantes do equilíbrio macroeconômico prevalente na economia brasileira nos últimos oito anos e que deveriam nortear o debate entre os candidatos neste ano eleitoral.

Há diferentes linhas de pensamento entre os economistas. Provavelmente, haverá discordância na forma como essas diversas correntes respondem às perguntas aqui formuladas. Meu trabalho foi selecionar as ques-tões e oferecer uma resposta possível. O papel do leitor é apreciá-las e, a partir da leitura dos demais artigos

Resumo: O artigo formula seis perguntas importantes e oferece respostas para tentarmos alcançar um maior crescimento econômico. Além disso, exemplifica como, muitas vezes, o público não especializado e a imprensa abordam estes problemas de maneira mecânica e, às vezes, maniqueísta (ou conspiratória).

Palavras-chave: Custo da dívida pública. Estagnação econômica. Déficit da previdência.

Abstract: The article asks six important questions and offers answers to achieve a bigger economic growth. In addition, the article shows that the non-specialized public and the press generally approach the same problems in a mechanical and sometimes manichaeistic (or conspiratorial) fashion.

Key words: Cost of public debt. Economical stagnation. Social security deficit.

SeiS perguntaS para penSar em um ano eleitoral

Samuel de abreu PeSSôa

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26 SAmuEl DE AbrEu PESSôA

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deste volume, chegar à sua conclusão. As perguntas selecionadas foram:• Por que os lucros dos bancos são tão elevados? • Qual é o custo para o setor público dos juros ele-

vados?• É possível crescer desvalorizando o câmbio? Que

fazer para elevar a taxa de crescimento?• O que fazer para elevar a taxa de crescimento

ainda mais?• Qual é o déficit da previdência?• Por que a China cresce tanto?

Estas questões abordam os graves obstáculos que estão impedindo que experimentemos taxas de cres-cimento mais elevadas. Parto do ponto de vista que, sempre que possível, é útil comparar nossa sociedade com outras. Isto é particularmente verdadeiro para o problema previdenciário. Finalmente, a primeira per-gunta, apesar de não estar diretamente ligada as ques-tões do baixo crescimento, mobiliza emoções. Para ela, em geral, os economistas oferecem explicações bem distintas das apresentadas por não especialistas.

Por que os lucros dos bancos são tão elevados?

Existe, na sociedade, a sensação de que os bancos privados apresentam rentabilidade excessiva, a qual é conseqüência da baixa competitividade do setor. Nesta percepção, nota-se um problema comum em economia, chamado viés de publicação.

Há muitos bancos e seu número varia com o tem-po, alguns fecham, outros abrem. Em geral, a im-prensa divulga com grande destaque os bancos mais rentáveis. No entanto, nos últimos anos, diversos deles apresentaram rendimento muito baixo, outros fecharam ou faliram. Assim, o lucro médio do setor é substantivamente menor que o dos bancos melhor administrados.

Esta diferença representa uma renda econômica que premia o talento e a capacidade empresarial. Na perspectiva econômica, estes proventos são equiva-lentes ao excedente de remuneração de um craque – Ronaldinho Gaúcho, por exemplo – em comparação à média dos jogadores de futebol. Além disto, temos que lembrar que a governança dos bancos é bem di-

ferente da de empresas do setor real. Assim, ao com-pararmos a rentabilidade dos bancos com a de outras empresas, temos que atentar ao fato de os balanços destes sofrerem, em geral, auditorias mais estritas e com mais freqüência que a maioria das empresas.

Em que pese estes motivos, muitos ainda acredi-tam que a remuneração média do setor é muito eleva-da. É possível que seja. O objetivo aqui não é discutir com números esta proposição. Mas, todos aqueles que assim pensam têm que explicar o motivo de não surgirem novos bancos.

Normalmente, pensamos que novos bancos não são criados porque o setor privado não apresenta recursos para tal. No entanto, o enigma persiste se lembrarmos que bancos estrangeiros podem instalar-se no Brasil. Assim, se for verdade que a lucrativi-dade média do setor é muito elevada, esperaríamos que inúmeros bancos de fora estivessem investindo no país. De fato, houve algum movimento em anos anteriores, mas, em geral, tais instituições compraram redes de agências já formadas, como foi o caso do Banespa/Santander.

Parece, portanto, que novos participantes não en-tram no mercado, pois o custo de construção da rede bancária não compensa os lucros. Mas, temos, então, um novo enigma: por que esses custos são tão ele-vados no Brasil? Este, aliás, poderia ter sido o título desta seção.

Não parece que o custo da construção civil seja muito alto no Brasil em comparação a outras econo-mias. Assim, a elevada despesa para implantação de uma rede de agências deve estar associada a custos intangíveis e não aos de construção física. Este, de fato, parece ser o caso.

Nossa economia apresenta duas características que causam tal fenômeno.1 Primeiro, nosso sistema jurídico é extremamente caro, lento e com viés con-tra o credor. Desta forma, é dispendioso mover uma ação de recuperação de garantia contra um devedor inadimplente. Isto faz com que seja importante para a empresa bancária conhecer as características dos clientes, já que separar o joio do trigo, o bom do mau pagador, vale muito neste negócio.

A segunda característica é a dificuldade encontra-da por um novo competidor para saber quem são os

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bons clientes, pois esta é uma informação privada. Quando alguém tenta ingressar no mercado de va-rejo, os bancos em operação conseguem disponibi-lizar pacotes que “seguram” os bons clientes, nada oferecendo aos ruins. Estes acabam migrando para o novo competidor, que aufere prejuízos dada a má seleção de sua carteira de clientes. Se os custos da justiça fossem baixos, estes prejuízos não seriam tão elevados e a empresa ingressante não perderia fôle-go. Mas a combinação de altos custos da justiça com a existência de informação privada sobre os clientes pode produzir forte poder de mercado, justificando o fato de que mesmo com grandes lucros os custos de construção da rede bancária não compensam.

O maior valor da rede bancária não está na soma de todas as agências, mas no ativo intangível, que é o grande volume de informações sobre as caracte-rísticas dos clientes. Quando um banco adquire uma rede, ela carrega consigo esta informação privada.

Conseqüentemente, para elevar a competição no setor bancário, é necessário agir nas duas frentes: continuar uma extensa agenda de reforma do código de processo, tornando a execução de garantias menos custosa e alterando o forte viés pró-devedor de nos-so sistema jurídico; e criar mecanismos, como o ca-dastro positivo de devedores, que diminuam o custo de informação. Isto é, a redução da lucratividade dos bancos (provavelmente) será conseqüência de refor-mas microeconômicas e dependerá menos da ação de órgãos de defesa da concorrência.

A análise, até o momento, concentrou-se no papel do banco como instituição cuja principal função é a intermediação financeira, isto é, alocar os recursos dos depositantes (poupadores) aos tomadores (in-vestidores). Além desta função, um banco comercial deve ofertar diversos instrumentos de liquidez e de pagamentos, tais como cheques, débito automático na conta corrente, banco 24 horas e uma série de ser-viços. É possível que haja poder de monopólio dos bancos na cobrança de tarifas por estes serviços.

Há uma grande gama de itens a serem oferecidos, e pode ser difícil ao cliente identificar os preços e custos de pacotes alternativos. Neste caso, o órgão de defesa da concorrência deve intervir para, por exemplo, criar alguns pacotes padronizados que

deveriam ser ofertados por todas as instituições financeiras, facilitando a escolha pelo consumidor e estimulando a competição. Ou seja, é possível que haja espaço para avanços na regulação, fiscalização e defesa da concorrência no setor bancário. Estas funções hoje são responsabilidades principalmente do Banco Central – Bacen. Ocorre que ele tem vantagens comparativas para executar a tarefa de regulação prudencial, isto é, conjunto de medidas para evitar que as instituições bancárias assumam riscos excessivos, expondo o setor e o patrimônio dos depositantes. No entanto, o Bacen não é talhado para atividades de defesa da concorrência. Portanto, é importante que se crie uma agência reguladora com a função precípua de defesa deste setor ou que esta atribuição seja transferida ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade.2

qual é o custo Para o setor Público dos juros elevados?

Entre os formadores de opinião, há uma impressão, de que o custo fiscal com os juros pagos na dívida pública é excessivamente elevado. De fato, a dívida é alta, totalizando 50% do produto interno bruto – PIB – a soma de toda a produção da economia brasileira ao longo de um ano. Como os juros nominais inci-dentes sobre esta dívida também são elevados, é ób-vio, conseqüentemente, que a rubrica “juros pagos” responde por uma parte significativa do gasto públi-co. No entanto, como será mostrado, esta parcela é menor do que imaginamos.

Para uma relação dívida/PIB de 50% do PIB, in-cide atualmente uma taxa nominal de juros da ordem de 15% ao ano. Se multiplicarmos 0,15 por 0,5, ob-tém-se 0,075, o que indica que os juros pagos corres-pondem a 7,5% do PIB. No entanto, esta conta não leva em consideração que os juros pagos são os juros nominais não descontando, portanto, a inflação. Para um investidor, a parcela dos juros que repõe o valor da moeda – a correção monetária – não constitui ren-da, da mesma forma que, para um proprietário que aluga um apartamento, uma parcela do aluguel serve exclusivamente para repor a depreciação do imóvel. Isto é, se o investidor não reinvestir os recursos refe-

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rentes à correção monetária, ele estará consumindo parte de seu estoque de riqueza. Assim, se conside-rarmos os mesmos 15% de juros nominais, para uma inflação de 4,5%, a taxa de juros reais será de 10% ao ano, que é o resultado da seguinte conta:

ππ

+−

1R

,

em que R é a taxa nominal de juros (15% em nosso exercício), e π é a taxa de inflação (4,5%). Conse-qüentemente, o tesouro nacional paga 5% do PIB de juros (10% de juros reais sobre uma dívida que é 50% do PIB).

No entanto, os juros pagos são ainda menores. Uma parcela dos juros que o tesouro paga com uma mão, a receita arrecada com outra, na forma de im-postos. Como o investidor toma a decisão de inves-timento olhando o juro real líquido de impostos, é totalmente indiferente ter sua poupança remunerada em 10% e pagar 10% de impostos ou ter a poupança remunerada em 9% e ser isento de impostos. É difícil saber exatamente a carga tributária sobre o serviço da dívida pública. Os investidores pagam Imposto so-bre Operações Financeiras – IOF, Imposto de Renda – IR de 20%, Contribuição Provisória sobre Movi-mentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira – CPMF, etc. Além disto, há isenções para fundo de pensões, de sorte que, fazendo a conta subestimando esta carga tribu-tária, incide uma alíquota de aproximadamente 10%. Desta forma, os juros reais líquidos de impostos se-rão dados por:

( )π

πτ+

−−1

1 R,

em que τ é a alíquota de imposto, considerada de 10%. Os juros reais líquidos para as hipóteses de nosso exercício resultam em 8,6% ao ano, de sorte que o custo fiscal da dívida pública é da ordem de 4,3% do PIB.

Sob a hipótese – totalmente equivocada, em nos-so entender – de ser possível reduzir os juros e, sem nenhum ajuste adicional, nada acontecer na inflação, podemos avaliar o possível ganho fiscal com a redu-ção dos juros. Suponhamos que os juros caiam para

9,2%, ou seja, que os juros reais caiam para 4,5% e os juros reais líquidos de impostos para 3,6%. Estas taxas parecem extremamente baixas. Sob estas con-dições, o ganho fiscal de reduzir os juros nominais de 15% ao ano para 9,2% seria de 2,5% do PIB. É uma quantidade expressiva, mas está longe de ser a panacéia que se imagina.

Segue uma lista curta de necessidades de nosso Es-tado. É razoável uma elevação nos gastos com edu-cação de 1,5% do PIB (gastamos 4,5% e, dado nosso atraso educacional, seria bom elevar este montante para 6%). Hoje, ninguém duvida que, seria prioritário elevar os gastos com segurança em 1% do PIB, e que os 0,5% do PIB de investimentos em infra-estrutura deveriam chegar a 1,5%, isto é, adição de 1%. Somen-te nessas três rubricas, seria importante elevar o gas-to em 3,5% do PIB!3 Se lembrarmos que o gasto da previdência tem crescido anualmente 0,4% do PIB, com o atual conjunto de regras e com a política de elevação do salário mínimo que o setor público vem promovendo nos últimos anos, é fácil concluir que há um desequilíbrio orçamentário independente da rubrica “juros pagos”. De sorte que a pergunta que fica é: por que as pessoas acreditam que a redução da taxa Selic é condição suficiente para retornarmos o crescimento econômico?

Finalmente, para avaliar o custo fiscal da dívida pú-blica, é oportuno lembrar que uma parte significativa dos títulos públicos é detida por empresas públicas. Por exemplo, aproximadamente 25% da dívida pú-blica é detida pelos bancos públicos, principalmente pelo Banco do Brasil e pela Caixa Econômica Fede-ral. Se os juros caírem muito e, como conseqüência, o lucro desses bancos for reduzido, parte da receita que o Tesouro aufere na forma de dividendos transferi-dos será menor.4 Se este for o caso, o ganho fiscal de reduzir os juros nominais de 15% para 9,2% pode ser ainda menor do que os 2,5% do PIB calculado acima. O quadro pode ficar ainda mais negro se lembrarmos que uma parte desta dívida está no ativo de diversos fundos de pensão de empresas estatais – Petros e Pre-vi, por exemplo – que funcionam no regime de be-nefício definido. Se a rentabilidade do fundo cair em conseqüência da redução dos juros, a empresa patro-cinadora terá que aportar parte dos recursos para que

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o fundo de pensão possa cumprir seus compromis-sos com os atuais aposentados.5 Conseqüentemente, os lucros da estatal serão reduzidos diminuindo, por-tanto, a receita do tesouro, o principal acionista da estatal. Lembremos que as estatais, nos últimos anos, têm tido papel importante para a manutenção do su-perávit primário.

é Possível crescer desvalorizando o câmbio? que fazer Para elevar a taxa de crescimento?

Nós últimos anos, houve forte valorização do câm-bio. Toda evidência que temos foi que isto ocorreu devido ao choque externo positivo que nossa econo-mia vem sofrendo. A demanda do resto do mundo pelos nossos produtos elevou-se, de sorte que a forte expansão da produção e exportação, em especial, com-modities agrícolas e metálicas, não redundou na queda do preço internacional destas mercadorias. Não há sinais de que o diferencial de juros tenha sido o fator preponderante neste movimento recente do câmbio. Nos últimos meses, os juros domésticos caíram de 19,75% para 14,75%, e os internacionais subiram de 2% para 5%; tem sido difícil o Bacen manter o câm-bio numa cotação acima de R$ 2,20 por dólar.6

Vários analistas sustentam que seria possível au-mentar substancialmente as taxas de crescimento de nossa economia desvalorizando o câmbio. Para esses analistas, tal desvalorização per se elevaria a demanda do resto do mundo por nossos produtos, estimulando a produção e o emprego. O problema com esta argumentação é que supõe que a econo-mia brasileira esteja vivenciando uma situação de desemprego de fatores de produção. Em que pese o elevado desemprego da força de trabalho, não há sinais de desemprego aberto macroeconômi-co. Isto é, parece que o atual nível de desemprego é microeconômico e está ligado às condições de operação do mercado de trabalho.

A maior evidência de que não há desemprego aberto dos fatores de produção segue da experiên-cia de 2004. Nesse ano, não se sentiu forte queda de juros reais promovida pelo Bacen devido ao ressurgi-mento da inflação no segundo semestre. Houve sinais contundentes de elevação da inflação. Entre abril e

agosto de 2004, a inflação de serviços, isto é, pre-ços que não são afetados pelo câmbio, elevou-se de 5,1% para 7,4% no acumulado de 12 meses. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA anual entre maio de 2004 e maio de 2005 apresen-tou elevação de 5,2 para 8,1. Forçoso concluir que a economia brasileira tem, na média, operado a ple-na capacidade. Portanto, a pergunta relevante e que poderia ser a pergunta título desta seção é “qual é o conjunto de medidas que permitirão elevar a oferta da economia?” e não “o que devemos fazer para ele-var a demanda?”.

Muitos críticos apontam a trajetória da Argentina como possível alternativa. De fato, é viável: juros mui-to baixos com câmbio artificialmente desvalorizado. Será que esta opção tem sido boa, do ponto de vista do crescimento econômico? Acreditamos que não. É impossível analisar o forte crescimento econômico re-cente da Argentina sem considerar que ele se deve, em parte, à recuperação da grande crise de 1999 até 2002. A Tabela 1 mostra que, apesar do forte crescimento, se tomarmos 1994 como base de comparação, o cres-cimento médio da Argentina ainda foi inferior ao da economia brasileira no período. Além disto, a inflação ultrapassou os 10% ao ano, apesar de se praticar uma intensa política de contenção artificial dos preços, em particular dos serviços de utilidade pública, com im-pactos muito negativos sobre o investimento e, con-seqüentemente, sobre sua oferta futura.

Qual é, portanto, a receita para alavancar o cresci-mento? Do ponto de vista macroeconômico, a medi-da mais importante é reduzir o consumo do governo. Num primeiro momento, esta redução seria utilizada para elevar tanto o investimento em infra-estrutura quanto o superávit primário, acelerando, conseqüen-temente, a recompra da dívida pública e reduzindo a relação dívida/PIB. O aumento do superávit primário reduziria a demanda doméstica por bens produzidos internamente, fazendo cair os juros e desvalorizan-do o câmbio, sem que o Bacen tenha que fazê-los por decreto. A retomada do investimento em infra-estrutura estimularia outras formas de investimento, uma vez que infra-estrutura é complementar ao in-vestimento privado, elevando a taxa de crescimento. Este aumento do investimento geraria elevação de

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importações de bens de capital, gerando uma pressão adicional para que o câmbio se desvalorize.

A principal mensagem é que juros baixos e câmbio alto são conseqüências de uma política fiscal correta e não o contrário. Além disso, crescimento econômico não é fruto do desejo do gestor público, mas decor-rência de uma política econômica consistente.

o que fazer Para elevar a taxa de crescimento ainda mais?

Na seção anterior, argumentei que uma política fiscal mais consistente, na qual o gasto de consumo do go-verno cresça a uma taxa menor que a da elevação do PIB, é suficiente para aumentar a taxa de crescimento, produzir desvalorização do câmbio e reduzir os juros. No entanto, diversas medidas podem ser tomadas para que ela se eleve ainda mais.

No longo prazo, a taxa de crescimento de uma economia depende da taxa de investimento, de progressos na qualificação da mão-de-obra e da elevação da eficiência produtiva. A taxa de inves-timento, por sua vez, depende principalmente de

uma adequada oferta de serviços de infra-estrutura, da existência de mão-de-obra com boa escolaridade e bem treinada e de carga tributária não mui-to elevada e que não onere em dema-sia o investimento. Assim, se o setor público encaminhar adequadamente o nosso grave déficit de infra-estrutura física e social, o investimento privado naturalmente irá aumentar.

O déficit de infra-estrutura tem forte impacto sobre a renda per capita. Estudos do Banco Mundial (CALDERóN; SERVÉN, 2003) mostram que aproxi-madamente 30% do diferencial de crescimento da renda entre as econo-mias latino-americanas e os tigres asiáticos no período 1980-1990 deve-se ao diferencial de investimento neste setor. Analogamente, Pessôa (2005b) mostra que cerca de 35% do diferencial de renda entre o produto per capita

no Brasil e nos Estados Unidos deve-se ao déficit educacional de nossa força de trabalho.

No entanto, como sugerido no parágrafo anterior, mesmo se fizéssemos grande progresso na área edu-cacional e na oferta de infra-estrutura, ainda restaria uma diferença de produto entre o Brasil e os países do primeiro mundo da ordem de 65% (GOMES et al., 2003). Isto é, tipicamente, uma hora trabalhada aqui resultaria em 0,65 do produto de uma mesma hora no primeiro mundo. Esta situação, os econo-mistas chamam de diferença na produtividade total dos fatores – PTF.

A PTF de nossa economia é menor que a das economias do primeiro mundo, muito provavelmen-te devido ao nosso marco institucional – vale dizer, o conjunto de regras que regulam o funcionamento dos diversos mercados (PESSÔA, 2005a). Assim, devemos continuar a priorizar reformas microeco-nômicas que visem elevar a eficiência do funciona-mento dos diversos mercados. A lista é extensa e conhecida: reforma da previdência,7 administrativa, tributária e trabalhista. Adicionalmente, temos que continuar com a agenda de reformas de simplifica-

tabela 1

crescimento anual do Pibargentina e brasil –1994-2006

Em porcentagem

Anos Argentina Brasil

1994 5,8 5,9

1995 -2,8 4,2

1996 5,5 2,7

1997 8,1 3,3

1998 3,8 0,1

1999 -3,4 0,8

2000 -0,8 4,4

2001 -4,4 1,3

2002 -10,9 1,9

2003 8,8 0,5

2004 8,8 4,9

2005 9,2 2,3

2006 (1) 7,3 3,5

Crescimento Médio Anual 2,5 2,7

Fonte: FMI.(1) Projeção.

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ção dos negócios (redução do custo de abrir e fe-char uma empresa, por exemplo) e de reformas do código de processos, tornando a justiça mais rápida e previsível.

A reforma administrativa objetiva atacar o pro-blema da baixíssima eficiência do setor público, que arrecada aproximadamente 38% do PIB; gasta 5% com pagamento de juros reais da dívida pública e aproximadamente 13% com o pagamento de apo-sentadorias do setor público e privado, aposentadoria rural, seguro doença e demais benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS. Restam, portan-to, 20% do PIB para os serviços de saúde, educação, bolsa-família e investimento em infra-estrutura, in-clusive saneamento básico e demais obrigações e programas. Estes recursos são bastante elevados e a maior parte dos governos das economias emergen-tes tem à disposição uma quantidade muito menor de recursos.

Assim, falta de recursos não constitui motivo para os baixos índices de eficiência de nossos serviços públicos. Por exemplo, apesar de gastarmos 4,5% do PIB com educação, os alunos da oitava série, em média, dominam conteúdo equivalente ao da quarta série. Para quase qualquer lado do setor público que olharmos, notaremos que os gastos como fração do PIB são suficientes e que o maior problema é que, com estes gastos, não estamos conseguindo fazer muita coisa. Isto é, há um evidente problema de baixa eficiência no setor público brasileiro e não reconhe-cer isto é tampar o sol com a peneira.

Deste modo, é necessário que retomemos a agen-da de reforma administrativa do ministro Bresser Pereira, introduzindo, no serviço público, a possibi-lidade de demissão por excesso de contingente ou por deficiência de desempenho, e que todo o sistema de controle do setor público seja pautado menos por verificar os insumos e procedimentos que estão sen-do utilizados e mais em medir o desempenho, sendo menos processualista e mais meritocrático. Se alguém não concordar com esta afirmação, deve responder à seguinte pergunta: por que, dispondo de 20% do PIB, após pagar os gastos de transferências com juros e aposentadorias, os serviços de educação, saúde, segu-

rança, justiça e infra-estrutura oferecidos pelo setor público são tão ruins?

Como afirmei acima, os pontos seguintes da agen-da de reformas para elevar a eficiência microeco-nômica seriam a reforma tributária, a trabalhista e, principalmente, num primeiro momento, creio eu, a retomada da reforma da justiça e do código de pro-cessos, com vistas à redução do custo de transação em geral.

qual é o déficit da Previdência?

Tem ocorrido, recentemente, um acalorado debate em nossa sociedade. Um lado argumenta que a previdên-cia social tem recursos de sobra para financiar seus gastos e que o déficit seria fictício, sendo produzido:• pelo desvio de receitas para elevar o superávit pri-

mário necessário ao pagamento dos juros da dívi-da pública;

• pela inclusão de inúmeros beneficiários da aposen-tadoria rural que não contribuíram e, conseqüen-temente, deveriam ser excluídos da contabilidade, pois estes benefícios constituem assistência social e não previdência.O outro lado do debate afirma que as contribui-

ções sobre a folha são significativamente menores do que os benefícios previdenciários, provocando o mencionado déficit.

Para sabermos exatamente qual é o déficit temos que entender a lógica de funcionamento de nosso sis-tema, o qual está baseado no regime de repartição. Os benefícios dos inativos de hoje são pagos com as contribuições dos ativos, havendo uma solidariedade entre gerações. A grande vantagem deste sistema é que há compartilhamento do risco entre todos.

A outra forma de organizar um sistema previden-ciário é conhecida por sistema fundado. Cada um poupa numa conta própria, acumulando, ao longo da vida, a contribuição e o rendimento na forma de juros compostos, e, ao final deve ter acumulado um patri-mônio que financia o benefício. A grande vantagem deste regime é que ele estimula fortemente a poupan-ça; porém os indivíduos estão limitados a financiar a sua aposentadoria por meio de sua capacidade contri-butiva, havendo pouco espaço para redistribuição de

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renda. Desta forma, em geral, as sociedades adotam o regime de repartição como base da previdência.

Para avaliarmos o tamanho do déficit do regime geral de previdência social – RGPS, adotando a lógica interna do sistema de repartição, temos que contabi-lizar como receita as contribuições dos ativos (seja a patronal ou do trabalhador) e como benefícios os pagamentos de aposentadoria aos contribuintes (os benefícios de não contribuintes são considerados assistência). Isto é, dada a lógica de nosso sistema, com vistas ao cálculo de seu déficit, devemos excluir das receitas da previdência todas as outras formas de impostos ou contribuições que ajudam a custear as aposentadorias. No ano de 2005, o RGPS arrecadou 116 bilhões de reais e os benefícios, exclusive não previdenciários e aposentadoria rural, totalizaram 142 bilhões, representando um déficit de 26 bilhões, maior que o dobro do investimento da União.

Para a previdência do setor público, um cálculo simples é o seguinte: a folha de salários dos ativos é aproximadamente igual à dos inativos, com contribui-ção de 11% e 10%, respectivamente. Supondo que os salários sejam os mesmos – o que deve subestimar o déficit, pois os funcionários públicos se aposentam com a renda integral no ápice da remuneração – tería-mos que as contribuições dos inativos e ativos totali-zariam 21%, restando, portanto, 79% dos gastos com inativos para o déficit. Foi exatamente devido a estes déficits que a sociedade decidiu criar novos impostos e tributos para financiar a previdência.

Apesar de legalmente estes impostos e tributos terem sido alocados para a previdência, na conta-bilidade feita no parágrafo anterior, eles não foram considerados receita previdenciária, pois a lógica eco-nômica de tributos como a Contribuição para o Fi-nanciamento da Seguridade Social – Cofins e CPMF assim recomenda. Estes são impostos gerais sobre a produção e não contribuição dos ativos. O importan-te a reter é que sempre existe uma alíquota de impos-to suficientemente elevada, que faz com que qualquer sistema previdenciário seja superavitário. Se conside-rarmos os outros impostos e contribuições, a con-clusão óbvia é que o déficit da previdência é sempre nulo por construção. Isto é, num contexto em que a sociedade pode sempre criar um imposto adicional

para financiar a previdência, o próprio conceito de déficit é destituído de sentido econômico.

Neste contexto, o que é exatamente previdência? Tomemos, por exemplo, a aposentadoria de um as-tronauta, o senhor Márcio Pontes.8 Ele aposentou-se com salário integral aos 43 anos. Como a expectativa de vida do astronauta é de aproximadamente 80 anos, ele usufruirá o benefício por 37 anos. Nosso astro-nauta contribuiu por 30 anos, incluindo o período de estudante. Supondo que, no período de estudante (dos 13 até os 22 anos), ele não tenha contribuído, e no período seguinte (dos 23 até os 32 anos), tenha pago 7% do salário final, e que no último período antes de se aposentar (dos 33 até os 43 anos), tenha contribuído com 11% do salário final, esta aposen-tadoria é equivalente a uma aplicação financeira cujo rendimento fosse de 13,7% ao ano!

Neste cálculo, já estão incorporados os 10% de imposto de renda sobre a aposentadoria que nosso astronauta pagará. Notem, juros reais de quase 14% ao ano por um período de 67 anos (os 80 anos que nosso astronauta viverá menos os 13 anos, quando ingressou no mercado de trabalho). O mesmo tipo de cálculo pode ser feito para a aposentadoria das donas de casa, que o congresso recentemente aprovou: con-tribuição por 10 anos de 10% do salário mínimo com benefício, a partir dos 60 anos, de 100% do salário mínimo. Esta aposentadoria é equivalente a uma apli-cação financeira que rendesse 27% ao ano em termos reais! A conclusão é que o governo paga remunera-ção muito maior para o astronauta do que os juros que o governo paga para os investidores no mercado financeiro. Uma pergunta relevante é: por que a so-ciedade se revolta com os juros pagos aos banqueiros e não com os juros muito mais exorbitante pagos ao nosso astronauta?

Adicionalmente, como bem enfatizado por Zylberstajn (2006), é difícil pensar que o sistema que aposentou nosso astronauta seja de repartição, pois a lógica daquele sistema é a de solidariedade entre os ativos e os inativos. Nosso astronauta, aos 43 anos, no auge de suas capacidades intelectuais e longe da decadência física que o envelhecimento a todos acomete, parece-me bem ativo e animado. De fato, anuncia produtiva e rentável carreira de palestras,

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além de ter participado recentemente de campanha publicitária veiculada na televisão. Decididamente, não está caracterizada a solidariedade entre gerações do sistema de repartição.

Nosso astronauta pertence aos ativos da socieda-de. O mais correto seria afirmar que nosso sistema de aposentadoria constitui um complexo sistema que outorga benefícios e impõe contribuições e impostos gerais, segundo forma em lei. Isto é, Márcio Pontes aposentou-se porque a sociedade, por meio de seus representantes no legislativo, achou que uma pessoa nas condições dele pode (deve, ou merece) receber este benefício. Nós decidimos outorgar benefícios se-gundo critérios muitas vezes aleatórios, socialmente injustos e economicamente ilógicos, e depois saímos por aí, recolhendo tributos para financiar estes bene-fícios. O Gráfico 1 é a melhor representação de nosso sistema previdenciário.9

Conseqüentemente, o conceito de déficit previ-denciário é totalmente destituído de qualquer senti-do econômico. A sociedade outorgou direitos e ela

arrecada. O déficit é nulo por construção; daí, como saber se o gasto com previdência é razoável ou não? Que critério devemos utilizar? Um critério foi suge-rido no parágrafo anterior: tomar cada contrato de trabalho e o benefício implícito nele, fazer a consulta sobre cada benefício previdenciário, e, enfim, calcu-lar a taxa de juros implícita na aposentadoria. Como exemplificado, para muitos benefícios, obteremos va-lores elevados para esta taxa de juros.10

Outro critério possível é olhar a experiência in-ternacional. O cálculo da taxa de juros implícita no contrato previdenciário trata a previdência como uma aplicação financeira, sendo, portanto, uma aná-lise compatível com um sistema fundado. Por ser um sistema de repartição, o mais lógico é compará-lo com outras economias que apresentam pirâmide populacional próxima à nossa. A fração da popula-ção total acima de 65 anos nos fornece uma medida das demandas sobre o sistema. Quanto gastam com previdência economias que apresentam pirâmide po-pulacional próxima à nossa? O Gráfico 1 ilustra que,

gráfico 1

Proporção de Pessoas com 65 anos e mais na População total, por Gastos com seguridade social como Proporção do Pib, segundo Países selecionados

y = 0,9764x - 1,5776R2 = 0,6578

0

5

10

15

20

25

0 2 4 6 8 10 12 14 16 18 20

Proporção de pessoas com 65 anos ou mais na população total (%)

Brasil

Holanda

Bélgica

Chile

Áustria

EUA

México

Argentina Canadá

Alemanha

França

Coréia do Sul

Reino Unido

Irlanda

Israel

Tailândia

Gastos com Seguridade Social como Proporção do PIB (%)

Fonte: Banco Mundial.

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se adotarmos a norma internacional como padrão de comparação, gastamos quase o triplo do que devería-mos, dado a fração da nossa população com mais de 65 anos. Isto é, ainda somos um país relativamente jovem. Se nada for feito quando tivermos a pirâmi-de populacional da Suécia, por exemplo, nosso gasto atingirá os 35% do PIB. Para mantê-lo, supondo que gastaremos 3% do PIB com serviço da dívida e 20% com outros gastos, a carga tributária terá que atingir quase 60% do PIB! Este será o custo por não fazer-mos a reforma previdenciária.

Por que a china cresce tanto?

Anteriormente, foi argumentado que a estratégia de manter o câmbio artificialmente desvalorizado não seria eficaz. Como exemplo, foi comparada a tra-jetória de crescimento da Argentina e do Brasil, e mostrado que ela ainda está recuperando o atraso em conseqüência da grande crise do final dos anos 1990 e início do novo século.

O argumento foi que já temos sinais de que a tra-jetória da Argentina não é sustentável. O mais evi-dente deles é a elevada inflação, apesar de todas as medidas de contenção artificial dos preços. O leitor atento pode replicar que a Argentina não é o melhor exemplo. Muito mais apropriada seria a experiência recente de desenvolvimento da China. Lá, um câmbio bastante desvalorizado, com forte controle de movi-mento de capitais e juros muito baixos sustentam um crescimento vigoroso, sem sinais inflacionários ou de algum desequilíbrio em outro mercado.

A grande dificuldade com esta interpretação é que a China, além das políticas de controle cambial e de movimentos de capitais, adotou outras práticas. Não é imediata a relação de causalidade entre estes dois conjuntos de políticas e a interação deles e o cres-cimento econômico, pois, além destas medidas, que soam heterodoxas, a China apresenta:• mercado de trabalho muito desregulamentado,

fazendo com que a jornada média de trabalho e o número de dias trabalhados em um ano sejam ambos elevadíssimos;

• grande propensão a poupar, chegando a guardar 50% de toda a renda;

• nível médio de escolaridade da população econo-micamente ativa – PEA muito elevado para o seu grau de desenvolvimento.Qualquer modelo de crescimento econômico con-

segue, sem muitas dificuldades, descrever o desenvol-vimento da China. Com uma economia pobre, fato indicativo de que as possibilidades ao crescimento são inúmeras, quem trabalha, poupa e estuda, como eles cresce 10% ao ano com facilidade. Ou seja, do ponto de vista da teoria convencional, não há mistério no crescimento chinês das últimas décadas (YOUNG, 2000). Muito mais difícil é explicar o crescimento brasileiro de 1965 até 1975, por exemplo.

Em linguagem técnica, o crescimento chinês in-corporou poucos ganhos de produtividade. Não há dificuldade em associar sua trajetória de crescimento ao forte esforço que é feito pelos trabalhadores, en-frentando jornadas longas com pouquíssimos dias de férias e feriados, e ao grande esforço de poupança que é feito pelas famílias, seja na acumulação de capi-tal físico quanto humano. Lembremos que, na China, todo o ensino universitário público é pago.

Frente a estas três características – esforço de trabalho, poupança e educacional – as medidas hete-rodoxas de controle cambial e da mobilidade de capi-tais parecem-me um detalhe. É surpreendente que os analistas enfatizem tanto estas duas características e não se preocupem em avaliar o papel das três que são fundamentais ao crescimento.

A questão a saber é: por que motivo os chineses poupam 50% da renda? Esta me parece ser a per-gunta relevante, poderia perfeitamente ser o título desta seção. Não consigo enxergar como as políticas heterodoxas geralmente mencionadas podem ter um papel fundamental nas decisões de poupança das fa-mílias. Qual a relação entre câmbio desvalorizado ou controle de capitais e poupança familiar? Em geral, as pessoas rapidamente aceitam uma explicação cultura-lista: seria traço cultural dos chineses esta forte pro-pensão a poupar. O mais intrigante é que a poupança é muito elevada, mesmo para juros muito baixos ou negativos em termos reais.

Entretanto, o que diz a teoria econômica? Ela su-gere que a poupança depende essencialmente de dois fatores: taxa de juros, sendo, em geral, mais elevada

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quanto maior ela for; e diferença entre a renda cor-rente de um indivíduo e a que ele acredita receber no longo prazo, chamada de renda permanente. Se a renda corrente for maior do que a permanente o in-divíduo poupa a diferença; se for menor e se houver um mercado de crédito eficiente, ele toma empres-tado a diferença. Assim, mesmo que a taxa de juros seja muito baixa ou ainda negativa, é perfeitamente normal um indivíduo poupar se ele acreditar que, no futuro, não terá renda.

Numa economia que não há um sistema previden-ciário de repartição, a única forma de um indivíduo ter renda quando estiver aposentado é poupar duran-te a vida ativa, independentemente dos juros serem muito altos ou baixos. Este é o maior motivo para os chineses e orientais em geral pouparem muito mais do que nós, brasileiros. Estas economias apresentam sistemas previdenciários de repartição muito menos generosos que o nosso. Se um brasileiro viver na Chi-na, ele irá se comportar exatamente da mesma forma. O ser humano responde aos incentivos de maneira muito parecida. Nosso sistema de aposentadoria, por um lado, reduz a renda dos ativos, diminuindo a poupança (dado que de uma renda menor preser-va-se menos) e, por outro, oferece garantia de renda quando aposentado, que é um segundo motivo para desestimular a poupança quando jovem. A resultante destes dois motivos explica perfeitamente nosso bai-xo nível de poupança.11

Apesar de todos estes motivos, o leitor poderia insistir, afirmando que é possível que o controle de capitais tenha desempenhado um papel importante. A resposta é: é possível que sim. A experiência inter-nacional parece dúbia com relação à efetividade de políticas de controle de capital.12 No entanto, é pro-vável que estas medidas sejam mais indicadas a uma economia como a chinesa do que à brasileira.

O benefício do controle de capital é reduzir a va-riabilidade do câmbio. O custo é ter que pagar juros, tudo o mais constante, maiores. Para uma economia que poupa muito e que, conseqüentemente, o capital é abundante, seu custo é baixo, de sorte que ela pode dar-se ao luxo de pagar este preço adicional na cap-tação externa para usufruir o benefício de uma maior estabilidade do câmbio. Tenho certeza de que, se pou-

pássemos 50% do PIB, a mobilidade internacional de capital não seria um assunto muito importante.

conclusão

Gostaria de fazer a defesa da visão de mundo em-butida nas respostas aqui apresentadas. A temas tão diversos quanto a suposta elevada rentabilidade dos bancos em nossa economia, o custo financeiro da dí-vida pública, as condições macro e micro para elevar a taxa de crescimento econômico, o rombo da previ-dência e o crescimento da China, foram formuladas respostas que têm algo em comum. O fato que está ocorrendo, seja o baixo crescimento ou a elevada ren-tabilidade dos bancos, não é fruto de erros sistemá-ticos de política nem do desejo mesquinho de alguns grupos da sociedade, que manipulam o sistema para o seu enriquecimento ou favorecimento. Em nossas explicações, não há vilões óbvios.

Em geral, um fato, mesmo que ruim, é resultado de uma série de medidas que a sociedade, por meio de seus representantes, tomou que produziram, como conseqüência, o fato em tela. Quais motivos fazem com que nossa justiça seja tão lenta, tão pró-devedor e incerta e, finalmente, que haja um número de recur-sos previstos em lei tão elevados? Quem é o culpado? De certa forma, não há um responsável óbvio. Nossa sociedade tem certas crenças que fizeram com que ela escolhesse algumas regras de funcionamento do judiciário. O resultado destas escolhas pode ter sido uma elevada rentabilidade do sistema bancário.

Por que um país tão jovem quanto o nosso poupa tão pouco? A sociedade, por meio de seus represen-tantes, escolheu um sistema de previdência que gerou este resultado. Quem é o responsável? O imperialis-mo internacional, o capital estrangeiro, as multina-cionais, os empresários ou os banqueiros? Nenhum destes atores. A baixa poupança foi uma opção de nossa sociedade. Evidentemente, este resultado tem impactos sobre juros, câmbio e crescimento eco-nômico. Analogamente, preferimos investir muitos recursos nos idosos e poucos nas crianças.13 Num passado mais distante, também escolhemos investir pouco nas crianças (lembremos que, nos anos 1950, metade delas estava fora da escola, e que a universa-

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lização do ensino fundamental somente ocorreu em meados dos anos 1990, com 120 anos de atraso em comparação aos países da Organização para Coope-ração e Desenvolvimento Econômico – OCDE) para priorizar subsídios à acumulação de capital privado, na estatização dos setores de infra-estrutura e na construção de Brasília. Estas escolhas tiveram forte impacto sobre a posterior explosão demográfica,14

favelização em nossas grandes metrópoles e sobre a criminalidade.

Para que tenhamos um debate amadurecido sobre nossas mazelas, o primeiro passo é exorcizarmos os inimigos óbvios e deixar de aceitarmos, sem escrutí-nio rigoroso, explicações maniqueístas ou conspira-tórias. O objetivo deste artigo singelo foi contribuir neste sentido.

notas

Agradeço os comentários de Luis Eduardo Afonso, Paulo Ma-duro Junior e Pedro Cavalcanti Ferreira. Evidentemente, erros e omissões remanescentes são de total responsabilidade do autor. 1. A argumentação abaixo se beneficiou de conversas com João Manuel Pinho de Mello, do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ.2. Para uma análise das funções de um Banco Central e um escrutínio dos prós e contras à separação entre a autoridade monetária e a agência responsável pela supervisão e regulação bancária ver Gabinete do Senador Tasso Jereissati, Assessoria Econômica (2005).3. Evidentemente, neste exercício, estou supondo que, além da redução dos juros, a política fiscal se torne mais frouxa re-duzindo o primário. Somente assim é possível empregar a eco-nomia com o pagamento de juros na elevação do gasto em ou-tras rubricas. Se os juros reais caírem sem alteração da política fiscal, a economia com o pagamento de juros será empregada na recompra da dívida, aumentando a velocidade de redução desta, com impactos muito benéficos sobre o equilíbrio da economia.4. Artigo de Alex Ribeiro no jornal Valor Econômico (24 ago. 2006) apontava que “Apesar dos esforços da Caixa para ampliar o crédito, a maior parte das receitas continua a vir da carteira de títulos públicos. Os ativos de tesouraria, que somam R$ 66,216 bilhões, proporcionaram receita de R$ 7,755 bilhões no semes-tre, ou 43% da renda total do banco”.5. Evidentemente, este não será o caso se estes títulos forem de longo prazo.6. Não digo que o diferencial de juros interno-externo não tem papel na determinação do câmbio. Afirmo que a variação

observada no câmbio nos últimos anos reduzindo-se de um patamar da ordem de 2,8 para 2,2 foi produzida por uma varia-ção dos termos de intercâmbio, e não pela variação dos juros.

7. Ver seções seguintes.

8. Ver artigo de Zylberstajn (2006, p. B2).

9. Agradeço a Hélio Zilberstajn e Luís Eduardo Afonso por terem gentilmente cedido sua tabela preparada com os dados disponibilizados pelo Banco Mundial.

10. Para uma avaliação sistemática de nosso sistema previdenciá-rio seguindo estas linhas ver Afonso e Fernandes (2005).

11. Não há mistério na elevada capacidade de poupança dos asiáticos nem na baixa capacidade de poupança dos brasileiros. No entanto, mesmo quando comparamos a China com outras economias do leste asiático, parece-nos que ela poupa ainda mais (enquanto as outras economias poupam cerca de 35% do PIB, a China chega a 50%). O motivo, muito provavelmente, deve-se aos diferentes incentivos à reprodução que vigora nes-tes países. O governo chinês penaliza fortemente o segundo filho. Uma forma de poupar para o futuro é ter filhos. Dado que é muito caro ter o segundo filho na China em relação aos demais países do leste asiático, a poupança pela via do mercado de bens – consumindo menos do que a renda – compensa o alto custo da poupança pela via reprodutiva. Não há mistério. Se os incentivos são distintos, o comportamento será diferente mesmo entre os asiáticos.

12. De fato, não há grande evidência para nenhum dos lados. Também é verdade que a integração financeira não eleva ne-cessariamente a taxa de crescimento de longo prazo. Ver Pra-sad et al. (2004).

13. Ver, por exemplo, Camargo (2004).

14. A escolaridade reduz muito o número de filhos por mulher e, principalmente, a gravidez precoce.

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referências Bibliográficas

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ZYLBERSTAJN, H. O astronauta se aposenta e as contas públicas vão para o espaço. O Estado de S.Paulo, São Paulo, p. B2, 3 jun. 2006.

Samuel de abreu PeSSôa

Professor da Fundação Getúlio Vargas – RJ e Pesquisador do Ibre-FGV/RJ.

Artigo recebido em 21 de agosto de 2006. Aprovado em 25 de setembro de 2006.

Como citar o artigo:PESSOA, S.A. Seis perguntas para se pensar em um ano eleitoral. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 20, n. 3, p. 25-37, jul./set. 2006. Disponível em: <http://www.seade.gov.br>; < http://www.scielo.br>.

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O Brasil, ademais de outras condições, necessita man-ter, por cerca de 20 anos, uma taxa anual de crescimento econômico não inferior a 6%; um satisfatório patamar de desenvolvimento sustentável. Contrastando com essa necessidade, o país tem apresentado taxas insignificantes de crescimento anual. Impõe-se, assim, esclarecer três questões: Por que são mantidas taxas de crescimento extrema-mente baixas? Por que necessita o Brasil de um crescimento econômico anual não inferior a 6%? Dentro de que condições, finalmente, poderá o país acelerar seu crescimento econômico e, a partir deste, empreender, sustenta-velmente, um vigoroso esforço de desenvolvimento econômico-tecnológico e sociocultural?

O Brasil está praticamente estagnado desde a década de 1980. O país experimentou um desenvolvimento acelerado da década de 1950 à de 1970. A partir do período seguinte, entrou em prolongada estagnação e nela se mantém. A que se deve essa estagnação? Uma análise abrangente dessa questão envolveria uma gama muito ampla de problemas, de caráter multidisciplinar, indo do plano econômico ao sociopolítico e cultural, além de correspondentes esforços de quantificação. Neste breve estudo, intenta-se uma abordagem simplificada da questão, por meio de perspectiva predominantemente histórico-sociológica.

Resumo: O artigo mostra como o Brasil encontra-se praticamente estagnado desde a década de 1980, discute a indispensabilidade da regulação estatal da economia e apresenta a necessidade de reformas políticas, sociais, culturais e tecnológicas,

para transformar não só a economia em desenvolvida, mas também seus cidadãos.

Palavras-chave: Estagnação. Autonomia. Reforma política e social.

Abstract: This article shows as the Brazil rests almost stagnated since the 80´s, it argues the indispensability of the state regulation of the economy and reveals the necessity of social, political, cultural and technological reforms, not only to transform the economy into developed, but also its citizens.

Key words: Stagnation. Autonomy. Social and political reforms.

ATUAL PROBLEMA DO DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO

Helio Jaguaribe

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No centro da questão se encontra a ampla medida em que a ideologia neoliberal, a partir do pensamento anglo-saxônico, das pressões do mercado financeiro internacional e das diretrizes de Washington, exerceu a mais profunda influência na América Latina e do-minou as equipes responsáveis pela condução finan-ceira do Brasil, no curso dos últimos 25 anos.

A ideologia neoliberal teria seu código de condu-ta no chamado Consenso de Washington. Este con-tém um conjunto de dez prescrições macroeconô-micas, as cinco primeiras basicamente corretas. As outras, que se apresentam como requisito necessário à eficácia das precedentes, são de caráter puramente ideológico. Essa íntima combinação entre “boa eco-nomia” e “pura ideologia” é a característica central do neoliberalismo. Sua enorme influência na Amé-rica Latina se deve ao fato de que, nos últimos 30 anos, os bons economistas da região se formaram em universidades americanas e lá receberam, com boas lições de economia, a supostamente indispen-sável dose de ideologia neoliberal.

Os aspectos positivos da ciência econômica mi-nistrada nas universidades americanas consistem na ênfase sobre a necessidade de manter o equilíbrio das principais variáveis macroeconômicas, relativas à taxa de câmbio, à moeda e às finanças públicas. O conteú-do ideológico, apresentado como condição necessá-ria para se manter tal equilíbrio, consiste em erigir a liberdade de mercado como requisito fundamental. Isso importa na não diferenciação entre mercado doméstico e internacional, e entre capital nacional e estrangeiro. Importa também na total abertura do mercado doméstico ao internacional, na não regula-ção, pelo Estado, da atividade econômica, bem como na convicção de que o livre jogo dos agentes privados – nacional e internacionalmente – assegura o desejá-vel equilíbrio macroeconômico e, decorrentemente, o desenvolvimento econômico do país.

Observemos, à margem dessas considerações, que se entende como indispensável que o desejado equilíbrio das variáveis macroeconômicas seja efetu-ado em termos anuais. Entende-se, igualmente, por via de conseqüência, que o imperativo absoluto de tal equilíbrio consiste em se manter a taxa anual de inflação próxima a zero e nunca acima de algo como

5%, bem como um elevado superávit primário, da ordem de 4% do produto interno bruto – PIB. Para tanto, dever-se-á proceder, por um lado, à mais estri-ta contenção da despesa pública e, por outro, a uma elevação da taxa de juros, tão desestimulante quanto o que se revele necessário para reduzir a inflação a ní-veis máximos da ordem de 5%. A taxa básica de juros brasileiros, que chegou a quase 20% ao ano, resultou dessa convicção.

A domesticação dos economistas brasileiros – e, em geral, latino-americanos, com exceção da Vene-zuela e, naturalmente, de Cuba – pelo Consenso de Washington, corresponde aos interesses dos agentes financeiros, tanto domésticos como internacionais. A integração do mercado doméstico com o internacio-nal se dá plenamente no domínio financeiro. Na ver-dade, somente neste, porque o intercâmbio comercial entre países continua fortemente assimétrico. Essa integração financeira, além dos fundamentos teóricos dados pelo neoliberalismo, se baseia no interesse do mercado financeiro doméstico de dispor do melhor acesso possível ao internacional, para obtenção de créditos e para atração de investimentos. O mercado financeiro internacional, de seu lado, favorece essa integração, tendo em vista, entre outros aspectos, seu interesse em se beneficiar dos juros astronômicos obteníveis no Brasil bem como preservar a livre mo-vimentação de suas inversões.

A conjugação da orientação neoliberal da econo-mia brasileira com a integração dos mercados finan-ceiros doméstico e internacional tem por resultado a estagnação crônica de nossa economia. Para produzir essa estagnação, se conjugam três principais fatores: juros astronômicos, agravados por excessiva carga tri-butária; anualização do equilíbrio macroeconômico; e desregulação estatal da economia.

Juros anuais de quase 20% inviabilizam a utiliza-ção do crédito como fator de produção. É certo que, mais recentemente, o Banco Nacional de Desenvol-vimento Econômico e Social – BNDES tem feito empréstimos de longo prazo para determinados projetos, a juros significativamente menores. Esse corretivo, ainda que bem-vindo, é nitidamente insu-ficiente para possibilitar que o crédito, como ocorre onde as taxas de juros são extremamente baixas, seja

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40 HELIO JAgUARIBE

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um fator de produção. Os juros, além da excessiva carga tributária e do exagerado superávit primário, são o principal fator de estagnação da economia privada, cuja expansão – por esse motivo, extrema-mente modesta – depende, quase exclusivamente, da reinverção de lucros. Acrescente-se que o atrativo de juros astronômicos conduz muitos empresários a desviar significativa parcela de seus lucros para a especulação financeira.

Considerando a outra faceta da economia, a pública, observaremos, ainda no tocante às taxas astro-nômicas de juros, que o forte endividamento interno da União conduz esta a despender, com juros, mais de 20% de sua despesa total. Isto significa que cerca de R$ 140 bilhões da receita federal são anualmente desviados para pagamento de juros. Fossem estes 50% mais baixos, como seria razoável, ter-se-ia em poder da União um significativo montante – da ordem de R$ 70 bilhões por ano – para inversões prioritárias. O excessivo superávit primário, que poderia provavelmente ser fixado em 3% do PIB, em vez de maior de 4%, é outro fator da estagnação.

A anualização do equilíbrio macroeconômico é outra das causas da estagnação. Com efeito, o prazo no curso do qual se busque manter esse equilíbrio tem efeitos diferentes, conforme se trate de econo-mias desenvolvidas ou de economias emergentes. Naquelas, as taxas de crescimento anual alcançáveis dentro desse regime, da ordem de 2 a 3%, são satisfa-tórias para a preservação do nível econômico do país, já extremamente elevado.

Para um país que necessita de um acelerado cresci-mento econômico, essas taxas são estagnadoras. Um país como o Brasil necessita substituir, urgentemen-te, o modelo estático de equilíbrio macroeconômico, por um dinâmico. A indispensabilidade do equilíbrio macroeconômico não postula, necessariamente, sua anualização. Em um país com ciclo político quadrie-nal, um modelo dinâmico de equilíbrio macroeco-nômico deve ser também quadrienal. Isto significa que, no início de cada quadriênio e dentro de estritas condições de controle – notadamente no referente ao gasto público –, permite-se um criativo desequilíbrio gerador de inversões de alta prioridade, concebido de tal sorte que, no quarto ano desse regime, restau-

re-se o necessário equilíbrio macroeconômico, num patamar econômico significativamente mais elevado. Desta forma, o processo poderá ser controladamente repetido no quadriênio seguinte. Essa experiência foi exitosamente empreendida pelo governo Kubitschek, que logrou converter, em cinco anos, uma economia agrária no que seria a mais avançada economia indus-trial do Terceiro Mundo, ao preço de uma taxa média de inflação da ordem de 20%. Essa é reconhecida, por Stiglitz e outros eminentes economistas, como perfeitamente aceitável, quando derivada de forte crescimento econômico.

Caberia, ainda, nesta sucinta análise das causas da estagnação brasileira, mencionar a importante quota de responsabilidade decorrente da imobilização ideo-lógica do Estado. Diversamente do que alegam os neoliberais, nenhuma economia é possível sem regu-lação do Estado. Isso ocorre amplamente em todos os países desenvolvidos, por meio de inúmeras mo-dalidades.

Ressaltemos, apenas a título ilustrativo, que os Estados Unidos da América – a maior economia do mundo –, não permitem que o capital estrangeiro controle mais do que uma parcela de 30% de seu sis-tema produtivo. Esse mesmo país adota, por um lado, um amplíssimo programa protecionista, que abrange tanto a imposição de quotas limitativas da importação de produtos concorrentes como a concessão de imen-sos subsídios agrícolas. Por outro lado, por meio de contratos do Pentágono, financia e subsidia, em nome da defesa nacional, o desenvolvimento tecnológico do país, incluindo a produção de grandes aviões, em competição com os europeus.

É de citar-se que a indispensabilidade da regulação estatal da economia não significa sua estatização. São inúmeras, com efeito, as necessidades dessa regulação dentro de uma economia de mercado. Consideremos somente dois aspectos: o relativo a um apropriado fluxo doméstico de inversões e o que diz respeito ao capital estrangeiro. Não procede a tese liberal de que o mercado automaticamente assegure uma satisfató-ria orientação aos fluxos financeiros. São freqüentes as condições que conduzem ao excessivo encaminha-mento dos recursos disponíveis para um determinado setor, gerando superproduções e decorrentes crises.

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Num país como o Brasil, a preferência por aplicações meramente financeiras, face a juros astronômicos, es-teriliza importante parcela dos recursos nacionais, em detrimento do desenvolvimento. A intervenção regu-latória e corretiva do Estado é, assim, indispensável.

É igualmente indispensável a regulação estatal do capital estrangeiro. O tema é cercado de carga ideoló-gica, tanto no sentido negativo, de demonizar o capi-tal estrangeiro, como positivo, de lhe atribuir virtudes que não tem ou omitir defeitos que apresenta. Uma abordagem objetiva da matéria requer a distinção de dois aspectos: o que se refere ao saldo líquido de uma inversão estrangeira e o que diz respeito à relação do capital com a tecnologia.

No que diz respeito aos efeitos finais da inversão estrangeira, o que está em jogo é a medida em que o custo cambial da inversão, decorrente da remessa de lucros e de outras transferências para o exterior, seja satisfatoriamente compensado pelos benefícios gera-dos pela inversão. Inversões que trazem importante contribuição tecnológica ou que satisfazem setores da demanda doméstica previamente dependentes de importações são positivas, sendo negativas as que não atendem a tais requisitos. Assim, ocorre, de modo ge-ral, com inversões em áreas de serviços, como segu-ros e bancos, que podem ser plenamente atendidas por capital doméstico. O fato de não haver, no Brasil, nenhuma discriminação a esse respeito responde por uma parcela de nossa estagnação econômica.

O outro aspecto a considerar se refere à relação en-tre capital e tecnologia. O principal inconveniente do capital estrangeiro é o fato de que na medida em que depende de importantes insumos tecnológicos, deles se abastece exclusivamente no país de sua matriz ou outro centro estrangeiro. Essa é uma das principais razões da falta de progresso tecnológico em países como o Brasil. As universidades e outros centros pro-duzem boa tecnologia, mas não encontram mercado para ela. Mais uma vez, como no que concerne ao custo cambial, uma regulação competente do capital estrangeiro – de que carece completamente o Brasil – precisa levar em conta o fato de que a inversão é induzida ao uso de tecnologia nacional ou, por outro lado, que compensa, por sua contribuição à economia do país, sua dependência de tecnologia estrangeira.

DESENVOLVIMENTO

Vistas assim, de modo geral, as principais causas da estagnação brasileira, importa agora elucidar, ainda que sucintamente, por que necessitamos de elevadas taxas anuais de crescimento econômico? A questão apresenta um aspecto óbvio. Na medida em que um país se encontra em estado de subdesenvolvimento em relação aos países centrais, é óbvia a necessidade de que se ressinta de acelerar seu crescimento, para reduzir e desejavelmente eliminar a diferença.

Nas atuais condições do mundo, entretanto, a matéria apresenta um agravante decisivo. Trata-se do fato de que o processo de globalização, exacer-bado pelo unilateralismo do governo americano, está reduzindo, drástica e aceleradamente, o espaço de permissibilidade internacional de que ainda gozam os países subdesenvolvidos. Economicamente, estes estão se tornando meros segmentos indiferenciados do mercado internacional e, politicamente, províncias do Império Americano. Nessas condições, um país como o Brasil dispõe de um prazo historicamente muito curto, de não mais de 20 anos, para lograr atin-gir, com autonomia e sustentabilidade, um patamar de desenvolvimento satisfatório. Se não se encami-nhar nessa direção aceleradamente, perderá, bem antes do referido prazo, sua autonomia nacional.

É importante levar em conta que o Império Americano, distintamente dos impérios históricos – do romano ao britânico –, não é propriamente um império e, sim, um campo gravitacional. Os impérios históricos se caracterizam pelo aspecto formal de seu predomínio, exercido nas províncias por um proconsul ou vice-rei, com apoio de contingentes militares e burocráticos da metrópole. O Império Americano atua como um campo, em sentido análogo ao que empregamos quando falamos de campo gravitacional ou magnético. Os aspectos formais da soberania das províncias são mantidos: hino, bandeira, exércitos de parada e até eleições, nos países democráticos. O poder do império se exerce, indireta mas eficazmente, por intermédio de irresistíveis constrangimentos financeiros, econômicos, tecnológicos, culturais, políti-cos e, quando necessário, militares. Esses constran-gimentos compelem os dirigentes locais a seguir a

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linha do império, o queiram ou não. Esta é exercida pelas multinacionais, americanas ou americanizadas, que controlam a economia das províncias e, na cúpula do sistema, pelas diretrizes de Washington.

Os países europeus, apesar de seu alto nível de desenvolvimento, tiveram de se agremiar na União Européia para preservar suas identidades e destinos nacionais. Países semicontinentais, como China e Ín-dia, logram manter individualmente sua autonomia; contudo, para tanto, são compelidos a sustentar altas taxas anuais de crescimento.

O Brasil se encontra nessa mesma situação. Para preservar sua identidade nacional e seu destino his-tórico, necessita manter anualmente, por cerca de 20 anos, um acelerado crescimento econômico, median-te o qual possa promover seu desenvolvimento geral, ademais de outras condições. Segundo competente estimativa feita por Goldman Sachs, no Paper n. 99, de 1-X-03,1 o Brasil necessita de taxas de crescimento anual superiores a 6%, de 2005 a 2020, podendo, no curso das décadas seguintes, crescer a taxas ligeira-mente menores, até alcançar, em 2025, o PIB da Itá-lia, em 2035, o da França, e, em 2040, o da Alemanha e do Reino Unido.

Altas taxas anuais de crescimento econômico são indispensáveis, embora isoladamente insuficientes, para a promoção do desenvolvimento. Permitem a formação de excedentes suficientemente significa-tivos para o desenvolvimento econômico, social e cultural, embora dependam de conveniente gestão política e apropriada inserção internacional.

Caso se mantenha, no último qüinqüênio da pre-sente década, a relativa estagnação brasileira, com taxas anuais de crescimento econômico inferiores a 6%, o futuro histórico do país ficará severa e, possi-velmente, irremediavelmente ameaçado. O Brasil se defronta com a urgente necessidade de uma “velo-cidade de escape”, como um foguete para lançar em órbita um satélite. Prosseguir em velocidade inferior à de escape é igual a ficar parado.

REQUISITOS

Como previamente mencionado, uma elevada taxa anu-al de crescimento econômico é condição necessária para

o desenvolvimento brasileiro, mas, isoladamente, não é suficiente. Ademais de uma taxa anual de crescimento não inferior a 6%, durante cerca de 20 anos, o Brasil precisa dar satisfatório atendimento a outros requisitos, tanto de ordem doméstica como internacional.

Os requisitos de ordem doméstica são fundamen-talmente os seguintes:• ampla e profunda renovação das instituições regu-

ladoras da vida política do país e, em decorrência, da classe política e dos partidos políticos;

• substituição do atual modelo econômico de equi-líbrio estático por um modelo fortemente desen-volvimentista, que assegure, sustentavelmente, um crescimento anual não inferior a 6%; e

• prioridade para a reforma social e cultural, con-ducente à erradicação da ignorância e da miséria, à significativa redução das diferenças sociais e à formação de um importante setor de alta compe-tência cultural e técnica.Os quesitos de ordem internacional se referem à

necessidade:• de uma importante revisão do nosso relaciona-

mento com o mercado financeiro e internacional;• da formação de um ambiente internacional favo-

rável à emergência do Brasil; e • da consolidação do Mercosul e da Comunidade

Sul-americana e Nações, tendo por base uma só-lida, confiável e reciprocamente benéfica aliança estratégica do Brasil com a Argentina.

Dimensão Doméstica

Reforma PolíticaOs escândalos revelados no segundo semestre de 2005, com relação à ampla rede de ilícitas apropriação e utilização de recursos públicos para fins partidários e outros, por parte de dirigentes do Partido dos Tra-balhadores – PT e do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, vieram trazer à tona a urgente necessidade de uma profunda reforma das instituições regulado-ras do sistema político brasileiro. Para o exercício do regime democrático, um país como o Brasil já se de-fronta com o fato de que pelo menos um terço da sua população, que está em estado de total ignorância e profunda miséria, não dispõe de condições para o

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desempenho das funções da cidadania. Se, a essas de-ficiências de base, se somarem sérias deficiências no regime regulatório das eleições e da atividade partidá-ria, chegaremos a situações como a que foi revelada pelos inquéritos instituídos no período anteriormente referido. O resultado é a formação, no Brasil, de uma das piores classes políticas do mundo, sendo surpre-endente que, em tais condições, possam emergir al-guns poucos homens públicos de boa qualidade.

É objeto de amplo consenso, entre os estudiosos da questão, a necessidade da adoção do regime eleitoral distrital, puro ou misto, da imposição da mais severa disciplina na forma de financiamento das eleições, do estabelecimento de rigorosa exigência de fidelidade partidária e da instituição de um sistema pelo qual se nenhum partido, numa determinada legislatura, ob-tiver satisfatória maioria, se constitua uma coligação partidária majoritária, dotada de programa e liderança únicas, para todo o curso da legislatura.

Nada de válido poderá ser feito no Brasil se não houver uma ampla e profunda reforma política. A Constituição de 1988 instituiu uma democracia de clientela. Dela, nada se pode esperar. Importa cons-tituir uma efetiva democracia representativa, como condição de possibilidade para que o Brasil funcione em termos minimamente satisfatórios.

Modelo EconômicoA ampla contaminação dos economistas brasileiros – e, de um modo geral, latino-americanos – pelo neo-liberalismo anglo-saxão levou o Brasil, explicita ou im-plicitamente, à estagnação precedentemente discutida. Se nenhuma condução séria do país pode ser esperada sem o procedimento prévio de uma ampla e profunda reforma das instituições reguladoras de nossa vida po-lítica, nada também poderá ser esperado se não subs-tituirmos o atual modelo econômico estagnador, pelo qual temos sido regulados nos últimos 25 anos, por um novo modelo de caráter desenvolvimentista.

Não é verdade que o objetivo supremo da econo-mia seja o equilíbrio anual das principais macrovariá-veis. Para um país emergente, tal qual o Brasil, o objetivo supremo é alcançar, sustentavelmente, uma alta taxa anual de crescimento econômico, a partir da qual se promova um desenvolvimento acelerado.

O nacional-desenvolvimentismo, proposto nos anos 1950 pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros – Iseb, conduziu aos êxitos do segundo governo de Getúlio Vargas e ao sucesso do governo de Juscelino Kubitschek. Trata-se, atualmente, de ajustar o proje-to desenvolvimentista às novas condições do mundo. Em última análise, ocorre que a nação, com exceção de países continentais como China e Índia, se tornou um espaço insuficiente para nela se fundar, exclusivamen-te, um projeto de desenvolvimento. Impõe-se, para o Brasil, um novo projeto regional-desenvolvimentista. É a partir da consolidação do Mercosul e, com base neste, da Comunidade Sul-americana de Nações, que o Brasil pode empreender, com os demais países da região, um grande projeto de desenvolvimento. Isto requer um novo modelo econômico, que substitua o princípio do macroequilíbrio estático por uma versão dinâmica, em que o equilíbrio macroeconômico seja alcançável quadrienalmente e não anualmente, e em que se con-juguem os esforços regionais de desenvolvimento aos puramente nacionais.

Para esse efeito, é crucial a aliança estratégica do Brasil com a Argentina, em termos reciprocamente benéficos. Nenhum dos dois países dispõe, presen-temente, de condições para sustentar, isoladamente, seu destino histórico e sua identidade nacional. Con-jugadamente, eles já constituem uma força interna-cionalmente importante e tenderão a operar como consolidadores do Mercosul e da Comunidade Sul-americana de Nações.

Prioridade para o Social Mais do que subdesenvolvido, o Brasil é um país so-cialmente desequilibrado e, desse desequilíbrio, é que decorre seu subdesenvolvimento. O desequilíbrio so-cial brasileiro tem origem histórica; é proveniente do fato de que, até recentemente – até Kubitschek –, o Brasil consistiu numa grande fazenda tropical, explo-rada, até fins do século XIX, pelo braço escravo e, a partir de então, por um campesinato miserável, sub-remunerado e deseducado.

Não se tendo promovido, oportunamente, uma grande reforma agrária, crescentes massas rurais se deslocaram, a partir da década de 1970, para as gran-des metrópoles – notadamente Rio de Janeiro e São

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Paulo. Nelas se estabeleceram, porém sem condições para o exercício de um trabalho minimamente qua-lificado, gerando os imensos anéis de marginalidade que cercam e asfixiam nossas metrópoles. Esse perfil social, ademais de profundamente injusto, é absoluta-mente inviável. Ou o Brasil supera a marginalidade e a incorpora à cidadania ou a marginalidade asfixiará o Brasil em não longo prazo.

O problema do desenvolvimento brasileiro, assim, não é puramente econômico, mas consiste, essencial-mente, na criação de um desenvolvimento econômi-co apto a incorporar, com a possível celeridade, as grandes massas marginais a níveis toleráveis de vida e a converter seus membros em cidadãos brasileiros.

Consiste, igualmente, num outro extremo da ques-tão, na formação de um amplo quadro de pessoas de alta qualificação cultural e tecnológica. As universi-dades brasileiras foram submetidas, depois da rede-mocratização do país com a Constituição de 1988, ao crescente predomínio de um “baixo clero”, que pro-move, em nome da “democracia”, a mediocrização da cultura. Se essa tendência não for oportunamente revertida, vamos criar uma nova e pior marginalida-de, a dos bacharéis incompetentes. É indispensável e urgente restabelecer o princípio de excelência na vida universitária e nela criar instituições de altos estudos e pesquisa que conduzam à formação de quadros de alta capacidade científica e tecnológica. O mundo contemporâneo é um mundo da informação e do sa-ber, de que ficarão excluídos os que não alcançarem alto nível nesses domínios.

Dimensão internacional

O patamar de satisfatório desenvolvimento susten-tável, a ser desejavelmente atingido pelo Brasil, no curso dos próximos 20 anos, não depende apenas de medidas domésticas, mas, igualmente, do atendi-mento satisfatório de alguns requisitos internacionais fundamentais. Como precedentemente referido, tais requisitos são principalmente de três ordens:• revisão da atual modalidade de nossa inserção no

mercado financeiro internacional; • formação de um ambiente internacional favorável

ao Brasil;

• consolidação do Mercosul e da Comunidade Sul-americana de Nações, tendo por base uma sólida, confiável e reciprocamente benéfica aliança estra-tégica com a Argentina.

Mercado Internacional Nossa atual inserção no mercado financeiro inter-nacional requer ampla revisão. Reconhecidamente, nenhuma economia de mercado pode se isolar no cenário financeiro internacional. Há, todavia, várias modalidades pelas quais essa inserção pode aconte-cer. A esse respeito importa, basicamente, diferenciar o tipo da inserção internacional que convém a um país plenamente desenvolvido da que convém a um emergente.

Aos desenvolvidos convém uma inserção aberta, que assegure plena liberdade às transações entre esse país e o mercado financeiro internacional. Preconi-zar o mesmo regime para países emergentes, como o Brasil, significa submetê-los à lógica de um mercado significativamente mais poderoso que o doméstico, mantendo este sob o domínio daquele. Para um país emergente, que adote uma economia social de merca-do, como convém ao Brasil, sua inserção no mercado financeiro internacional tem de ser seletiva e consis-tentemente orientada para otimizar vantagens e mi-nimizar custos. Isto só pode ser feito submetendo-se essa inserção ao controle do Estado nacional. Há inversões estrangeiras que interessam, e outras que não. Há modalidades de ingresso de capitais que são favoráveis, e outros, detrimentais. O atual regime de inserção do Brasil no mercado financeiro nos é extre-mamente desfavorável e constitui um dos importan-tes fatores de nossa estagnação.

Países como China, Índia e Malásia, para citar exemplos ilustrativos, mantêm inserção seletiva no mercado financeiro internacional, o que, ademais de outros fatores, lhes permite altas taxas anuais de crescimento.

A indispensável regulamentação de nossa inser-ção no mercado financeiro internacional requer, previamente, ampla discussão técnica da questão. Trata-se de algo que tem de ser muito bem feito. Mas também de algo que suscitará grandes resis-tências internacionais e domésticas. Para enfrentar

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essas resistências, o governo precisa estar tecnica-mente bem equipado e satisfatoriamente apoiado pela opinião pública doméstica, importando, para esse efeito, sua prévia preparação.

Ambiente Favorável É essencial, para países de maior dimensão, dispor de um ambiente internacional favorável. A formação de tal ambiente depende, naturalmente, de muitas condições e varia conforme o país considera outro em função de tais condições. Sem dar à questão mais ampla elaboração, pode-se reconhecer como funda-mental, para esse objetivo, lograr uma imagem cultu-ral internacional favorável. Deve-se à cultura helêni-ca o prestígio contemporâneo e histórico da Grécia. O mesmo pode ser dito da Itália, em relação ao seu Renascimento, e da França, em função da Ilustração.

Em nossos dias, é importante se reconhecer à medida que países latino-americanos, como o Mé-xico, logram uma imagem internacional extrema-mente favorável, pela inteligente divulgação de sua cultura. Um país como o Brasil, cujo acervo cultu-ral é significativo, não tem logrado o mesmo êxi-to, sendo conhecido, algo depreciativamente, pelo carnaval e pelo futebol, mais do que por qualquer outra de suas características.

Algo de positivo está sendo espontaneamente alcançado pela crescente difusão da música popular brasileira. Não tem preço o benefício para a imagem internacional do Brasil que lhe é dado pela canção Garota de Ipanema. Não obstante esse processo espon-tâneo, é preciso levar em conta que a difusão de ima-gens culturais positivas por um país depende, além das qualidades de sua cultura, da capacidade promo-cional de que disponha. A esse respeito, considere-mos a enorme verba com que conta a França para a promoção de sua cultura e, na América Latina, o México, que investe na promoção cultural cerca de dez vezes mais que o Brasil.

É significativo, a esse respeito, o fato de que a menor verba orçamentária da União se destina ao Ministério da Cultura. Ousaríamos dizer que cada dólar investido na promoção cultural do Brasil vale mais do que cem dólares investidos na promoção turística. Complementarmente, a melhor propaganda

turística é a cultural, desde que acompanhada da comunicação de facilidades logísticas.

América do Sul O Tratado de Assunção, de 1991, representa a culmi-nação de um exitoso esforço de integração no sul do continente. Os resultados do Mercosul foram extraor-dinários, conduzindo à decuplicação do intercâmbio entre os signatários. Cerca de 15% das exportações brasileiras, 30% das argentinas e 50% das paraguaias e uruguaias se destinam à sub-região.

Nos últimos anos, todavia, nota-se significativo declínio da importância do Mercosul. Isto se deve, predominantemente, à mentalidade neoliberal que contaminou a região e conduziu o Mercosul a operar principalmente como um sistema de intercâmbio de mercadorias e serviços, mais do que como um instru-mento de desenvolvimento sub-regional.

Reduzido a um sistema de intercâmbio, o Merco-sul sofre os efeitos da assimetria econômica existente entre seus membros. Daí a crescente demanda de sal-vaguardas restritivas desse intercâmbio, notadamen-te de parte da Argentina, em relação ao Brasil, e do Paraguai, em relação a seus dois maiores vizinhos. O Mercosul não tem futuro se não voltar a ser concebi-do como um sistema de otimização econômica para todos os partícipes. A chave disto consiste num pro-grama comum de industrialização.

Se o Mercosul se firmar, tenderá à consolidação da Comunidade Sul-americana de Nações. Desta de-pende a formação, na América do Sul, de um siste-ma econômico, com seus correlatos políticos, apto a enfrentar os desafios da globalização, no curso deste incipiente século XXI. A chave do êxito do Merco-sul e da Comunidade Sul-americana de Nações é a instituição de uma sólida, confiável e reciprocamente benéfica aliança argentino-brasileira.

Atualmente, a necessidade dessa aliança constitui matéria de consenso verbal entre os setores compe-tentes do Brasil e da Argentina. A prática da mesma, todavia, está ainda muito distante, pois não passa do declaratório para o operatório. Na medida em que não se o faça, os inevitáveis conflitos microeconômi-cos entre países que se integram minam seriamente o projeto integracionista.

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Para o Brasil, no plano integracional, nada é mais urgente do que passar a aliança argentino-brasileira do declaratório para o operatório. Em última análise, isto requer duas distintas ordens de providências. Por um lado, é urgente que se estabeleça, operacionalmente, um programa industrial comum. O Brasil precisa par-ticipar ativamente da reindustrialização da Argentina e estabelecer um programa industrial comum, com apropriada articulação das cadeias produtivas.

Por outro lado, a questão envolve uma complexa dimensão psicológica, sem o reconhecimento da qual nada se poderá fazer. Trata-se, do lado brasileiro, de reconhecer a inadequação de todas as iniciativas de auto-assumir lideranças na região.

Lideranças só são possíveis por delegação delibe-rada dos parceiros, na medida em que reconheçam que tal condução lhes convém. Lideranças auto-assu-midas, como faz o Brasil, são simplesmente catastró-ficas. Uma ilustração disso é a pretensão brasileira a um posto permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Assumida unilateralmente, essa pre-tensão suscita inevitável oposição da Argentina. Num

caso como esse, o que importa fazer é algo completa-mente diferente. Consiste em convidar, efetivamente, a Argentina a participar da possibilidade de ocupar esse posto e colocar o assunto em votação no âmbito da América do Sul, com a indicação de que aquele dos dois países que vier a ser preferido representará efetivamente o outro.

Do lado argentino, é necessário que se tome cons-ciência de que o ressentimento, em relação ao Brasil, é algo de negativo para todos. Esse ressentimento não pode subsistir na medida em que o Brasil se sub-meta a um regime de consultas mútuas e opere não isoladamente, mas por delegação de seus parceiros.

O conveniente atendimento dos requisitos opera-cionais de que depende a consolidação da aliança ar-gentino-brasileira é condição sine qua non do êxito his-tórico de ambos. Essa aliança é necessária e possível. Deve-se, então, adotar as medidas adequadas para sua promoção e consolidação. Com a aliança, ambos os países e, com eles, a região têm um grande destino. Sem ela, se converterão em povos historicamente ir-relevantes em prazo relativamente curto.

Nota

1. Disponível em: <http://www2.goldmansachs.com/insight/research/reports/99.pdf>. Acesso em: fev. 2006.

Helio Jaguaribe

Diplomado em Direito pela PUC/RJ, é doutor honoris causa pela Universidade de Mainz (Alemanha), por sua contribuição às Ciências Sociais. Atualmente é decano do Instituto de Estudos Políticos e Sociais.

Artigo recebido em 21 de março de 2006. Aprovado em 19 de maio de 2006.

Como citar o artigo:JAGUARIBE, H. Atual problema do desenvolvimento brasileiro. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 20, n. 3, p. 38-46, jul./set. 2006. Disponível em: <http://www.seade.gov.br>; <http://www.scielo.br>.

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D o período pós 2ª. Guerra Mundial até o início dos anos 1980, o Brasil teve um crescimento econômico vigoroso, com taxa de expansão média do Produto Interno Bruto – PIB real de 7,1% em 1947/1980, e com dinamismo expansivo puxado em boa medida pelo setor in-dustrial (8,5%), com destaque para a indústria de transformação. Acompanhando este forte dinamismo, houve profundas mudanças estruturais na economia brasileira: deslocamento do eixo dinâmico da economia do setor agro-exportador para o industrial, voltado para o mercado interno; aumento da população economicamente ativa no setor secundário; ampliação das desigualdades sociais e preservação de grandes margens de pobreza absoluta, entre outras.

Por detrás deste processo, havia uma explícita estratégia nacional de desenvolvimento, conhecida como nacional-desenvolvimentista, a qual tinha como elemento central o impulso à industrialização do país, dos ramos mais leves aos mais pesados, baseado no processo de substituição de importações e numa participa-ção estatal, atuando o Estado como agente planificador, financiador e produtor direto (insumos básicos e infra-estrutura), coadjuvado pelas empresas multinacionais que se situaram nos segmentos mais dinâmicos da indústria de transformação.

Esta estratégia – que possivelmente teve no Brasil o seu maior sucesso – foi objeto de várias críticas rela-cionadas principalmente ao caráter “trunco” da industrialização: investimentos industriais capital-intensivos realizados em uma sociedade fortemente heterogênea e com um passado de economia agro-exportadora, que

Resumo: O objetivo deste artigo é discutir conceitos e proposições relacionados a uma nova estratégia de desenvolvimento nacional para países em desenvolvimento, em particular para uma economia em desenvolvimento de porte médio, como a brasileira.

Palavras-chave: Desenvolvimentismo. Países em desenvolvimento. Estratégia de desenvolvimento.

Abstract: The paper aims at discussing concepts and purposes related to a new strategy for national development of developing countries, in particular middle size developing economies, as the Brazilian one.

Key words: Development. Developing countries. Development strategies.

Repensando o desenvolvimentismo

Luiz Fernando de PauLa

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contribui para a exclusão de parte da população do processo de modernização;1 falta de um “núcleo endógeno de industrialização”, dado o papel secun-dário da empresa privada nacional na formação do tripé econômico; condições de financiamento inade-quadas, principalmente quanto ao financiamento de longo prazo – o que se constituiu naquilo que Fiori (1995) denominou de “calcanhar-de-aquiles” do ca-pitalismo brasileiro;2 desequilíbrios setoriais na indús-tria de transformação, em particular o atraso relativo do setor de bens de capital; uma indústria defasada tecnologicamente e com baixos níveis de produtivi-dade, em função da existência de um protecionismo indiscriminado e sem tempo de terminar.

Este modelo, que foi fortemente influenciado pelo pensamento cepalino dos anos 1950, entrou em crise nos anos 1980, por ocasião dos impactos da crise da dívida externa, a qual contribuiu sobremaneira tanto para a deterioração financeira do setor público, que teve suas condições de financiamento fortemente fragilizadas, quanto para aceleração da inflação, por conta dos choques causados pelas maxi-desvaloriza-ções cambiais em um contexto de economia crescen-temente indexada.

Foi neste contexto, ao final da década de 1980 e no início da década de 1990, que surgiu um conjunto de proposições que visavam prover uma nova estratégia de crescimento econômico para a América Latina, após uma década de estagnação. Proposta inicialmen-te por John Williamson (1990), economista do Banco Mundial, o conjunto de proposições rapidamente se tornou o denominador comum das asserções e acon-selhamento político das instituições baseadas em Washington (Banco Mundial e Fundo Monetário In-ternacional – FMI), para os países latino-americanos e mesmo para outros países em desenvolvimento.

Tais proposições3 objetivam estimular o cresci-mento econômico por meio de um conjunto de po-líticas e reformas de natureza liberalizante, que visa-vam à disciplina macroeconômica (entendida como estabilidade de preços), à abertura comercial e a polí-ticas microeconômicas de mercado. A recomendação de abertura da conta de capital, que não constava das proposições originais de Williamson, foi acrescentada ao receituário pelas instituições multilaterais.4 Assim,

o chamado Consenso de Washington foi a base das reformas liberalizantes que, em maior ou menor grau, foram aplicadas em vários países da América Latina, incluindo Argentina, Brasil e México, ao longo da dé-cada de 1990.

Contudo, em vários aspectos, o resultado de tal estratégia foi decepcionante, em particular no que se refere ao crescimento econômico, sendo a Argentina – até então o exemplo a ser seguido –, o caso lapidar do fracasso das políticas inspiradas no Consenso de Washington sob o estímulo das instituições multilate-rais. Vários aspectos foram criticados: a liberalização financeira causou crises bancárias em vários países; a liberalização da conta de capital estimulou a especula-ção e crises cambiais (mesmo quando os “fundamen-tos” econômicos estavam em ordem), com efeitos negativos sobre variáveis reais (produto e emprego); a privatização resultou em fracasso em alguns países ao não ser acompanhada de políticas de promoção de competição; a fixação demasiada com o objetivo de controle de inflação foi, em alguns casos, prejudicial ao crescimento (STIGLITz, 1999).

Frente a esses resultados, as instituições multila-terais (FMI e Banco Mundial) fizeram uma mea culpa parcial, sugerindo que o marco regulatório deveria ser fortalecido concomitantemente com a implantação das reformas, a liberalização de conta de capitais de-veria ser feita gradualmente, o Estado deveria adotar as políticas de rendas compensatórias, etc. Ao mesmo tempo, acadêmicos têm proposto uma nova agenda para o desenvolvimento dos países em desenvolvi-mento, no exterior ou no Brasil,5 na qual procuram resgatar, em alguma medida, o papel do Estado no processo de desenvolvimento, conjugado obviamen-te a outros elementos de política.

O objetivo deste artigo é discutir conceitos e pro-posições relacionados a uma nova estratégia de de-senvolvimento nacional para países em desenvolvi-mento, em particular para uma economia de médio porte, como a brasileira. O ponto de partida é, por um lado, a constatação do fracasso de políticas im-plementadas inspiradas do Consenso de Washington, e, de outro, a constatação de que o velho desenvolvi-mentismo tem que ser renovado, em função de uma nova realidade: economias relativamente maduras,

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rEPEnsanDO O DEsEnvOLvimEnTismO 49

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ainda que socialmente desiguais, no contexto de uma economia globalizada. Para tanto, um conjunto de questões é analisado no artigo: qual estratégia nacio-nal de desenvolvimento deve ser adotada? Qual a sua diferença em relação ao velho desenvolvimentismo? Qual o papel do Estado? Quais políticas econômicas e setoriais devem ser adotadas? Que tipo de inserção se deseja? Neste cenário, discutem-se as diferenças entre o velho e o novo desenvolvimentismo;6 a neces-sidade de Estado e de mercado fortes; modelos pos-síveis de desenvolvimento; conceito de estabilidade macroeconômica; questões relacionadas à competiti-vidade industrial e, ainda, à inserção internacional da economia brasileira. Por fim, a última seção procura extrair algumas conclusões do artigo.

Velho e NoVo DeseNVolVimeNtismo

Como assinalado, a estratégia desenvolvimentista dos anos 1950 na América Latina foi fortemente in-fluenciada pelo chamado pensamento cepalino. Este preceito, que tomou força a partir dos trabalhos de Prebisch, Furtado e outros, desenvolveu

uma proposição política para países subdesenvolvidos, ou seja, a de industrializar, como meio de superar a pobreza ou de reduzir a diferença entre eles e os países ricos, e de atingir independência política e econômica através de um crescimento econômico auto-sustentado.7

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – Cepal, ao efetuar uma crítica à doutrina dominante do livre comércio, a partir da análise da deterioração dos termos de troca e do desenvolvi-mento desigual na propagação do progresso técnico,8 defendia que a industrialização era o único meio que os países latino-americanos dispunham para captar os frutos do progresso técnico e elevar progressivamen-te o nível de vida da população. O aprofundamento da industrialização, no entanto, requeria a ação do Estado, em particular o planejamento estatal e medi-das protecionistas, visando aprofundar o processo de substituição de importações.

A estratégia desenvolvimentista, que implemen-tou a industrialização pesada no Brasil, a partir dos

anos 1950, foi fortemente influenciada por tais pro-posições. Num certo sentido, o Brasil foi o caso mais bem sucedido de industrialização baseada na estra-tégia nacional-desenvolvimentista, ao lograr êxito no seu processo de industrialização pesada. O Estado, como planejador, sustentador financeiro dos grandes blocos de investimento e produtor direto de insumos básicos e infra-estrutura, e as empresas transnacio-nais, concentrando-se nos segmentos mais dinâmicos da indústria de transformação, foram os protagonis-tas deste processo. A empresa privada nacional teve papel complementar, sendo, na realidade, o sócio me-nor do chamado “tripé econômico”.9

A ausência de uma burguesia nacional forte é um dos aspectos críticos para o estabelecimento de uma estratégia nacional de desenvolvimento no Brasil10. A história mundial mostra que não há capitalismo forte sem empresariado nacional forte. Em outras palavras, sem a consolidação de um “núcleo endógeno” da in-dustrialização – constituído por um empresariado nacional forte e competitivo –, o desenvolvimento torna-se frágil, pois não se criam grupos empresariais capazes de participar em igualdade de condições do pesado jogo de competição internacional de comér-cio e investimentos.11

Além da falta de uma política estatal mais efetiva e de longo prazo, que favorecesse a empresa privada nacional no processo de desenvolvimento industrial, o “protecionismo tarifário generalizado e sem tempo determinado para acabar” não estimulou a aprendi-zagem das empresas nacionais. Isto ocorreu porque não foi acompanhado de um processo simultâneo de geração de exportações e de desenvolvimento tecno-lógico doméstico. Em outras palavras, a substituição de importações no Brasil não requereu a absorção e o desenvolvimento tecnológico, contribuindo para incutir no empresariado industrial brasileiro

uma mentalidade protecionista, que [encarava] o protecionismo como um fim e não como um meio para que, num determinado horizonte de tempo, se [implantasse] uma indústria eficiente e competitiva, voltada tanto para o mercado interno quanto para o mercado internacional (SuzIGAN, 1988, p. 10).

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A estratégia novo-desenvolvimentista, embora te-nha suas origens no velho desenvolvimentismo, ainda que com um olhar crítico em alguns desses aspectos, busca adequá-la aos novos tempos e à realidade es-pecífica de cada país. De comum entre as duas está a visão crítica às políticas de laissez-faire, a necessidade de se implementar uma estratégia nacional de desen-volvimento que busque uma complementaridade en-tre Estado e mercado (ainda que, no momento atual, em moldes diversos), e a importância de se pensar os problemas dos países em desenvolvimento a partir de uma ótica da problemática específica desses países (e não procurando copiar estratégias importadas dos países desenvolvidos).

No atual estágio de desenvolvimento produtivo brasileiro, a existência de um Estado-empresário e de um protecionismo do mercado interno nos moldes do passado não faz mais sentido na visão novo-desen-volvimentista. Como será visto a seguir, o novo- desenvolvimentismo não propõe a redução do Esta-do, mas sua reconstrução, tornando-o mais forte e capaz no plano político, regulatório e administrativo, além de financeiramente sólido. Propõe, ademais, uma estratégia nacional de desenvolvimento que pro-mova políticas voltadas ao progresso técnico e à in-trodução de novas técnicas de produção, o desenvol-vimento de mecanismos nacionais de financiamento do investimento com poupança doméstica, políticas econômicas redutoras de incertezas inerentes ao mundo financeiramente globalizado bem como o de-senvolvimento de instituições específicas adequadas ao desenvolvimento (como o desenvolvimento do capital humano por meio da educação pública).

Tampouco faz sentido a manutenção de um protecionismo indiscriminado à indústria no atual estágio de desenvolvimento de economias “semi-maduras”, como a brasileira: o comércio interna-cional, como fonte de crescimento econômico, deve ser intensificado, o que torna desejável a libe-ralização da conta de transações correntes (incluin-do comércio), embora esta abertura deva ser feita de forma inteligente, cautelosa e negociada, para que reciprocidades que interessem às exportações brasileiras sejam conquistadas.

estaDo e mercaDos Fortes

A concepção de mercados regulados e da necessidade de complementaridade entre Estado e mercados foi desenvolvida, entre outros, por Keynes e Polanyi, e, mais recentemente, por outros economistas como Stiglitz. Para Polanyi (1980), em livro escrito origi-nalmente em 1944, mercados modernos são insti-tuições socialmente constituídas, isto é, que devem ser organizados e regulados pelos Estados nacionais, tanto a nível nacional como internacional. Stiglitz (1999) sustenta a idéia de que o Estado deve agir como complemento dos mercados, ao contrário da visão de Estado minimalista e não-intervencionista, defendido pelo Consenso de Washington. Para ele, o Estado deve adotar ações que façam os mercados funcionarem melhor, procurando corrigir as falhas no desempenho destes. Destaca, além de sua impor-tância na regulação apropriada, seu papel na proteção social, no sistema previdenciário e na promoção da educação pública.

A defesa mais elaborada do papel do Estado na economia talvez continue a ser aquela feita por Key-nes.12 Ao criticar a visão liberal, segundo a qual o mer-cado auto-regulado é capaz de fazer alocação ótima dos recursos disponíveis e o darwinismo econômico implícito nesta visão (“o mercado seleciona os mais fortes”, de acordo com sua metáfora das girafas),13 Keynes defendia que a soma dos interesses particu-lares nem sempre coincide com o interesse coletivo, ou seja, o auto-interesse nem sempre atua a favor do interesse público, pois o mercado, além de poder ser falho na alocação dos recursos e na promoção do pleno emprego, exclui os mais fracos (empresas e trabalhadores). A intervenção do Estado seria neces-sária em função da incapacidade de auto-regulação do sistema.

Para Keynes deveria haver complementaridade entre o Estado e o mercado: várias atividades espe-cíficas do capitalismo exigem o estímulo ao ganho individual, cabendo ao auto-interesse a determinação do que será produzido e em que proporção os fato-res de produção se associarão para realizar tal tarefa. Contudo, em determinadas condições, o livre jogo das forças do mercado precisa ser refreado ou mes-

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mo guiado. Portanto, a principal ação do economista e do policy-maker é fazer a distinção entre a Agenda do Governo e não-agenda:

a mais importante Agenda do Estado não diz respeito às ati-vidades que os indivíduos particularmente já realizam, mas às funções que estão fora do âmbito individual, àquelas decisões que ninguém adota se o Estado não o faz. Para o governo, o mais importante não é fazer coisas que os indivíduos já estão fazendo [...], mas fazer aquelas coisas que atualmente deixam de ser feitas (KEyNES, 1984, p. 123).

Keynes avaliava que o Estado seria capaz de arbi-trar e estimular a concorrência e, além disso, de influir de forma decisiva sobre as variáveis econômicas mais relevantes, como o desemprego e a distribuição de renda e da riqueza.

A alternativa novo-desenvolvimentista defende a constituição de um Estado capaz de regular a eco-nomia, a qual deve ser constituída por um mercado forte e um sistema financeiro funcional, isto é, que seja voltado para o financiamento da atividade pro-dutiva, e não para a atividade especulativa. Para tan-to, é necessário não só buscar formas inteligentes de ação estatal, complementares à ação privada, como também proporcionar condições para que o Estado possa desempenhar de forma mais eficaz sua ação – para o que pode ser necessário uma reforma da gestão pública. Trata-se de adotar uma forma de ges-tão que aproxime as práticas dos gerentes públicos às dos privados, tornando-os, ao mesmo tempo, mais autônomos e responsáveis perante a sociedade.14 Tal reforma requer não somente maior profissionaliza-ção da gestão pública como também certo grau de descentralização do Estado, com a transferência de determinadas funções específicas do Estado a agên-cias (semi)autônomas, e a transferência de serviços sociais e científicos a organizações de serviço pú-blicas, semi ou não-estatais. Note-se, contudo, que isto não significa que as decisões mais importantes relativas às políticas públicas a serem implementadas devam ser igualmente descentralizadas, pois cabe às esferas governamentais, eleitas democraticamente, a definição destas.

Na concepção novo-desenvolvimentista, o Estado deve ser forte para permitir ao governo a implemen-tação de políticas macroeconômicas defensivas ou expansionistas. Políticas de caráter defensivo são, por exemplo, aquelas que reduzem a sensibilidade do país a crises cambiais; e, políticas expansionistas referem-se àquelas medidas de promoção do pleno emprego, sobretudo em contextos recessivos. Políticas indus-triais e de comércio exterior, se usadas de forma inte-ligente e criativa, podem e devem ser utilizadas para estimular a competitividade da indústria bem como melhorar a inserção do país no comércio internacio-nal. O Estado deve, ademais, possuir um sistema tri-butário progressivo, para reduzir as desigualdades de renda e de riqueza que são exageradas. Em que pese a maior interdependência entre as nações, Estados são estratégicos como instrumento de ação coletiva que as nações dispõem para serem competitivas interna-cionalmente.

moDelos De DeseNVolVimeNto: algumas breVes obserVações

O desenvolvimento de um país é um processo idios-sincrático, de certa forma não-reprodutível. Não há um único modelo a ser seguido, e sim inúmeras possibilidades e combinações. Estudo recente feito por Hausmann, Pritchett e Rodrik (2004), ao analisar períodos de rápida aceleração no crescimento econô-mico (isto é, crescimento sustentado por pelo menos oito anos) desde os anos 1950, concluíram que tais acelerações tendem a ser correlacionadas a investi-mento e comércio, e também com depreciações na taxa de câmbio real. A principal conclusão do estu-do, entretanto, é que as acelerações de crescimento em boa medida não são prognosticáveis: na maioria dos casos, elas não são relacionadas a padrões de-terminantes e tampouco estão relacionadas a refor-mas econômicas de cunho liberalizantes. Hausmann, Pritchett e Rodrik, que utilizam como variáveis ex-plicativas da aceleração do crescimento, variáveis relacionadas a choques externos, mudanças políticas e reforma econômica, observam que: “os determi-nantes dos episódios de crescimento [...] são pobre-mente explicados por nossas variáveis explicativas”

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(HAuSMANN; PRITCHETT; RoDRIk, 2004, p. 21), para então concluírem que “acelerações de cres-cimento são causadas predominantemente por mu-danças idiossincráticas e freqüentemente de pequena escala” (HAuSMANN; PRITCHETT; RoDRIk, 2004, p. 22).

Dado o caráter idiossincrático do desenvolvimen-to, um dos fatores chaves do chamado catching-up é um país saber extrair vantagens das oportunidades criadas pelo momento histórico em que se vive. um dos exemplos mais recentes é o caso da Coréia do Sul, que soube tirar proveito da situação geopolítica do pós-guerra e de sua proximidade com o Japão.15 Inicialmente, países asiáticos, que se industrializaram principalmente a partir do pós-guerra, utilizaram-se de uma estratégia de substituição de importações, mas implantaram ao mesmo tempo (e crescentemen-te) uma estratégia baseada na exportação de bens ma-nufaturados, adotando, para tanto, um protecionismo seletivo e uma política de câmbio ativo e de subsídios, além de fortes investimentos na formação de capital humano, no contexto de uma estratégia nacional for-temente intervencionista. Vários países asiáticos no pós-guerra – do qual Coréia do Sul e Taiwan são as melhores expressões – adotaram um modelo de cres-cimento do tipo conduzido pelas exportações (export-led), enquanto que os grandes países latino-america-nos adotaram um modelo autárquico de substituição de importações, nos termos vistos anteriormente.

De fato, como mostram Dooley, Folkerts-Landay e Garber (2003), no atual contexto de evolução do sistema monetário internacional, este sistema está di-vido em três zonas econômicas e monetárias: um país central, os Estados Unidos, com um enorme déficit em conta corrente financiado com fluxos oficiais dos países da região de conta de comércio16 e fluxos pri-vados da região de conta de capital; uma região de conta de comércio (trade account region), Ásia, de gran-de dinamismo econômico puxado pelas exportações para os Estados unidos, com níveis crescentes de reservas cambiais e uma política cambial administra-da em vários casos apoiada no controle do câmbio; uma região de conta de capital (capital account region), constituída pela Europa, Canadá e a maioria dos pa-íses da América Latina, com níveis mais baixos e es-

táveis de reservas cambiais, e cujos fluxos privados de capital, até recentemente, ajudavam a financiar o déficit em conta corrente dos Estados Unidos. No caso da América Latina, em boa parte da década de 1990, verificou-se um fluxo de capitais positivo para a região e, após um período de saída líquida de capitais, observa-se reversão neste processo, ao mesmo tempo em que houve substancial melhoria na conta corren-te, por conta do crescimento na demanda e preços de commodities.

Indubitavelmente, a instabilidade nos fluxos de ca-pitais tem sido fator de inconstância econômica na América Latina. Para os países em desenvolvimento, a escolha que se coloca é se eles querem se juntar à Ásia, na região de conta de comércio, ou à Europa, na região da conta de capital. Para seguir a Ásia, eles te-riam que limitar o movimento da taxa de câmbio em relação ao dólar e manter suas moedas desvalorizadas, para estimular as exportações. A escolha do caminho a seguir é bem colocada por Dooley, Folkerts-Landay e Garber (2003, p. 7),

na América Latina, aqueles impacientes para um crescimento através de exportações serão a favores ao livre comércio, taxas de câmbio subvalorizadas, intervenção e controle de capitais; em resumo, o modelo asiático de desenvolvimento. Em contras-te, banqueiros centrais e o FMI são a favor de taxas de câmbio flutuantes e mobilidade de capital e portanto a região da conta de capital, isto é, o modelo europeu.

NoVo-DeseNVolVimeNtismo: estabiliDaDe macroecoNômica

A política econômica, na perspectiva desenvolvi-mentista aqui proposta, relaciona-se à adoção de um conjunto de medidas que visa aumentar o nível de demanda agregada, de modo a criar um ambiente es-tável, que estimule os empresários a realizar novos investimentos – uma vez que os níveis de emprego e utilização da capacidade produtiva dependem, em boa medida, dos determinantes da demanda agrega-da, principalmente da decisão de investimento dos empresários. Em outras palavras, a política econômi-ca deve procurar afetar o investimento privado glo-bal, criando um ambiente seguro que estimule esco-

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lhas mais arriscadas, mas que rendam lucros e gerem empregos, no lugar da simples acumulação de ativos líquidos – isto é, a boa política é aquela que induz os agentes a investirem em ativos de capital, dando ori-gem a investimento novo (CARVALHO, 1999).

Contudo, o objetivo da política econômica deve ser amplo: ela deve estar voltada para a estabilidade macro-econômica, um conceito mais amplo do que o de mera estabilidade de preços (STIGLITz, 1999), ou seja, deve procurar também reduzir as incertezas relativas à demanda futura, que são inerentes aos negócios na economia. Nesta perspectiva, o controle de inflação é importante, na medida em que a inflação persistente e elevada gera distorções na economia (torna mais imprevisível o horizonte de decisões de mais longo termo), mas não deve ser exagerado, sob o perigo de colocar em risco os objetivos de estabilidade e cresci-mento do produto e do emprego17. Assim, o objetivo da política econômica deve incluir minimizar ou evi-tar maiores contrações econômicas, devido aos altos custos econômico-sociais das desacelerações.

Estabilidade de preços e aumento do produto e emprego são compatíveis dentro dessa visão e, para tanto, o governo deve fazer uso de um instrumental de política econômica com objetivos múltiplos – e não somente utilizar a política monetária voltada ex-clusivamente para o controle da inflação. A perspec-tiva novo-desenvolvimentista sustenta que, para se atingir os objetivos múltiplos de política como cresci-mento econômico e estabilidade de preços, é necessá-rio maior coordenação de políticas (fiscal, monetária, cambial, salarial, etc.): devem-se avaliar os impactos conjuntos da adoção das políticas sobre os objetivos como um todo. Assim, a coordenação de políticas é fundamental para atingir a estabilidade macroeconômica.

Igualmente importante é manter uma taxa de câmbio competitiva, ou seja, desvalorizada. Como mostra a experiência de vários países que tiveram crescimento acelerado no pós-guerra, essa ação pode garantir condições de sustentabilidade do balanço de pagamentos por meio da geração de superávits em conta corrente, com conseqüente aumento nas reser-vas internacionais, além de arrefecer a contratação de empréstimos externos, reduzindo, então, a vulnerabi-lidade externa do país.

A forma de financiamento do balanço de paga-mentos também é importante, devendo-se evitar flu-xos de capital de portfólio e dívida de curto prazo, que podem gerar custos associados à alta volatilidade dos fluxos de capitais, sem gerar benefícios de difu-são de conhecimento. Portanto, uma estratégia novo-desenvolvimentista deve buscar formas de reduzir a vulnerabilidade externa da economia, de modo a evi-tar os efeitos de choques externos causados por mu-danças nos sentimentos do mercado, inclusive decor-rentes de comportamento de manada, sobre a taxa de câmbio. Afinal, vários estudos mostram os efeitos ne-fastos que a excessiva volatilidade da taxa de câmbio, em países em desenvolvimento, têm sobre decisões de investimento, inflação, dívida pública, etc.18 Nos países em desenvolvimento, a volatilidade cambial em geral é bem maior que nos países desenvolvidos, possuidores de moedas fortes e conversíveis, devido ao reduzido tamanho dos mercados financeiros des-ses países em relação aos fluxos de capitais de curto prazo que ingressam nos mesmos.19

NoVo-DeseNVolVimeNtismo: competitiViDaDe Do setor iNDustrial20

uma das características do processo de industrializa-ção latino-americano, incluindo o Brasil, é a assime-tria entre um elevado componente de imitação (fase prévia de aprendizagem) e um componente marginal de inovação econômico-social. Ademais, nenhum país da região logrou simultaneamente crescimento e eqüidade social. Economias bem-sucedidas nos dois quesitos compartilham uma característica básica, que é a incorporação do progresso técnico e a ele-vação da produtividade. Neste contexto, em função das insuficiências no âmbito da eqüidade e da baixa incorporação do progresso técnico em setores-chave da indústria, o crescimento econômico e a competiti-vidade apresentaram um comportamento claramente espasmódico na América Latina.21

A competitividade do setor industrial contribui positivamente para o crescimento econômico, já que o comércio internacional de manufaturas é o que normalmente mais se expande no comércio mundial. Ao mesmo tempo, o crescimento contribui para es-

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timular a introdução de progresso técnico e, conse-qüentemente, aprimorar a competitividade. Embo-ra a inserção dos países de forma mais efetiva nos mercados internacionais dependa, em parte, de sua capacidade de acompanhar as tendências tecnológi-cas internacionais, para muitos países que não estão na fronteira tecnológica, os retornos associados à facilidade de transferência da tecnologia podem ser maiores do que os retornos de avançarem de forma pioneira em pesquisa e desenvolvimento – P&D. Por isso, políticas públicas que facilitem a transferência da tecnologia, bem como a sua absorção pelo aparelho produtivo, são cruciais para o desenvolvimento.22

Portanto, nos países latino-americanos, como o Bra-sil, é fundamental a realização de uma transformação produtiva que resulte na elevação da produtividade da mão-de-obra e que dê sustentação a uma competitivi-dade internacional autêntica, apoiada na incorporação de progresso técnico e em práticas gerenciais inovado-ras. Para tanto, uma política abrangente deve ser adota-da, incluindo o fortalecimento da base empresarial do país, adoção de política industrial voltada para a melho-ria da competitividade das exportações de maior valor agregado, desenvolvimento de infra-estrutura voltada para a competitividade sistêmica (incluindo o desen-volvimento de um sistema nacional de inovação), me-lhorias do nível de qualificação da mão-de-obra, etc. A aprendizagem tecnológica e o fortalecimento da com-petitividade internacional requerem instituições públi-cas dotadas de capacidade de articulação dos diversos agentes produtivos, laborais, educativos, de pesquisa e de financiamento. Como já assinalado, de acordo com a visão novo-desenvolvimentista, o Estado necessário para impulsionar a transformação produtiva dessa na-tureza é diferente daquele que fomentou a industriali-zação precedente.

NoVo-DeseNVolVimeNtismo: iNserção iNterNacioNal e reDução Da VulNerabiliDaDe exterNa

A literatura empírica sobre liberalização financeira e desempenho econômico é inconclusa em estabelecer uma relação robusta entre essas duas variáveis, enfra-quecendo um dos pontos básicos do Consenso de

Washington, na versão das agências multilaterais. De fato, há vasta literatura que busca aferir a existência de uma relação positiva ou negativa entre liberaliza-ção financeira (ou controles de capitais) e crescimen-to econômico. Rodrik (2003), ao investigar a relação entre liberalização da conta de capitais e algumas va-riáveis macroeconômicas em 1975/89 em quase cem países, concluiu que

os dados não oferecem nenhuma evidência de que países em desenvolvimento sem controle de capitais tenham crescido mais rápido, investido mais, ou experimentado inflação menor. Con-troles de capitais são essencialmente não-correlacionados com o desempenho econômico no longo termo, uma vez que controle-mos outros determinantes (RoDRIk, 2003, p. 61).

um estudo feito por economistas do FMI (PRAsAD et al., 2003, p. 6), por sua vez, sintetiza os achados empíricos da literatura internacional: “um exame sistemático das evidências sugere que é difícil estabelecer uma relação causal robusta entre integração financeira e desempenho do crescimento do produto”. A explicação talvez derive dos resultados empíricos de Eicheengreen e Leglang (2002, p. 2), que sugerem que os países atualmente desenvolvidos estruturaram primeiramente seu mercado financeiro doméstico, acompanhado de conversibilidade restrita da conta de capital, para depois liberalizarem sua conta de capital:

[o impacto da liberalização da conta de capital sobre o cres-cimento] é mais provável ser positivo quando os mercados financeiros domésticos são bem desenvolvidos e regulados e a operação do sistema financeiro internacional é suave e estável. É mais provável ser negativo quando os mercados financeiros, doméstico e internacional, estão sujeitos à crise.

Portanto, a conversibilidade da conta de capital, se precipitada, pode comprometer a estruturação do sistema financeiro doméstico de um país em desen-volvimento, em função justamente de maior instabi-lidade macroeconômica gerada pela volatilidade nos fluxos de capitais externos. Assim, a estabilidade ma-croeconômica e o desenvolvimento de longo prazo requerem a existência de mercados financeiros saudá-

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veis. Daí a necessidade de ser redesenhado o sistema regulatório do sistema financeiro: o fortalecimento da regulação e supervisão financeira é fundamental para assegurar sua estabilidade. Igualmente importan-te é o estabelecimento de políticas que permitam ao governo enfrentar os problemas relacionados à vo-latilidade dos fluxos de capitais em mercados finan-ceiros/cambiais pouco densos, podendo incluir me-didas de redução da vulnerabilidade externa, política de formação de reservas cambiais, regulamentação de fluxos de capitais, etc.23

Acrescente-se, ainda, que o uso da poupança ex-terna como suporte a uma estratégia de crescimento deve ser limitado, uma vez que as evidências recen-tes de países em desenvolvimento mostram que, em longo prazo, não há correlação clara entre poupança externa e aumento na taxa de investimento, já que a maior parte da poupança externa é canalizada para consumo, não resultando no aumento da capacida-de produtiva em setores tradables. Como resultado, os países em desenvolvimento passam a enfrentar uma restrição externa ao crescimento, como atesta, por exemplo, uma elevada relação exportações/dívida externa e na relação dívida externa/PIB, resultan-te na manutenção de um ambiente de instabilidade macroeconômica derivada da fragilidade financeira do setor externo. Portanto, no longo termo, os sal-dos em conta corrente devem estar em equilíbrio, uma vez que um país não pode tomar empréstimos indefinidamente, dada a restrição de insolvência (BRESSER PEREIRA; NAKANO, 2004).

O equilíbrio no balanço de pagamentos requer a manutenção de um superávit significativo na balan-ça comercial. Para tal, como já assinalado, é neces-sária a manutenção de uma taxa de câmbio subvalo-rizada, isto é, orientada sempre que possível para o ajustamento da conta corrente e para a diminuição da dependência dos capitais externos, acompanhada por políticas industriais ativas voltadas para estimular exportações e pela substituição de importações de in-sumos que tenham peso na pauta de importações do país, de modo a reduzir os efeitos do câmbio sobre o

nível de preços domésticos.24 Tais políticas são parti-cularmente importantes em função da necessidade da realização de mudança estrutural na base produtiva do país, com vistas a alterar a pauta das exportações brasileiras na direção de produtos de maior elasticida-de-renda25. Por sua vez, a substituição de importações em alguns segmentos mais dinâmicos da indústria pode se tornar necessária devido à alta elasticidade-renda das importações do país, o que faz com que estas aumentem significativamente em períodos de crescimento econômico continuado.26

coNclusão

Este artigo discutiu algumas idéias que podem com-por uma estratégia nacional de desenvolvimento para países em desenvolvimento de porte médio, como o Brasil. Em termos gerais, procurou-se mostrar que uma estratégia novo-desenvolvimentista deve pro-curar: (i) uma ação complementar entre Estado e mercado, cabendo ao Estado arbitrar e estimular a concorrência e mesmo influir na determinação das variáveis econômicas relevantes – como desempre-go e distribuição de renda; (ii) ter, ao contrário do que preconiza a ideologia globalizante, um Estado forte e capaz, no plano político, regulatório e distri-butivo, além de financeiramente sólido; (iii) adotar políticas macroeconômicas redutoras de incertezas que são inerentes ao mundo globalizado, com espe-cial atenção ao problema da vulnerabilidade externa; (iv) adotar o conceito mais amplo de estabilidade macroeconômica, que busca compatibilizar cresci-mento econômico com estabilidade de preços, ao invés de se preocupar somente com a taxa de infla-ção; (v) realizar uma transformação produtiva que dê sustentação a uma competitividade internacional autêntica apoiada na incorporação de progresso técnico e em práticas gerenciais inovadoras, sendo, para tanto, necessários o fortalecimento da base em-presarial do país e a adoção de uma política indus-trial voltada para a melhoria da competitividade das exportações de maior valor agregado.

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notas

Este trabalho retoma desenvolvimentos feitos em trabalhos anteriores (Sicsú; Paula; Michel, 2005, 2006), do qual se inspira parcialmente. Agradecemos às discussões feitas sobre o assun-to com João Sicsú e Luiz Carlos Bresser-Pereira, eximindo-os de erros e omissões existentes.1. De acordo com Furtado (1992, p. 43), “o que importa assinalar é que o estilo de crescimento estabelecido na fase anterior pela modernização impunha certo padrão de indus-trialização”; e, assim, “o processo de modernização agravou a concentração de riqueza e renda já existente, acentuando-a na fase de industrialização substitutiva. Somente o segmento de população que controla o setor de produção afetado pelos aumentos de produtividade [....] desfruta os benefícios da mo-dernização” (p. 44).2. Segundo Fiori (1995, p. 107-108), “o projeto desenvolvi-mentista enfrentou, durante toda a sua trajetória, graves pro-blemas de financiamento, seu verdadeiro calcanhar-de-aquiles, responsável pelo aspecto crônico de inflação e pelas perió-dicas crises fiscais do setor público. Crises superadas através de reformas emergenciais, fiscais e/ou monetárias, que nunca conseguiram solucionar, de forma permanente, o problema de fundo ligado às limitações tributárias e à ausência de um mer-cado de capitais ativo e/ou de um sistema bancário privado solidário com o processo de industrialização. Problema que obrigou que o financiamento de longo prazo desta industria-lização tivesse que ser feito com recursos externos associados aos recursos mobilizáveis pelo setor público, via política cam-bial, transferências inflacionárias e endividamento”.3. Eram dez as proposições originais de Williamson: (a) disci-plina fiscal; (b) redirecionamento dos gastos públicos para áre-as de retorno econômico e potencial de distribuição de renda; (c) reforma tributária; (d) liberalização da taxa de juros domés-tica; (e) taxa de câmbio competitiva; (f) liberalização comercial; (g) liberalização dos fluxos de investimento direto estrangeiro; (h) privatização; (i) desregulamentação dos mercados; (j) asse-gurar os direitos de propriedade. 4. Williamson (2000), ao avaliar posteriormente o Consenso de Washington, sustenta que em alguns aspectos o Consenso de Washington, usado pelas instituições multilaterais, difere da concepção original.5. Ver, por exemplo, Stiglitz (2000) e Rodrik (2003). No Bra-sil, um conjunto de proposições alternativas de economistas (isto é, alternativa à visão neoliberal) é reunido em Sicsú, Pau-la e Michel (2005).6. A expressão “novo desenvolvimentismo” foi primeiro pro-posta por Bresser-Pereira (2003, cap. 20) e, posteriormente, de-senvolvida em Sicsú, Paula e Michel (2005). 7. Ver Bielschowsky (1988, p. 11).8. O desenvolvimento desigual do progresso técnico decorria da existência de estruturas produtivas distintas entre o cen-tro, com estruturas diferenciadas e homogêneas, e a periferia, com estruturas especializadas e duais, em que, por meio do comércio internacional, o centro não apenas conservava os in-crementos de produtividade, como se apropriava de parte do progresso técnico da periferia. Textos originais de autores da

Cepal (Prebisch, Aníbal Pinto, Furtado, Cardoso, Tavares entre outros) foram re-publicados em Bielschowsky (2000).9. Ver, a respeito, Serra (1982, Parte I).10. Diferentemente do caso brasileiro, a estratégia nacional de desenvolvimento da Coréia do Sul buscou justamente estimu-lar a criação de um empresariado nacional forte e competitivo.11. De acordo com Fajnzylber (1983, p. 140), “a expressão mais clara da precariedade do empresariado nacional e de outras forças sociais que têm contribuído a definir a política industrial nos países da América Latina é a presença indiscri-minada de empresas do exterior que exercem liderança em uma ampla gama de setores e, particularmente, naqueles que definem o perfil do crescimento industrial (....) A fragilidade da vocação industrializante se refere especificamente ao conteúdo e a debilidade do ‘núcleo endógeno’ da industrialização latino-americana (...) A insuficiente presença da vocação industrial se refere então, especificamente, à ausência de liderança efetiva na construção de um potencial industrial endógeno capaz de adaptar, inovar e competir internacionalmente em uma gama significativa de setores produtivos”.12. Ver, em particular, Keynes (1984, 1986).13. Keynes (1984, p. 116) considerava um erro “[...] supor um estado de coisas no qual a distribuição ideal dos recursos pro-dutivos pode ser conseguida através de indivíduos que agem de maneira independente, pelo método de ensaio e erro, de tal maneira que os indivíduos que se movimentam na direção cor-reta destruirão, pela competição, aqueles que se movimentam na direção errada. Isto implica não haver perdão ou proteção para os que empatam o seu capital ou o seu trabalho na direção errada. Este é um método para elevar ao topo os negociantes melhor sucedidos, mediante uma luta cruel pela sobrevivên-cia, que seleciona os mais eficientes pela falência dos menos eficientes. Não se leva em conta o custo da luta, mas apenas o resultado final, que supõem serem permanentes. Como o objetivo é colher as folhas dos galhos mais altos, a maneira mais provável de alcançá-lo é deixar que as girafas de pescoços mais longos façam morrer à mingua as de pescoços mais curtos”.14. Ver, a respeito, Bresser-Pereira (2004).15. Ver, entre outros, Evans (1987).16. De acordo com cálculos feitos por Dooley, Folkerts- Landay e Garber (2003), em 2002, Japão, China e Taiwan, jun-tos, financiaram 42% do déficit em conta corrente de Us$ 489 bilhões dos Estados unidos.17. Neste sentido, segundo Stiglitz (1999, p. 99), “o foco único sobre a inflação não somente distorce as políticas econômicas – evitando que a economia alcance seu potencial pleno de cres-cimento – como também conduz a arranjos institucionais que reduzem a flexibilidade econômica sem obter os importantes benefícios de crescimento”.18. Ver, entre outros, Guérin e Lahrèche-Révil (2003) e IMF (2003).19. Grenville (2000) assinala que a experiência geral com regi-mes de taxa de câmbio flutuante tem mostrado que a substi-tuição de regimes de câmbio fixo por flutuante tem produzido maior variabilidade, e que os ditos fundamentos econô-micos não podem explicar o comportamento da taxa de

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rEPEnsanDO O DEsEnvOLvimEnTismO 57

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câmbio no horizonte de curto e médio prazo. Segundo ele, os problemas de volatilidade cambial são mais sérios quando se trata de países emergentes, uma vez que: (i) não têm experiência histórica de taxas de câmbio determinadas pelo mercado; (ii) há poucos especuladores estabilizadores à la Friedman atuando no mercado de câmbio, ou seja, há ausência de players desejosos a atuar em posições cambiais contrárias à da média do mercado, além destes mercados serem propensos a exibirem uma mentalidade de manada (herd behavior); e (iii) apresentam fluxos de capitais muito maiores e mais voláteis em relação ao tamanho dos merca-dos de capitais domésticos.

20. Esta seção está baseada em Sicsú, Paula e Michel (2006, seção 9).

21. Conforme Fajnzylber (1989).

22. Ver, a respeito, Stiglitz (1999).

23. Conforme Paula, Oreiro e Silva (2003).

24. uma discussão mais detalhada sobre política industrial extrapola os objetivos deste artigo.

25. A necessidade de incluir, cada vez mais, produtos exporta-dos de alta elasticidade-renda é explicada na literatura a partir do que ficou conhecido como a Lei de Thirlwall, que estabelece relação entre a taxa de crescimento dos países e a razão entre as elasticidades-rendas de suas importações e exportações. A baixa elasticidade-renda dos produtos de menor valor agrega-do exportado por países em desenvolvimento, comparada com a maior elasticidade-renda das importações produzidas pelos países desenvolvidos, gera déficits de caráter estrutural no ba-lanço de pagamentos dos primeiros, o que acaba resultando na restrição ao crescimento econômico dos países em desen-volvimento. Deste modo, em uma economia aberta, o maior constrangimento ao crescimento da demanda (e, portanto, do desempenho econômico) é, normalmente, o seu balanço de pagamentos. Ver, entre outros, Thirlwall, (2002).

26. Holland e Canuto (2001) estimaram, no período de 1950-2000, para as dez maiores economias da América Latina, que, para cada 1% de crescimento do PIB, as importações crescem entre 2% e 4,5%, indicando forte restrição externa ao cresci-mento destas economias.

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Luiz Fernando de PauLa

Professor adjunto da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE/UERJ) e Pesquisador do CNPq

([email protected] e http://paginas.terra.com.br/educacao/luizfpaula)

Artigo recebido em 28 de março de 2006. Aprovado em 22 de maio de 2006.

Como citar o artigo:PAuLA, L.F. Repensando o desenvolvimento. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 20, n. 3, p. 47-58, jul./set. 2006. Disponível em: <http://www.seade.gov.br>; <http://www.scielo.br>.

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Em um interessante estudo sobre o comportamento dos políticos no Brasil acerca das questões orçamentárias, um conjunto de cientistas políticos concluiu que

o ganho da negociação entre o Congresso e o Executivo é que o último está interessado fundamentalmente em elevar os impostos, enquanto o primeiro procura expandir o gasto social e financiar as emendas parlamentares (funding for pork). Para permitir ao Executivo extrair recursos da sociedade – algo que gera custos políticos significativos diante dos eleitores –, o Congresso tem demandado crescentemente que parte dos recursos sejam dirigidos para os setores sociais. Isso interessa também ao Executivo – são metapreferências – e, portanto, o mercado político se acerta (is cleared) nessa troca (Alston et al., 2005, p. 71).

De modo geral, é esse o jogo que tem sido praticado há aproximadamente 15 anos no Brasil: aumentam-se simultaneamente gastos e impostos, o Congresso dá ao Executivo os recursos para governar, o Executivo permite ao Congresso se credenciar como arauto dos interesses dos eleitores e quem se arrisca a financiar o desequilíbrio fiscal remanescente – os detentores de títulos públicos – se satisfaz recebendo uma remuneração (juros) extremamente elevada. Em curto prazo – e o longo prazo pode ser pensado como uma sucessão de

Resumo: O artigo desenvolve argumentos para explicar o baixo crescimento do país. Procura-se mostrar a importância da existência de um clima hostil aos investimentos, o papel do ativismo judicial e os efeitos de um modelo assistencialista. Defende-se que o governo dê maior ênfase à educação, aumente os

investimentos públicos e diminua a taxação, para gerar os incentivos que estimulem um maior desenvolvimento da economia.

Palavras-chave: Desenvolvimento. Incentivos. Investimento.

Abstract: This paper discusses the factors that explain why Brazil has grown so slowly. We stress the importance of the hostile investment climate, on account of factors stemming from judicial activism to a policy model geared towards assistentialist goals. We argue in favor of emphasis to education, an expansion

of public investment and a reduction in the tax burden, in order to create the incentives to foster an acceleration of Brazil’s development process.

Key words: Development. Incentives. Investment.

SEM CLIMA PARA CRESCERuma síntese dos argumentos

ArmAndo CAstelAr Pinheiro

FAbio GiAmbiAGi

Um economista nunca deve ter medo de idéias impopulares.John K. Galbraith

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curtos prazos – é um arranjo funcional, que concede algo a cada grupo e permite acomodar pressões, sem passar por situações sociais explosivas como as que o Brasil viveu no começo dos anos 1980, ou a Argenti-na mais recentemente.

Porém, há dois sérios problemas com esse pre-cário equilíbrio. o primeiro é que ele representa um pacto com a mediocridade, pois a combinação de gasto público de baixa eficiência, carga tributária ele-vada e juros reais altíssimos revelou-se uma receita de crescimento baixo, como o que tem caracterizado o Brasil desde a década de 1980. o segundo problema é mais sutil e tem a ver com o tipo de mensagem que o Estado transmite a cada cidadão com as suas ações.

É útil, neste ponto, citar o mestre Sérgio Buarque de Holanda, na sua análise sobre as raízes da nossa formação cultural:

Nas formas de vida coletiva podem assinalar-se dois princí-pios que se combatem e regulam diversamente as atividades dos homens. Esses dois princípios encarnam-se nos tipos do aventureiro e do trabalhador. Já nas sociedades rudimentares manifestam-se eles na distinção fundamental entre os povos caçadores e os povos lavradores. Para uns, o objeto final, o ponto de chegada, assume relevância tão capital, que chega a dispensar, por secundários, todos os processos intermediários. seu ideal será colher o fruto sem plantar a árvore. [...] O trabalhador, ao contrário, é aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o triunfo a alcançar. O esforço lento, pouco compensador e persistente, que, no entanto, mede todas as possibilidades de desperdício, tem sentido bem nítido para ele. [...] Existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. [...] As energias e esforços que se dirigem a uma recompensa imediata são enaltecidos pelos aventureiros, as energias que visam à paz, à estabilidade, à segurança pes-soal e os esforços sem perspectiva de rápido proveito material passam, ao contrário, por viciosos e desprezíveis para eles [...] Entre esses dois tipos não há, em verdade, tanto uma oposição absoluta como uma incompreensão radical. (HolAnDA, 1936, p. 44, grifos nossos).

A pressão no sentido de aumentar a dotação de recursos públicos para alguma rubrica específica, com base no que poderíamos denominar popular-mente como “cultura do coitado”, é fruto de uma

mentalidade que, contrariamente ao “esforço lento, pouco compensador e persistente” de que fala sérgio Buarque de Holanda, associa a idéia de prosperidade a alguma forma de apropriação de recursos do Esta-do (estes já existentes porque redistribuídos), e não à criação de novas riquezas mediante a expansão da renda. Essa mesma incapacidade de entender os be-nefícios de processos lentos, de longa maturação e com efeitos cumulativos espelha-se, no âmbito nacio-nal, na dificuldade política de conseguir aprovar re-formas cujas vantagens são diferidas no tempo, mas cujos custos são tanto palpáveis quanto imediatos.

Individualmente, receber uma “mesada” do Esta-do custa menos que investir durante anos na educa-ção como forma de ascensão social. Analogamente para o país, defender que o crescimento depende de atos voluntaristas do Executivo é mais simples do que se engajar na tarefa politicamente custosa de aprovar reformas fundamentais, ainda que impopulares e de efeitos de longo prazo, como é o caso da mudança das regras de aposentadoria do sistema previdenciário brasileiro – um dos mais benevolentes do mundo.

Compare o comentário citado anteriormente com esta descrição comparativa de Roberto da Matta acer-ca da idiossincrasia norte-americana:

A ciência social latino-americana fala mais dos pobres que dos ricos. [...] Falando mais do fracasso que do sucesso, ignoramos o êxito. [...] (enquanto) aqui na América [vivemos] em um sistema em que se acredita de pé junto que o trabalho permite enriquecer. [...] A participação na política ou ter emprego no governo não contam, e as horas de trabalho semanal revelam uma notável disposição para o batente. [...] [Os ricos nos Esta-dos Unidos] são pessoas que evitam chamar a atenção e vivem como pessoas comuns, reforçando sem saber a velha ideologia americana da igualdade perante a Lei, traços que impressiona-ram tanto Tocqueville quanto Max Weber (MAttA, 2005, p. 165-166).

Não se trata aqui de louvar os Estados Unidos per se, mas de aprender com a experiência alheia. O que queremos mostrar é que, a partir do papel do rule of law, algumas das economias mais avançadas do mundo estabeleceram um padrão de relacionamento entre o Estado e o cidadão, por meio do qual aquele

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sem ClImA PArA CresCer: umA sínTese DOs ArGumenTOs 61

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provê um conjunto de serviços e, a partir disso, cada um tem um destino na vida traçado pelo esforço in-dividual, em um meio econômico caracterizado pela liberdade de mercado e pelo espírito empreendedor. Em contraste, no Brasil, com o passar do tempo, te-mos gerado um padrão viciado de relacionamento entre Estado e cidadão, em que os serviços deixam a desejar, mas, em compensação, o Estado desenvolve um assistencialismo exacerbado, com incentivos per-versos, em um ambiente que inibe os investimentos e em que as regras em geral são pouco claras, estando, não raramente, sujeitas a interpretações conflitan-tes. o resultado dessas diferenças é que os Estados Unidos têm sido uma máquina de criar empregos, enquanto o Brasil está se convertendo em um caso paradigmático de crescimento medíocre. É preciso romper com o marasmo e apostar na configuração de um conjunto de regras que substituam o assistencia-lismo pelo empreendedorismo e a discricionariedade pelo respeito à norma. Isso também requer uma mu-dança de visão.

É desta questão que aqui tratamos, de certa for-ma: da necessidade de mudarmos nossa visão sobre o papel do Estado e do respeito às regras, de ado-tarmos um modelo econômico menos “aventurei-ro” e mais “trabalhador”, na terminologia de sérgio Buarque de Holanda. sem essa mudança, estaremos fadados a permanecer no atual equilíbrio de baixo crescimento, continuando a perder posições na cor-rida do desenvolvimento.

Os números falam por si. O Brasil cresceu, em média, 6% ao ano entre 1930 e 1980 – um dos melho-res desempenhos do mundo nesse período –, o que lhe permitiu mais do que triplicar sua participação no Produto Interno Bruto – PIB mundial. Entre 1981 e 2005, porém, a economia brasileira perdeu seu di-namismo, expandindo-se, em média, apenas 2,1% ao ano. Não apenas passamos a crescer uma fração do que fazíamos antes, mas também fomos ficando para trás no processo de desenvolvimento: nesse quarto de século, a economia brasileira encolheu de 3,9% para 2,7% do PIB mundial.1

A consciência de que o modelo de desenvolvimen-to adotado até os anos 1970 tinha se esgotado foi, sem dúvida, a motivação mais importante por trás

das reformas iniciadas na década de 1980 e que atin-giram seu auge na década de 1990, como a abertura comercial, a privatização e uma série de mudanças no aparato regulatório do país. também nesse período, eliminou-se o que se considerava ser o mais grave entrave ao nosso crescimento: um processo quase hiperinflacionário que distorcia incentivos, elevava o risco de investir e penalizava os mais pobres.

Essas reformas, incluindo a estabilização de pre-ços, melhoraram a qualidade da política econômica e foram bem-sucedidas em reverter o quadro de declí-nio da renda per capita em que o Brasil havia mergu-lhado: no período entre 1994 e 2005, o PIB per capita cresceu 1,2% ao ano, 1,6 ponto percentual a mais do que entre 1981 e 1993. Mas essa aceleração do cres-cimento não foi apenas pequena e insuficiente para impedir a nossa perda de participação continuada no PIB mundial: ela também foi derivada exclusivamente de uma expansão mais célere da produtividade, não se observando, em particular, qualquer avanço no rit-mo de acumulação de capital físico.

Esse resultado revela que as empresas reagiram às reformas com estratégias defensivas, voltadas mais à elevação de sua competitividade diante das importa-ções e a novos entrantes do que à expansão de sua capacidade de produção. tal conclusão foi reforçada em anos recentes, pela constatação de que os empre-sários estão preferindo exportar seus lucros, reduzin-do o seu endividamento externo, a utilizá-los para expandir seus investimentos.

Entre 1998 e 2004, a poupança doméstica aumen-tou de 16,8% para 23,2% do PIB, graças à contração do consumo das famílias e detonada pela decisão do resto do mundo de não mais financiar nosso excesso de gastos. Esse fato exigiu que se revertesse o resul-tado em conta-corrente (igual, com sinal trocado, à poupança externa), que passou de um déficit de 4,3% para um superávit de 1,9% do PIB. Mas a situação mudou com o aumento da liquidez internacional e do apetite pelo risco Brasil, e a opção por exportar pou-pança, em vez de investi-la, passou a ser voluntária – reflexo de problemas domésticos, não de restrições externas. Entre 2004 e 2005, o Brasil exportou, por ano, 1,9% do PIB em poupança; se investidos domes-ticamente, esses recursos elevariam o crescimento do

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PIB potencial em meio ponto percentual. Como ex-plicar que um país cuja produtividade do capital é tão elevada, e que necessita tanto investir para crescer, mande para fora quase um décimo do que poupa?

o argumento que desenvolvemos neste texto é que falta ao Brasil um clima de negócios favorável ao investimento. Em especial, apesar de as reformas ocorridas entre os anos 1980 e 1990 terem corrigi-do algumas das deficiências que mais prejudicavam a realização de negócios no país, elas foram parciais, insuficientemente abrangentes e, em parte, solapadas por novos problemas. A falta de um ambiente que estimule as inversões de empresas e famílias em ca-pital fixo não é a única barreira ao desenvolvimento do país, mas, possivelmente, é o maior entrave à re-tomada do crescimento acelerado. Para superar esse problema, será preciso adotar novas reformas, que podem ser agrupadas para fins analíticos em duas agendas: uma macro e outra microeconômica.

O objetivo final das duas agendas é o mesmo: permitir que as empresas operem com custos mais baixos e uma melhor relação risco-retorno, de forma que possam vender a preços menores e tenham maior disposição a ampliar a sua capacidade de produção por meio do aumento do investimento.

o principal problema por trás do ambiente hos-til ao investimento prevalecente no Brasil é o caráter incompleto do ajuste fiscal, como evidenciado pelos altos juros reais incidentes sobre a dívida pública, elevada e de curta maturidade, cuja trajetória só se sustenta com elevados superávits primários, o que torna o quadro macroeconômico muito sensível à conjuntura política. o Brasil está há anos nesse ins-tável equilíbrio de baixo nível. o risco recorrente de que a dívida pública entre em uma trajetória explosi-va faz com que os poupadores só queiram carregá-la se remunerados com uma taxa de juros elevada, a qual, incidindo sobre um volume alto de dívida, leva o governo a gastar muito com o pagamento de juros. Como o espaço para elevar a dívida pública é reduzi-do, é necessário gerar robustos superávits primários para financiar a despesa com juros. O problema é agravado pelo baixo crescimento do PIB, em parte causado pela elevada taxa de juros, que limita ainda mais a possibilidade de financiar o pagamento de ju-

ros com a emissão de mais dívida, dada a necessidade de manter a relação dívida pública/PIB constante. É um quadro ruim, mas é fácil fazer as contas e ver que se trata de um equilíbrio: é possível manter a dívida pública estável em 50% do PIB com juros reais de 12% ao ano e crescimento anual do PIB de 3%, desde que se gere um superávit primário de mais de 4% do PIB. Podemos ficar indefinidamente nessa situação!

Infelizmente, essa não é a única face do desajuste das contas públicas. Em paralelo ao esforço de ge-ração de superávits primários elevados, temos expe-rimentado elevação constante dos gastos públicos e deterioração da sua qualidade. O resultado tem sido um aumento muito mais acentuado da carga tributá-ria do que seria justificado simplesmente pela necessi-dade de impedir o crescimento da dívida pública. Em 2004, a carga tributária bruta foi mais de 10% do PIB superior à de 1993, ano em que ficou muito próxima à média do período compreendido entre 1968 e 1993 (25,2% do PIB). nesse ínterim, o superávit primário subiu de 2,3% para 4,6% do PIB. ou seja, apenas um quarto do aumento da carga tributária foi destinado a elevar o resultado primário do setor público.

Os números variam quando se inclui o efeito da perda do imposto inflacionário ou se toma um ano mais recente como ponto de partida na comparação, mas a conclusão não se altera: o aumento da car-ga tributária vem sendo utilizado majoritariamente para expandir os gastos públicos. O resultado é que a carga de tributos no Brasil tornou-se comparável à de países como Alemanha e Reino Unido, com conseqüências negativas para o potencial de cres-cimento da economia. Ao tentar impor a um país de renda média como o Brasil uma carga tributária de país desenvolvido, recorre-se a tributos de má qualidade e gera-se instabilidade nas regras tributá-rias que penalizam significativamente a eficiência e o investimento. O investidor fica espremido entre um elevado custo de capital e uma tributação excessiva e com regras instáveis, o que faz com que, em muitas empresas, o profissional mais valorizado não seja o que introduz inovações, aumentos de eficiência ou uma campanha vencedora de comercialização, mas o responsável pelo planejamento tributário. o pro-blema não se encerra aí: o aumento dos gastos se

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deu em paralelo a uma queda dos investimentos públicos, que, entre outras coisas, provocou dete-rioração da infra-estrutura e limitou ainda mais o potencial de crescimento do país.

Para melhorar a qualidade da política macroeco-nômica, é preciso alterar os traços da política fiscal. Deve-se substituir esse equilíbrio de baixo nível por outro marcado por menores despesas públicas com juros, fruto de uma relação dívida/PIB mais baixa e, conseqüentemente, taxas de juros também mais re-duzidas. Para isso, será preciso ter um superávit pri-mário expressivo por determinado número de anos, de forma não apenas a impedir o aumento da relação dívida pública/PIB, mas a colocá-la em trajetória de queda. Quando essa queda se concretizar, será possí-vel abaixar outra vez o superávit primário. Com uma dívida pública de 35% do PIB, juros reais de 7% ao ano, e expansão média anual do PIB de 4,5% é pos-sível manter constante a razão dívida/PIB com um superávit primário da ordem de apenas 1% do PIB!

Isso, porém, não basta. Ainda que suficientes para permitir a recuperação dos investimentos públicos em infra-estrutura, os recursos liberados pela redução do superávit primário serão insuficientes para gerar queda significativa na carga tributária, pelo motivo já citado: esta subiu primordialmente pela expansão dos gastos, não da poupança pública. Portanto, para que a carga tributária caia para um patamar condizente com o nível de renda do Brasil, será preciso ir além da redução da dívida, cortando também significativa-mente os gastos primários correntes. Como destacou corretamente Everardo Maciel, “quem faz carga tri-butária não é o imposto; é a despesa.” (AgênCIA EStAdO, BROAdCASt, 27/11/2003).

A redução da carga tributária deve se dar cortando os tributos que mais prejudicam a eficiência econô-mica e simplificando a burocracia envolvida no seu recolhimento e fiscalização. Nossa proposta é que se reduzam prioritariamente os tributos vinculados a gastos que podem ser mais facilmente descontinua-dos ou transferidos para o setor privado, como o Fundo de Garantia do tempo de Serviço – FGtS, as contribuições para o Serviço Social da Indústria – Sesi, o Serviço Nacional de Aprendizagem Indus-trial – Senai, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e

Pequenas Empresas –Sebrae, e, parcialmente, o Pro-grama de Integração Social – PIS/Pasep; se incluam todos os impostos e contribuições arrecadados pela União no sistema de partilha dos tributos sem alterar o valor total das transferências para estados e muni-cípios; se unifique a legislação nacional do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Ser-viços – ICMS; se promova a fusão da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins com o PIS-Pasep e do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica com a Contribuição Social sobre o Lucro Lí-quido; se aplique o Imposto sobre Produtos Indus-trializados – IPI apenas ao fumo, às bebidas e aos automóveis; se reduzam as alíquotas da Contribuição Provisória sobre a Movimentação ou transmissão de Valores e de Créditos e direitos de Natureza Finan-ceira – CPMF e do Imposto de Renda na Fonte sobre aplicações financeiras; e se acabe gradativamente com a maioria das vinculações tributárias.

É importante analisar dois aspectos adicionais de nossa proposta que podem contribuir para o seu su-cesso. Primeiro que o processo de transição de equilí-brios, uma vez iniciado, entrará em um círculo virtuo-so: conforme a dívida diminua, o risco de que esta entre em uma trajetória explosiva cairá, permitindo reduzir a taxa de juros, o que abaixará a despesa com juros e permitirá a aceleração no crescimento do PIB. A redução da carga tributária e a melhoria da infra-estrutura também alavancarão o crescimento do PIB. outro, que, quanto antes o setor privado perceber o compromisso do governo em levar a cabo essa tran-sição de equilíbrios, mais cedo e fortemente a taxa de juros cairá, pois o risco de que a dívida entre em uma trajetória explosiva diminuirá. Ou seja, o prazo para completar essa transição pode ser abreviado se a queda da dívida se der como parte de um plano plu-rianual, pré-anunciado, devidamente institucionaliza-do, que dê credibilidade a toda a proposta de ajuste.

O setor financeiro será um dos mais beneficiados por essa transição de equilíbrios. Na situação atual, sua capacidade de promover o crescimento e a eqüi-dade é seriamente comprometida pela elevada taxa de juros paga pelos títulos públicos, a cunha tributária que incide nas suas atividades e seu foco em financiar o setor público, em lugar de se voltar para diluir riscos,

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selecionar bons projetos e monitorar os investidores privados. Mesmo quando a poupança das famílias é dirigida às empresas, faltam incentivos para que as instituições financeiras desempenhem suas funções da forma mais favorável ao crescimento.

A implementação da agenda macroeconômica descrita anteriormente deve corrigir a maioria des-ses problemas. no entanto, é possível e necessário ir além, adotando um conjunto de medidas microeco-nômicas para enfrentar outros problemas que tam-bém bloqueiam o desenvolvimento do setor. Entre outras iniciativas, defendemos que se dê às agências de defesa da concorrência um claro mandato para a promoção da competição no setor, e que os bancos públicos, responsáveis por enorme parcela do crédito, passem a competir mais intensamente por negócios, aumentando a rivalidade entre as instituições finan-ceiras. As medidas que consideramos mais importan-tes para incentivar a competição são o fortalecimento dos direitos de credores e acionistas minoritários e a melhoria da informação a que estes têm acesso para avaliar o risco do tomador de recursos, iniciativas que também reduzirão o risco de inadimplência. Em es-pecial, consideramos essencial tornar as garantias o que elas deveriam ser de fato: uma forma fácil, rá-pida e de baixo custo de receber de volta o que foi emprestado. Isso passa por melhorar a qualidade e o acesso aos registros de ativos e, principalmente, por reformas jurídicas que facilitem a execução em caso de inadimplência.

O crescente “inchaço” do gasto público desde o final dos anos 1980 refletiu essencialmente a expan-são dos gastos sociais, em especial das despesas com benefícios previdenciários e assistência social. Entre 1991 e 2005, as despesas com o Instituto nacional do Seguro Social – INSS e os servidores públicos apo-sentados do governo central aumentaram de 4% para 10% do PIB, um patamar equivalente ao registrado nos países ricos, apesar de a proporção de idosos na população brasileira ser apenas a metade da observada nesses países. Se nada for feito, a tendência é que es-ses gastos continuem aumentando, em função do en-velhecimento da população e dos repetidos aumentos do valor real do salário-mínimo. Esta é uma das men-sagens centrais deste artigo: é preciso promover nova

reforma da Previdência, para evitar que se continue a sacrificar outros gastos, sociais e não sociais, funda-mentais para o desenvolvimento do país. tal reforma deve eliminar a vinculação entre o salário-mínimo e o piso previdenciário; estabelecer uma idade mínima de aposentadoria para todos os trabalhadores, cres-cente no tempo; reduzir o diferencial entre homens e mulheres no que tange ao requisito de idade e anos de contribuição para aposentadoria; e acabar com o regime especial de aposentadoria dos professores.

É um erro, no entanto, atribuir exclusivamente a questões demográficas o aumento dos gastos com a seguridade social. Este também reflete a visão – do-minante no país desde a redemocratização – de que todo gasto social é sempre justificado e não impõe custos. Pouco parece importar que a soma de iniciati-vas individuais gere uma despesa total que sacrifica o crescimento do país. Quem se opõe à elevação desses gastos lembrando que há, sim, custos a considerar, incluindo os de oportunidade, é tachado de insensível ao drama social do país e de não querer “dividir o bolo”. O resultado é que o gasto público social brasi-leiro assemelha-se, em termos relativos, ao de alguns países ricos – e continua crescendo.

Há vários problemas com o gasto social no Brasil, além do seu tamanho e do ônus que este impõe ao crescimento. Em especial, o impacto distributivo desse gasto é pequeno, faltando-lhe foco, notadamente nas crianças pobres. Não apenas há despesas sociais sig-nificativas dirigidas aos não-pobres, sendo a gratuida-de universal do ensino público superior o caso mais flagrante, como estas continuam se expandindo, prin-cipalmente por meio das transferências operadas pela previdência e a assistência social, as quais são dirigidas a faixas etárias em que quase já não existem pobres. As despesas com aposentadorias e pensões corresponde-ram, em 2004, a quase 70% do gasto social do governo federal, contra menos de 7% aplicados em programas de transferência focados nas famílias pobres. Esse perfil de gastos sociais faz com que, no Brasil, a razão entre a renda apropriada pelos 20% mais ricos e pelos 20% mais pobres praticamente não se altere quando se contabiliza o efeito de tributos e transferências gover-namentais, ao contrário do que ocorre nos países ricos, onde essa razão diminui significativamente.

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Soma-se a isso que essas transferências muitas ve-zes não estão associadas à exigência de contrapartidas (freqüência à escola, vacinação, etc.) que permitam quebrar a perpetuação intergeneracional da pobreza. Isso faz com que o gasto social no Brasil seja pouco eficiente em promover a melhora estrutural e mais duradoura na distribuição de renda. Com isso, o seu impacto distributivo depende de sua manutenção em patamar elevado e por tempo indefinido. As regras de acesso aos programas de assistência social também são demasiadamente benevolentes, entre outras coi-sas, desestimulando a formalização da mão-de-obra no mercado de trabalho, ao garantirem o benefício de um salário-mínimo aos 65 anos para a lei orgânica de Assistência Social – Loas, mesmo sem qualquer contribuição prévia.

Em que pese a necessidade de políticas compen-satórias, é preciso que elas sejam mais eficientes. Propomos que quatro alterações sejam priorizadas. Primeiramente, que os subsídios sociais do Estado sejam concentrados nas famílias – e, em especial, nas crianças – realmente pobres. Segundo, que não se ele-vem mais os subsídios transferidos pela previdência social, pois seu impacto marginal sobre a pobreza é muito pequeno. terceiro, que se tornem mais exigen-tes as regras de elegibilidade aos benefícios da assis-tência social. Em particular, propomos que se retorne à legislação dos anos 1970, que garantia esse benefí-cio apenas àqueles que tinham pelo menos 70 anos e comprovavam ter contribuído para o Inss por um certo período de tempo. Quarto, que se privilegiem os gastos sociais associados a contrapartidas que mo-tivem as famílias a elevar o seu capital humano, crian-do condições para saírem sozinhas da pobreza e para dispensarem as transferências compensatórias forne-cidas pelo governo. nesse sentido, melhorar a quali-dade do gasto público significa não apenas aumentar o peso dos investimentos na composição da despesa primária, em detrimento de gastos correntes que não contribuem para acelerar o crescimento, mas também reorientar o gasto social em direção a políticas mais focadas nos pobres e em promover alterações estru-turais na distribuição de renda.

também a legislação trabalhista reflete esse viés distributivista, que ignora a realidade econômica do

país e os custos que isso impõe, promovendo transfe-rências de renda para alguns segmentos privilegiados da população, em detrimento do interesse coletivo. O Brasil dá uma proteção legal aos seus trabalhadores bem acima da média internacional. A evidência mos-tra, porém, que há forte relação entre a intensidade da proteção legal, o grau em que os trabalhadores estão dispostos a pagar pelos benefícios que esta concede, e a extensão com que ela é respeitada: em geral, quan-to mais intensa a regulação do mercado de trabalho, maior o grau de informalidade, menor a participação na força de trabalho e maior o desemprego, especial-mente entre os trabalhadores mais jovens. trata-se, portanto, de uma regulação falsamente benevolente, considerando que mais da metade dos trabalhadores brasileiros são informais e, conseqüentemente, não têm garantidos os benefícios concedidos pela legisla-ção. Nesse sentido, nossa proposta é que se simplifi-que e flexibilize a regulação trabalhista, eliminando as regulações que trabalhadores e empresas não aceitam de forma voluntária. sugerimos, essencialmente:• a eliminação da cobrança de contribuições para

instituições como sesi, senai e sebrae;• a redução da alíquota do FGtS e a liberdade de

aplicação dos recursos pelo trabalhador;• a transferência para acordos coletivos, negociados

diretamente entre trabalhadores e empresas, da fi-xação de regras relativas, por exemplo, à jornada e ao horário de trabalho.tão ou mais preocupantes que o elevado e crescen-

te gasto com previdência e assistência social e a “be-nevolência” da regulação trabalhista são as variadas iniciativas “informais” de redistribuição de renda, que também se tornaram mais comuns nas duas últimas décadas, penalizando o crescimento pela esterilização de recursos que, de outra forma, poderiam ser utiliza-dos para elevar o bem-estar agregado. São exemplos de iniciativas redistributivistas “informais”: • a opção do Ministério Público e do Judiciário por

buscar a “justiça social” em detrimento do estrito cumprimento dos contratos;

• a crescente ocupação para fins privados do espaço público, como ocorre nas atividades do comércio ambulante, de “flanelinhas” e de outros “donos do espaço público”, como ônibus piratas;

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• a competição desleal imposta por empresas infor-mais contra as formalmente estabelecidas, drenan-do seus rendimentos;

• o desrespeito aos direitos de propriedade, como ocorre nas invasões de fazendas, terrenos e prédios, saques a caminhões e supermercados, etc.;

• o aparente aumento da freqüência de crimes con-tra o patrimônio e da corrupção, que são méto-dos no extremo da ilegalidade, mas de alta eficá-cia distributiva.Estes mecanismos redistributivos têm característi-

cas comuns. Em primeiro lugar, são todos “justifica-dos” e tolerados com o argumento de que são instru-mentos que tiram de quem tem para dar para quem não tem: mesmo em relação às atividades criminosas, como o roubo e a corrupção em “pequena” escala, é freqüente se recorrer a esse tipo de argumento, se não como justificativa, pelo menos como atenuante, pois, afinal de contas, “também, o coitado não tem o que comer”. Em segundo lugar, o impacto efetivo sobre a distribuição de renda dessas transferências hetero-doxas é uma incógnita, já que essas ações freqüen-temente beneficiam mais a quem já tem do que aos pobres: alguns dos principais esqueletos públicos fo-ram criados pelo perdão de dívidas dos mutuários do Sistema Financeiro de Habitação – SFH e de grandes fazendeiros, que se encontram no topo da pirâmide de renda. Por fim, a eficiência dessas iniciativas é bai-xa, pois elas impõem um ônus elevado sobre o poten-cial de crescimento do país.

Uma família pode aumentar a sua renda produ-zindo ou se apoderando do que os outros produzem. Nas sociedades primitivas, quem produzia era obri-gado a gastar parte do seu tempo protegendo a sua produção. Nas sociedades modernas, o Estado cum-pre esse papel, que é uma atividade com significati-vas economias de escala, permitindo que as pessoas dediquem mais do seu tempo à produção. No Brasil, o Estado não vem cumprindo bem esse papel, e o desrespeito aos direitos de propriedade e aos contra-tos, não apenas pelo setor público, mas também pelo privado, se tornou freqüente. Invasões de terra, de imóveis urbanos e do espaço público e o crime contra as pessoas e o patrimônio, como, por exemplo, rou-

bos de carga e de eletricidade, atingem proporções cada vez mais preocupantes.

o resultado é um aumento do custo com segu-rança – carros blindados, vigias, câmeras, etc. – e do risco pessoal e patrimonial. Isso aumenta o custo e o risco do investimento, reduz a eficiência e desvia recursos para atividades que não geram um retorno líquido para a sociedade. Além disso, recursos gastos para redistribuir o que os outros produziram, ou para impedir que isso aconteça, nada adicionam à renda agregada. Seus efeitos sobre o PIB se dão exclusiva-mente pelos incentivos que criam para quem produz. Invasores de terra acampados à beira da estrada e fla-nelinhas, por exemplo, não exercem atividades produ-tivas. Recursos destinados a impedir a expropriação, tais como cercas, câmeras de segurança, guardas, vigi-lantes, carros blindados, etc., também não aumentam o produto total a ser distribuído. Mesmo que essas iniciativas sejam capazes de melhorar a distribuição do “bolo”, elas exercem efeito negativo tão significa-tivo sobre o seu tamanho que a parcela efetiva recebi-da pelos grupos beneficiados pode diminuir, ao invés de aumentar.

Essas práticas informais e ilegais têm prosperado também pela falta de reação do Estado, que se esquiva de sua obrigação de fazer cumprir a lei, ou capitanea-do ele próprio iniciativas desse tipo. A regulação de serviços públicos, por exemplo, é objeto freqüente de pressões estatais para que se desrespeitem os contra-tos com base em argumentos “distributivistas”. Com o Estado restringindo voluntariamente o seu campo de atuação cada vez mais, legitima-se o desrespeito à lei e transfere-se para o setor privado e à sociedade em geral a responsabilidade por encontrar substitutos para aquilo que deveria ser o seu papel. Por exemplo, está disseminada no país a idéia de que o indivíduo necessita cuidar privadamente de sua proteção, pois o Estado não o fará. A ocupação do solo urbano é outro exemplo; a solução de conflitos por meios vio-lentos, outro mais. Atualmente, espaços públicos são loteados e vendidos por privados sem que haja qual-quer reação do poder constituído.

A ênfase no redistributivismo precisa ser reavalia-da em busca de maior equilíbrio. As pessoas querem que o governo gaste mais com o social, mas não estão

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dispostas a pagar mais impostos para financiar esses gastos, correndo para a informalidade. Justifica-se o desrespeito aos direitos contratuais e de proprieda-de com a expectativa de que isso beneficie os mais pobres, mas esquece-se de que são esses que sofrem mais com a falta de crescimento e empregos que acontece quando o investimento foge do país, com receio da expropriação. É preciso repensar as polí-ticas públicas de assistência social, mas também as normas informais e os valores que regem a vida eco-nômica e social.

A informalidade precisa ser combatida em suas várias manifestações. Não são informais apenas os agentes econômicos que não cumprem a regulação trabalhista; também o são todos aqueles que obtêm vantagens competitivas desrespeitando outras regula-ções ou sonegando impostos, como o são igualmente os imóveis não registrados.

nossa proposta é reformar todos esses marcos regulatórios que empresas e famílias tendem a não respeitar, com medidas que, por um lado, reduzam o custo de formalização, e, por outro, penalizem mais fortemente as atividades que permanecerem infor-mais. Com relação às empresas, por exemplo, além de reduzir o peso e o custo de recolhimento de tributos e cumprimento de regulações, será preciso rever e con-solidar a regulamentação tributária e empresarial nas três esferas de governo. Isto porque serão necessá-rias a reestruturação, simplificação e centralização do processo de registro de novas empresas, aumentando a proporção de registros feitos via internet, fundindo os registros fiscais e comerciais e ampliando a troca de informações entre as autoridades tributárias fede-rais, estaduais e municipais. É importante também impor sanções às atividades que permanecerem in-formais; para isso, deve-se abandonar a idéia de que a informalidade é uma “política social disfarçada” e a lógica de que a “justiça social” tudo justifica.

o Brasil precisa também de uma agenda de se-gurança jurídica que reduza a incerteza sobre as re-gras estabelecidas pelo Estado, tanto no que tange às suas relações com os agentes privados como nas transações entre estes. A falta de segurança jurídica tem criado um problema de inconsistência dinâmica que prejudica o investimento em vários setores e ati-

vidades: o negócio é atraente antes de feito o investi-mento, mas deixa de sê-lo depois, tornando a transa-ção inviável. Para mitigar esse problema, em especial em relação ao oportunismo estatal, é preciso limitar a capacidade de o governo mudar as regras “no meio do jogo”, impedir o efeito retroativo das mudanças de regras e exigir que sua atuação se paute por um elevado grau de previsibilidade e certeza.

A falta de segurança jurídica tem comprometido seriamente a realização de investimentos e a eficiên-cia econômica. Um caso paradigmático é a infra-estrutura. A legislação que regula as atividades em-presariais nesses setores é incompleta e instável, as agências reguladoras responsáveis pela sua aplicação e por coibir o oportunismo estatal têm baixo grau de independência e o Poder Judiciário não tem sus-tentado a autonomia das agências nem contribuído para o cumprimento célere, previsível e imparcial das normas regulatórias. As Parcerias Público-Pri-vadas – PPPs, não surpreendentemente, mostraram que não são a solução para atrair investimentos em infra-estrutura na escala em que o país precisa, pois não resolvem a maior parte dos problemas que atra-vancam os projetos nesses setores. Elas não tornam mais fácil obter licenças ambientais, não melhoram a qualidade da regulação e não protegem o investidor contra o ativismo judicial, o roubo de serviços ou a expropriação estatal.

defendemos, neste texto, a visão de que, sem re-formas adicionais, o país continuará sofrendo com o baixo volume de investimentos em infra-estrutura e que, para mudar esse quadro, será necessário adotar uma estratégia multifacetada, envolvendo um conjun-to amplo de medidas que inclua:• ampliar os investimentos públicos em infra-estru-

tura e ao mesmo tempo retomar o programa de privatização e concessões;

• completar os marcos regulatórios em transportes (por exemplo, portos), eletricidade e saneamento;

• desestimular o ativismo judicial e fortalecer as ati-vidades de planejamento nos ministérios e a auto-nomia decisória das agências reguladoras;

• consolidar as atividades de regulação e fiscalização ambiental do Ibama, órgãos estaduais, Ministério Público Federal e sua contrapartida nos estados,

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de forma que essas instâncias atuem de forma coordenada e em paralelo;

• desenvolver instrumentos para administrar riscos e facilitar o financiamento dos projetos de infra-estrutura.Assim como na infra-estrutura, também no mer-

cado monetário e de títulos da dívida pública, obser-va-se um problema de inconsistência dinâmica. Ex ante, interessa ao governo tomar recursos empresta-dos das famílias e empresas, como interessa a estas emprestar para o governo. Porém, ao fazê-lo, o pou-pador se arrisca a ter um retorno abaixo do espera-do, caso o governo adote uma política monetária que acelere a inflação. depois do empréstimo efetivado, se o governo gerar uma “surpresa inflacionária”, há pouco que o poupador possa fazer, a não ser amargar o default parcial imposto pelo governo. sabedor disso, aquele exigirá que o governo pague juros mais altos, para compensar o risco de “surpresas inflacionárias”, e preferirá operações líquidas e de curto prazo, que lhe permitam recompor rapidamente seu portfólio, caso pressinta que o governo vai agir com oportunismo.

O alto custo da dívida pública e o seu perfil, de curto prazo e com forte indexação à taxa Especial de Liquidação e de Custódia – Selic, são alguns dos problemas mais importantes do equilíbrio macroe-conômico de baixo nível discutido anteriormente. Por isso, seria importante reduzir o risco de o go-verno gerar “surpresas inflacionárias” garantindo-se que o Banco Central administre a política monetária com independência e incentivos imperfeitamente alinhados com os do governo. A proposta é que se dê autonomia legal ao Banco Central, estabele-cendo-se mandatos fixos de quatro anos para o seu presidente e demais diretores, devidamente escalo-nados, sendo o do presidente intercalado com o do presidente da República.

Uma agenda de fortalecimento da segurança jurí-dica também precisa contemplar a melhoria do de-sempenho do Poder Judiciário, o que exigirá inicia-tivas pelo lado da demanda e da oferta de serviços judiciais. Entre aquelas, o mais urgente é reformar o nosso complexo Código de Processo, montado para lidar com cada processo como se ele fosse uma ex-ceção. Adicionalmente, deve-se colocar em uso a sú-

mula vinculante e a súmula impeditiva de recursos, aprovadas na reforma constitucional de dezembro de 2004, mas, até o momento em que escrevemos, nunca utilizadas. do lado da oferta, é preciso mudar a cultura dos operadores do direito, de que a morosi-dade é uma coisa normal, quase uma “qualidade” da justiça, e melhorar a gestão dos tribunais. Em relação à falta de previsibilidade e à politização das decisões judiciais, deve-se estimular decisões mais focadas no mérito do que nos detalhes processuais, limitar o pra-zo de validade das liminares, melhorar a qualidade da legislação, colocar em uso a súmula vinculante e mudar a cultura judiciária do país, de forma que os magistrados passem a valorizar mais a previsibilidade das suas decisões.

A segurança jurídica (e o manejo responsável da política econômica) também pode ser estimula-da fortalecendo o poder disciplinador do mercado, de forma a elevar o custo de medidas voltadas para mudar as regras “no meio do jogo”. Uma forma de fazer isso é instituindo a conversibilidade da moeda nacional. Para que haja tempo para melhorar a quali-dade da política macroeconômica e se aperfeiçoarem os mecanismos de combate à lavagem de dinheiro, a conversibilidade plena deveria ser resultado de uma estratégia pré-anunciada implementada ao longo de cinco a dez anos.

Outra forma de aumentar a integração do Brasil à economia mundial é promovendo uma nova roda-da de abertura comercial. A partir do final dos anos 1980, o Brasil abriu bastante sua economia, registran-do, em 2004, um dos mais altos patamares de integra-ção comercial de sua história moderna. Não obstante, nem por isso deixamos de ser um dos países mais fe-chados do mundo. Esse grau reduzido de integração comercial é uma das razões por que a taxa de juros no Brasil é tão elevada. Se o Brasil for capaz de elevar seu fluxo de comércio exterior, ele terá mais flexibilidade para se ajustar a choques externos, sem precisar desa-celerar o crescimento, desvalorizar o câmbio e elevar os juros domésticos substancialmente. Isso significa menores riscos macroeconômicos, o que facilitará a integração financeira e o alongamento de prazos no mercado de crédito.

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Lembremos que a única forma razoável de se ex-pandir o fluxo de comércio é exportando e importan-do mais. Para isso, precisamos abrir mais a economia, com o que o câmbio se desvalorizará, as empresas te-rão maior acesso a bens de capital e insumos baratos e modernos, tornando-se mais competitivas, e serão incentivadas a buscar o mercado externo.

É nesse contexto que propomos um novo corte de tarifas de importação, a ser implementado gradual-mente, mas com prazo e metas intermediárias bem estabelecidas. o objetivo é baixar a média simples das tarifas nominais para um valor próximo a 7%, priorizando o corte das tarifas mais altas, de forma a reduzir as diferenças intersetoriais de proteção, ainda significativas. Como os setores mais protegidos figu-ram entre os mais oligopolizados, isso elevará a pres-são competitiva das importações exatamente onde ela é mais necessária, fato que aumentará a eficácia do canal cambial da política monetária, contribuindo também para reduzir a volatilidade dos juros domés-ticos. Paralelamente à redução de tarifas, é necessário eliminar uma série de entraves burocráticos e de regu-lações de produto que encarecem as importações e dificultam as exportações.

Nem só de eficiência e investimentos em capi-tal físico depende o crescimento. também o capi-tal humano é um insumo de crescente importância no processo de desenvolvimento e, no Brasil, este é escasso. Em especial, uma característica que dis-tingue o Brasil no cenário internacional é a baixa escolaridade média da sua força de trabalho, mesmo em comparação a países em estágio de desenvolvi-mento semelhante ao nosso. Pode-se esperar que a própria aceleração do crescimento leve a um ritmo mais rápido de acumulação de capital humano, mas isso não dispensará o Estado de exercer papel cen-tral tanto na expansão da oferta de serviços como estimulando a demanda por educação entre os seg-mentos menos favorecidos da população. Para isso, a política educacional deveria priorizar: • a universalização do ensino médio. do lado da de-

manda, defendemos a inclusão no programa Bolsa Família de jovens entre 16 e 18 anos, tornando os benefícios concedidos pelo programa crescentes com a idade, de forma a compensar o também as-

cendente custo de oportunidade de estudar; e, pelo lado da oferta, a criação do Fundo Nacional para o desenvolvimento do Ensino Básico – Fundeb, com vistas a atenuar o impacto da universalização desse nível de ensino sobre as finanças estaduais;

• a melhoria da qualidade da educação básica. Para isso, propomos (i) a avaliação sistemática de pro-fessores e escolas e o seu uso como critério de alocação de recursos públicos; (ii) o aumento da competição por alunos entre escolas, inclusive privadas, fazendo com que estas disputem os re-cursos públicos alocados à educação; e (iii) a uni-versalização da pré-escola, de forma a compensar as crianças carentes pelo ambiente doméstico des-favorável e equalizar as oportunidades;

• aumento da eficiência e da eqüidade no ensino su-perior, por meio (i) da cobrança de mensalidade na universidade pública, como ocorre em muitos outros países, dos Estados Unidos à China, incen-tivando a universidade pública a disputar alunos com as privadas; e (ii) da expansão do Programa Federal de Crédito Educativo e a implementação de um programa público de bolsas de estudo para alunos carentes.A falta de apetite para investir no país é fácil de

entender. líquido de impostos e do custo de cumprir regulações, e ajustado para os muitos riscos a que hoje em dia se sujeita quem detém capital, o retorno do investimento no Brasil é muito menor do que parece à primeira vista. Isso significa que só poupar mais pode não ser suficiente para fazer o investimento aumentar e o crescimento acelerar. Um dos objetivos da agenda macroeconômica aqui apresentada é exatamente es-tabelecer melhores condições para o investimento do setor privado – taxa de juros e carga tributária mais baixas e melhor infra-estrutura. outro é recuperar a capacidade de o Estado eleger prioridades, melhoran-do, assim, a qualidade do gasto público. A melhoria do ambiente de negócios, por meio de regras mais estáveis e eficientes, o aumento da competição e a recuperação da capacidade de o Estado impor regras e organizar a atividade econômica (e a vida social em geral) são os objetivos principais da agenda microeconômica.

É necessário contar com uma estratégia abran-gente e explícita de reação à perda de dinamismo da

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economia brasileira que vá além da listagem de um menu de reformas. É preciso ter efetivamente uma estratégia de desenvolvimento, uma agenda comple-ta que explore as complementaridades e sinergias existentes entre as diversas reformas, estabeleça a seqüência correta entre elas e explore a distribuição de perdas e ganhos de cada uma, de forma a viabi-lizar o indispensável apoio político, sem o qual sua implementação será inviável, por melhor que tenha sido sua concepção.

É essencial, também, eleger prioridades. Consi-deramos que essa estratégia deveria ter como princi-pais pilares: aproximar a carga tributária do patamar observado entre 1968 e 1993; reduzir o custo de capital para todos os empreendedores e não apenas para grandes empresas e fazendeiros beneficiados por subsídios públicos; melhorar a infra-estrutura de transporte; elevar significativamente o nível educa-cional da força de trabalho; e diminuir a insegurança pessoal, patrimonial e jurídica que caracteriza o país. Para isso, a meta intermediária mais importante é reduzir significativamente a razão dívida pública líquida/PIB, o que exigirá cortar os gastos primá-rios correntes como proporção do PIB. Isso mostra que, em que pese a importância e a complexidade da agenda microeconômica, a principal prioridade de nossa estratégia é completar o ajuste macroeco-nômico e, em especial, reduzir o elevado nível dos gastos públicos correntes.

Queremos concluir enfatizando a necessidade de que as propostas apresentadas não sejam descarta-das apenas porque são impopulares. Como colocou galbraith, citado na epígrafe deste artigo, os econo-mistas e, acreditamos, a sociedade em geral não devem deixar de fazer as reformas de que o país necessita só porque elas não são populares. Fugir das suas obri-gações com receio da impopularidade tem sido um caminho que enfraqueceu enormemente o Estado e as elites no Brasil, dificultando uma reação ao estado de abulia em que mergulhou a nossa economia.

Em síntese, o que de mais importante foi propos-to é uma estratégia de retomada do desenvolvimento que envolve, fundamentalmente:• na área externa, a continuidade da redução da

dívida externa líquida, mediante o pagamento da

dívida bruta; a continuidade da acumulação de reservas; a adoção de uma nova rodada de aber-tura da economia; e a migração gradual, em um horizonte de cinco a dez anos, rumo a uma situa-ção em que a moeda nacional se torne livremente conversível;

• no campo fiscal, uma forte redução do coeficien-te dívida pública/PIB, mediante a manutenção do superávit primário em níveis elevados ainda duran-te alguns anos, acompanhada de uma agenda de melhora da qualidade do ajustamento, com tetos declinantes para o gasto corrente expresso como proporção do PIB; significativa redução do per-centual de vinculações; aumento do investimento público; e diminuição gradual da carga tributária, distribuída ao longo do tempo;

• no campo microeconômico, um conjunto amplo de reformas, envolvendo mudanças na legislação tra-balhista; melhora do ambiente regulatório; fortale-cimento da segurança jurídica; e significativa melho-ra na escolaridade média da população brasileira. naturalmente, uma estratégia de desenvolvimen-

to para o Brasil terá de considerar outras reformas que não foram aqui tratadas, por falta de conheci-mento ou porque as julgamos menos críticas, o que não significa que sejam irrelevantes – citamos, como exemplos, as instituições políticas, as áreas de saúde e tecnologia, a regulação ambiental, etc. As propostas aqui apresentadas também terão de ser detalhadas, identificando-se as leis e instituições que precisarão ser alteradas e estabelecendo-se uma seqüência ade-quada entre elas.

O que desejamos é gerar o debate. Não adianta termos boas propostas se não formos capazes de conquistar corações e mentes. Esperamos que você, leitor, tenha se convencido, senão das nossas idéias, pelo menos da necessidade de rompermos o marasmo em que o Brasil mergulhou nas últimas duas décadas.

Notas

Este artigo corresponde ao capítulo de conclusão do livro “Rompendo o marasmo – A retomada do desenvolvimento no Brasil”, de nossa autoria (2006).1. Com os PIBs medidos em paridade de poder compra (PPP).

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ArmAndo CAstelAr Pinheiro

Economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.

FAbio GiAmbiAGi

Economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.

Artigo recebido em 9 de maio de 2006. Aprovado em 30 de junho de 2006.

Como citar o artigo:GIAMBIAGI, F.; PINHEIRO, A.C. Sem clima para crescer: uma síntese dos argumentos. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 20, n. 3, p. 59-71, jul./set. 2006. disponível em: <http://www.seade.gov.br>; < http://www.scielo.br>.

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São Paulo em Perspectiva, v. 20, n. 3, p. 73-82, jul./set. 2006

Uma década e meia de hegemonia das políticas eco-nômicas de inspiração liberal, na América Latina e no Brasil, e seus insignificantes resultados na criação de um regime de crescimento sustentado, com simultânea redução da desigualdade social, têm posto na ordem do dia a discussão do desenvolvimento. Apesar da conquista da estabilidade inflacionária, essas políticas mostram-se incapazes para equacionar as várias questões concernentes ao desenvolvimento, seja nas suas expressões mais simples, como a quantitativa, ou nas mais complexas como a da convergência para os padrões tecnológicos e de consumo dos países centrais.

As políticas de corte liberal lograram êxito na obtenção da estabilidade inflacionária. Suas ambições eram, todavia, mais amplas, ao propugnarem a construção de novas relações Estado-mercado capazes de engendrar um novo modelo de desenvolvimento. Sua tarefa inicial foi a desmontagem do padrão nacional-desenvolvimen-tista, às voltas com uma crescente perda de dinamismo após as mudanças internacionais do final dos anos 1970. As privatizações, acompanhadas das aberturas comercial e financeira, constituíram numa primeira etapa, suas mudanças prioritárias, realizadas em simultâneo como o programa de estabilização.

Ao longo do tempo, os instrumentos macroeconômicos para obtenção da estabilidade inflacionária modifi-caram-se, mas manteve-se sua prioridade. Por sua vez, aperfeiçoaram-se as reformas na direção da construção de uma nova relação Estado-mercado. O sentido era claro: desregular e reduzir os obstáculos interpostos pelas instituições e a legislação subjacente, ao livre funcionamento do mercado, criando um clima favorável aos ne-gócios. Contudo, os resultados da segunda geração de reformas não parece ter sido superior aos da primeira, quando considerados pela ótica do desenvolvimento.

Resumo: O artigo procura lançar luzes sobre as razões da insuficiência das políticas de inspiração liberal em estabelecer um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil e América Latina. Contrasta esta experiência com o êxito obtido pelos países asiáticos fundado num perfil distinto de políticas de desenvolvimento.

Palavras-chave: Desenvolvimento econômico. Desenvolvimento comparado. Políticas econômicas.

Abstract: The article shed light on the reasons of the failure of liberal policies in constructing a new model of development in Brazil and Latin America. It faces this experience against that of Asians countries which success was based in other kind of policies.

Key words: Economic development. Economic policy. Comparative experiences.

O desenvOlvimentO revisitadO

RicaRdo caRneiRo

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Com base nessas observações iniciais, o presen-te texto procura lançar luzes sobre as razões da in-suficiência dessas políticas em estabelecer um novo modelo de desenvolvimento. Inicialmente apresenta-se uma breve revisão do debate sobre o subdesen-volvimento, no âmbito da economia política latino-americana. Em seguida, assinalam-se as principais transformações no ambiente internacional pós-anos 1980, visando, sobretudo, caracterizar a constituição de duas periferias capitalistas: uma dinâmica, a asi-ática; e outra atrasada, a latino-americana. Por fim, são estabelecidas relações entre este desempenho e os distintos perfis das políticas econômicas persegui-das por esses grupos de países, sugerindo que o êxito foi alcançado por aqueles com orientação da política econômica de corte intervencionista, em contraposi-ção ao fracasso daqueles de inspiração liberal.

O subdesenvOlvimentO: a cOntribuiçãO da ecOnOmia pOlítica latinO-americana

Uma importante vertente do debate sobre o sub-desenvolvimento originou-se da Economia Polí-tica da Cepal. Sua caracterização como resultante da propagação lenta e desigual do progresso téc-nico tem, em Prebisch (1988), seu ponto alto. No seu texto introdutório e no relatório subseqüente, publicado no final dos anos 1940, Cepal (1988), o autor faz a crítica à idéia do desenvolvimento fundado nas vantagens comparativas com base na divisão internacional do trabalho então prevale-cente, da qual participavam países produtores de bens primários e de bens industrializados.

Ao verificar que os ganhos de produtividade fo-ram substancialmente maiores na indústria ante a ati-vidade primária, o autor constata que, ao contrário do que sugeria a teoria das vantagens comparativas, isto não se traduziu numa queda de preços relativos dos bens industriais ante os agrícolas, indicando um bloqueio na propagação do progresso técnico que conduziu à deterioração dos termos de trocas entre os dois grupos de países.

Na identificação dos fatores responsáveis por essa tendência, Prebisch sugere a importância das estrutu-ras de oferta, como fator crucial. Assim, na economia industrial, os ajustes ao longo do ciclo econômico faziam-se pelas quantidades, enquanto nas estruturas

primárias ocorriam por meio dos preços. A rigidez de preços industriais dever-se-ia, em última instância, à rigidez salarial, tanto pela transmissão dos ganhos de produtividade aos salários, nas fases de expansão, quanto pela maior resistência à sua queda nas reces-sões em razão da maior organização dos trabalhado-res, reflexo do menor excedente de força de trabalho nessas economias. Nos países produtores de bens primários, os preços e salários seriam mais flexíveis, especialmente em razão do excedente estrutural de força de trabalho.

Embora o argumento de Prebisch esteja restrito à flexibilidade dos salários e ao excedente de força de trabalho, ele pode facilmente ser derivado para as-pectos mais amplos da estrutura produtiva. A maior flexibilidade de preços dos bens primários pode ser explicada por razões técnicas – maior rigidez da ofer-ta – mas, também, por menores barreiras à entrada. Ou seja, há um amplo potencial produtivo, medido pelo excedente de força de trabalho e técnicas disse-minadas, que pode ser utilizado para ampliar a oferta. No setor industrial ocorre o oposto: oferta restrita de mão-de-obra e técnicas relativamente monopolizadas.

Ao contestar a idéia de que o subdesenvolvimento poderia ser superado através do aprofundamento da divisão internacional do trabalho, com maior especia-lização na produção de bens primários, o autor, em Cepal (1988), levanta alguns elementos de para sua caracterização adicional, pela ótica da hierarquia dos setores ou dos mercados. Assim, a expansão da in-dústria seria capaz de criar os mercados para os pro-dutos primários, mas o contrário não seria verdadei-ro. No esquema analítico utilizado, a razão para tal era atribuída ao crescimento menos que proporcional do consumo de bens primários, ante os bens industriais. Ou seja, os mercados de produtos agrícolas cresce-riam a um ritmo inferior aos mercados de bens in-dustriais, refletindo elasticidades-renda diferenciadas da demanda por esses bens.

Na obra de Celso Furtado, o diagnóstico sobre o subdesenvolvimento ganha momento, ao se aprofun-dar na discussão de seus determinantes: as dimensões domésticas. Assim, por exemplo, em Furtado (1961) e (1992), o desenvolvimento capitalista é visto como um processo de incorporação e difusão de novas téc-nicas, com o conseqüente aumento da produção e da produtividade. A absorção dessa produção ampliada

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seria realizada de modos diversos, mas mormente pelo aumento do consumo, permitido pela transfe-rência dos ganhos de produtividade aos salários. Em contraposição, o subdesenvolvimento é visto como uma versão parcial e bloqueada do desenvolvimento. De um lado, pela propagação desigual do progresso técnico e, de outro, pela transmissão restrita dos ga-nhos de produtividade aos salários.

No plano da distribuição, o autor dá grande ênfase à assimilação desigual do progresso técnico na esfera produtiva e nos estilos de vida, vale dizer nos padrões de consumo, configurando uma característica adicio-nal do subdesenvolvimento. Isto decorreria da má distribuição da renda resultante da não-transmissão dos ganhos de produtividade aos salários, cuja razão última seria o excedente estrutural de mão-de-obra dessas economias.

Comparado ao desenvolvimento, o subdesenvol-vimento possuiria portanto duas especificidades: a ausência de autonomia tecnológica, ou a incapacida-de de gerar periodicamente surto de inovações; e a maior heterogeneidade social expressa numa pior dis-tribuição da renda. O primeiro aspecto desdobra-se na idéia de que, nos países desenvolvidos, a dinâmica do crescimento é comandada pelo progresso técnico, enquanto nos subdesenvolvidos é determinada pela demanda externa, num primeiro momento, e pela demanda insatisfeita por importações, num segundo. O raciocínio completa-se com as considerações so-bre distribuição da renda, pois é a sua concentração – ao implicar padrões de consumo heterogêneos, não massificados – que constitui um limite adicional à aproximação de uma dinâmica semelhante à dos paí-ses desenvolvidos.

A economia política na América Latina avança na crítica à teoria cepalina realizada pela escola de Cam-pinas, em particular por Cardoso de Mello (1998) e Tavares (1998a). Nesses autores, a questão do subde-senvolvimento é vista como dimensão essencial, ou a especificidade do capitalismo tardio. A industriali-zação é tratada como o processo de constituição de forças produtivas capitalistas, capazes de assegurar a reprodução endógena do conjunto do sistema eco-nômico. O subdesenvolvimento confundir-se-ia com a não-constituição dessas forças produtivas e, mais particularmente, com a atrofia do segmento produtor de meios de produção da indústria, cuja implantação

permitiria a autodeterminação do processo de acu-mulação de capital.

A especificidade dessas economias estaria na au-sência das bases materiais, necessárias para permitir a acumulação de capital de modo independente dos mercados prévios, criados pelo setor exportador. A industrialização, por sua vez, é entendida num sen-tido estrito não apenas como dominância do setor industrial na economia, mas também como a inter-nalização ou endogeinização da sua reprodução am-pliada. Isto permitiria à capacidade produtiva crescer independentemente dos mercados prévios, ou adian-te da demanda, numa dinâmica especificamente capi-talista, na qual a decisão de investir e sua efetivação comandam a reprodução do sistema econômico.

Uma questão aparentemente esquecida na escola de Campinas, e na sua crítica à Cepal, diz respeito à heterogeneidade social e, mais particularmente, à dis-tribuição de renda. A omissão é aparente, pois nesta interpretação, a questão da distribuição da renda não é vista como um obstáculo ao desenvolvimento, se e enquanto este for entendido apenas como aquisição e ampliação das forças produtivas especificamente ca-pitalistas. Como a experiência do nacional desenvol-vimentismo demonstrou, foi possível às economias subdesenvolvidas lograrem um ritmo elevado de crescimento e de diferenciação das forças produtivas, sem reduções substantivas na heterogeneidade social e melhoria na distribuição da renda. Desta forma, tal concepção não deixa de ser um avanço, pois consi-dera a dimensão social do desenvolvimento e o seu progresso um campo relativamente independente da-quele produtivo-tecnológico.

No âmbito da economia política latino-americana, embora constitua um inegável avanço em relação às interpretações da Cepal, a contribuição da escola de Campinas possui algumas limitações. A diferenciação da estrutura produtiva em direção à indústria e, par-ticularmente, à internalização do setor produtor de meios de produção constitui uma condição necessá-ria, mas não suficiente, para a autodeterminação do processo de acumulação de capital, ou seja, para o desenvolvimento capitalista. A condição suficiente seria a internalização simultânea das condições para geração do progresso técnico, de maneira autônoma.

A aceleração da industrialização retardatária no período do pós-guerra decorreu das transformações

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no padrão de concorrência no capitalismo central, ao permitir um transbordamento da estrutura pro-dutiva para a periferia, sob a forma de Investimento Direto Estrangeiro. Isto resultou, por exemplo, na grande presença do capital estrangeiro nas estrutu-ras industriais periféricas. Em alguns casos, como o brasileiro, pode-se inclusive realizar a incorporação parcial do setor produtor de meios de produção, mas sem a simultânea capacidade, ou autonomia, para na sua operação, gerar periodicamente um con-junto de inovações.

A questão anterior mostra sua relevância para a discussão dos determinantes do investimento, desde então o principal responsável pela dinâmica do siste-ma. Num regime especificamente capitalista, a inova-ção responde por uma parte significativa da explica-ção da decisão de investimento. Se o setor produtor de meios de produção implantado no país não possui autonomia tecnológica, isto introduz modificações na dinâmica de acumulação de capital, tornando-a es-pecífica e distinta daquelas dos países desenvolvidos.

Há uma outra linha de argumentação no traba-lho de Cardoso de Melo (1998), que avança numa direção importante para caracterizar o subdesenvol-vimento das economias latino-americanas, ao iden-tificar como especificidade das industrializações tar-dias seu ponto de partida, – economias exportadoras capitalistas – associado ao momento histórico – a 2ª Re-volução Industrial – no qual ocorreram. Isto expli-caria porque, desde o início da industrialização, não se pôde implantar o setor de meios de produção, devido às escalas de produção incompatíveis com o tamanho da economia local e ao grau de centra-lização e mobilização de capitais necessários para a realização dos investimentos.

Na mesma direção, ao discutir o desenvolvimen-to do Brasil pela ótica financeira, Tavares (1998b) afirma que, das três funções clássicas do sistema fi-nanceiro – criação de crédito, intermediação finan-ceira e centralização do capital – as duas primeiras tiveram, de um ou outro modo, desenvolvimento sa-tisfatório, enquanto a última permaneceu atrofiada. Referindo-se aos anos 1960 e 1970, durante a fase de restrições à abertura financeira e de repressão do sistema doméstico, a autora defende que foi possível realizar a tarefa de mobilizar recursos para financiar o desenvolvimento, com grande contribuição das

instituições públicas, e direcionar o crédito. Entre-tanto, não foi viável alcançar o objetivo de, na esfera da propriedade da riqueza, concentrá-la e orientá-la para a esfera produtiva. Essa função foi realiza-da, virtual ou passivamente, pelo Estado, que criou formas particulares de mobilização de recursos de longo prazo, que por outro lado, possuíam limitação intrínseca, pois se mobilizava capital de uma forma passiva sem a sua centralização.

A partir das contribuições da economia política lati-no-americana, poder-se-ia caracterizar o subdesenvol-vimento como uma insuficiência em três planos distin-tos: na esfera da propriedade, ou da baixa centralização de capitais; na esfera financeira, ou da pequena capaci-dade de mobilização de recursos; e na esfera produtiva, ou da incompatibilidade entre as escalas de produção definidas pelo padrão tecnológico prevalecente e o ta-manho do mercado local. Como conseqüência, a in-dustrialização dessas economias teria, necessariamen-te, de lançar mão do capital externo, o que as colocaria na dependência do padrão de concorrência intercapi-talista vigente nas economias centrais.

O conjunto das contribuições mencionadas ante-riormente permite, apesar das críticas às suas limi-tações, avançar numa caracterização, estrito senso, do subdesenvolvimento. De acordo com Carneiro (2005), seu ponto de partida é a inconversibilidade monetária, que alcança relevância máxima em regi-mes liberalizados e cuja implicação maior é o baixo grau de centralização de capitais e a pequena capaci-dade de mobilização de recursos. Ou seja, a idéia de subdesenvolvimento deve arrancar da percepção que o capitalismo latino-americano brasileiro e da maioria dos países periféricos não alcançou formas de organi-zação superiores, em particular a etapa financeira.

Quanto ao atraso produtivo-tecnológico propria-mente dito, os elementos centrais são:• ausência de autonomia tecnológica, mesmo em

países como o Brasil que atingiram elevada dife-renciação da estrutura produtiva, cuja implicação é a perda de dinamismo do processo de acumulação de capital, tornando-o mais dependente das deter-minações da demanda;

• escalas técnicas de produção incompatíveis com o tamanho do mercado local;

• maior especialização produtiva em setores com mer-cados de menor elasticidade-renda da demanda;

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• presença significativa do capital estrangeiro e con-seqüente dependência do processo de acumulação dos padrões de concorrência vigentes nas econo-mias centrais.

Os padrões de desenvOlvimentO pós-1980 e as periferias

A discussão do desenvolvimento das economias pe-riféricas e de suas políticas, após os anos 1980, deve considerar, em primeiro lugar, a mudança do contexto internacional prevalecente no pós-guerra, nos marcos do acordo de Bretton Woods. Duas características centrais emergem como relevantes para a constitui-ção desse novo ambiente: a liberalização financeira, no plano doméstico e internacional, e a mudança nos padrões de concorrência intercapitalista.

Embora não seja o objetivo desse artigo discutir a natureza dessas transformações, cabe assinalar ao menos suas tendências e implicações gerais. No pla-no financeiro internacional, a liberalização significou um completo descolamento dos fluxos de capitais da-queles das mercadorias. Maior volume e volatilidade de capitais redundaram em crises monetário-cambiais recorrentes, das quais poucos países periféricos es-caparam ao longo das décadas de 1990 e 2000. Seu efeito maior, todavia, foi o constrangimento à opera-ção das políticas macroeconômicas domésticas, supe-ráveis apenas a partir de certos arranjos particulares, como será visto adiante.

O novo ambiente trouxe novidades relevantes, da perspectiva da concorrência entre empresas, com a ampliação do IDE e o deslocamento de parcelas significativas da atividade industrial para a periferia. Autores como Lall (2002) sugerem que esta relocali-zação ocorreu, sobretudo, em indústrias maduras do ponto de vista tecnológico ou em atividades subsidi-árias ao core produtivo, este último mais intensivo em P&D e cuja localização continuou concentrada nos países desenvolvidos. De qualquer modo, para vários países da periferia, este novo padrão de concorrência constituiu uma janela de oportunidade para avançar no processo de industrialização.

Para países de baixo e médio níveis de renda, a industrialização, entendida como um processo de diversificação da estrutura da indústria e das expor-tações, acompanhada da ampliação do emprego in-

dustrial, constitui o mecanismo por excelência do crescimento sustentado. Ou seja, para esses países, o processo de desenvolvimento confunde-se com o da industrialização. Só quando o nível de renda atinge patamar elevado é que a composição do produto e do emprego muda em direção aos serviços, como ocorre com vários países desenvolvidos.

A avaliação do processo de desenvolvimento pe-riférico, considerado por esse critério, qual seja, o da continuidade e aprofundamento da industrialização, realizado pela Unctad (2003), constata para o Brasil e a América Latina uma visível descontinuidade a partir dos anos 1980, contrastando com sua permanência nos países asiáticos. Enquanto, nesses últimos, a ma-nutenção da performance está associada à preserva-ção do modelo de crescimento orientado para fora, nos latino-americanos a perda de dinamismo coincide com o processo de liberalização, sendo que a substi-tuição da industrialização é centrada no mercado in-terno pela abertura e busca dos mercados externos.

No modelo de crescimento vigente após 1980, que supõe economias mais abertas do que no passado, o paradigma virtuoso implica a simultânea ampliação da taxa de investimento, do valor adicionado industrial e da exportação de manufaturados. A chave do seu sucesso reside na mudança tecnológica, que permi-te aumentar a produtividade e os salários. Com raras exceções, para países de nível de renda intermediário, esses ganhos de produtividade estão inevitavelmente associados à industrialização. Por sua vez, a ausência de autonomia tecnológica, o ponto de partida desse processo, implica necessariamente uma ampliação do coeficiente exportado como mecanismo de aumentar as importações, sobretudo aquelas de meios de pro-dução, condição necessária para adquirir num segun-do momento essa autonomia.

Naqueles casos de melhor performance, a am-pliação do investimento se fez com um acréscimo proporcional do valor adicionado na indústria e da participação dos manufaturados nas exporta-ções. Ou seja, o processo sustentou-se, em última instância, na capacitação para realizar mudanças tecnológicas endógenas e, conseqüentemente, nos ganhos de produtividade. De acordo com tipolo-gia sugerida por Akyuz (2005), esse padrão difere tanto daquele da desindustrialização – entendida como a redução do peso da indústria, no PIB e

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no emprego – como do global sourcing – no qual amplia-se a participação da indústria, mas não ne-cessariamente a autonomia tecnológica.

Uma classificação dos países asiáticos e latino-americanos, realizada a partir desses critérios pela Unctad (2003) e pelo próprio Akyuz (2005), indica uma grande diferenciação entre eles, destacando-se o êxito dos primeiros e o fracasso dos últimos. No es-trato superior, estão países como a Coréia e Taiwan, já considerados avançados do ponto de vista industrial, ou de “industrialização madura”, nos quais a diver-sificação da indústria ocorreu na mesma intensidade das exportações, acompanhada de maior capacitação tecnológica. Um segundo grupo de países asiáticos, constituído por China, Índia, Malásia e Tailândia, apresentou diversificação das exportações mais rápi-da comparativamente à estrutura industrial, indican-do que o processo nesses países teve maior peso das networks globais. Todavia, a participação da indústria no produto permitiria classificar esses países como uma nova geração de nações industrializadas. Em ca-sos como das Filipinas e do México, a diversificação na exportação de manufaturas esteve muito à frente da ampliação do valor adicionado industrial, o que in-dica forte presença do global sourcing, podendo-se clas-sificá-los como países industrializados de enclave.

Para a totalidade dos países latino-americanos, in-cluindo Argentina e Brasil, observou-se um processo de estagnação, tanto do peso do valor adicionado in-dustrial no PIB quanto da participação das exporta-ções de manufaturados. Nos dois países, houve um pequeno ganho nesses indicadores, concentrado no segmento de transporte. Por fim, o Chile constitui um caso singular, pois demonstrou maior dinamismo quanto à taxa de investimento, apesar de uma regres-são no valor adicionado industrial e na participação dos manufaturados nas exportações, isto é, esse país realizou uma re-especialização primário-exportadora exitosa. Ao fim e ao cabo houve nesses países um processo de desindustrialização.

Do ponto de vista da produtividade, o estudo da Unctad (2003) constata um aumento mais generaliza-do na Ásia ante a América Latina, ao qual correspon-de, nos primeiros, um acréscimo do peso dos setores industriais intensivos em tecnologia e, nos últimos, uma ampliação daqueles intensivos em trabalho e re-cursos naturais. A essa mudança na estrutura produti-

va está associada uma modificação, na mesma direção, da composição do comércio exterior. Nos asiáticos, as exportações também adquirem um crescente con-teúdo tecnológico e dirigem-se, portanto, a mercados mais dinâmicos, ao contrário dos latino-americanos, com raras exceções.

as pOlíticas de desenvOlvimentO

Uma tentativa de explicação para performances tão diversas deve considerar dois níveis das estratégias de desenvolvimento: a forma de integração dessas econo-mias à economia globalizada; e o arranjo político-institu-cional doméstico, ambos fundados em conjuntos articu-lados de políticas. Do ponto de vista mais concreto, é possível distinguir dois padrões distintos de política econômica, envolvendo formas diversas de articula-ção Estado-mercado. De acordo com Akyuz (2005), na experiência asiática, estiveram presentes, em maior ou menor grau, a estabilidade da taxa de câmbio, o controle governamental dos fluxos financeiros exter-nos e o gerenciamento da concorrência, incluindo a coordenação das decisões de investimento. O padrão latino-americano foi de corte liberal e realizado sob a consigna do Consenso de Washinton get the prices right. Compreendeu a dupla liberalização: externa e inter-na, sendo a primeira fundada nas aberturas comercial e financeira e, a segunda, na supressão das políticas seletivas de desenvolvimento e na privatização.

No que tange à estratégia de integração, a literatu-ra recente, como Dooley, Folkerts-Landau e Graber (2003a), (2003b) e (2004), distingue dois tipos de pe-riferia: os países trade accounts e os capital accounts. No primeiro grupo, encontram-se os países asiáticos, nos quais prevalece uma articulação à economia globali-zada centrada no comércio e no investimento direto. Esses países optaram por um tipo de integração, no qual o comércio e IDE constituem o elemento dinâ-mico do crescimento.

Faz parte desse padrão uma taxa de câmbio es-tável ante a moeda-chave, cujo intuito é a obtenção sistemática de superávits comerciais expressivos, que constituem elemento de estímulo direto ao cresci-mento e permitem, através da acumulação de reser-vas em moeda forte, uma maior autonomia da política macroeconômica doméstica. Em vários países dessa região, a acumulação de reservas não é o elemento

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exclusivo dessa arquitetura para administrar a taxa de câmbio e dar independência aos juros. Ela opera em simultâneo com a regulação dos fluxos de capitais.

A estabilidade da taxa de câmbio desempenha pa-pel que transcende a viabilização ou sustentação da autonomia da política macroeconômica, constituin-do-se em elemento essencial para assegurar a com-petitividade das exportações de manufaturados, nas quais a concorrência é acirrada. Ademais, viabiliza o cálculo da rentabilidade dos investimentos externos e do valor dos seus ativos, em moeda reserva. Em resumo, sustenta a estratégia de crescimento centrada nas exportações e na atração de investimento direto estrangeiro, o export led growth.

Os países da América Latina fazem parte dos ca-pital accounts e optaram por integrar-se à economia globalizada, preferencialmente, através dos fluxos de capitais. Essas economias são marcadas por regimes de câmbio flutuante, via de regra com taxas voláteis, aos quais associaram-se déficits comerciais e de tran-sações correntes e um predomínio dos investimentos de portfólio e do IDE de natureza patrimonial. Em geral, o nível de reservas em moeda forte é bastante inferior ao observado nos países asiáticos. Ademais, há poucas restrições à mobilidade de capitais, tornan-do a taxa de câmbio mais instável e implicando perda de autonomia da política econômica doméstica, que fica atrelada e dependente dos movimentos de capi-tais especulativos.

Essa estilização, com suas exceções, indica que, do ponto de vista da articulação à economia globa-lizada, as regiões diferem segundo o grau de estabi-lidade conferido à taxa de câmbio, elemento central na definição dos preços relativos para as decisões de investimento e para constituição da autonomia da po-lítica macroeconômica doméstica. Ela reflete, sobre-tudo, uma estratégia de articulação com a economia global (comércio mais IDE versus investimentos de portfólio) e também uma preocupação em superar o handicap da inconversibilidade da moeda, presente na constituição de reservas expressivas na moeda- chave e na regulação dos fluxos de capitais, com o intuito de eliminar a volatilidade da taxa de câmbio.

O ciclo de crescimento da economia internacional observado após 2002, no qual combinaram-se farta liquidez e um crescimento expressivo de preços e volumes no mercado internacional, permitiu a vários

países considerados capital accounts reverterem o sinal das suas balanças em transações correntes e acumu-larem reservas internacionais em montantes signifi-cativos. A questão de fundo, nesse caso, reside mais nos aspectos permanentes da integração, vale dizer, no perfil do comércio exterior e dos fluxos de capi-tais e, também, em alguns indicadores quantitativos, como o volume dos saldos de transações correntes e das reservas. Dessa perspectiva, as diferenças entre os dois grupos de países mantêm-se inalteradas.

Para discutir os arranjos domésticos, ou a estrutu-ração de políticas ativas de desenvolvimento, é perti-nente separar também os dois grupos de países, pois, enquanto os asiáticos seguiram padrões mais ou me-nos definidos de intervenção governamental a experiência latino-americana foi marcada por uma indiscutível liberalização. O êxito dos primeiros e o fracasso dos segundos indicam, preliminarmente, que a superação do subdesenvolvimento não é tarefa a ser deixada às forças do mercado.

De acordo com Akyuz, Chang e Kozul-Wright (2001), apesar da diferença entre grupos de países, como será discutido adiante, há nos asiáticos um ele-mento estratégico comum no processo de combate ao subdesenvolvimento, consubstanciado na busca da superação da restrição de divisas, sem recorrer excessivamente ao endividamento externo. Assim, o chamado export led growth tinha esse objetivo de lon-go prazo e, ademais, visava também utilizar as ex-portações líquidas como elemento de ampliação da demanda efetiva. As divisas escassas eram utilizadas para ampliar a formação de capital, evitando-se uma precoce diferenciação do consumo.

Segundo os autores, em razão da fraca base de re-cursos naturais, não havia outra alternativa aos países asiáticos a não ser a industrialização. Isto colocava duas questões distintas: a escolha inicial dos setores; e a posterior diferenciação e up-grading da estrutura produtiva. No primeiro aspecto não houve maiores dificuldades, dada a existência de uma fronteira tec-nológica muito além daquela existente nos países, prevalecendo o critério de economia de divisas na escolha dos setores a serem implantados. Na poste-rior autonomização tecnológica, a política econômica desempenhou papel crucial ao proteger e incentivar os setores produtores de bens de capital e intermediá-

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rios e ao operar uma política de capacitação tecnoló-gica centrada na transferência e adaptação.

No âmbito dos países asiáticos, deve-se conside-rar a existência de dois padrões distintos de política econômica: aquele relativo ao primeiro elo (first tier), englobando países como Coréia e Taiwan; e o atinen-te ao segundo elo (second tier), juntando Malásia, Filipi-nas, Tailândia e Cingapura. Isto é, nos primeiros hou-ve intervenção governamental mais aprofundada e constituíram sistemas industriais mais diversificados, com cadeias produtivas mais complexas, enquanto nos demais predominou com mais ou menos inten-sidade o global sourcing. Países como China e Índia devem ser considerados exceções, combinando, ao mesmo tempo, intervenção estatal mais estruturada e inserção mais dependente das networks globais.

Apesar das diferenças, pode-se constatar, nos paí-ses asiáticos, a presença de elementos de intervenção comuns com intensidade variável. O principal instru-mento foi manter a política industrial que tinha como base o crédito dirigido, fundado em sistemas finan-ceiros “reprimidos”, e a política seletiva de comércio exterior. O fundamento da política industrial era o da viabilização da indústria nascente, ou seja, da criação de incentivos temporários, creditícios, fiscais e tari-fários, para a implantação e consolidação de setores industriais. Assim, essa política operava sob o pressu-posto de que as forças de mercado seriam incapazes de viabilizar a industrialização, sendo necessário dis-torcer temporariamente os preços para implantá-la.

De acordo com Chang (2002), a política indus-trial cumpriu pelo menos três tarefas distintas nos países asiáticos: • realizou um gerenciamento da concorrência, atra-

vés da coordenação dos investimentos, evitando a construção do excesso de capacidade, a guerra de preços e a concorrência predatória;

• adequou o tamanho das plantas à escala mínima requerida, abaixo da qual as perdas de eficiência seriam expressivas;

• dirimiu a resistência dos perdedores através do planejamento das perdas de ativos tangíveis ou in-tangíveis;De acordo com BIS (2001), os sistemas financei-

ros dos países asiáticos mantiveram-se relativamente imunes às transformações ocorridas nos outros paí-ses, e em escala global, ao longo dos anos 1990. Na

maioria dos países, exceto a Coréia, a propriedade do sistema bancário continuou largamente domina-da pelos bancos locais, com presença expressiva dos bancos estatais. A função de concessão de crédito continuou a mais importante comparativamente às operações de tesouraria e de prestação de serviços.

As economias latino-americanas foram marcadas, desde os anos 1980 e com maior amplitude nos 1990, por um processo de liberalização, interno e externo, de maior intensidade e amplitude. De acordo com Kuzinsky e Williamson (2003), na América Latina, a adoção da agenda do Consenso de Washington substituiu elementos históricos do modelo de cres-cimento, cujas características eram a orientação para o mercado interno, em particular nos países maiores como Brasil, México e Argentina, e uma decisiva par-ticipação e regulação estatal. Nesse último aspecto, cabe observar a desarticulação dos mecanismos de intervenção oriundas da crise fiscal e financeira do Estado, decorrente da crise da dívida nos anos 1980.

A experiência latino-americana após 1980 abarca três processos distintos e complementares também observados em intensidades variáveis segundo o país: as aberturas comercial e financeira e a privatização. A abertura financeira e a redução das dívidas após o Pla-no Brady permitiram às economias latino-americanas embarcarem num novo ciclo de endividamento, cen-trado em novas formas, entre as quais sobressaem os financiamentos de curto prazo e de portfólio. Como resultado desse novo ciclo, observou-se o retorno da vulnerabilidade externa dessas economias, expressa na deterioração dos indicadores de solvência e liquidez.

Segundo o BIS (2001), o binômio desnaciona-lização-privatização marca a trajetória do sistema financeiro latino-americano após os anos 1990 e faz parte do conjunto de reformas inspiradas nos princípios liberais. Apesar dessa significativa trans-formação na estrutura da propriedade, não há evi-dências de mudanças significativas na operação dos sistemas financeiros, nos quais continua a prevalecer as operações de curto prazo, ante as de longo prazo, e os ganhos de tesouraria em detrimento daqueles oriundos do crédito.

A abertura comercial realizada, via de regra, num curto espaço de tempo acarretou, para a maioria das economias latino-americanas, um processo de espe-cialização regressiva, com o aumento do peso rela-

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tivo das indústrias e das exportações intensivas em recursos naturais e trabalho. Por fim, o processo de privatização que atingiu indistintamente os países lati-no-americanos teve duas conseqüências importantes: reduziu o peso do setor produtivo estatal na forma-ção da taxa de investimento, eliminando um impor-tante mecanismo de coordenação do modelo anterior e, em simultâneo, ampliou o peso dos ciclos externos na determinação da taxa doméstica de investimento, em razão da maior desnacionalização da propriedade das empresas. Isto foi viabilizado pela flexibilização e, em alguns casos, completa desregulação da partici-pação do IDE, nos sistemas industriais, nos serviços públicos e nos sistemas financeiros domésticos. Ao contrário da Ásia onde predominaram os investimen-tos em novas plantas e sujeitos a critérios de desem-penho, na América Latina houve maior peso do IDE patrimonial sem esses critérios.

Da perspectiva do arranjo doméstico da política econômica, as regiões diferem por uma maior impor-tância das várias formas de intervenção governamen-tal, mais amplas e articuladas na Ásia, em contrapo-sição à maior desregulação e conseqüente peso do mercado nas decisões econômicas na América Latina. Em termos sintéticos, pode-se afirmar que o caráter seletivo das políticas asiáticas contrasta com a nature-za horizontal das políticas latino- americanas.

Da ótica da dimensão social, as experiências também são distintas. De acordo com You (2001), a menor heterogeneidade social nos países asiáticos em desenvolvimento, em particular, Coréia e Taiwan, deve-se sobretudo a uma distribuição mais igualitária da propriedade que, nesses países, teve como marco as reformas do pós-guerra e, em particular, a reforma agrária. Esta última, além de contribuir diretamente para a menor heterogeneidade social também in-fluenciou decisivamente a distribuição de renda nas atividades urbano-industriais, ao estabelecer, na práti-ca, um piso de remuneração mais alto.

Adicionalmente, como mostra Chang (2002), fazia parte das estratégias de industrialização da maioria dos países asiáticos, o desestímulo à diferenciação do consumo visando obter mercados mais amplos ou massificados, para ampliar as escalas de produção e fortalecer a competitividade da indústria. Na América Latina, e particularmente no Brasil, essas políticas via de regra não estiveram presentes. Ao contrário, a di-

ferenciação do consumo associado à reconcentração da distribuição da renda e à implantação do setor de bens duráveis constituiu um dos elementos de acele-ração do crescimento nos anos 1960 e 1970. A partir de uma herança de forte concentração da proprieda-de, não se registra nenhum processo massivo de des-concentração, em particular no domínio fundiário. Na mesma direção, as políticas de estabelecimento do piso de remuneração foram, na maioria dos países, esvaziadas, pela deterioração do seu valor real.

cOnclusões

As razões para o êxito e o fracasso do desenvolvi-mento das economias periféricas, numa ordem inter-nacional globalizada, foram delineadas neste texto. Uma das lições relevantes do fracasso das experiên-cias liberais na América Latina diz respeito à sua in-capacidade em ir além da conquista da estabilidade inflacionária, ou seja, sua incompetência em formular e implantar um corpo adequado de políticas econô-micas capazes de criar um horizonte de longo prazo para o crescimento, permitir o avanço da industriali-zação com gradação tecnológica e reduzir a heteroge-neidade social dos países da região.

Todavia, não basta apenas constatar que, nos países que obtiveram êxito – os asiáticos –, as políticas tive-ram um outro formato e definiram relações Estado-mercado mais favoráveis ao desenvolvimento. Para repensar o desenvolvimento no Brasil e na América Latina, deve-se partir não apenas dessas constatações, mas também da percepção de que alguns caminhos, sobretudo aqueles advindos da integração via indús-tria com as economias centrais, o chamado export led growth, têm menor possibilidade de serem persegui-dos, sendo que uma das razões principais para tal é, exatamente, o sucesso asiático, cujo efeito prático foi dificultar a reprodução desse caminho para o restante da periferia.

Em síntese, a experiência histórica dos países asi-áticos após os anos 1980, em contraste com aquelas dos países latino-americanos, nos quais permane-ceram as características essenciais do subdesenvol-vimento, sugere que a tarefa do desenvolvimento requer, nesses países, antes de tudo, uma modifica-ção nas relações Estado-mercado, com ampliação da ação do primeiro para enfrentar as fragilidades

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genéticas dessas economias, tais como: inconver-sibilidade monetária; atraso tecnológico; e hetero-geneidade social. É necessário também reconhecer que os desafios ampliaram as exigências sobre as

políticas econômicas, sobretudo no que diz respeito à sua coerência e articulação, na sua capacidade de enfrentar de maneira simultânea e não excludente as várias dimensões do subdesenvolvimento.

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RicaRdo caRneiRo

Professor do Instituto de Economia e Pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp.

Artigo recebido em 9 março de 2006. Artigo aprovado em 2 de maio de 2006.

Como citar o artigo:CARNEIRO, R. O desenvolvimento revisitado. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 20, n. 3, p. 73-82, jul./set. 2006. Disponível em: <http://www.seade.gov.br>; <www.scielo.br>.

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P ode-se dizer que a gestação do neodesenvolvimentis-mo já dura quinze anos, porque foi exatamente no início da última década do século passado que ocorreram simultaneamente três dos principais choques cognitivos formadores de seu embrião. Em 1990, foi lançado o primeiro relatório anual do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, que legitimou o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH. Praticamente um ano depois, houve a mais completa consagração da incômoda – e, de algum modo, concorrente – noção de “desenvolvimento sustentável” na conferência da Organização das Nações Unidas – ONU que ficou conhecida como “Rio-92”.

Foi entre esses dois eventos que surgiu a corrente “pós-desenvolvimento”,1 que não deve continuar ignorada por aqui só porque contaria com poucos adeptos no contexto latino-americano. Exatamente o contrário está ocorrendo em outras partes do mundo, como indica a expansão da Rede de Objeção ao Crescimento para o Pós-Desenvolvimento – ROCADe. 2 Além de romper com a redução conceitual do desenvolvimento ao cresci-mento econômico e de incorporar a ecossistêmica, o neodesenvolvimentismo só nascerá se superar, no sentido hegeliano, o chamado pós-desenvolvimento.

Por isso, este artigo se concentra numa apresentação crítica das idéias dessa corrente, após brevíssima menção aos bem mais conhecidos bordões do “desenvolvimento humano” e do “desenvolvimento sustentável”. No final, ele se apóia em algumas idéias de Celso Furtado, que certamente será um dos principais patronos de um possível neodesen-volvimentismo, para mostrar o contraste com o que está sendo chamado no Brasil de “novo-desenvolvimentismo”.

Resumo: Depois de revisar os significados das expressões “desenvolvimento humano”, “desenvolvimento sustentável” e “pós-desenvolvimento”, este artigo se apóia em algumas idéias de Celso Furtado para explicitar o contraste já existente entre o que poderá ser o

“neodesenvolvimentismo” e aquilo que está sendo chamado no Brasil de “novo-desenvolvimentismo”.

Palavras-chave: Desenvolvimento. Pós-desenvolvimento. Neodesenvolvimento.

Abstract: After reviewing the meaning of the expressions “human development”, “sustainable development”, and “post-development”, this article borrows from the ideas of Celso Furtado in order to explain the contrasts that already exist between what might come to be called

as “neodevelopment” and what, in Brazil, is being referred to as “novo-desenvolvimentismo”.

Key words: Development. Post-development. Neodevelopment.

NEODESENVOLVIMENTISMOquinze anos de gestação

José Eli da VEiga

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DESENVOLVIMENTO: HUMANO E SUSTENTÁVEL

O tratamento dado à idéia de desenvolvimento na passagem para o século XXI pelo Prêmio Nobel de Economia de 1998 Amartya Sen foi um aperfeiçoa-mento da contribuição oferecida no final dos anos 1980 ao PNUD, como um dos dez consultores in-ternacionais convocados pelo paquistanês Mahbub ul Haq. Depois de ter trabalhado por muitos anos no Banco Mundial, Mahbub formara a convicção de que uma das piores pragas contra o desenvolvimento era a falta de uma alternativa à renda per capita, sempre que a questão fosse a de avaliá-lo ou medi-lo. Como arquiteto do Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, publicado anualmente pelo PNUD desde 1990, seu maior desejo foi o de criar um indicador sintético ca-paz de fornecer a seus usuários uma espécie de hodô-metro do desenvolvimento. 3

Nem seria necessário conhecer profundamente a obra de Amartya Sen para prever que ele se opo-ria a esse tipo de ambição. Se, ao final das contas, desenvolvimento é expansão das liberdades subs-tantivas, como imaginar a possibilidade de captar tal fenômeno mediante um indicador sintético? E não deu outra.

O indiano manifestou ao querido colega e amigo paquistanês seu profundo ceticismo com respeito à idéia de que algum índice pudesse sintetizar a realida-de complexa do processo de desenvolvimento.

Um breve relato desse diálogo foi feito pelo próprio Amartya Sen em contribuição especial ao Relatório de 1999. Mahbub concordava com a pre-cariedade inevitável de qualquer indicador sintéti-co do desenvolvimento, mas insistia que a tirania da renda per capita nunca seria colocada em xeque por um kit de tabelas, por melhores que elas pu-dessem ser. Os leitores talvez até as admirassem, mas assim que precisassem de uma medida sinté-tica, voltariam à renda per capita em razão de sua simplicidade e comodidade.

Sen recorda que, enquanto ouvia os argumentos de Mahbub, pensava num poema de T.S. Eliot sobre a incapacidade do gênero humano de agüentar a reali-dade em demasia... “Nós precisamos de uma medida, dizia Mahbub, tão simples quanto o PIB – uma única

cifra – mas que não seja tão cega em relação aos as-pectos sociais da vida humana”. Ele esperava que um índice desse tipo, além de complementar o uso do Produto Interno Bruto – PIB, suscitaria mais interes-se pelas demais variáveis que seriam apresentadas nas longas tabelas do Relatório.

Na citada contribuição especial, Sen dá sua mão à palmatória. “Devo admitir que Mahbub tinha inteira razão nesse aspecto, e me felicito pelo fato de não termos tentado impedi-lo de procurar uma medida sumária.” Ou seja, o emprego mais razoável do poder de atração do IDH é aquele que estimula seus usuá-rios a consultarem também o amplo sortimento de tabelas estatísticas e análises críticas detalhadas for-necidas anualmente pelos relatórios.

Na concepção de Sen e de Mahbub, só há desen-volvimento quando os benefícios do crescimento servem à ampliação das capacidades humanas, en-tendidas como o conjunto das coisas que as pesso-as podem ser ou fazer na vida. As mais elementares destas são quatro: ter uma vida longa e saudável; ser instruído; ter acesso aos recursos necessários a um nível de vida digno; e ser capaz de participar da vida da comunidade. Na ausência destas quatro, estarão indisponíveis todas as outras possíveis escolhas.

Muitas oportunidades na vida permanecerão ina-cessíveis. Além disso, há um pré-requisito fundamen-tal que precisa ser explicitado: as pessoas têm que ser livres para que suas escolhas possam ser exercidas, para que garantam seus direitos e se envolvam nas decisões que afetarão suas vidas.

As pessoas são as verdadeiras riquezas das nações, diz o Relatório de 2004. Na verdade, o objetivo básico do desenvolvimento é alargar as liberdades huma-nas. O processo de desenvolvimento pode ampliar as capacidades humanas, expandindo as escolhas que as pessoas têm para ter vidas plenas e criativas. Estas pessoas são tanto beneficiárias desse desenvol-vimento como agentes do progresso e da mudança que provocam. Tal processo deve beneficiar todos os indivíduos eqüitativamente e basear-se na participa-ção de cada um deles. Esta é a abordagem do de-senvolvimento que tem sido defendida por todos os Relatórios do Desenvolvimento Humano, desde o primeiro, em 1990.

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NEoDEsENVolViMENTisMo: quiNzE ANos DE gEsTAção 85

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Ponto de Partida

É potencialmente infinita a gama de capacidades que os indivíduos podem ter e as escolhas que podem aju-dar a expandir essas capacidades, embora varie muito conforme a pessoa. Mas como as políticas públicas precisam fixar prioridades, são dois os critérios úteis na identificação das capacidades mais importantes para avaliar o progresso mundial na realização do bem-estar humano, objetivo dos Relatórios. Em pri-meiro lugar, essas capacidades devem ser universal-mente valorizadas. Em segundo, devem ser básicas para a vida, no sentido de que sua ausência impediria muitas outras escolhas. Por essas razões, os Relatórios incidem nas quatro capacidades mencionadas acima: vida longa e saudável, conhecimento, acesso aos re-cursos necessários para um padrão de vida digno e participação na vida da comunidade.

O desenvolvimento depende da maneira como os recursos gerados pelo crescimento econômico são utilizados – se para fabricar armas ou para produzir alimentos, se para construir palácios ou para dispo-nibilizar água potável. Resultados humanos, como participação democrática na tomada de decisão ou igualdade de direitos para homens e mulheres, não dependem dos rendimentos. Por essas razões, os Relatórios apresentam um conjunto extensivo de in-dicadores (33 quadros e quase 200 indicadores) so-bre importantes resultados conseguidos em países de todo o mundo, como a esperança de vida ao nascer, as taxas de mortalidade de menores de cinco anos (que refletem a capacidade de sobreviver) e as taxas de alfabetização (que refletem a capacidade de apren-der). Também incluem importantes indicadores sobre a possibilidade de realizar essas capacidades, como o acesso à água potável, e sobre a eqüidade na reali-zação, como os hiatos entre homens e mulheres na escolarização ou na participação política.

É verdade que este rico conjunto de indicadores fornece medidas para avaliar o desenvolvimento em suas muitas dimensões. Mas não é menos verdade que as decisões políticas muitas vezes demandam uma medida sumária que incida mais claramente no bem-estar humano do que no rendimento. Para esse fim, os Relatórios publicam o IDH, que vem sendo

completado por índices que observam especifica-mente o gênero (índice de desenvolvimento ajustado ao gênero e medida de participação segundo o gê-nero) e a pobreza (índice de pobreza humana). Tais índices dão uma perspectiva de algumas dimensões básicas do desenvolvimento, mas devem ser comple-tados pela análise dos dados e de outros indicadores que lhes são subjacentes.

É preciso enfatizar, todavia, que o PNUD en-tende o IDH como ponto de partida. Recorda que o processo de desenvolvimento é muito mais amplo e complexo do que qualquer medida sumária conse-guiria captar, mesmo quando completada com outros índices. Ou seja, o IDH não é uma medida compre-ensiva, pois não inclui, por exemplo, a capacidade de participar nas decisões que afetam a vida das pessoas e de gozar o respeito dos outros na comunidade. Afi-nal, uma pessoa pode ser rica, saudável e muito ins-truída, mas, sem essa capacidade, o desenvolvimento é retardado.

A omissão dessa dimensão cívica tem sido real-çada desde os primeiros Relatórios. Em 1991, levou o PNUD a criar um índice da liberdade humana, e, em 1992, um índice da liberdade política. Nenhuma dessas medidas sobreviveu ao seu primeiro ano, o que testemunha a dificuldade de quantificar adequa-damente aspectos tão complexos do desenvolvimen-to. A saída foi tratar extensivamente desses temas, mas de forma mais qualitativa. Em 2002, foi a vez da democracia, por exemplo, e, em 2004, o Relatório foi dedicado ao tema da liberdade cultural.

De qualquer forma, é importante assinalar que o IDH permite ilustrar com clareza a diferença entre rendimento e bem-estar. A Bolívia, com PIB per capita muito inferior ao da Guatemala, atingiu IDH mais alto porque fez mais para traduzir esse rendimen-to em desenvolvimento. A Tanzânia, um dos países mais pobres do mundo, tem IDH comparável ao da Guiné, um país quase quatro vezes mais rico. Pelo contrário, países com o mesmo nível de rendimento têm grandes diferenças de IDH. O Vietnã tem pra-ticamente o mesmo rendimento do Paquistão, mas IDH muito mais alto, devido à maior esperança de vida e alfabetização. O Sri Lanka ocupa, no IDH, a

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posição 96 dentre 177 países, muito mais alta que sua posição no PIB.

O principal defeito do IDH é que ele resulta da média aritmética dos três índices mais específicos que captam longevidade, escolaridade e renda. Mesmo que se considere inevitável a ausência de outras di-mensões do desenvolvimento, para as quais ainda não há disponibilidade de indicadores tão cômodos como a ambiental, a cívica ou a cultural, é duvidoso que seja essa média aritmética a que melhor revele o grau de desenvolvimento atingido por uma determinada coletividade. Ao contrário, é mais razoável supor que o cerne da questão esteja justamente no possível des-compasso entre o nível de renda obtido por deter-minada comunidade e o padrão social que conseguiu atingir, mesmo que revelado apenas pela escolaridade e longevidade.

SuStentabilidade

Será verdade que o desenvolvimento pode ser ambien-talmente sustentável? Duas constatações lastreiam essa dúvida. Por um lado, as inúmeras sociedades, que há milhares de anos operam de modo mais ou menos sustentável, não fazem parte do restrito clube das nações hoje consideradas desenvolvidas, nem da periferia “em desenvolvimento”. Por outro, são por demais complexos os obstáculos para que sejam sus-tentáveis muitos dos estilos de acelerado crescimento atingido nos dois últimos séculos. É, pois, forçoso constatar que ainda não surgiu resposta científica para essa pergunta. Não há evidências definitivas que autorizem seguro otimismo ou ceticismo.

Até o final dos anos 1970, a sustentabilidade foi um conceito circunscrito à biologia populacional – usado, principalmente, em pesquisas sobre manejo da pesca e de florestas. Já se demonstrou, por exemplo, que uma gestão inteligente das atividades pesqueiras permitiria que a humanidade tirasse muito mais peixe dos oceanos sem provocar corrosão de seus estoques. No entanto, com a manutenção das recorrentes prá-ticas predatórias atuais, é certo de que essa fonte de proteína estará em breve comprometida. Tragédia, pois o pescado fornece hoje 40% de todas as pro-teínas (vegetais e animais) consumidas dos países do

Sul, além de ser o maior manancial proteico de mais de 1 bilhão de asiáticos.

Pode ser fácil explicar e entender o sentido da pa-lavra sustentabilidade quando aplicada ao manejo da pesca, mas isso deixou de ser verdade desde que foi transferida, por analogia, para o processo de desen-volvimento como um todo. A novíssima expressão “desenvolvimento sustentável” foi publicamente empregada pela primeira vez em agosto de 1979, no Simpósio das Nações Unidas sobre as Inter-relações entre Recursos, Ambiente e Desenvolvimento. En-tão, começou a se legitimar como o maior desafio deste século quando Gro Harlem Brundtland, a pre-sidente da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a caracterizou como “conceito político” perante Assembléia Geral da ONU de 1987 (BRUNDTLAND, 1987).

A lembrança dessa gênese só pode exigir outra pergunta: o que fez com que um restrito conceito da biologia populacional, que permanecia ignorado pela maioria dos mortais até o início da década de 1990, passasse rapidamente a ser usado com tanta desen-voltura para qualificar o desenvolvimento? Qualquer resposta que se encontre para esta indagação evi-denciará a existência de sólida base material para tão brusca inovação retórica. Há pelo menos uma dúzia de problemas ambientais suficientemente sérios para que não possa ser descartado cenário de colapsos semelhantes aos da civilização maia. Não adianta-rá encontrar solução para alguns desses problemas sem que se consiga resolver os outros. Mesmo que se reduza a velocidade do aquecimento global, sem enfrentar a questão da água, esta sozinha poderá des-truir sociedades contemporâneas.

Diversos motivos induziram grandes sociedades a fazer opções desastrosas, como explicou Jared Diamond, premiado biogeógrafo evolucionista da Universidade da Califórnia (DIAMOND, 2005). Al-gumas foram incapazes de antecipar um problema grave, por não conservarem a memória de calamida-des anteriores ou por terem feito falsas analogias com situações conhecidas. Outras não se deram conta de que o problema já se manifestava, seja pela insufi-ciência do conhecimento científico, por absenteísmo das elites que poderiam tomar as boas decisões, ou

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porque o problema se manifestou como uma lenta tendência marcada por desconcertantes flutuações. Todavia, também houve muitos casos em que a op-ção pelo desastre decorreu do comportamento racio-nal das elites no poder, cujos interesses se chocavam aos do restante da sociedade. É claro que também houve ocorrência de comportamento irracional, principalmente por motivações religiosas. Finalmen-te, em situações bem mais raras, sociedades puderam identificar o problema, entendê-lo e tentar resolvê-lo – mas, infelizmente, ele estava acima de sua capaci-dade de combate.

O PÓS-DESENVOLVIMENTO

Há sete autores que devem ser destacados como os principais expoentes intelectuais dessa corrente.

Em primeiro lugar, o diplomata iraniano Majid Rahnema, que editou a mais completa coletânea sobre o tema, em co-autoria com uma economista australiana menos conhecida (RAHNEMA; BA-WTREE, 1997).

Em segundo, tanto o professor suíço Gilbert Rist, autor de uma das melhores histórias da idéia de desenvolvimento (RIST, 1997), como o economista e jornalista mexicano Gustavo Esteva, que cinco anos antes havia editado, com Rahnema e Rist, a primeira plataforma da futura rede (RIST; RAHNEMA; ESTEVA, 1992).

Finalmente, pelo menos outros quatro, com vasta produção, além de constante presença na mídia: o ambientalista alemão Wolfgang Sachs, o economista francês Serge Latouche, o antropólogo colombiano Arturo Escobar e a ativista internacional Susan George.4

No entanto, bem mais importante talvez seja a herança intelectual reivindicada pela corrente. Ela vai de Mahatma Gandhi a Václav Havel, passando por E. F. Schumacher, François Partant, Frantz Fanon, Gordian Troeller, Hannah Arendt, Henry D. Thoreau, Ivan Illich, Josué de Castro, Karl Polanyi, Marcel Mauss, Marshall Sahlins, Martin Luther King, Michel Foucault, Nicholas Georgescu-Roegen, Paulo Freire, Pierre Clastres e Teodor Shanin. Também são considerados como precursores ou inspiradores:

Aimé Cesaire, Augusto Boal, Bernard Charbonneau, Chefe Seattle, Eduardo Galeano, Ignacio Ramonet, Jacques Ellul, James Petras, Jaya Prakash Narayan, Joseph Kizerbo, Louis Dumont, Marshall Berman, e Vandana Shiva.5 Um leque tão vasto e heterogêneo, que dificulta bastante a tarefa de sintetizar as idéias em que se baseia o pós-desenvolvimento.

FundamentoS

O ideário do pós-desenvolvimento poderia ser apre-sentado em cinco dimensões: • valorização das sociedades que não se desenvol-

veram; • desvalorização da idéia de progresso; • crítica dos principais vetores do desenvolvimento

(economia, Estado-nação, educação, ciência, colo-nização mental, pensamento único, meios de co-municação e organizações internacionais);

• crítica das práticas desenvolvimentistas; • elogio dos modos de resistência dos perdedores

que estão abrindo o caminho para a era do “pós-desenvolvimento”. Todavia, desde o início, seus verdadeiros fundamentos parecem se concentrar nos dois primeiros tópicos, abordados a seguir, os quais ficaram bem mais explícitos no Manifesto da rede ROCADe do que estavam na coletânea de Rahnema.

Valorização das sociedades que não se desenvolveramValorizar as sociedades em pré-desenvolvimento, freqüentemente chamadas de primitivas, pobres, subdesenvolvidas, etc., constitui a primeira linha de argumentação. Como não poderia deixar de ser, é Marshall Sahlins quem fornece os alicerces. Como enfatiza, há 40 anos foi oficialmente reconhecida pelos antropólogos a possibilidade de que simples bandos de caçadores/coletores possam desfrutar de ótimas vidas. O primeiro capítulo de um livro que se tornou célebre – Stone Age Economics, publicado em 1972 – expandiu as idéias apresentadas no simpósio Man the Hunter, realizado em Chicago em 1965.

Todavia, parece bastante abusivo concluir que “a evolução tenha despencado em termos de bem estar humano”, como fazem os organizadores da coletâ-

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nea, na apresentação do texto de Sahlins The affluent society.6 Na verdade, o que Sahlins realmente contesta é o entendimento mais comum da pobreza. Diz-se que, todas as noites, entre um terço e metade da hu-manidade costuma ir para a cama com fome. Com certeza, na Idade da Pedra essa fração era bem me-nor. Então, a fome aumenta em termos relativos e absolutos com a evolução da cultura. Esse “parado-xo” constitui seu principal argumento. Mas ele nada diz sobre os níveis de mortalidade e de expectativa de vida nas sociedades de caçadores.

Mas o pior mesmo é o uso que fazem da palavra “evolução” para se referir à mudança cultural. Exis-tem, de fato, tantas semelhanças entre a evolução bio-lógica e a cultural que alguns cientistas chegam a se perguntar se alguns dos mesmos princípios não esta-riam funcionando em ambas. No entanto, são muito mais importantes as vias pelas quais as culturas não “evoluem”. A rigor, é lamentável que se empregue um mesmo termo – evolução – para a história natural e para a história das sociedades humanas (ou história cultural). Isso mais confunde do que esclarece.

É claro que muitos aspectos dos dois fenômenos são semelhantes. O problema é que as diferenças sobrepujam em muito as similaridades. Infelizmen-te, quando se fala de “evolução cultural”, é inevitá-vel que inconscientemente se dê a entender que esse processo tem semelhança básica com o fenômeno mais amplamente descrito pelo mesmo nome: a mu-dança natural, ou darwiniana. A designação comum de “evolução” conduz a um dos mais sérios erros de análise da história humana: o pressuposto reducio-nista de que o paradigma da revolução científica rea-lizada por Charles Darwin (1809-1882) também sirva para entender a história das sociedades humanas. É exatamente o inverso do que pensa Sahlins.

A mais óbvia diferença entre a evolução darwinia-na e a mudança cultural reside na enorme capacidade que tem a cultura – e que falta à natureza – para a rapidez explosiva e a direcionalidade cumulativa. Em incomensurável piscar de olhos, a mudança cultural humana transformou a superfície do planeta, como nenhum acontecimento da evolução natural poderia ter jamais conseguido. Além disso, as espécies não se amalgamam ou se juntam com outras. Elas interagem

numa rica variedade de modos ecológicos, mas não podem se juntar fisicamente em uma única unidade reprodutiva. A evolução natural é um processo de constante separação e distinção, enquanto a mudança cultural recebe um poderoso reforço do amálgama e da anastomose de diferentes tradições. O impacto explosivamente útil (ou destrutivo) de tradições com-partilhadas fornece à mudança cultural humana um mecanismo desconhecido no mundo bem mais lento da evolução darwiniana.

A evolução natural não abrange qualquer princípio de progresso previsível ou de movimento no sentido de maior complexidade. Já a mudança cultural é po-tencialmente progressiva ou autocomplexificadora, porque a herança acumula inovações favoráveis pela transmissão direta e o amálgama de tradições permi-te que qualquer cultura escolha e junte as invenções mais úteis de diversas sociedades separadas.

A humanidade interage com o meio no empenho de efetivar suas potencialidades. Por isso, na base da reflexão sobre o desenvolvimento existe implicita-mente uma teoria geral do homem, uma antropologia filosófica. A insuficiência dessa teoria permite enten-der o freqüente deslizamento para o reducionismo econômico e sociológico. Todavia, o tema central do estudo do desenvolvimento é a criatividade cultural e a morfogênese social, assuntos que permanecem pra-ticamente intocados.

Por que uma sociedade apresenta em determinado período de sua história uma grande capacidade criadora é algo que nos escapa. Menos sabemos ainda por que a criatividade se orienta nesta ou naquela direção (FURTADO, 2000, p. 7).

Desvalorização da idéia de progressoA segunda parte da coletânea de Rahnema, intitulada “O paradigma do desenvolvimento”, reuniu pesada artilharia contra a idéia de progresso. O primeiro texto, escrito especialmente para esse livro pelo pro-fessor Teodor Shanin, já anuncia, a contragosto, uma das principais dificuldades dos que decidem rejeitar a retórica do progresso: a falta de uma alternativa que evite a inconseqüência. Em seguida, com base no “método” de Foucault, o texto de Arturo Escobar resvala em concepção conspirativa da história ao pro-

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curar mostrar que as políticas de desenvolvimento se tornam mecanismos de controle tão efetivos e abran-gentes quanto seus equivalentes coloniais. Segue-se um ensaio e uma longa entrevista com Ivan Illich, dos quais só se pode concluir que ele deve ter sido o verdadeiro “guru” do pós-desenvolvimento. No fe-chamento dessa segunda parte, o próprio Rahnema faz uso de recurso metafórico para identificar o de-senvolvimento a uma outra variedade de AIDS.

Para os membros da ROCADe, o desenvolvi-mento foi a continuação do colonialismo por ou-tros meios. A atual mundialização, por sua vez, não passa da continuação do desenvolvimento por outros meios. Por isso, proclamam a necessidade de distin-guir o desenvolvimento como mito e como realidade histórica.

Para eles, o desenvolvimento realmente existen-te é um empreendimento que visa transformar em mercadorias as relações dos homens entre eles e com a natureza. Trata-se de explorar e obter lucros dos recursos naturais e humanos. Empreendimento que agride a natureza e os povos, tanto quanto a coloni-zação e a mundialização, o desenvolvimento é obra simultaneamente econômica e militar de dominação e conquista. Esse é o desenvolvimento real, que domi-na o planeta há três séculos e que engendra a maioria dos atuais problemas sociais e ambientais: exclusão, superpopulação, pobreza, poluições diversas, etc.

Já o conceito mítico de desenvolvimento é vítima de um dilema, dizem os adeptos do pós-desenvol-vimento. Por um lado, poderia designar tudo e seu contrário, particularmente o conjunto das experiên-cias de dinâmica cultural da história da humanidade, da China dos Han ao Império Inca. Neste caso, se-gundo eles, não designa nada de particular, nem tem qualquer significado útil para promover uma política, sendo melhor descartá-lo. Por outro lado, tem um conteúdo próprio, que necessariamente designa tudo o que caracteriza a aventura ocidental da decolagem da economia da forma ocorrida desde a revolução in-dustrial inglesa dos anos 1750-1800. Aqui, seja qual for o adjetivo que lhe seja aposto, o conteúdo implí-cito ou explícito do desenvolvimento é o crescimen-to econômico, a acumulação de capital com todos os seus conhecidos efeitos positivos e negativos. Esse

núcleo duro está indissoluvelmente ligado a relações sociais bem particulares, que são aquelas do modo de produção capitalista.

Os antagonismos sociais são largamente ocultos pela força de “valores” mais ou menos partilhados por todos: o progresso, o universalismo, a domação da natureza, a racionalidade quantificável. Tais valo-res, sobre os quais está alicerçado o progresso, estão longe de corresponder a aspirações universais pro-fundas; mas estão ligados à história do Ocidente e têm pouco eco em outras sociedades. Fora dos mitos que a fundamentam, dizem eles, a idéia de desenvol-vimento é totalmente vazia de sentido. Hoje, esses valores ocidentais são exatamente aqueles que pre-cisam ser contrariados para que sejam encontradas soluções aos problemas do mundo contemporâneo e se evitem as catástrofes anunciadas pela economia mundial. Em poucas palavras: “pós-desenvolvimen-to” é, a uma só vez, pós-capitalismo e pós-moderni-dade. As novas roupagens do desenvolvimento, “hu-mano” ou “sustentável”, não passariam de manobras fraudulentas.

deFiniçõeS e ConCeitoS

A quem pedir uma definição de “pós-desenvolvimen-to”, os adeptos da corrente responderão que ela ain-da não existe por que se quer radicalmente diferente de tudo o que se conheceu até o presente. Evocam, então, a afirmação de Albert Einstein segundo a qual não se pode resolver um problema com as maneiras de pensar que o engendraram. Uma definição só será possível depois que a “era do desenvolvimento” tiver sido ultrapassada.

Esse período começou, segundo eles, em 24 de junho de 1949, com a mensagem que o presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, enviou ao Con-gresso com o Point Four Programme. Na introdução do Dicionário do Desenvolvimento, Wolfgang Sachs (2000) diz que o colapso dos poderes coloniais europeus forneceu aos Estados Unidos a oportunidade de dar dimensões globais à missão que lhes havia sido legada por seus fundadores: ser “a luz no cimo do monte”. Lançaram o conceito de desenvolvimento com um apelo para que todas as nações seguissem seus passos.

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Durante meio século, a política de boa vizinhança no planeta foi formulada à luz do “desenvolvimento”. Mas, agora, esse farol apresenta fissuras sérias e co-meça a desmoronar.

O conceito de desenvolvimento é como uma ruína na paisagem intelectual. Ilusões e reveses, fracassos e crimes foram assíduos companheiros e todos eles relatam uma mesma estória: o de-senvolvimento não deu certo [...] ficou defasado [...] tornou-se obsoleto (SACHS, W. 2000, p. 11).

Esta talvez seja a questão mais importante para que se entenda a maneira de pensar dos adeptos do “pós-desenvolvimento”. Eles não aceitam que as so-ciedades humanas estejam se desenvolvendo há mi-lênios, pelo menos desde a revolução neolítica, que teve muito mais importância e impacto que a revolu-ção industrial. Acham que o fenômeno só começou com o chamado crescimento econômico moderno e que sua ideologia só teria surgido, com muito atraso, depois da II Guerra Mundial.

Como óbvia decorrência, o Manifesto da ROCADe diz que no centro da análise desse movimento está a contestação radical da noção de desenvolvimento que, apesar de algumas mudanças formais, perma-nece como ponto de ruptura decisivo no interior do movimento de crítica do capitalismo e da mundializa-ção. Há, de um lado, os que militam por um proble-mático “outro” desenvolvimento (ou uma não menos problemática “outra” mundialização), e outros, como os adeptos da ROCADe, que querem sair simultanea-mente do desenvolvimento e do “économisme”.7 A cor-rente pretende proceder a uma verdadeira “descons-trução” do pensamento econômico, começando por colocar em xeque as noções de crescimento, pobreza, necessidades, ajuda, etc.

Ao colocar radicalmente em questão o conceito de desenvolvimento, as pessoas e associações parti-cipantes da rede pretendem realizar uma subversão cognitiva da qual dependeriam as necessárias mu-danças políticas, sociais e culturais, as quais deveriam construir uma sociedade alternativa à de mercado. Uma sociedade em que valores econômicos cessa-riam de ser centrais (ou únicos). Em vez de expansão da produção e do consumo, trata-se, para os adeptos

dessa corrente, de colocar outras significações e ou-tras razões de ser no centro da vida humana.

As principais palavras de ordem da rede são, por-tanto, “resistência e dissidência”, para que possam ser construídas “sociedades convivais”. Convival, segun-do Ivan Illich, é a relação em que os meios servem ao ser humano e aos grupos sociais, e não o contrário, como ocorre na sociedade industrial. Nesse senti-do, sociedades convivais se opõem não somente à sociedade industrial como à financeira e midiática do século XXI. Por isso, a corrente considera que não deve haver qualquer tipo de cumplicidade ou colaboração com o empreendimento de mutilação cerebral e de destruição que constitui a ideologia desenvolvimentista.

retração

Segundo os membros da ROCADe, a retração das economias deve ser organizada não apenas para pre-servar o meio ambiente, mas também para restaurar um mínimo de justiça social, sem a qual o planeta estará condenado à explosão. Assim, sobrevivência e sobrevida sociais estão estreitamente ligadas à so-brevivência e sobrevida biológicas. Os limites do pa-trimônio natural não colocam apenas um problema de justiça entre gerações na partilha das partes dis-poníveis, mas de repartição justa entre os membros atualmente vivos da humanidade.

No entanto, retração, isto é, o decréscimo do pro-duto, não significa imobilismo conservador. Quase todas as sabedorias consideravam que a felicidade se realizava na satisfação de um número judiciosamente limitado de necessidades. A evolução e o crescimen-to lento das sociedades antigas se integravam numa reprodução alargada bem temperada, mais ou me-nos adaptadas às circunstâncias naturais. Organizar a retração significa, portanto, renunciar ao imaginário econômico, à crença de que mais é igual a melhor.

Além disso, retração não significa para eles cres-cimento negativo. É óbvio que uma simples redução do crescimento empurraria as sociedades atuais para o desespero em razão do desemprego e do abandono de programas sociais, culturais e ambientais que ga-rantem um mínimo de qualidade de vida. É também

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fácil imaginar a catástrofe que seria uma taxa negativa de crescimento.

Assim como não há nada pior do que uma socie-dade trabalhista sem trabalho, também não há nada pior que uma sociedade de crescimento sem cresci-mento. A retração só pode ser vislumbrada, segundo eles, com uma organização na qual o lazer seja valori-zado no lugar do trabalho, as relações sociais subordi-nem a produção e o consumo de coisas descartáveis, inúteis e até nocivas. Uma redução feroz do tempo de trabalho imposta para assegurar emprego satisfatório a todos é, pois, condição sine qua non.

PaíSeS do Sul

Tudo isso pode ser sintetizado no programa dos seis “R” proposto ao Fórum das ONGs realizado no Rio de Janeiro: Reavaliar, Reestruturar, Redistribuir, Re-duzir, Reutilizar e Reciclar. Esses seis objetivos inter-dependentes geram o círculo virtuoso do decréscimo convival e sustentável.

Mas, no que diz respeito especificamente aos pa-íses do Sul, trata-se menos de decrescer (ou de cres-cer) do que de retomar o fio de sua história rompido pela colonização, o imperialismo e o neo-imperialis-mo militar, político, econômico e cultural. O resgate de sua identidade é requisito prévio às soluções apro-priadas para seus problemas. Todavia, em nenhum caso, a contestação do desenvolvimento deve apare-cer como empreendimento paternalista ou universa-lista que o assimilaria a uma nova forma de coloniza-ção (ecológica, humanitária, etc.). Esse risco é sério, pois os ex-colonizados interiorizaram os valores do colonizador.

Mesmo que suas raízes sejam mais profundas, o imaginário econômico e, particularmente, o desen-volvimentista, é, sem dúvida, ainda mais forte no Sul que no Norte. As vítimas do desenvolvimento tendem a encontrar o remédio ao seu sofrimento no agravamento do mal. Acham que o único meio de acabar com a pobreza é o econômico, enquanto é jus-tamente ele que a engendra. O desenvolvimento e a economia constituem problema, não solução. A pre-tensão e o desejo do contrário é parte do problema.

Em suma, segundo seu Manifesto, os objetivos da ROCADe podem ser bem resumidos em quatro pontos:• conceber e promover resistência e dissidência à

sociedade de crescimento e de desenvolvimento econômico;

• reforçar a coerência teórica e prática das iniciativas alternativas;

• fazer nascer verdadeiras sociedades autônomas e convivais;

• lutar pela descolonização do imaginário economi-cista dominante.

avaliação CrítiCa

Depois de fazer tão circunstanciada apresentação da corrente do “pós-desenvolvimento” e de seu atual ideário, é necessário dizer, em poucas palavras, quais são as principais restrições que não podem deixar de ser feitas por adeptos do projeto de um futuro “neo-desenvolvimentismo”, por mais heterogeneidade que possa haver entre eles. Para tanto, nada melhor do que evocar aquele que certamente seria um de seus principais patronos, Celso Furtado.

Aquilo que pode haver de positivo nas idéias dos adeptos do “pós-desenvolvimento” foi formulado há mais de 30 anos por Furtado no livro O mito do desen-volvimento econômico (FURTADO, 2005). Para lembrar de seu conteúdo, basta que se reproduza aqui uma curta passagem:

Cabe, portanto, afirmar que a idéia de desenvolvimento econômico é um simples mito. Graças a ela, tem sido possível desviar as atenções da tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais da coletividade e das possibilidades que abrem ao homem o avanço da ciência, para concentrá-las em objetivos abstratos, como são os investimentos, as exportações e o crescimento (FURTADO, 2005, p. 89-90, grifo meu).

A questão que se coloca, então, é a de saber por que esse grande pensador continuou perseverando na formulação teórica do desenvolvimento, em vez de mergulhar nessas águas turvas de imediato combate ao crescimento econômico ou de uma recusa quase

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pueril do capitalismo, da globalização e do progresso em geral. Uma resposta bem concisa ele mesmo deu na apresentação à Pequena Introdução ao Desenvolvimento (FURTADO, 1980), escrita para a reedição de 2000 que leva o título de Introdução ao desenvolvimento: enfo-que histórico-estrutural:

Como o desenvolvimento traduz a realização das potenciali-dades humanas, é natural que se empreste à idéia um senti-do positivo. As sociedades são consideradas desenvolvidas à medida que nelas o homem logra satisfazer suas necessidades e renovar suas aspirações. O estudo do desenvolvimento tem, portanto, como tema central a criatividade cultural e a mor-fogênese social, temática que permanece praticamente intocada (FURTADO, 2005, p. 7).

Os mitos têm exercido inegável influência sobre a mente dos homens empenhados em compreender a realidade social. Os cientistas sociais têm sempre buscado apoio em algum postulado enraizado num sistema de valores que raramente chegam a explicitar. O mito congrega uma série de hipóteses que não po-dem ser testadas. Contudo, essa não é uma dificulda-de maior, pois o trabalho analítico se realiza em nível muito mais próximo da realidade. A função principal do mito é orientar, em um plano intuitivo, a constru-ção daquilo que o grande economista Joseph Alois Schumpeter (1883-1950) chamou de “visão” do pro-cesso social, sem a qual o trabalho analítico não teria qualquer sentido. Uma visão pré-analítica. Assim, os mitos operam como faróis que iluminam o campo de percepção do cientista social, permitindo-lhe ter uma visão clara de certos problemas e nada ver de outros, ao mesmo tempo em que lhe proporciona confor-to intelectual, pois as discriminações valorativas que realiza surgem ao seu espírito como um reflexo da realidade objetiva.

Sempre segundo Furtado, a literatura sobre o de-senvolvimento econômico nos dá um exemplo me-ridiano desse papel diretor dos mitos nas ciências sociais: pelo menos 90% de seu conteúdo se funda na idéia, que se dá por evidente, segundo a qual pode ser universalizado o desenvolvimento econômico, tal qual vem sendo praticado pelos países que lideraram a revolução industrial. Os padrões de consumo da

minoria da humanidade, que atualmente vive nos paí-ses altamente industrializados, poderão ser acessíveis às grandes massas de população em rápida expansão que formam a periferia. Essa idéia constitui, segura-mente, um prolongamento do mito do “progresso”, elemento essencial na ideologia diretora da revolu-ção burguesa, na qual se criou a atual sociedade in-dustrial.

O mais importante é que a idéia de desenvolvi-mento está no cerne da visão de mundo que preva-lece em nossa época. Nela se baseia o processo de invenção cultural que permite ver o homem como agente transformador do mundo, disse Furtado um quarto de século depois, na já citada apresentação à Introdução ao Desenvolvimento.

A humanidade interage com o meio no empenho de efetivar suas potencialidades. Por isso, na base da reflexão sobre esse tema, existe implicitamente uma teoria geral do homem, uma antropologia filosófica. É a insuficiência dessa teoria que permite entender o freqüente deslizamento para o reducionismo eco-nômico e sociológico. Todavia, o tema central do estudo do desenvolvimento é a criatividade cultural e a morfogênese social, assuntos que permanecem praticamente intocados.

Por que uma sociedade apresenta, em determinado período de sua história, uma grande capacidade cria-dora é algo que nos escapa, salienta Furtado (2000, p. 7-8). Muito menos se sabe por que a criatividade se orienta nesta ou naquela direção. Não se conhece a razão pela qual, neste ou naquele momento de sua história, uma sociedade favorece a criação de técnicas e não de valores substantivos. Menos conhecidos ain-da são os determinantes que orientam a criatividade de valores substantivos para o plano estético, religio-so, político ou do saber puro. O gênio inventivo do homem foi canalizado nos últimos 200 anos para a criação técnica, o que explica sua extraordinária capa-cidade expansiva.

A esse quadro histórico deve-se atribuir o fato de que a teoria do desenvolvimento em nossa época se haja circunscrito à lógica dos meios, tendendo a confundir-se com a explicação do sistema produtivo que emergiu com a civilização industrial (FURTADO, 2000, p. 8).

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Notas

1. A primeira reunião internacional dos pós-desenvolvimentis-tas foi realizada em 1991, em Genebra, por iniciativa conjunta do Instituto de Estudos sobre o Desenvolvimento e a Fundação Eckenstein, com relatório intitulado Le Nord perdu: repères pour l’après-développement (RIST et al., 1992).2. Ver Réseau des Objecteurs de Croissance pour l’Après-Développement (ROCADe), em <http://www.apres-developpement.org>.3. Como crítico do Banco Mundial, Mahbub ul Haq havia sido membro do Fórum Terceiro Mundo, e contribuído para três célebres relatórios: “Brandt”, “Sul” e da Fundação Hammarskjöld. Além de Amartya Sen, ele convocou para ajudá-lo a construir o novo índice: Paul Streeten, Frances Stewart, Meghnad Desai, Gustav Ranis, Keith Griffin, Aziz Khan, Shlomo Angel, Pietro Garau e Mashesh Patel.

4. Há pelo menos um outro importante autor, Richard B. Norgaard, que não aparece entre os componentes dessa cor-rente, embora tenha publicado, em 1994, livro com idêntico conteúdo.

5. Lista baseada na coletânea organizada por Rahnema (1997) e na seção “Precursores” do site da ROCADe, visitado em fe-vereiro de 2006.

6. “Sahlins reverses conventional wisdom and proposes that evolution has been downhill in terms of human welfare.” (RAHNEMA; BAWTREE, 1997, p. 3).

7. Expressão pejorativa que poderia ser traduzida ao pé da letra por “economicismo”, já que “economismo” seria um neologis-mo para a ciência ou para o sistema dos economistas. Não dei-xa de ser sintomático que nenhum dos dois termos apareça no Dicionário de Economia do Século XXI, de Paulo Sandroni (2005).

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Só pode evidenciar imenso contraste qualquer com-paração entre essas idéias de Celso Furtado e aquilo que está sendo chamado no Brasil de “novo-desenvol-vimentismo”. Pelo menos na excelente coletânea com esse título organizada por João Sicsú et al. (2005), não se encontra o menor rastro das rupturas cognitivas

que geraram as noções de “desenvolvimento huma-no” e “desenvolvimento sustentável”, para nem falar do debate com os adeptos do “pós-desenvolvimento”. Usando as palavras de Furtado, esse “novo-desenvol-vimentismo” é apenas mais um dos freqüentes desliza-mentos para o reducionismo econômico.

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94 José Eli DA VEigA

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José Eli da VEiga

Professor Titular da USP, Departamento de Economia e Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental. (www.econ.fea.usp.br)

Artigo recebido em 16 de março de 2006. Artigo aprovado em 11 de maio de 2006.

Como citar o artigo:VEIGA, J. E. Neodesenvolvimentismo: quinze anos de gestação. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 20, n. 3, p. 83-94, jul./set. 2006. Disponível em: <http://www.seade.gov.br>; <www.scielo.br>.

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A prefeitura municipal de São Paulo, na gestão Mar-ta Suplicy, implantou o orçamento participativo – OP, a partir de 2002. O artigo busca discutir a experiência sob um enfoque socioeconômico (caráter redistributivo do gasto público) e sociopolítico (características da partici-pação popular diante do poder municipal), levando em conta as análises sobre a experiência de Porto Alegre.

Em sociedades nas quais vicejam tantas desigualdades socioeconômicas, diante das quais há um sentimento difuso de que os governos municipais pouco fizeram ao longo da história, partidos situados à esquerda no espectro político (como o Partido dos Trabalhadores, da prefeita Marta Suplicy) geralmente reconhecem a necessidade de redistribuir o gasto público em favor da população mais carente.

Uma medida geralmente utilizada para avaliar o caráter redistributivo do orçamento é a participação dos gas-tos das secretarias voltadas às áreas sociais no total dos recursos, considerando-se que são dos gastos realizados apenas nas áreas relacionadas mais diretamente à melhoria das condições de vida das populações mais carentes, como educação (incluindo abastecimento – alimentação escolar –, esportes e cultura), saúde, habitação, assis-tência social e trabalho (programas de emprego e renda).

Esta distinção genérica pode ser alterada de acordo com as carências específicas de cada população e a atu-ação dos governos em cada local. No caso de São Paulo, a classificação poderia ser diferente se, por exemplo, boa parte dos gastos com transportes estivesse custeando o programa do bilhete único e este beneficiasse,

Resumo: O artigo discute o orçamento participativo na cidade de São Paulo, avaliando que seu montante de recursos foi pequeno e que não houve redistribuição em favor dos gastos sociais no orçamento. As soluções adotadas para os critérios de distribuição e a formação de interesses comuns suscitam dúvidas quanto à

capacidade da população ter discutido, de maneira autônoma e aprofundada, as perspectivas de atendimento às suas demandas.

Palavras-chave: Orçamento. Redistribuição. Participação popular.

Abstract: The article discusses the participatory budget in Sao Paulo, considering that it’s amount of funds was short and that there was not redistribution in behalf of social expenditures in the budget. The solutions adopted for the distribution criterions and the public interest’s formation raise doubts concerning population’s

ability to have argued the perspectives of meeting their claims in an autonomous and deepened way.

Key words: Budget. Redistribution. Popular participation.

OrçamentO, redistribuiçãO e participaçãO pOpular nO municípiO de sãO paulO

Carlos alberto bello

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prioritariamente, aquelas populações. Como este pro-grama foi implementado apenas durante 2004, não é possível avaliar com certeza quais seriam seus gastos anuais. No entanto, o perfil dos potenciais beneficiá-rios não tende a contemplar majoritariamente tais populações, pois, enquanto a Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED mostrava que, em 1997, os 50% mais pobres da Região Metropolitana de São Pau-lo – RMSP auferiam um rendimento médio de até R$ 500,00, a tabulação especial da pesquisa Origem-Destino, realizada pela Cia. do Metropolitano de São Paulo naquele ano, indicava que apenas 11,3% dos usuários amostrados no Município de São Paulo (de perfil econômico semelhante ao da RMSP) possuíam rendimento inferior a R$ 500,00.1

Cabe ressaltar ainda que esse artigo analisa o orçamento previsto pela administração Marta Suplicy para o período 2001-2004, comparando-o ao orçamento executado em 2000 pela gestão Celso Pitta. O orçamento previsto, embora muitas vezes não corresponda ao executado,2 traduz as intenções do governo perante a sociedade, permitindo assim analisar sua proposta de distribuição do gasto públi-co. Além disso, o orçamento previsto é a referência através da qual a população toma parte dos processos participativos.

Nota-se, na Tabela 1, que não houve redireciona-mento de gastos para as áreas tipicamente sociais, en-tre 2000 e 2004, uma vez que sua participação no gas-to total da prefeitura de São Paulo oscilou de 42,4% para 42,5%.

Apesar do grande aumento dos gastos nas áreas de educação e saúde (mais de 140% em quatro anos), houve um decréscimo de 24% de habitação (incluin-do o gasto fiscal na Companhia Metropolitana de Habitação – Cohab) e em outras áreas, cabendo cha-mar a atenção para a perda relativa das Secretarias de Assistência Social e do Trabalho, num contexto de aumento da pobreza e do desemprego na cidade.

As secretarias classificadas como prestadoras de serviço público aumentaram sua participação no or-çamento total em 2,6 pontos porcentuais entre 2000 e 2004. Cabe salientar que nesta classificação foram incluídas atividades que não se caracterizam como ti-picamente sociais e tampouco como áreas típicas de

atividades-meio, como as de administração (incluindo gestão das dívidas). Nota-se, inicialmente, o aumento dos gastos da Secretaria de Transportes, especialmen-te entre 2003 e 2004 (cerca de 136%), ocasionando um incremento de 4,7 pontos porcentuais na sua participação relativa. Houve também crescimento ex-pressivo nos gastos da Secretaria de Obras (459% no período). Somando os gastos previstos para as Secre-tarias de Transportes e de Serviços e Obras, verifica-se um aumento de 5,5 pontos porcentuais da sua par-ticipação no orçamento total (de 9,9% para 15,4%), revelando um incremento de 236% nos quatro anos, 55% acima da expansão das receitas (116%).

O aumento do serviço da dívida da prefeitura (125% entre 2000 – último ano do governo Pitta – e 2004) certamente limitou a expansão dos demais gas-tos, mas o crescimento da sua participação nos gastos totais (de 25,2% para 26,3%), além de não ter sido tão grande, foi totalmente absorvido e superado pela redução na participação dos gastos de áreas de plane-jamento e gestão da prefeitura e do Legislativo (Câ-mara Municipal e Tribunal de Contas) de 9,1% para 5,3% do total. Assim, esse conjunto de contas passou de 34,3% para 31,6% do gasto total, possibilitando à prefeitura ampliar expressivamente os gastos em ou-tras áreas, vale dizer, acima do considerável aumento da receita de 116%.

Em suma, não houve aumento na participação dos gastos das áreas tipicamente sociais no orçamento to-tal, ao contrário do que seria de se esperar de uma prefeitura petista, ainda mais tendo-se em vista que a redistribuição tornou-se mais viável financeiramente devido à grande ampliação de receitas (incremento total de 84,4% entre 2000 e 2004) e à economia de gastos nas áreas administrativas, a qual absorveu o crescimento dos encargos da dívida pública. Este re-sultado cria incerteza sobre a possibilidade de o OP constituir-se em espaço favorável ao atendimento das reivindicações das populações mais carentes, embora o OP não esteja necessariamente voltado a essas de-mandas, e que podem ser atendidas através de proce-dimentos centralizados no governo.

A avaliação do OP em São Paulo parte da defini-ção do montante total de fundos a ser distribuído por meio dos processos participativos. As informações

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ORçAmenTO, RediSTRiBuiçãO e PARTiCiPAçãO POPulAR nO muniCíPiO de SãO PAulO 97

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disponibilizadas pela prefeitura não indicam uma predefinição desse montante, baseada em critérios como parcelas do orçamento não previamente com-prometidas com gastos de custeio (incluindo gastos financeiros) e/ou com investimentos já iniciados. Portanto, não havia procedimentos institucionaliza-dos para decisão sobre o montante de recursos a ser destinado ao OP.

O volume de recursos aprovado pela prefeitura para distribuição através do OP abrangeu 5% do orçamen-

to total previsto para 2002 e 6,2% para 2003 (PMSP, 2002, 20033). A despeito do aumento de 37% no perío-do, superior ao crescimento de 10,6% previsto para os gastos totais, trata-se de um porcentual relativamente pequeno quando comparado à experiência de Porto Alegre, onde o OP distribuiu de 9% a 15% dos re-cursos totais entre 1991 e 2000 (MARquETTi, 2003). Este valor exprime a magnitude relativa dos recursos sobre os quais a prefeitura abre mão da sua prerrogati-va unilateral de decisão,4 em favor dos processos parti-

tabela 1

Participação no Orçamento Municipal, segundo SecretariasMunicípio de São Paulo – 2000-2004

Secretarias 2000 (%) 2003 (%) 2004 (%) Variação 2004/2000 (%)

Social 42,4 43,4 42,5 + 0,1

Educação 15,6 17,9 (1) 17,4 + 1,8

Saúde 12,4 13,3 (1) 15,4 + 3,0

Habitação 5,4 3,9 1,9 - 3,5

Assistência Social e Trabalho 4,2 4,0 3,5 - 0,7

Abastecimento (2) 2,2 2,1 (1) 2,5 + 0,3

Esporte e Cultura 2,6 2,2 (1) 1,8 - 0,8

Serviço Público 23,3 21,8 25,9 + 2,6

Transportes 8,2 6,3 11,0 + 2,8

Serviços e Obras 1,7 4,9 4,4 + 2,7

Infra-estrutura Urbana (3) (1) 12,9 (1) 8,8 (1) 9,1 - 3,8

Meio-ambiente 0,5 0,8 0,5 0

Segurança Urbana 0 1,0 0,9 + 0,9

Dívidas e Administração 34,3 34,8 31,6 - 2,7

Planejamento e Gestão (4) 4,8 3,5 3,1 - 1,7

Encargos Gerais 25,2 28,5 26,3 + 1,1

Legislativo 4,3 2,8 2,2 - 2,1

Orçamento (em bilhões de reais) 6,6 10,6 14,3 116

Fonte: PMSP (2002, 2003, 2004).(1) Incluem despesas previstas para as funções principais das respectivas secretarias, cuja realização coube às subprefeituras e/ou à secretaria das subprefeituras.(2) Classificada como área social porque predominam os gastos na função educação. (3) Trata-se de gastos relativos às funções saneamento e urbanismo. (4) Gastos das secretarias de Gabinete, Comunicação Social, Finanças, Planejamento Urbano, Gestão Pública, Relações Internacionais, Negócios Jurídicos e Ouvidoria.Nota: Orçamento realizado em 2000, previsto para 2003 e 2004.

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cipativos, nos quais ela precisa convencer os cidadãos a apoiar suas demandas.

Não se deve subestimar as dificuldades para au-mentar o volume de recursos para o OP. No caso de Porto Alegre, Marquetti (2003) mostra que os inves-timentos – logo o montante a ser distribuído atra-vés do OP – foram reduzidos de 15% para 8,5% do orçamento total realizado entre 1995 e 2000, devido ao aumento do salário real dos funcionários públicos em decorrência da queda da inflação, a qual também teria aumentado o custo dos serviços prestados à po-pulação, juntamente com a expansão da oferta desses serviços. Os gastos com saúde e educação passaram de cerca de 20% para 31% do orçamento total, entre 1984/1988 e 1990/2000 (média dos períodos). As-sim, trata-se de um motivo razoável para a redução dos recursos para o OP, inclusive porque este foi em parte responsável pelo aumento daqueles gastos – para funcionar, os novos equipamentos públicos precisam de pessoal e de material de consumo. Ao contrário, em São Paulo, sequer a elevação dos gastos sociais poderia ser usada como justificativa para o pe-queno volume de recursos destinados ao OP.

Verifica-se, ainda, que, em São Paulo, os gastos to-tais cresceram 36,6% entre 2000 e 2003 e o aumento do serviço da dívida da prefeitura foi absorvido pela redução em outros gastos. Essas evidências signifi-cam que a prefeitura passou a ter maior autonomia para expandir gastos nas áreas que priorizasse, o que pode ser observado através do aumento de 128,5% das despesas de capital nas quais detinha uma certa autonomia de gasto,5 fazendo com que tais despesas passassem de 9,9% para 12,5% do orçamento total, pelo menos cinco pontos porcentuais acima dos re-cursos distribuídos através do OP.

Para 2004, as informações são conflitantes, mas não indicam aumento da importância do OP no or-çamento total. A prefeitura informou, em arquivo disponibilizado na Internet (PMSP, 2004, quadros resumo), que o OP teria envolvido R$ 1,1 bilhão do orçamento para 2004. No arquivo Plano de Obras do OP, fala-se em mais de R$ 700 milhões, tendo sido estimadas de uma forma geral (sem especificação) as demandas a serem atendidas pelas Secretarias de Transportes, de Desenvolvimento, Trabalho e Soli-

dariedade – SDTS, de Serviços e Obras e parte das demandas da Educação. Juntando apenas as informa-ções disponibilizadas por secretarias, chega-se a um valor de R$ 559,5 milhões, o que representa uma re-dução de 15,5% diante dos R$ 661,88 milhões apro-vados para 2003.

Não é improvável que os recursos alocados ao OP pudessem chegar aos R$ 700 milhões citados, se fos-sem somados cerca de R$ 100 milhões referentes a obras na Educação (com rubrica OP no orçamento, sugerindo tratar-se de obras aprovadas em anos ante-riores), R$ 1,25 milhão relativos à área de Serviços e Obras (valor alocado na rubrica indicada nos arquivos relativos ao OP) e pouco menos da metade do aumen-to de R$ 85 milhões da dotação da SDTS, embora as demandas a serem atendidas pelos programas dessa pasta dependam do cadastramento dos cidadãos. Ain-da assim, os R$ 700 milhões representariam cresci-mento de 5,8% em relação a 2003, bastante inferior ao incremento de 34,9% observado no orçamento total (R$ 10,593 bilhões para R$ 14,294 bilhões).

Somente o valor informado pela prefeitura – R$ 1,1 bilhão – representaria aumento da proporção do OP no orçamento total entre 2003 e 2004 (de 6,25% para 7,70%), mas isto só ocorreria se o OP, a partir dos R$ 700 milhões citados, contasse ainda com cerca da metade dos R$ 788,9 milhões previstos para as duas rubricas da Secretaria dos Transportes, mencionadas nos documentos relativos ao OP – pro-jetos do gabinete da secretaria e do Fundo Municipal do Sistema de Corredores Exclusivos para Tráfego. Parece pouco plausível supor que a distribuição des-ses recursos pudesse ser decidida majoritariamente através dos processos do OP, uma vez que estas ru-bricas destinam-se, em boa medida, à realização de obras já definidas no âmbito da reestruturação do sistema de transporte urbano.

Em suma, a ausência de informações detalhadas e a alusão a três números substancialmente diferentes, sendo que apenas para o menor há especificação das obras ou serviços envolvidos e dos seus custos de re-alização, tornam inviável a realização da análise pelos valores mais elevados mencionados pela prefeitura. Caso os R$ 700 milhões tivessem prevalecido, ainda assim representariam apenas 4,9% do orçamento to-

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tal previsto para 2004, uma proporção menor do que a estabelecida para 2003.

Por outro lado, cabe ressaltar o redirecionamen-to relativamente pequeno dos gastos públicos para as áreas sociais que foram objeto dos processos do OP em 2002 e 2003. Os gastos totais previstos para as áreas de educação, saúde e habitação chegaram a 33,3% do gasto total em 2000, aumentando para 35,1% em 2003. No entanto, a outra área inserida no OP em 2003 (melhoria de bairros) teve redução de sua participação no orçamento total (de 7,8% para 5,1%), fazendo com que o conjunto de áreas nas quais o OP poderia distribuir recursos registrasse de-créscimo de 41,1% para 40,2% do total entre 2000 e 2003, apesar de o volume total de gastos nestas áreas ter aumentado 57% no período.

A Tabela 2 permite observar os recursos alocados para o OP em 2003 e 2004, sendo que, para este último, ano foram considerados apenas os R$ 559,5 milhões discriminados por obras e serviços das secretarias.

Os recursos direcionados ao OP são pouco expres-sivos, pois embora os gastos previstos para as áreas que foram objeto dos processos do OP tenham cres-cido R$ 3,7 bilhões entre 2003 e 2004, os montantes distribuídos através do OP diminuíram de R$ 646,8 milhões para R$ 496,5 milhões (queda de 23,2%). O decréscimo total dos recursos alocados para OP foi menor porque as obras de melhoria nos bairros re-ceberam R$ 62,97 milhões em 2004, contra R$ 15,12 milhões em 2003.

Cabe notar, especialmente, a redução de verbas para educação (de R$ 271,13 para R$ 107,66 milhões), cuja principal causa não parece ter sido a construção dos CEUs ou de outras escolas fora dos processos do OP, já que havia outros R$ 100,30 milhões em obras com a rubrica OP no orçamento, as quais, provavel-mente, estavam previstas para anos anteriores, mas ainda não realizadas, problema que não será tratado nesse artigo. Cabe salientar ainda que, em 2004, ape-nas R$ 20,48 milhões foram especificados para áreas não contempladas no OP até 2003. A Secretaria de Assistência Social, com recurso da ordem de R$ 8,63 milhões, não havia decidido, até o momento de ela-boração do OP, quais demandas dos segmentos mais vulneráveis seriam atendidas.

Em suma, observou-se que, apesar do aumento do grau de autonomia de gasto da prefeitura de São Pau-lo, não houve incremento da participação dos gastos tipicamente sociais no orçamento total, de forma que não há indicação de que tenha havido uma significati-va redistribuição de recursos em favor das populações mais carentes. Trata-se de um ponto de partida pouco auspicioso para o OP, já que a possibilidade de a par-ticipação dessas populações resultar numa expressiva redistribuição de recursos é uma das principais pers-pectivas pelas quais o OP poderia ser avaliado como virtuoso, considerando não só a carência dessas po-pulações, como também sua sistemática exclusão a procedimentos democráticos de interlocução com os poderes públicos.

O pequeno volume de recursos destinado ao OP (em termos de participação no orçamento total) com-prometeu seu potencial de promover uma expressiva alteração na alocação do gasto público em São Paulo, situando numa perspectiva muito distante a possibi-lidade de o OP vir a ser um fórum de discussão do orçamento total. Outras possibilidades de resultados

tabela 2

Orçamento Participativo, segundo ÁreasMunicípio de São Paulo – 2003-2004

Em R$ milhões (1)

Áreas 2003 2004

Total 661,9 559,5

Educação 271,1 107,7

Saúde 350,3 299,9

Habitação 25,3 77,3

Melhoria de bairros 15,2 54,2

Assistência social (2) – 8,6

Segurança urbana (2) – 5,8

Meio-ambiente (2) – 3,0

Cultura (2) – 2,4

Esportes (2) – 0,6

Fonte: PMSP (2003, 2004).(1) Em reais correntes do orçamento previsto.(2) Não aplicável.

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virtuosos serão analisadas na próxima seção, em que se discutem as características da participação popular no âmbito dos processos do OP.

um argumento plausível para alocação de um pe-queno volume de recursos remete à reconhecida di-ficuldade de operacionalizar processos participativos numa cidade de população e carências tão grandes e diversificadas, como a capital paulista. No entanto, a prefeitura abriu a discussão do OP para todas as áreas de governo em 2004, sugerindo que esta dificulda-de teria sido superada, ao menos parcialmente, mas disponibilizou para tanto apenas 4,9% do orçamento total (na mais otimista das avaliações).

DiScuSSõeS SObre critériOS De DiStribuiçãO e fOrMaçãO De intereSSeS cOMunS nO OP

A análise das características da participação popular no âmbito dos processos do OP será realizada através do exame de certos aspectos procedimentais e delibe-rações de instâncias do OP, referentes à definição dos critérios de distribuição dos recursos e à formação de interesses comuns, ou seja, constituição de acordos coletivos acerca de objetivos, programas de ação e formas de distribuição, concernentes à elaboração e à execução do orçamento público.

A participação popular nos processos do OP pres-supõe a cessão de parcela do poder estatal para uma esfera participativa. Seria otimismo exagerado supor que os membros do Estado se desapegariam de suas filiações junto a grupos administrativos, políticos ou partidários para desempenhar apenas o papel de agentes facilitadores da dinâmica participativa. Por outro lado, seria muito pessimismo adotar a hipótese de que a participação popular seria tutelada a ponto de somente chancelar os desígnios dos membros da prefeitura, subordinando-se ao poder e/ou ao saber técnico desses membros. Dessa forma, o OP cons-titui-se enquanto espaço de disputa, aspecto pouco discutido por autores como Avritzer e Santos (2002).

Cabe considerar ainda que a instância de deci-são do OP (o Conselho) contempla conselheiros indicados pela população participante. É claro que a eficiência de processos deliberativos ficaria com-prometida com a participação massiva dos cidadãos,

dada a complexidade técnica e política inerente à compatibilização entre as demandas da população, as verbas disponíveis e os projetos administrativos em andamento. Dessa forma, os procedimentos de democracia direta convivem com o funcionamento de instâncias de representação, fazendo emergir as conhecidas dificuldades para que os cidadãos possam estabelecer formas adequadas de controle da atuação dos seus representantes, ainda mais por haver pouco tempo para que haja consulta ampla às bases.

Tendo em mente essas duas espécies de questões complexas sobre a operação dos processos do OP, deve-se retomar o fato de que não foram estipulados previamente os critérios para definição do volume de recursos disponibilizados ao OP, o que tornava inviá-vel à população ter uma noção razoavelmente clara sobre qual seria o valor total e quanto poderia ser des-tinado a cada região por ano, embora a restrição de áreas (em 2002 e 2003) limitasse o leque de demandas possíveis. isto não ocorreu em Porto Alegre, onde a prefeitura estipulou que todos os investimentos se-riam objeto de deliberação através do OP (SOuzA, 1997),6 implicando não apenas um volume considerá-vel de recursos, mas também maior credibilidade da cessão de poder por parte da prefeitura, ao incenti-var a participação popular e facilitar a organização de suas demandas, inclusive por tornar plausível poster-gar algumas delas para períodos subseqüentes.

Dessa maneira, a população de São Paulo dificil-mente poderia realizar uma discussão geral sobre as possibilidades de o OP, em conjunto com outras po-líticas públicas, promover alterações substanciais nas condições de vida dos cidadãos. O encurtamento do horizonte de expectativas torna-se ainda maior por-que a eleição das prioridades refere-se apenas ao âm-bito local, já que a população não discute as priorida-des da cidade quando decide a alocação de recursos, deixando assim de tematizar seus problemas comuns mais relevantes.

Ao contrário, em Porto Alegre, a participação po-pular elege as prioridades de investimento da cidade. isto ocorre não por meio da formação de consensos, mas sim da somatória de votos atribuídos pelos ci-dadãos de cada região, tratando-se, dessa forma, dos interesses majoritários e não daqueles comuns da

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população, que somente poderiam ser constituídos a partir de amplos debates entre todos os cidadãos participantes ou pelos seus representantes (delegados ou conselheiros).

As plenárias temáticas (focadas em diversos temas referentes às políticas urbanas e sociais) poderiam ser espaços para discussões substantivas acerca do per-fil das políticas públicas nas diversas áreas, podendo em tese discutir os interesses comuns da cidade e assim escapar da lógica demandista, ou seja, de uma dinâmica regionalizada assentada essencialmente no levantamento de demandas locais e na avaliação das possibilidades de atendê-las. No entanto, as plená-rias temáticas de São Paulo (e de Porto Alegre) não criaram procedimentos institucionais para discussão sobre quais seriam os problemas prioritários, uma vez que a população é chamada a deliberar somente sobre os programas que devem ser prioritários, entre aqueles já desenvolvidos pela prefeitura em cada se-cretaria, o que caracteriza um estreitamento do leque de opções e reduz a autonomia de decisão da popula-ção. Este formato institucional dificulta uma discus-são mais aprofundada sobre os programas em pauta, tornando mais provável que a hierarquização das pre-ferências acabe reiterando a lógica do OP demandis-ta, diferindo apenas o seu escopo – programas aqui, obras e serviços nas assembléias territoriais.

Além disso, os procedimentos de priorização não estabelecem a intensidade da preferência entre os programas, ou seja, não fixam parâmetros de recursos humanos ou financeiros alocáveis a cada programa. Assim, a prefeitura pode definir com que intensidade priorizará os programas escolhidos pela população, o que implica um considerável grau de autonomia para o governo, inclusive quanto à distribuição dos recur-sos entre regiões e distritos. Desta forma, não há me-canismos que assegurem a realização de discussões coletivas sobre a efetiva alocação de recursos entre os programas, de maneira que as decisões das plenárias temáticas podem influenciar de forma menos intensa as ações estatais do que aquelas tomadas nas assem-bléias territoriais, pois estas implicam a inscrição de obras no orçamento proposto pela prefeitura.

Souza (1997) afirma que as plenárias visaram am-pliar a discussão para além dos problemas locais de

Porto Alegre, buscando aprofundar o planejamento estratégico das obras estruturais e das políticas seto-riais da cidade. Esse caráter consultivo das plenárias não é contestado sequer por Navarro (2003), defensor de uma ampla autonomização da sociedade civil na gestão de parcelas do orçamento, não colocando em perspectiva a possibilidade de discutir todas as políti-cas públicas – logo as diretrizes políticas do governo –, provavelmente a forma mais ampla de democrati-zação do Estado para a qual o OP poderia apontar. Cabe salientar ainda que Baierle (2002) faz alusão à dificuldade de dar sentido prático às formulações ge-néricas emanadas dos diversos fóruns participativos atuantes na cidade. Desta forma, não há evidências de que as plenárias temáticas tenham propiciado maior poder deliberativo aos cidadãos participantes e nem meios para avaliar se elas contribuíram para a formação de interesses comuns da população.

O regimento interno do OP, estatuído através de discussões entre a população e os membros da prefei-tura, estabelece o papel das instâncias participativas e representativas (fórum de delegados e conselho do OP), os critérios para eleição de delegados e conse-lheiros e as regras mais importantes para a definição do uso dos recursos: os critérios de distribuição entre as regiões. Estes critérios são decisivos porque são exclusivos, ou seja, não havia outros critérios para distribuição entre as secretarias ou para definição de obras prioritárias em si mesmas, independentemente dos recursos definidos para cada região.

Foram estabelecidos três critérios de distribuição em São Paulo. O número de habitantes de cada região é um contraponto de caráter universalizante ao crité-rio distributivo (carência de infra-estrutura e serviços) e àquele de participação popular (porcentagem da população residente que participa das assembléias). Cabe discutir uma série de aspectos problemáticos suscitados por tais critérios, especialmente em termos de justiça distributiva, tendo em vista avaliar em que medida as decisões tomadas teriam refletido discus-sões aprofundadas entre os participantes.

Descartando a utilização do critério participação popular para definição das prioridades da cidade, já que não estava em pauta estabelecê-las (ao contrário de Porto Alegre), cabe notar que esse critério enseja

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riscos, uma vez que índices maiores dessa participação podem refletir trajetórias de regiões e/ou segmentos histórica ou conjunturalmente mais mobilizados, através de ações específicas de grupos interessados em atuar no OP. Já o desinteresse dos cidadãos de certas regiões em participar do OP pode estar refle-tindo uma certa apatia social (descrença nas virtudes da participação) ou um certo distanciamento em re-lação ao poder público (típico dos segmentos sociais de renda média ou elevada). Em ambos os casos, a participação popular, enquanto critério, prejudica segmentos que deveriam ser convencidos a partici-par, ao mesmo tempo em que incita a competição entre as regiões mais mobilizadas.

A adoção da carência de infra-estrutura ou servi-ço como critério privilegia o atendimento às regiões mais necessitadas das respectivas ações governamen-tais, tendendo a favorecer as áreas mais periféricas e/ou mais pobres, geralmente menos atendidas pelos poderes públicos ao longo da história. No entanto, um tratamento plenamente equitativo às populações conforme seus graus de carência só pode ser alcan-çado através de um índice global de carência, abran-gendo não só a infra-estrutura e os serviços públicos municipais, mas também o acesso a bens públicos de responsabilidade de outras instâncias de governo (es-tadual ou federal) e a garantia de condições dignas de existência, estas dependentes da renda familiar dispo-nível para compra de bens e serviços privados.

Existem índices agregados de carência (como o Índice de Desenvolvimento Humano e os índices inseridos no Mapa da Exclusão Social de São Pau-lo) que identificam de forma abrangente as regiões e os distritos mais necessitados. Ponderando tais ín-dices pela população domiciliada em cada local, seria possível elaborar uma classificação que posicionasse cada localidade em termos de graus de carência mé-dia. Cabe salientar que um índice médio não permite quantificar precisamente o número de pessoas ou de famílias situado em cada grau de carência, dadas as dificuldades de mensuração da distribuição dos cida-dãos por faixas de renda e o grau de carência de servi-ços de sua específica localidade. De qualquer forma, o índice adotado em São Paulo para a carência de

infra-estrutura também é um índice médio, passando assim pelas mesmas dificuldades.

É possível que haja pouca discrepância nas posi-ções relativas assumidas pelas regiões por meio desses dois critérios, nos casos em que se verifique a razoável hipótese de que as regiões mais pobres tenham sido as menos atendidas pelos poderes públicos munici-pais ao longo do tempo. Entretanto, há regiões mais assistidas em termos de infra-estrutura e serviços, e habitadas por muitos pobres (como certas áreas centrais), bem como aquelas nas quais a coexistên-cia entre ricos e pobres (especialmente os chamados bolsões de pobreza) prejudica estes últimos, quando comparados às regiões periféricas quase que exclusi-vamente habitadas por pobres. Por outro lado, mes-mo distribuindo menos recursos para essas regiões, o OP poderia estar atendendo a demandas que benefi-ciassem mais aos cidadãos aquinhoados, enquanto os mais pobres não seriam atendidos nas suas principais carências – emprego e renda. Em 1991, Porto Alegre adotou o critério da população em áreas de carência máxima (habitantes sem os níveis mínimos de infra-estrutura ou serviço), deixando de utilizá-lo em 1996 devido a duas razões (FEDOzzi, 1997): dificulda-de de cálculo preciso e duplicidade de efeitos, já que também estava sendo utilizado o critério geral de ca-rência de bens públicos já discutido. Essa dificuldade existe, uma vez que o índice médio de uma região pode conter quantidades diferentes de pessoas com carências máxima, média ou mínima. No entanto, a localização de bolsões de pobreza não é tão difícil, podendo ensejar políticas específicas, mesmo que ex-cluídas dos processos do OP.

A adoção do critério da universalidade (número total de habitantes da região) pode ter se baseado, em parte, na mesma lógica razoável discutida anterior-mente, ou seja, na suposição de que boa parcela da população mais pobre foi obrigada a se concentrar em certas áreas, dadas as suas dificuldades de residir em zonas de maior custo habitacional. Ainda assim, parece muito mais razoável combinar os critérios de carência e de universalidade, buscando (na medida do possível) apurar o número de famílias carentes em cada região, no sentido de reduzir os riscos de con-templar um número expressivo de cidadãos em me-

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lhores condições e deixar de atender a contingentes significativos de pessoas mais pobres.

cOncluSõeS: queStiOnaMentOS acerca Da ParticiPaçãO POPular

Foram discutidas várias questões problemáticas en-volvendo os três critérios de distribuição dos recursos, especialmente a equiparação entre critérios de caráter fundamentalmente diverso, ocorrida em Porto Alegre e São Paulo. O fato de a necessidade de redistribuir o gasto público em favor da população mais carente, amplamente reconhecida nos variados espaços públi-cos de discussão, ter sido equiparada à universalidade – a isonomia de direito de cada cidadão que implica o risco de beneficiar igualmente indivíduos altamente desiguais – suscita indagar: houve discussões apro-fundadas a respeito dessa equiparação ou o formato adotado seria resultado de acomodações entre posi-ções divergentes? Apesar da ausência de observações acerca das discussões no âmbito do OP, a análise do seu arcabouço institucional permite formular esses questionamentos.

A mesma indagação se aplica à adoção do índice de participação popular, que incentiva ações oportu-nistas visando aumentar a parcela de recursos destina-da às regiões com população mais mobilizada. Cabe perguntar ainda: que atitudes teriam sido tomadas pe-los cidadãos de regiões cuja população tivesse maior dificuldade de ser mobilizada para participar do OP (por menor disponibilidade de tempo ou de recur-sos, ou por menor histórico de mobilização) diante de cidadãos residentes em regiões mais mobilizadas? Teriam sido convencidos da pertinência deste crité-rio, mesmo na hipótese de que cidadãos das regiões mais mobilizadas tivessem demonstrado intenção de se empenhar na mobilização, visando a obter maior parcela dos recursos? A hipótese de que as soluções adotadas não refletiram discussões aprofundadas en-tre os cidadãos participantes é reforçada pela análi-se de Baierle (2002) sobre Porto Alegre, que afirma não terem sido constituídos regras e indicadores para que os espaços participativos pudessem qualificar as pluralidades e particularismos da sociedade civil, no sentido de construir medidas que os redefinissem em

termos de direitos e limites, constituindo assim o in-teresse público.

O aspecto relevante refere-se à formação dos inte-resses comuns aos participantes dos processos do OP. As observações realizadas sugerem a possibilidade de ter ocorrido no OP de São Paulo algo semelhante à experiência de Porto Alegre, cuja análise levou Baier-le (2002) a sustentar que havia uma tendência à repro-dução da lógica do OP demandista, em boa medida em função de a prefeitura não ter fornecido informa-ções estratégicas ou indicadores de resultados (como um mapa detalhado das carências e das conquistas decorrentes do OP, por tema e por região) que qua-lificassem as discussões e, assim, permitissem cami-nhar no sentido de uma redução da separação entre conhecimento técnico e prática social, caracterizando por consequência uma recusa aos sujeitos sociais da possibilidade de ir além das demandas pontuais.

Antes de examinar outros argumentos críticos em relação à experiência do OP em Porto Alegre, cabe analisar algumas argumentações que a saúdam enfa-ticamente. Avritzer e Santos (2002) sustentam que a população detinha autonomia no estabelecimento das regras de deliberação e dos critérios de distribui-ção “justa” (pois visariam reverter as desigualdades preexistentes na distribuição dos gastos), constituin-do-se enquanto espaço público aberto à participação de todos sem distinção, regido por regras decididas democraticamente e orientado por critérios de justi-ça distributiva para deliberação. Por outro lado, tais autores também chamam a atenção para os riscos de cooptação, burocratização e exclusão, embora não discutam a existência desses problemas em Porto Alegre, propondo como solução o aprendizado e a reflexão constantes dos cidadãos e apontando para novos aprofundamentos democráticos. No entanto, eles acabam atribuindo pouca relevância a tais riscos, pois afirmam que o PT teria controle reduzido sobre o processo (alegando que poucos participantes eram filiados ao partido) e que havia excesso de mecanis-mos de controle sobre a implementação das decisões do OP pela prefeitura.

Ao contrário, Baierle (2002) discute tais riscos, sustentando que as relações entre os cidadãos e a pre-feitura de Porto Alegre evoluíram a ponto de fazer

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com que a atuação das entidades comunitárias esti-vesse sendo em boa medida pautada pelas oportuni-dades profissionais (políticas e econômicas) propor-cionadas pelo governo, incluindo o OP, os serviços públicos terceirizados para a comunidade (creches, cooperativas de geração de emprego e renda e ou-tros), participação em conselhos setoriais ou tutela-res e a contratação por instâncias de governo ou pela Câmara de Vereadores. Navarro (2003) é ainda mais contundente ao afirmar que estaria ocorrendo um clientelismo partidário, pois os espaços participativos estariam sendo vistos como espaços privilegiados de reprodução política, criando obstáculos para que ou-tros interesses pudessem participar com capacidade de disputar os arranjos societários e de fazer valer suas demandas.

Cabe frisar que o texto produzido por membros da prefeitura de Porto Alegre (TExTO GT, 2002) reconhece que, muitas vezes, a lógica da competição sobrepõe-se à lógica da solidariedade, ocorrendo ain-da pactos entre líderes para efetivar certas exclusões, e que a vanguarda apropria-se do processo, em detri-mento da popularização da experiência. Sugerindo a formalização de critérios de distribuição dentro das regiões, e a simplificação das regras para o segundo, o texto insiste em propostas institucionais que não enfrentam as questões da vinculação entre lideran-ças comunitárias, governo e partido. Baierle (2002) salienta que a maioria dessas iniciativas visa aumentar o número de participantes, o que resultaria não só na preservação do OP demandista como no reforço à formação de um corpo de lideranças mais especiali-zado no OP.

As avaliações críticas analisadas anteriormente per-mitem questionar os argumentos de Avritzer e Santos (2002): de que forma é possível depreender que a au-sência de constrangimentos explícitos à participação e a presença de procedimentos democrático-formais le-vem necessariamente à realização de discussões livres, a ponto de caracterizar uma esfera pública democrá-tica, através da qual os interesses particulares seriam deslocados pela formação de um verdadeiro consenso sobre o que é justo e legítimo para todos?

Os questionamentos à qualidade da participação popular em Porto Alegre lançam luzes acerca dos di-

versos aspectos problemáticos relativos à experiência de São Paulo. A limitação de recursos, muito maior do que a verificada em Porto Alegre, suscita muitas dúvidas sobre a capacidade da população participante em discutir com relativa autonomia as possibilidades de atendimento das suas demandas. Nesse sentido, a permissão à fala reivindicativa e os procedimentos democrático-formais de decisão não se constituem em condições suficientes para descartar a possibilida-de de que desigualdades técnicas e políticas (especial-mente a preservação da prerrogativa da prefeitura de definir os volumes de recursos em discussão) tenham prevalecido de maneira a fazer com que o poder deli-berativo da população fosse restringido.

Por outro lado, a falta de não haver evidências de que o arcabouço institucional tenha fomentado dis-cussões acerca de medidas (critérios de distribuição) e de interesses comuns não permite supor que as so-luções adotadas tenham elevado o OP a ponto des-te assumir uma dimensão politicamente significativa capaz de se contrapor aos efeitos perversos do neo-liberalismo, como o aumento da pobreza e da desi-gualdade. Em outras palavras, não há elementos para se afirmar que as diversas experiências de carências e de desigualdades tenham sido tematizadas democra-ticamente como questões comuns, através do cruza-mento de razões e de valores que conferissem valida-de aos interesses envolvidos em arenas públicas, que tornassem legítimos os conflitos, constituindo, assim, direitos da cidadania, entendidos como referências – linguagem, valores e medidas – pelas quais se elabo-ram as exigências éticas de reciprocidade e eqüidade nas relações sociais (PAOli; TEllES, 2001).

Cabe frisar que o avanço do OP, no sentido de constituir tais direitos, requer explicitação dos confli-tos, especialmente os que se referem às perspectivas de autonomia da população diante da possibilidade de sua captura pela lógica do poder estatal, e que eles sejam processados de maneira que sua resolução (tomada de decisões que vinculem os participantes) ocorra através da formação das referências supracita-das. Nota-se, portanto, uma profunda diferença con-ceitual em relação a autores como Avritzer e Santos (2002), que saúdam o OP sem considerar a centrali-dade de sua natureza eminentemente conflituosa.

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notas

1. A citada tabulação foi cedida pela Fundação Seade (admi-nistradora da disseminação das informações), atendendo à solicitação do Núcleo de Pesquisas em Ciências Sociais, vincu-lado à Escola Pós-Graduada de Ciências Sociais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo – FESPSP, para a realização da pesquisa Estimativa dos efeitos sociais da implantação do bilhete único na cidade de São Paulo, coordenada por Carlos A. Bello entre 2003 e 2004.

2. Porque a prefeitura possui alguma liberdade para alterá-lo ao longo do ano, especialmente quando as receitas municipais

forem substancialmente diferentes das constantes do orça-mento previsto. 3. Tais percentuais correspondem a montantes de R$ 483,3 milhões e de R$ 661,9 milhões, respectivamente.4. Exceto pela possibilidade de a Câmara Municipal alterar o orçamento. 5. Excluem-se as despesas de capital relativas à amortiza-ção da dívida da prefeitura, aos demais encargos gerais e às despesas da Câmara de Vereadores e do Tribunal de Contas do Município.6. Para maiores detalhes sobre aspectos institucionais do OP, vide também Fedozzi (1997) e Souza (1997).

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Carlos alberto bello

Doutor em Sociologia pela USP, Pesquisador do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da FFLCH/USP, Professor da Universidade Federal de São Paulo (Campus Guarulhos).

([email protected])

Artigo recebido em 16 de fevereiro de 2006. Aprovado em 20 de abril de 2006.

Como citar o artigo:BELLO, C.A. Orçamento, redistribuição e participação popular no Município de São Paulo. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 20, n. 3, p. 95-105, jul./set. 2006. Disponível em: <http://www.seade.gov.br>; <http://www.scielo.br>.

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São Paulo em Perspectiva, v. 20, n. 3, p. 106-119, jul./set. 2006

A Região Metropolitana de Campinas – RMC é re-sultante de um processo de urbanização intensificado na década de 1950, que se acelerou nos anos 1970 e 1980 com o aprofundamento da industrialização no país e a interiorização do desenvolvimento econômico no Estado de São Paulo.

O processo de industrialização no Brasil ocorreu a partir da transição da economia agrícola para outra predominantemente industrial, com base no padrão de industrialização da Segunda Revolução Industrial, que compreendeu dois períodos: • de 1933 a 1955, quando o avanço a industrialização foi possível, restringindo-se, porém, a alguns setores

produtivos;• de 1956 a 1962, com o Plano de Metas, quando praticamente completou-se a industrialização por meio da

substituição de importações de máquinas, equipamentos, matérias-primas e insumos básicos por produção interna (LeSSa, 1978; CaRdoSo dE MEllo, 1982; OLIveIRa, 1985).essa experiência de industrialização foi concentrada no tempo e acompanhada pelo crescimento urbano

elevado e rápido. entre 1940 e 1980, quando foi consolidado o padrão da Segunda Revolução Industrial no país, a taxa de urbanização passou de 31% para 65%, conforme o IBGe.

Resumo: Neste artigo o processo histórico do desenvolvimento da Região Metropolitana de Campinas – RMC foi recuperado para sublinhar o paradoxo entre riqueza e pobreza e a influência exercida pelo município de Campinas na região a partir de sua localização geográfica estratégica. A ampliação do Aeroporto Internacional de Viracopos foi analisada como uma especificidade no processo de aprimoramento da infra-estrutura regional existente,

com intuito de melhor aproveitar as externalidades positivas geradas pelos aeroportos.

Palavras-chave: Aeroporto Internacional de Viracopos. Políticas públicas contemporâneas. Infra-estrutura de transporte.

Abstract: In this study, the historical process of Campinas Metropolitan Region – RMC development was recouped to underline the paradox between wealth and poverty and the influence exerted by the city of Campinas in the region because of its strategical geographic localization. The magnifying

of the International Airport of Viracopos was analyzed as a specificity in the process to improving its infrastructure regional, to make possible the best exploitation of the positive externalities generated by the airports.

Key words: Viracopos International Airport. Contemporary public policies. Transport infrastructure.

AEROPORTO INTERNACIONAL DE VIRACOPOS E O FUTURO DA REGIÃO METROPOLITANA DE CAMPINAS

Josmar Cappa

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AEROPORTO INTERNACIONAL DE VIRACOPOS E O FUTURO DA REGIÃO METROPOLITANA DE CAMPINAS 107

São Paulo em Perspectiva, v. 20, n. 3, p. 106-119, jul./set. 2006

Devido às especificidades do processo de moder-nização do Brasil, as alterações nas estruturas econô-mica e demográfica foram seguidas, na maioria dos casos, pela ocupação e pelo uso do solo urbano de forma intensa e desordenada, tornando insuficiente e inadequada a infra-estrutura disponível, bem como implicando elevada demanda social por escolas, hos-pitais, habitação, transportes, entre outros.

RecupeRação HistóRica do pRocesso de desenvolvimento da Rmc

No âmbito regional, o processo de industrialização foi concentrado espacialmente no estado de São Paulo. Constituído a partir do complexo econômico exportador, com o plantio de café, o estado reali-zou importantes transformações em sua estrutura econômica com a introdução de ferrovias (século XIX); depois com a diversificação de sua agricul-tura e implantação de rodovias (século XX), tendo possibilitado, nesse período, a formação de infra-es-trutura urbana qualificada, com a instalação de equi-pamentos públicos, indústrias, comércio e serviços diversificados (Cano, 1990; SeMeGhINI, 1991; CaPPa, 2004a).

Desde 1919, São Paulo lidera a produção indus-trial no país, com 31,5% do total, passando, em 1949, para 48,9%, 55,6% (1959) e chegando a 58,2% (1970), durante o auge da concentração industrial no país. Nessa última década, São Paulo concentrava 53% da produção nacional da indústria de bens não-duráveis e intermediários, e 75% de bens de capital e bens de consumo duráveis (Cano, 1985, 1988, 1990).

No interior do estado de São Paulo, com destaque para Campinas, entre a crise econômica internacional de 1929-1932 e a década de 1960, houve um proces-so de diversificação da agropecuária, com as culturas do algodão, de alimentos e a pecuária de leite, que dividiu a utilização do espaço rural com a produção cafeeira e depois quase excluiu a presença da agricul-tura no município.

Paralelamente, a indústria de Campinas acompa-nhou o desenvolvimento nacional, suprimindo a de-manda por bens de consumo corrente e de insumos industriais, além de produzir partes e componentes

ferroviários. a partir do final da década de 1950, essa indústria passou por um processo de diversificação promovido pela descentralização de plantas indus-triais produtoras de máquinas e equipamentos e de peças para os setores automotivo e elétrico.

Mas foi entre 1970 e 1985 que as repercussões do Plano de Metas tornaram-se visíveis para o interior do estado de São Paulo devido à desconcentração in-dustrial da capital, especialmente para Campinas, que atraiu grandes empresas estrangeiras, formou uma rede de pequenos e médios estabelecimentos forne-cedores de bens e serviços, atraiu fluxos migratórios da metrópole paulista, além de sofrer transformações nos setores agrícola, industrial e comercial. Isso foi possível também devido à execução do II Plano Na-cional de Desenvolvimento – II PND, entre 1974 e 1979, que promoveu uma política de desenvolvi-mento regional no país por meio da descentralização de grandes investimentos produtivos, como hidre-létricas, pólos petroquímicos, rodovias, entre outros (lESSa, 1978).

Com a desconcentração da indústria, a participa-ção de São Paulo no valor de transformação indus-trial do país, entre 1970 e 1985, foi reduzida de 58,2% para 51,9%, enquanto a participação do interior pau-lista subiu de 14,7% para 22,5%, com destaque para a produção de bens intermediários. Esta passou de 5,2% para 10,4% do total nacional, ao passo que a produção de bens duráveis e de capital passaram, juntos, de 2,3% do total nacional para 5,9% (Cano, 1985, 1988, 1990)1.

a execução do II PND intensificou a desconcen-tração industrial de São Paulo e qualificou a estrutu-ra econômica do interior do estado, destacando-se as instalações da Refinaria do Planalto – Replan, em Paulínia, e da Refinaria de São José dos Campos, além da ampliação da rede viária, com a duplicação da Ro-dovia anhangüera, a construção das Rodovias Dom Pedro, Bandeirantes e Santos Dumont, todas passan-do por Campinas.

Concomitantemente, implementaram-se uma política de substituição de derivados do petróleo (Pró-álcool) e uma de incentivos às exportações, que fortaleceram a agroindústria. ambas impulsionaram a economia de Campinas e da região. ademais, a agri-

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cultura municipal diversificou-se, com ênfase para cana-de-açúcar, laranja, avicultura, horticultura, fru-ticultura e rebanho leiteiro.

Não menos importante é a extensa rede de peque-nas e médias empresas instalada em Campinas, que permite sinergia entre as diversas atividades econô-micas e gera benefícios intangíveis decorrentes das economias de aglomeração. além disso, contribui na reorganização da produção e da gestão da força de trabalho, especialmente das grandes empresas, devi-do à introdução de novas tecnologias no padrão de industrialização da Segunda Revolução Industrial.

Nos anos 1980, a interiorização do desenvolvimen-to paulista permitiu a consolidação de uma estrutura econômica regional integrada e diversificada forma-da pelos setores agrícola, agroindustrial e industrial, neste caso com destaque para as áreas de mecânica, metalurgia, transportes, química, farmacêutica e tele-comunicações, acompanhada por uma infra-estrutura complexa e por uma rede de comércio e de servi-ços diversificados de dimensão macrometropolitana (PaCheCO, 1997; CaNO; BRaNDãO, 2002; CaPPa, 2002b; 2003).

Parte expressiva dessa rede de comércio e de ser-viços diversificados está instalada em Campinas, que ocupa posição de destaque no atendimento às deman-das regionais por meio de grandes bancos, hospitais, serviços médicos especializados, grandes shopping centers (Galeria, Iguatemi, D. Pedro), importantes universidades (PUC Campinas, Unicamp) e centros nacionais e estaduais de pesquisa e desenvolvimen-to (IaC, Ital, CenPRa, etc.). Tal rede fornece apoio a diversas atividades produtivas como, por exemplo, armazenamento, transportes, comercialização, expor-tação, importação, finanças, comunicações, propa-ganda, publicidade e consultorias diversas, atraindo significativo fluxo de pessoas, mercadorias e movi-mentação financeira.

Quanto aos fluxos migratórios, em 1980, a Re-gião Metropolitana de São Paulo – RMSP continuava como pólo de atração populacional, mas não de re-tenção desse contingente: os fluxos de Minas Gerais e Paraná decresciam e o retorno de nordestinos che-gou perto de 400 mil pessoas, sendo a maioria para os Estados de origem.

Pelas razões citadas, enquanto na RMSP o ritmo de crescimento populacional diminuía, o interior do estado de São Paulo configurava-se como espaço de retenção desses fluxos migratórios vindos da metrópole, destacando-se Campinas como novo pólo de desenvolvimento econômico e de atração populacional.

Conforme o Censo 2000, do IBGe, Campinas apresentou nas últimas décadas taxas de crescimento populacional inferiores à média da RMC (1,79%) e decrescentes, ao passar de 2,24%, nos anos de 1980, para 1,42%, na década de 1990, de forma que sua população passou de 664.566 para 847.595 habitantes nesse período e chegou a 967.921 habitantes em 2000 (Tabela 1).

hoje, apesar de continuar aglutinando indústrias de alta tecnologia, Campinas não atrai novos fluxos migratórios como nos anos anteriores. Na década de 1970, a migração representava 65,3% do crescimento de Campinas (188.596 pessoas); na década de 1980, passou para 17,4% (31.986 pessoas) e chegou, nos anos 1990, a 11,6% (14.102 pessoas). Por conseguin-te, atualmente seu crescimento populacional deve-se basicamente aos nascimentos, sendo que apenas um em cada dez novos habitantes vem de outros lugares; diferenciando-se dos anos 1970, quando a cada dez novos habitantes seis eram migrantes.

a tendência atual é de crescimento populacio-nal nas cidades instaladas no entorno de Campinas, como se pode observar na Tabela 1. Com exceção de Santa Bárbara d’Oeste, todos os demais muni-cípios da RMC apresentaram taxas de crescimento populacional substancialmente acima da de Cam-pinas. Ênfase deve ser dada para artur Nogueira, hortolândia, Indaiatuba, Monte Mor, Santo anto-nio de Posse e vinhedo, que apresentaram taxas superiores a 4% entre 1996 e 2000, bem acima, portanto, da de Campinas.

esses indicadores são preocupantes porque per-mitem antever um futuro similar ao de Campinas quanto às sérias questões urbanas como, por exem-plo, violência, desemprego elevado, déficit habitacio-nal, precariedade no atendimento à saúde, à educação e ao transporte coletivo.

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Tabela 1

Área, população, taxa anual de crescimento e dívidaRegião metropolitana de campinas – 1996-2000

Municípios Área (km2) População Total (2000) Taxa Anual de Crescimento 1996/2000 (%) Dívida em 1999 (R$)

Total 3.654,6 2.333.022 (1) 1,79 1.782.600.000

Americana 133,9 182.084 2,04 8 milhões

Artur Nogueira 178,2 33.089 6,19 não divulgada

Campinas 797,6 967.921 1,59 1,5 bilhão

Cosmópolis 155,1 44.367 2,70 25 milhões

Engenheiro Coelho 110,1 10.025 3,50 400 mil

Holambra 64,4 7.231 2,10 não divulgada

Hortolândia 62,4 151.669 7,00 18 milhões

Indaiatuba 311,3 146.829 4,76 30 milhões

Itatiba 323,3 80.884 3,10 não tem

Jaguariúna 142,8 29.450 3,77 2 milhões

Monte Mor 241,4 37.111 4,73 3,7 milhões

Nova Odessa 73,5 42.066 2,97 não divulgada

Paulínia 139,7 51.242 3,63 225 milhões

Pedreira 110,0 35.242 2,53 14,5 milhões

Santa Bárbara d´Oeste 272,2 169.735 1,32 37 milhões

Santo Antonio de Posse 154,5 18.145 5,05 2 milhões

Sumaré 153,4 196.055 3,93 52 milhões

Valinhos 148,9 82.773 2,63 65 milhões

Vinhedo 81,9 47.104 5,09 não tem

Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000; Fórum Campinas 2010; Cano e Brandão (2002).(1) A taxa média anual de crescimento populacional do Brasil foi de 1,38% entre 1991 e 1996.

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Realidade socioeconômica atual da Rmc

a interiorização do desenvolvimento econômico contribuiu para elevar o montante de recursos finan-ceiros, gerar emprego, renda e intensificar a urbaniza-ção. Porém, esse processo esteve vinculado à indus-trialização do país, realizada de forma concentrada no tempo e com urbanização intensa, devido ao cresci-mento populacional elevado e ao êxodo rural signi-ficativo. Isso resultou numa ocupação desordenada do solo e na precariedade da qualidade de vida, que tornaram a gestão de problemas urbanos complexa.

essa situação foi agravada pela inflexão do pro-cesso de interiorização do desenvolvimento econô-mico e pela crescente precariedade do poder público no país, provocada, principalmente, pela estagnação econômica persistente entre os anos de 1980 e 1990, com taxas médias de crescimento anual do PIB, res-pectivamente, de 2,9% e 1,8%.

Na década de 1980, a inflexão do desenvolvimen-to econômico relacionava-se ao esgotamento do II PND e de outros programas, como a construção de rodovias, além da contenção da produção de álcool, no âmbito do Pró-álcool, e da redução dos investi-mentos públicos e privados. ademais, houve insta-bilidade econômica provocada pelo agravamento da dívida externa e constantes ameaças de crises fiscal e cambial, que dificultaram a geração de crescimen-to econômico sustentável (TavaReS, 1993; Cano, 1993; PaCheCO, 1996; CaPPa, 2000).

Nos anos 1990, a política econômica neoliberal provocou a inserção subordinada do Brasil no co-mércio internacional, explicitada pela vulnerabilidade de seu balanço de pagamentos, manutenção de taxas de juros elevadas e taxa cambial sobrevalorizada. Isso se deu num período de importantes mudanças no mercado externo, como reestruturação econô-mica comandada pelas empresas transnacionais, pa-íses reunidos em blocos econômicos (Nafta, bloco europeu, Mercosul e Ásia), além das implicações do mercado mundial de capitais, que tornaram vulne-rável o balanço de pagamentos, especialmente dos países periféricos (TavaReS, 1993; Cano, 1993; PaCheCO, 1996; CaPPa, 2000).

Na RMC, os efeitos principais da precariedade do poder público foram:• debilidades fiscais e dívidas elevadas, conforme a

Tabela 1; • fragilidades na execução de políticas públicas e

dificuldades para manutenção da infra-estrutura urbana e de equipamentos públicos;

• dissimulação da guerra fiscal, que permitiu evasão de recursos públicos sem, entretanto, diminuir o desemprego;

• privatizações do sistema ferroviário e dos serviços de manutenção das rodovias, resultando na multi-plicação de praças de pedágios, que foram majo-rados; e do serviço de distribuição de energia, que passa por dificuldades devido à redução de inves-timentos públicos para ampliar a geração. Para Campinas, a principal cidade da RMC, os

efeitos da estagnação econômica no país entre os anos 1980 e 1990 não foram diferentes e expressam um paradoxo. a cidade é conhecida como “vale do Silício”, uma referência à região do estado da Cali-fórnia, eUa, por seu nível de renda, por concentrar indústrias de alta tecnologia (informática, telecomu-nicações, química fina e biologia molecular) e pelos seus centros de ensino e pesquisa, que, ao lado de sua localização estratégica, asseguram elevado potencial de desenvolvimento econômico.

O dinamismo atual de Campinas é evidenciado pela sua capacidade de atrair investimentos produti-vos diversificados, especialmente os de maior comple-xidade tecnológica, como equipamentos para teleco-municações, informática e eletrônica para autopeças. entre as razões principais manifestadas pelas empre-sas de alta tecnologia para a instalação em Campinas estão a existência de infra-estrutura importante, com destaque para a posição de entroncamento rodoviário e a presença do aeroporto Internacional de viraco-pos,2 projetado para tornar-se o maior centro carguei-ro na américa Latina, além de instituições de ciência e tecnologia e mão-de-obra qualificada disponível (PaCheCO, 1997; CaPPa, 2002b, 2003).

entre 1995 e 2000, Campinas foi a região que mais atraiu investimentos no estado de São Paulo (US$ 7,567 milhões ou 31,4% do total de US$ 24,125 milhões), segundo a Secretaria de Ciência, Tecno-

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logia e Desenvolvimento econômico do estado de São Paulo. em seguida, ficaram a Grande São Paulo (22,4% do total), e os Ras de São José dos Campos (21,5%), Sorocaba (8,3%) e Santos (3,4%).

ademais, a região de Campinas tornou-se o segun-do pólo industrial do país, ao elevar sua participação relativa no total da produção industrial de 4,8% para 6,2%, entre 1996 e 2000, e está entre as dez princi-pais regiões do Brasil, perdendo apenas para a RMSP, que manteve a liderança, apesar de recuar de 19,5% para 13,9%, conforme a Pesquisa Industrial anual, do IBGe.

Porém, esse potencial foi acompanhado por uma situação urbana fragmentada e espacialmente segre-gada, caracterizada pela maior dimensão dos proble-mas sociais e pelo baixo padrão de vida na periferia, ao que se denominou “caos urbano”. O Parque Oziel, considerado a maior ocupação na américa Latina, pode ser apontado como o melhor exemplo.

alguns dados relevantes expressam o paradoxo de Campinas: • o número de assassinatos mais que dobrou entre

1990 e 2000, ao passar de 203 para 517; • os desempregados são cerca de 90 mil (19% de sua

Pea), a maioria com idade entre 22 e 40 anos; • segundo o IBGe, o número de favelas em Cam-

pinas passou de 74 para 117, entre 1991 e 2000, onde moram cerca de 160 mil pessoas (16,5% de sua população), levando a cidade da oitava para a sexta colocação em número de favelas no país;

• em 1999, a Secretaria Municipal de habitação identificou a existência de 121 invasões, com cerca de 22 mil famílias, aproximadamente 88 mil pes-soas vivendo em áreas ocupadas ilegalmente;

• o total entre favelas e ocupações, portanto, chegou a 238 e envolveu cerca de 248 mil pessoas (25,6% de sua população). a essa situação somam-se os graves problemas com transportes, saúde, educação e infra-estrutura, notadamente lixo, água e esgoto.Para o conjunto dos demais municípios, a situação

parece não ser diferente, principalmente consideran-do-se as restrições impostas pela lei de Responsa-bilidade Fiscal, pela dimensão de suas dívidas, pelos recursos que o Fundo de Manutenção e Desenvolvi-mento do ensino Fundamental e de valorização do

Magistério – Fundef retira dos municípios médios e grandes da região e pela tendência atual de crescimen-to populacional nas cidades instaladas no entorno de Campinas, conforme a Tabela 1.

caRacteRísticas juRídicas e políticas da Rmc

Do ponto de vista jurídico, a constituição da RMC está fundamentada na Lei Complementar estadual n. 870, de 19 de junho de 2000, sendo composta por 19 municípios: americana, artur Nogueira, Campi-nas, Cosmópolis, engenheiro Coelho, holambra, hortolândia, Indaiatuba, Itatiba, Jaguariúna, Monte Mor, Nova Odessa, Paulínia, Pedreira, Santa Bárbara d’Oeste, Santo antonio de Posse, Sumaré, valinhos e vinhedo.

esses municípios constituem estruturas econô-mica e social equivalentes às de países da américa Latina, na medida em que compõem um espaço ur-bano de aproximadamente 3.700 km2, onde vivem mais de 2,3 milhões de habitantes, resultando numa densidade demográfica de 630 hab./km2. o total da população da RMC representa 1,4% do país e 6,3% do Estado de São Paulo.

a maior parte da população da RMC (cerca de 42%) se encontra em sua sede, Campinas, que pos-sui pouco mais de 1 milhão de habitantes. Na RMC predominam, portanto, municípios de tamanho mé-dio, com destaque para Sumaré, americana, Santa Bárbara d’Oeste e hortolândia. Considerando-se o conjunto de cidades entre 50 mil e 500 mil habitantes, somente sete municípios somam 975 mil habitantes e apresentam taxa de urbanização de 98,43%, próxima à de Campinas, que é de 98,34%. apenas Santo antô-nio de Posse, engenheiro Coelho e holambra (15,7% do total) possuem menos de 20 mil habitantes.

a RMC constituiu um PIB estimado de US$ 26,2 bilhões em 2001, o que representa 12,5% do PIB do estado de São Paulo e 5,6% do PIB nacional. a parti-cipação relativa da sede regional é de aproximadamen-te 2,5%, no PIB industrial, e de 3,5%, no de serviços.

a Lei Complementar n. 870 estabelece também a estrutura de gestão pública da RMC, fundamentada: no Conselho de Desenvolvimento econômico; no Conselho Consultivo; na criação de uma agência de

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desenvolvimento (autarquia para integrar a organiza-ção, o planejamento e a execução das funções públi-cas de interesse comum); e na constituição do Fundo de Desenvolvimento da RMC.

O Conselho de Desenvolvimento econômico tem caráter normativo e deliberativo. É composto por 19 prefeitos das cidades que integram a RMC e por 12 membros indicados pelo Poder executivo do es-tado, nomeados pelo governador através do Decreto sem número de 29 de junho de 20013.

essa lei assegura a paridade de 50% entre os votos dos prefeitos e dos membros do estado no Conselho de Desenvolvimento econômico da RMC. Por isso, nas votações de qualquer matéria as seguintes situa-ções podem ocorrer: os membros do Poder executi-vo estadual, que sempre votam em conjunto, fazem prevalecer a sua decisão se tiverem o apoio de apenas um prefeito de qualquer partido político; ou há em-pate, no caso de os prefeitos votarem juntos.

a legislação que instituiu a RMC reforça, portanto, a centralização política e administrativa no âmbito do estado de São Paulo em detrimento das prefeituras. assim, reafirma as tradicionais divisões administrati-vas e governamentais e contraria os anseios por uma descentralização regional que desse mais autonomia aos municípios por meio da instituição de regiões me-tropolitanas, ampliando sua capacidade de obtenção de financiamentos internos e externos e de reivindi-cação junto a entidades públicas e governamentais.

além de ser a sede e o principal município da RMC, Campinas é também a sede da Região admi-nistrativa de Campinas – RaC, que por sua vez reúne sete Regiões de Governo (Bragança Paulista, Jundiaí, Limeira, Piracicaba, São João da Boa vista, Rio Claro e a própria Região de Governo de Campinas – RGC), totalizando 90 municípios, com pouco mais de 5,4 milhões de habitantes (Tabela 2).

a RGC abrange 22 municípios e cerca de 2,5 mi-lhões de habitantes, divididos entre os municípios da RMC (menos Itatiba) e mais Itapira, Mogi Guaçu, Moji Mirim e estiva Gerbi, permitindo supor algu-mas semelhanças no comportamento agregado dos dois conjuntos territoriais (RMC e RGC).

De todo modo, a atuação do Conselho de Desen-volvimento da RMC caracterizou-se, até o momento, pela burocratização. em 2001, prefeitos e membros do estado de São Paulo definiram e aprovaram o Re-gimento do Conselho de Desenvolvimento da RMC, instituído no final desse mesmo ano pelo governo do estado de São Paulo. em 2002, o mesmo conselho instituiu dez câmaras temáticas e formalizou o Con-selho Consultivo, com seus respectivos regimentos internos, para cumprir a Lei Complementar n. 870.4 em 2003, as reuniões mensais do Conselho de De-senvolvimento da RMC foram pautadas, na maioria das vezes, pela exposição de secretários do gover-no estadual, que procuraram fazer balanços de seus trabalhos.

Tabela 2

população, por sexo e situação de domicílioestado de são paulo – 2000

Região TotalSexo Situação de Domicílio Número de

MunicípiosHomens Mulheres Urbana Rural

Estado de São Paulo 36.966.527 18.104.696 18.861.831 34.529.142 2.437.385 645

RA de Campinas 5.385.489 2.675.428 2.710.061 4.999.201 386.288 90

RG de Campinas 2.530.194 1.252.437 1.277.757 2.454.211 75.983 22

RM de Campinas 2.333.022 1.153.269 1.179.753 2.264.665 68.357 19

Município de Campinas 967.921 471.424 496.497 951.824 16.097 1

Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000.

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O Conselho Consultivo da RMC é composto por representantes dos Poderes Legislativos estadual e Municipal, escolhidos entre seus pares, e representan-tes da sociedade civil organizada. esse conselho pode elaborar propostas para análise e deliberação pelo Conselho de Desenvolvimento, bem como propor a instituição de câmaras temáticas para discutir assun-tos de interesse da sociedade e sugerir projetos para solucionar problemas comuns à própria região.

a agência de Desenvolvimento (autarquia previs-ta na Lei n. 870) tem a função maior de integrar a organização, o planejamento e a execução das citadas funções públicas de interesse comum da RMC. essa autarquia será responsável ainda pela gestão do Fun-do de Desenvolvimento da RMC, que será supervi-sionado por um Conselho de Orientação composto por seis membros: quatro do Conselho de Desenvol-vimento e dois diretores da autarquia.

a institucionalização da autarquia e do Fundo de Desenvolvimento da RMC é uma atribuição que de-pende do Poder executivo estadual. Quanto à autar-quia, em 2003, o governador do estado de São Paulo encaminhou um projeto de lei à assembléia Legislati-va, que originou a Lei Complementar estadual n. 946, de 23 de setembro de 2003, denominando a autarquia de agência Metropolitana de Campinas – agemcamp (SãO PaULO, 2003).

Quanto ao Fundo de Desenvolvimento da RMC, a Lei n. 870 não especifica a forma de compensação financeira entre municípios e estado. Todavia, entre 2001 e 2004, não houve debate efetivo sobre essa questão, que é imprescindível para viabilizar o plane-jamento e financiamento a fim de solucionar proble-mas comuns entre as cidades da região.

então, o funcionamento da agemcamp e a cons-tituição do Fundo de Desenvolvimento da RMC per-manecem indefinidos. São questões que comprome-tem a gestão efetiva dos problemas comuns da RMC, na medida em que: • dificultam a execução de ações integradas que de-

senvolvam a região a partir das citadas funções de interesse comum;

• impedem a contração de financiamento junto às instituições bancárias nacionais ou internacionais como, por exemplo, Banco Nacional de Desenvol-

vimento econômico e Social – BNDeS, Banco do Brasil, Caixa econômica Federal e Banco Intera-mericano de Desenvolvimento – BID, e dificul-tam, por exemplo, a formação de parcerias e con-sórcios intermunicipais, bilaterais ou multilaterais.

ações integRadas paRa desenvolveR a Rmc

Considera-se que a RMC está por ser consolidada do ponto de vista político e socioeconômico. Trata-se de um processo complexo, que exige articulação políti-ca suprapartidária e ações integradas que viabilizem as melhores alternativas técnicas, socioeconômicas e ambientais aos problemas da metrópole, conside-rando-se as qualidades e as assimetrias de cada mu-nicípio. essas soluções devem ser compartilhadas entre municípios e o estado de São Paulo, levando em conta que, embora cada cidade tenha suas prin-cipais carências, algumas são comuns às várias loca-lidades, de forma que uma política de gestão urbana permitiria ações compartilhadas no âmbito da metró-pole (COSTa SaNTOS, 2001a, b; LaROCheLLe, 2002; INDa, 2002).

as ações integradas representam, então, a síntese da cooperação entre prefeitos e o governo do estado de São Paulo para promover o desenvolvimento da RMC. É preciso aprimorar a infra-estrutura urbana, com o intuito de corrigir ou atenuar distorções do processo desordenado de ocupação e uso do solo como, por exemplo, o saneamento ambiental (trata-mento de água, esgoto e lixo), o déficit habitacional, além de questões sobre saúde, educação e os meios de transporte rodoviário, ferroviário e aéreo (COSTa SaNTOS; CaPPa, 2001c; CaPPa, 2002a).

Para isso é necessário analisar o conjunto do terri-tório da RMC, procurando:• identificar tendências, gerais e específicas, do desen-

volvimento econômico e urbano local e regional; • integrar políticas públicas para conferir eficácia às

alterações na estrutura física das cidades e nos pa-radigmas de gestão pública;

• buscar as melhores soluções compartilhadas que gerem resultados consistentes para problemas co-muns ou de características metropolitanas;

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• a partir de esforços coletivos, buscar recursos, na-cionais e internacionais, para financiar a execução de projetos e resolver problemas análogos entre os municípios conurbados na região (ROCheFORT, 1998; COSTa SaNTOS; CaPPa, 2002).Tal análise se justifica, em primeiro lugar, porque

a Lei Complementar n. 870 não contempla os novos papéis das grandes cidades em regiões conturbadas e interdependentes, diante da introdução de novas tec-nologias no padrão da Segunda Revolução Industrial, acompanhadas pela maior divisão do comércio inter-nacional com os países reunidos em blocos econô-micos e pelo mercado mundial de capitais. Por isso, a produção industrial tornou-se mais fragmentada e permitiu novas formas de organização do território que ultrapassam a fronteira dos países, das metrópo-les e das grandes cidades, possibilitando o crescimen-to dos setores de serviço e de comércio.

as mudanças citadas modificaram os papéis das grandes cidades e as formas de gestão de problemas urbanos em regiões metropolitanas. alteraram tam-bém os critérios de localização industrial, na medida em que decisões empresariais podem ser tomadas em bolsas de valores de países do centro ou da periferia do capitalismo. Também ganharam maior importân-cia as exigências por infra-estrutura integrada, estru-turas econômicas diversificadas em grandes cidades ou regiões metropolitanas e disponibilidade de mão-de-obra qualificada.

em segundo lugar, a análise é necessária porque a disputa política em regiões metropolitanas acirra ad-versidades individuais ou de grupos políticos e, assim, dificulta a busca de soluções consistentes e inovado-ras. Ou seja, sem articulação política suprapartidária, fica comprometida a cooperação entre prefeitos e o governo do estado de São Paulo na busca das me-lhores soluções compartilhadas para os graves pro-blemas comuns da RMC, como desemprego elevado, violência urbana, saneamento ambiental, déficit ha-bitacional, transporte intermunicipal, saúde pública, educação, entre outros.

historicamente, a organização das metrópoles com base na concepção tradicional, que tem nas grandes cidades o centro polarizador e irradiador do desenvolvimento econômico, também não foi sufi-

ciente para resolver problemas semelhantes aos vivi-dos hoje na região.

ademais, as mudanças econômicas e políticas atuais, citadas no item anterior, exigem uma cultura metropolitana associada a novos paradigmas de ges-tão urbana, que considerem funções diferentes na prestação de serviços, demandas diversas por infra-estrutura urbana e rural, além de novas competências relacionadas ao desenvolvimento econômico, social, cultural e às recentes formas de inserção das cidades tanto no âmbito regional quanto internacional.

No caso particular da RMC, a ampliação de vira-copos representa um novo elemento no debate sobre o desenvolvimento de Campinas, envolvendo pouco mais de cinco milhões de pessoas na macro-região. Podem existir duas possibilidades:• viracopos pode servir-se de Campinas e região;

situação em que “estaria de costas para Campinas e região” porque prevaleceria a busca pela maior rentabilidade econômica com as atividades aero-portuárias e não-aeroportuárias;

• viracopos pode servir a Campinas e região; situa-ção em que “estaria de frente para Campinas e região” porque com ações integradas seriam am-pliadas as potencialidades de desenvolvimento dos municípios devido às externalidades positivas oferecidas pelos aeroportos como, por exemplo, benefícios socioeconômicos gerados em termos de emprego, renda e tributos com a atração e ex-pansão de distintas atividades econômicas. ambas as situações dependem especialmente de

como viracopos estará inserido no meio urbano de Campinas e região, o que depende das interfaces com outros meios de transporte, como rodoviário e ferro-viário, do planejamento urbano no entorno do aero-porto e das atividades econômicas que poderão ser desenvolvidas a partir de sua ampliação.

viRacopos e a impoRtância de ações integRadas paRa o desenvolvimento Regional

até 2015, viracopos deverá tornar-se o maior cen-tro cargueiro da américa Latina, com 17 km² de ex-tensão e capacidade para receber anualmente de 470 mil a 510 mil aeronaves e 720 mil toneladas de carga,

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atender a uma demanda prevista de 45 a 50 milhões de passageiros e empregar cerca de 7 mil trabalhado-res diretos, conforme a empresa Brasileira de Infra-estrutura aeroportuária (INFRaeRO, 1998).

a ampliação de viracopos está em andamento desde 1995 e, segundo a Infraero, deverá fazer co-nexões com os aeroportos de Guarulhos e Congo-nhas. Nesse caso, podemos admitir a constituição de um complexo aeroportuário paulista com capacidade para receber a cada ano cerca de 1,1 milhão de tone-ladas de cargas (Tabela 3).

a constituição do complexo aeroportuário paulis-ta, tendo viracopos como maior centro cargueiro da américa Latina, projetará Campinas como porta para o comércio internacional no Brasil, porque reafirmará sua localização geográfica privilegiada no continente e intensificará suas vantagens competitivas nas rela-ções comerciais com outros estados e países.

a localização geográfica privilegiada de Campinas marcou toda a história de seu desenvolvimento, bem como sua influência sobre os demais municípios da região. Pelo Caminho das Minas dos Goyases, trans-portava-se parte do açúcar do Sudeste para a me-trópole portuguesa, no final do século XvIII. Por meio das ferrovias, Campinas conquistou posição de entroncamento no século XIX, por onde passava todo o café do interior do estado de São Paulo para o Porto de Santos. essa posição foi reafirmada com a abertura de rodovias paulistas no século XX, am-pliando a conexão com o interior e grandes capitais do país. Os novos papéis exercidos pelos aeroportos como cidades aeroportuárias, centro de negócios e

serviços e aeroporto-indústria, além das relações com as cidades onde estão inseridos, tendem a requalifi-car a localização geográfica de Campinas no século XXI (JaRaCh, 2001; MaRQUeS, 2002; COSTa SaNTOS, 2002 ; CaPPa, 2004a).

a noção de cidade aeroportuária está relacionada à necessidade de expansão dos aeroportos para atender ao intenso fluxo de pessoas que demandam seus ser-viços e ao elevado volume de mercadorias transpor-tadas. Isso implica aeroportos localizados no meio urbano e integrados a ele, devido a necessidade de interface com outros meios de transporte (rodoviá-rio, ferroviário e fluvial). além disso, compreendem arquiteturas de grande dimensão física e necessitam de infra-estrutura por vezes superior à de muitas ci-dades brasileiras quanto ao consumo de água potável e de energia elétrica, além do tratamento de lixo e esgoto (SILva; CoCCo, 1999; PaLhaReS, 2001; CaPPa, 2004b).

O centro de negócios e serviços se desenvolve no interior da cidade aeroportuária, expressando maior crescimento das receitas não-aeroportuárias – Rna diante das receitas aeroportuárias – Ra. Constitui atividades comerciais diversificadas: de cafeterias a espaço para banho de sol, como no aeroporto de Miami, além de salas para teleconferências, lojas (de flores, artigos esportivos, artesanato local, discos, an-tiguidades, jóias e pedras preciosas), restaurantes, lan-chonetes, free-shops, espaços publicitários, bancos, ca-sas de câmbio, locadoras de automóveis, barbearias, cabeleireiros, livrarias, bancas de jornal, bem como serviços diversificados (aluguel de armários, malas

Tabela 3

movimento de aeronaves, passageiros e carga, por aeroportosestado de são paulo – 2015 (1)

VariáveisAeroportos

Guarulhos Congonhas Viracopos

Movimento anual de aeronaves 270 mil 220 mil 510 mil

Movimento anual de passageiros (embarque + desembarque) 49 milhões 15,7 milhões 45 a 50 milhões

Carga transportada (tonelada/ano) 390 mil 34 mil 2 milhões

Fonte: Reinher (2002).(1) Previsão.

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e bolsas, agências de viagens, correios, telefônicas, reservas de hotéis, transportes, engraxates), hotéis, farmácias, cinemas, salas para conferências, reuniões, salas vip, piscinas e quadras de tênis.

O público-alvo envolve os trabalhadores do aero-porto (empregados de empresas aéreas, agentes de cargas e aviação em geral – táxi aéreo e aeronaves pri-vadas –, funcionários da administração aeroportuária, das lojas, dos restaurantes ou demais prestadoras de serviços), passageiros e seus acompanhantes, visitan-tes, além de residentes, comerciantes e industriários estabelecidos no entorno do aeroporto.

O aeroporto-indústria envolve um arranjo econô-mico entre Infraero, a Receita Federal e a Câmara de Comércio exterior – Camex porque representa um entreposto aduaneiro na zona primária dos terminais aeroportuários. Com isso, uma área é destinada para a instalação de empresas, especialmente as que operam no sistema just-in-time, permitindo agregar valor às mercadorias, visto que peças, partes e componentes importados passam por um processo de montagem para se transformarem em mercadorias disponíveis para a venda interna ou externa.

a partir dos conceitos de cidade aeroportuária, centro de negócios e serviços e aeroporto-indústria, considera-se que viracopos tende a tornar-se um im-portante indutor de expansão urbana em sua direção (região sul), devido ao intenso fluxo de passageiros que poderá atrair, ao elevado volume de mercadorias transportadas do aeroporto para outros municípios da região e bairros de Campinas, além dos serviços não-aeroportuários que poderá oferecer.

viracopos deverá, portanto, constituir um novo centro para o desenvolvimento de Campinas e região, cujo impacto socioeconômico pode ser estimado, por exemplo, pelo significado das universidades e dos cen-tros de pesquisa na região de Barão Geraldo, no norte da cidade. Desse modo, o aeroporto poderá contri-buir para integrar as regiões periféricas sul (onde esta instalado) e sudoeste (Ouro verde, onde vive mais de um quinto da população campineira) ao conjunto das demais áreas do município.(CaMPINaS, 1995). Mas isso implica a necessidade de integrar viraco-pos a outros meios de transporte, como rodoviário e ferroviário, para permitir agilidade e eficiência no

acesso e na saída do aeroporto, possibilitando melho-res condições para que ele sirva a Campinas e região (concepção de aeroporto de frente para Campinas e região), conforme citado anteriormente (SERRa, 1979; SILva; COCCO, 1999; CaPPa, 2004c, d).

a integração socioeconômica das regiões perifé-ricas citadas é possível tanto pelo significado da am-pliação de viracopos para Campinas e região, quanto pelo fato de os leitos férreos, os edifícios das antigas ferrovias e suas áreas de entorno terem sido decla-rados bens de utilidade pública destinados para im-plantação de sistema viário, com prioridade para o transporte público, e para execução de plano de urba-nização e de projetos sociais, culturais e educacionais por meio do Decreto n. 13.659, de 11 de julho de 2001, promulgado pelo prefeito antonio da Costa Santos (CaMPINaS, 2001)5.

a reativação dos leitos férreos permite integrar Campinas nos sentidos norte – sul e leste – oeste, possibilitando conectar sua área central com as de-mais áreas urbanas e rurais, tendo presentes os im-pactos socioeconômicos gerados pela ampliação de viracopos, seja no seu entorno, seja inserido no meio (CaMPINaS, 2000; OLIveIRa, 2003).

Os leitos férreos disponíveis, que, no passado, impulsionaram o desenvolvimento de Campinas, representam, por conseguinte, no século XXI e no contexto da ampliação de viracopos, condições para que se combata o problema da fragmentação urbana e da organização espacial descontínua caracterizada pela existência de duas cidades: uma rica, no norte, e outra pobre, no sul do município.

a partir da ampliação de viracopos é possível, por-tanto, abordar o debate sobre o que fazer com os leitos férreos disponíveis em Campinas por meio de uma nova perspectiva de análise, que é ampla e integrada porque passa a ser tratada como problema de planeja-mento estratégico do desenvolvimento da cidade.

viracopos representa, ainda, caso esteja “de frente para Campinas e região”, a possibilidade histórica de ampliar a inserção das cidades da região no comér-cio internacional, na medida em que cada município pode intensificar suas potencialidades específicas aproveitando-se da proximidade geográfica com o aeroporto, considerando-se que será o maior centro

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Notas

1. em 1980, o interior do estado de São Paulo respondia por 41,4% da produção industrial paulista, a Região administrativa de Campinas – RaC por 15,4% e Campinas por 2,5%. e entre 1989 e 1999, esses percentuais passaram, respectivamente, a 19%, 20% e 3,3% (PaCheCO, 1997).

2. a partir daqui denominado apenas viracopos.

3. esse conselho é dirigido por um presidente e um vice- presidente eleitos pelos seus pares para mandato de um ano, além de contar com uma secretaria executiva (SãO PaULO, 2000).

4. as câmaras temáticas foram criadas com base nas funções públicas de interesse comum da RMC, conforme segue: plane-jamento e uso do solo; transporte e sistema viário regional; ha-bitação; saneamento básico; meio ambiente; desenvolvimento

econômico; saúde e educação. Duas câmaras temáticas foram criadas em caráter especial: a de segurança pública, no início de 2003, e a da ampliação do aeroporto Internacional de vi-racopos, no final de 2004. Todavia, os membros das câmaras temáticas não apresentaram propostas para solucionar proble-mas comuns que pudessem ser apreciadas pelo Conselho de Desenvolvimento da RMC.

5. Outros decretos foram promulgados pelo poder público municipal para proteger os leitos férreos disponíveis: Decreto n. 6.536 de 17 de julho de 1981, cuja eficácia cessou em 1983; reeditado pelo Decreto n. 9.641, de 4 de outubro de 1988, que perdeu sua validade em 1993 (CaMPINaS, 1981; 1988). atualmente, Campinas possui 44 km dos leitos férreos oriun-dos das antigas companhias Mogiana e Sorocabana, que se encontram subutilizados ou desativados para transporte de passageiros (CaMPINaS, 2000).

cargueiro da américa Latina e que fará interfaces com os aeroportos de Guarulhos e Congonhas para cons-tituir um grande complexo aeroportuário paulista.

consideRações finais

O processo histórico do desenvolvimento da RMC foi recuperado para destacar, de um lado, a influência que a sede exerce na região a partir de sua localiza-ção estratégica e, de outro, para apontar o paradoxo entre riqueza e pobreza existente em Campinas e re-gião, especialmente diante da estagnação econômica no país desde os anos 1980. em seguida, a legislação que instituiu a RMC foi analisada para sublinhar que

essa região ainda está por ser consolidada do ponto de vista econômico e político, e que a referida lei não contempla os novos desafios para as grandes cidades na gestão de problemas urbanos em regiões conurba-das e interdependentes.

Finalmente, destacou-se a importância de ações integradas para desenvolver Campinas e região, aproveitando-se, inclusive, das externalidades positi-vas que serão geradas pela ampliação do aeropor-to Internacional de viracopos e pelos novos papéis exercidos pelos aeroportos no mundo, como cidade aeroportuária, centro de negócios e serviços e aero-porto-indústria, tendo em vista elevar as especificida-des locais de desenvolvimento de cada município.

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Josmar Cappa

Doutor em Economia pela Unicamp, Professor e Pesquisador da PUC Campinas na Faculdade de Ciências Econômicas.([email protected])

artigo recebido em 9 de junho de 2006. aprovado em 12 de setembro de 2006.

Como citar o artigo:CaPPa, J. aeroporto Internacional de viracopos e o futuro da Região Metropolitana de Campinas. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 20, n. 3, p. 106-119, jul./set. 2006. Disponível em: <http://www.seade.gov.br>; <http://www.scielo.br>.

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O Sistema Público de Ciência e Tecnologia brasileiro, tal como estruturado atualmente, é relativamente jovem, quando comparado aos de outras importantes econo-mias intermediárias. No entanto, ele foi sendo construído ao longo de algumas décadas, a partir de instituições de pesquisa já existentes, mas dispersas, e de outras que foram sendo criadas com objetivos específicos e volta-das ao desenvolvimento de áreas consideradas prioritárias em cada governo empossado.

Boa parte dos institutos de pesquisa, instituições de ensino superior e agências de fomento atuantes hoje no Brasil surgiram a partir dos anos 1950, num processo acelerado durante o regime militar, entre 1968 e 1980 (SChwarTzmaN, 1991). Mas foi somente em meados da década de 1980 que começou a se configurar e consolidar uma estrutura complexa e multiinstitucional, conformando o chamado Sistema Nacional de Desen-volvimento Científico e Tecnológico – SNDCT, oficializado nessa ocasião.

Como ressaltam alguns autores (BarroS, 2000; mELLo, 1992; SChwarTzmaN, 1993), a lógica dessa nova institucionalização do setor centrava-se quase que exclusivamente na unidade federativa. De fato, inserido num ambicioso projeto nacional de auto-suficiência industrial, científica e tecnológica, que vinculava Ciência e Tecnologia – C&T à área econômica, o governo federal tomou para si essa responsabilidade de ampliação e ar-ticulação institucional do sistema, lançando mão, para tanto, de sucessivos Planos Básicos de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – PBDCTs. Como resultado, foram criadas estruturas independentes da burocracia

Resumo: A partir de uma ampla gama de indicadores quantitativos, este artigo propõe um quadro atualizado dos recursos e principais resultados da atividade de Ciência e Tecnologia – C&T em São Paulo e sua contribuição aos esforços nacionais. Os dados revelam evolução ainda condicionada por

fortíssimo desequilíbrio regional, acentuando o papel determinante do Estado na configuração do padrão técnico-científico nacional.

Palavras-chave: Sistemas regionais de inovação. Indicadores de C&T. São Paulo.

Abstract: Based on a large range of quantitative indicators, this paper proposes an up-to-date overview of the resources and main results of the Science and Technology – S&T activities in the State of Sao Paulo and their contribution to national efforts. These data reveal an evolution still conditioned to

acute regional imbalances, thus highlighting the central role of the State in shaping the national technical and scientific pattern.

Key words: Regional innovation systems. S&T Indicators. Sao Paulo.

ConCentração regional da C&t no Brasilperfil da liderança paulista no cenário nacional

Regina gusmão

milena Y. Ramos

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COnCEnTRAçãO REgIOnAl dA C&T nO BRASIl: PERfIl dA lIdERAnçA... 121

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federal para o fomento e formação de recursos hu-manos qualificados para pesquisa e desenvolvimento (como a Financiadora de Estudos e Projetos – Finep e a Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, por exemplo), cuja geografia de localização e/ou atua-ção concentrava-se nos eixos de maior dinamismo in-dustrial e desenvolvimento socioeconômico do país, representados pela Região Sudeste e, secundariamen-te, pela Região Sul.

a despeito de ter mostrado importantes resulta-dos na promoção do desenvolvimento científico e tecnológico do país, essa política continha uma série de fragilidades e lacunas (SChwarTzmaN, 1993). Um dos aspectos a destacar refere-se à própria estru-turação dos chamados “Sistemas Estaduais de C&T”, sobretudo a partir dos anos 1980, que apareceu e manteve-se ao longo de toda a década mais como uma iniciativa do governo federal do que uma neces-sidade dos próprios Estados da Federação. Segundo esses autores, a conformação dos sistemas regionais de pesquisa e inovação teve um planejamento centra-lizado, sem a desejável participação das instituições locais e sem considerar plenamente as realidades so-cioeconômicas e especificidades regionais. Em outros termos, “esses movimentos não podem ser caracteri-zados como uma regionalização das políticas nacionais de C&T; ao contrário, caracterizam a consolidação de uma visão estadualizada” (SICSÚ; LIMA, 2001).

Sob este aspecto, o caso de São Paulo é bastante ilustrativo. O Sistema Paulista de C&T tornou-se o maior e mais desenvolvido do país, como resultado de investimentos governamentais específicos e siste-máticos, de origem federal e estadual, ao longo de mais de três décadas. Como se procurará demonstrar ao longo das seções que se seguem, esse esforço, que veio se somar a fatores potencializadores de ordem estrutural, levou São Paulo a tornar-se o único Esta-do brasileiro onde o sistema estadual de C&T – seja em porte, em número de instituições, em recursos fi-nanceiros alocados ou em recursos humanos e labo-ratoriais disponíveis – prevalece sobre o federal.

Com a Constituição Federal de 1988, que incen-tivou o processo de descentralização e desconcen-tração espacial, as estratégias de desenvolvimento regional tomaram novo e maior impulso. aos Esta-

dos, passou a ser facultada a vinculação de recursos orçamentários diretamente ao financiamento de ativi-dades de pesquisa e desenvolvimento, por intermédio da definição de um percentual fixo a ser executado anualmente (Tabela 1). Assim, foram definidos me-canismos incentivadores à criação de agências esta-duais de fomento, que passaram a ser denominadas Fundações de Amparo à Pesquisa – FAPs. Estas, ao longo da década de 1990, foram pouco a pouco se legitimando como mecanismos viabilizadores de vo-cações específicas, pela implementação de programas e ações, levando em conta a heterogeneidade inter- regional existente, os diferentes agentes envolvidos e os cenários de desenvolvimento estadual prevalecen-tes (DIAS; MELO; SICSÚ, 1998).

Como observa Mello (1992), essa evolução gerou forte mobilização de pesquisadores e governantes lo-cais em quase todas as unidades da Federação, que conseguiram vincular nas suas Constituições Esta-duais – a exemplo do sistema já vigente em São Pau-lo1 – uma parcela de recursos específicos destinados ao setor de C&T. De acordo com a Tabela 1, para a grande maioria dos casos, essa parcela varia entre 1% e 3% da receita tributária dos Estados.

No entanto, deve-se ressaltar que São Paulo é o único Estado brasileiro onde o percentual fixado na Constituição Estadual é totalmente repassado pelo Tesouro do Estado à agência estadual de fomento à C&T, e numa base mensal; em todos os outros Es-tados brasileiros, somente uma limitada parcela des-se percentual é transferida à FAP. Em razão dessa regularidade, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp tem conseguido man-ter, ao longo dos anos, uma estabilidade financeira e programática singular que a tem diferenciado das demais agências congêneres. Como o Estado de São Paulo representa a maior base de arrecadação do país, as instituições de pesquisa locais passaram, portanto, a dispor de um fluxo de recursos consideravelmente maior e mais estável para o desenvolvimento de suas atividades a longo prazo.

Em suma, a despeito de importantes deficiências e das distorções que a política nacional de C&T da segunda metade do século XX acabou ocasionando, o Brasil construiu um sistema robusto e diversifi-

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tabela 1

Recursos Estaduais em C&T e Participação das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa – FAPsBrasil – 2004

Região/EstadoDispêndios Estaduais

em P&D (1) (2)(Em R$ 1.000 correntes)

Dispêndios da Fundação de Amparo à Pesquisa (2)

(Em R$ 1.000 correntes)

% da Receita Tributária Estadual Destinada

à FAP (3)

BRASIL 1.067.283 695.047

Sudeste 692.672 538.539

São Paulo 584.292 421.079 1,0

Rio de Janeiro 71.331 75.668 2,0

Minas Gerais 36.716 41.792 3,0

Espírito Santo 333 - (4) n.e.

Sul 194.650 39.860

Paraná 150.533 - 2,0

Rio Grande do Sul 36.194 20.862 1,5

Santa Catarina 7.923 18.998 2,0

Nordeste 149.898 78.830

Bahia 111.349 25.804 1,5

Pernambuco 16.153 10.147 1,0

Paraíba 8.154 1.986 2,5

Alagoas 5.876 8.129 2,0

Ceará 4.312 26.914 2,0

Maranhão 165 5.050 0,5

Outros 3.889 799 -

Centro-Oeste 22.934 18.784

Mato Grosso 10.549 7.761 2,0

Mato Grosso do Sul 4.529 2.930 0,5

Distrito Federal 4.487 8.093 2,0

Goiás 3.369 - 3,0

Norte 7.129 19.035

Amazonas 4.743 17.058 3,0

Acre 984 1.879 (4) n.e.

Outros 1.402 98 -

Fonte: Ministério de Ciência e Tecnologia – MCT; Constituições Estaduais de 1989. Elaboração do autor.(1) Exceto dispêndios com o ensino superior.(2) Dados do MCT, disponíveis em: <http://www.mct.gov.br/index.php/content/view/9026.html>.(3) Valores correspondentes aos percentuais previstos nas Constituições Estaduais de 1989 referentes à parcela dos recursos orça-mentários estaduais que deve ser repassada anualmente à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado. Na maior parte dos casos, esse percentual refere-se à receita tributária total; para alguns Estados, é considerada a receita total ou a receita corrente.(4) n.e.: não especificado na Constituição.

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cado, que hoje se destaca na américa Latina. Nes-se contexto, o Estado de São Paulo ocupa posição privilegiada regionalmente e, em quase todas as di-mensões, responde pela parcela mais expressiva da base de C&T instalada no país, seja pelo critério dos dispêndios e da infra-estrutura de recursos huma-nos e técnicos disponíveis, seja pelos resultados que essa infra-estrutura é capaz de gerar (QUADROS et al., 2000).

Com este pano de fundo e apoiando-se nos re-sultados apresentados na terceira edição da série Indicadores de Ciência, Tecnologia e Inovação em São Paulo, lançada pela Fapesp em 2005,2 o objetivo principal do presente trabalho é fornecer uma síntese dos princi-pais aspectos que marcaram a produção científica e tecnológica paulista do final dos anos 1990 ao início dos anos 2000, procurando destacar os traços que podem ser considerados como mais determinantes do padrão tecnológico vigente no país. Esse pano-rama é examinado sob uma dupla perspectiva: num primeiro momento, a análise centra-se nos insumos disponíveis para C&T no Estado de São Paulo e no Brasil; em seguida, nos produtos que esses insumos foram capazes de produzir, no mesmo período. Essas análises são complementadas por uma breve descri-ção das condições de acesso e difusão das Tecnolo-gias da Informação e Comunicação – TICs e redes digitais no Estado de São Paulo, ao longo do período aqui enfocado, com vistas a estimular a reflexão so-bre a sua efetiva contribuição e verdadeiro alcance no desenvolvimento mais equilibrado dos esforços de C&T no país.

ConTRAsTEs E dEsEquilíBRios REgionAis dA BAsE CiEnTíFiCA E TECnológiCA insTAlAdA no PAís

A elevada concentração regional da infra-estrutura de C&T instalada no Brasil, com a respectiva con-centração de recursos e de oportunidades na Região Sudeste do país, tem sido objeto de muitas reflexões e debates entre os diferentes atores envolvidos no sistema.

alguns desses autores apontam para a existên-cia de uma clara associação entre os fluxos de re-cursos e a base de C&T instalada (ROCHA, 2005;

BARROS, 1999; ALBUQUERQUE; ROCHA NETO et al., 1996). Em Fagundes, Cavalcante e ramacciotti, sugere-se a prevalência de um processo de “causação circular e cumulativa”, que é assim sintetizado:

as desigualdades interestaduais em C&T no Brasil obedece-riam a um mecanismo de auto-reforço no qual as condições de infra-estrutura influenciam os fluxos de recursos que, por sua vez, se incorporam à própria infra-estrutura, ampliando os diferenciais de competitividade entre os estados no que concerne a captação de novos recursos junto às agências governamentais (FAgUNDES; CAvALCANTE; RAMACCIOTTI, 2005, p. 61).

Em um contexto predominantemente marcado pelo financiamento a atividades de C&T baseado em editais públicos, a distribuição dos recursos em um período determinado estaria, assim, diretamente relacionada à infra-estrutura de C&T disponível no período imediatamente anterior. ainda segundo Fa-gundes, Cavalcante e ramacciotti (2005), isso resulta, entre outros fatores, da própria formulação dos edi-tais, os quais tendem a refletir a agenda de Pesquisa e Desenvolvimento – P&D das regiões que dispõem de maior infra-estrutura de C&T pela comprovada maior representatividade destas nos diversos fóruns responsáveis pela definição de prioridades.

Dito de outra forma, parece configurar-se, assim, um círculo vicioso, que acaba perpetuando a situa-ção de desequilíbrio entre as regiões: os Estados mais desenvolvidos e com capacidade de C&T instalada maior e mais diversificada são os que atraem a maior parte dos investimentos governamentais; e são, ao mesmo tempo, aqueles que têm as melhores condi-ções de fazer investimentos com recursos orçamen-tários próprios.

apoiando-se em resultados empíricos abrangen-tes, as seções a seguir oferecem indicações claras de que esse desequilíbrio é, de fato, determinante no desempenho do sistema de C&T brasileiro. Algumas ações governamentais recentes, nas esferas federal e estadual, mencionadas ao longo do texto, podem re-presentar passos importantes para um futuro abran-damento dessa evolução concentradora.

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ConCentração dos reCursos FinanCeiros aloCados em atividades de P&d

De acordo com os indicadores publicados pela Fa-pesp (2005), os gastos totais em atividades de P&D no Estado de São Paulo alcançaram, em 2000, cerca de r$ 4 bilhões,3 o que representou mais de 36,3% do dispêndio nacional no setor, percentual apenas um pouco superior ao da participação de São Paulo no Produto Interno Bruto – PIB brasileiro (33,7%).4 Como mencionado acima, essa forte variação na dis-tribuição regional dos dispêndios em C&T ainda pre-valecente no Brasil explica-se, em grande parte, pela histórica e elevada concentração da infra-estrutura de C&T disponível nos Estados da Região Sudeste.

Quando analisados em relação ao PIB, na virada do século XXI, os dispêndios em P&D apresentaram um real crescimento com relação à década de 1990: em 2000, uma parcela maior do PIB estadual, ou seja, 1,07%, foi gasta em P&D, contra uma média de 0,98% no período de 1994 a 1998 (FaPESP, 2002). Observa-se, assim, que o esforço em P&D mantém-se pouco maior no Estado de São Paulo do que no país como um todo, onde esses gastos não ultrapassa-ram a casa de 1,0% do PIB, naquele mesmo ano. Tais resultados colocam São Paulo numa posição de des-taque, comparável à de países desenvolvidos, como a Itália, e melhor posicionado que Espanha e Portugal, muito embora, em termos absolutos, o diagnóstico continue revelando-se muito menos favorável.

Considerando apenas os dispêndios públicos em P&D realizados em São Paulo, calculados a partir do universo de instituições de pesquisa e de fomento das esferas estadual e federal localizadas no Estado, veri-fica-se que, entre 1998 e 2002, eles situaram-se sem-pre acima dos R$ 2,3 bilhões anuais. Confirmando o padrão de distribuição prevalecente em São Paulo, que é inverso daquele dominante na totalidade dos outros Estados brasileiros, a maior parcela desses gastos provém do governo estadual (em torno de 60%, contra 40% de gastos federais). ressalte-se que essa prevalência da esfera estadual em relação à fede-ral é o elemento distintivo mais marcante do sistema paulista de C&T, quando comparado ao das outras unidades da Federação.

No que tange ao financiamento à P&D, a agência estadual de fomento à pesquisa, Fapesp, vem man-tendo sua posição de destaque, registrando sempre os maiores valores de despesa em relação às demais agências governamentais de fomento (um valor mé-dio anual de r$ 508 milhões, no período compreendi-do entre 1998 e 2002). A título de ilustração, os finan-ciamentos provenientes das três agências federais de fomento no Estado (Conselho Nacional de Desen-volvimento Científico e Tecnológico – CNPq, Coor-denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Su-perior – Capes e Financiadora de Estudos e Projetos – Finep) representaram uma parcela nunca superior a R$ 387 milhões anuais no mesmo período.

As estimativas de gastos da pós-graduação em São Paulo, considerados pela literatura especializada como um dos componentes dos dispêndios governa-mentais em P&D, totalizaram, na média do período entre 1998 e 2002, r$ 863 milhões por ano, dos quais 84% realizados apenas pelas três universidades esta-duais (Universidade de São Paulo – USP, Unicamp e Universidade Estadual Paulista – Unesp), situação também inversa daquela prevalecente em todos os outros Estados brasileiros. a USP manteve a sua li-derança histórica, concentrando 58%, em média, dos gastos em P&D do conjunto de estabelecimentos de ensino superior localizados no Estado.

No que tange às chamadas “instituições típicas de P&D” paulistas, os gastos atingiram, em 2002, R$ 619 milhões. Entretanto, em razão da presença de gran-des institutos de pesquisa federais no Estado, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe e o Centro Técnico Aeroespacial – CTA, mais de dois terços desse total foram provenientes do governo fe-deral.5 Considerando apenas a esfera estadual (com 16 institutos de pesquisa especializados, vinculados às Secretarias Estaduais de Ciência e Tecnologia, de Saúde, do meio ambiente e da agricultura e abas-tecimento), no período entre 1998 e 2002, os gastos anuais médios não ultrapassaram R$ 244 milhões, ou seja, apenas metade do realizado pelos sete institutos federais sediados no Estado (r$ 490 milhões). Se, por um lado, esses resultados sugerem a séria limitação de recursos que, na última década, tem atingido boa parte dos institutos de pesquisa estaduais, eles devem

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ser tomados como grande exceção no padrão de gas-tos em P&D prevalecente em São Paulo, que é forte-mente marcado pela supremacia do sistema de C&T estadual sobre o federal.

Com relação aos dispêndios em P&D realizados pelo setor empresarial, fica ainda mais flagrante o quadro de alta concentração no Estado de São Paulo em relação aos outros Estados brasileiros: em 2000, o setor empresarial paulista já concentrava 56,7% dos gastos totais em P&D realizados pelo conjunto de empresas do país, um percentual similar ao do núme-ro de empresas localizadas no Estado do conjunto daquelas que realizaram atividades internas de P&D no mesmo período.6

Sob uma perspectiva alternativa, outros indicado-res põem à mostra um terceiro traço distintivo do sis-tema paulista quando comparado aos outros Estados brasileiros: em 2000, os gastos empresariais em P&D representaram cerca de 54% do esforço paulista (r$ 2,2 bilhões), contra 46% do setor público. Numa situação inversa, para o Brasil como um todo, o dis-pêndio público representou, no mesmo ano, 58% dos gastos totais, contra não mais de 42% do setor em-presarial. Esses perfis de distribuição setorial revelam que a participação empresarial no dispêndio agregado de P&D para São Paulo, embora ainda bastante limi-tada em contraste com um grande número de países, aproxima-se do padrão observado nas economias in-dustriais mais dinâmicas, nas quais a participação das empresas situa-se em cerca de 70%, na média, dos dispêndios totais.

Em suma, em que pese o crescimento dos recur-sos alocados em P&D verificado nos últimos anos, a redução do ainda acentuado distanciamento dos esforços brasileiros em relação aos padrões pre-valecentes nos países desenvolvidos, não somente em termos do montante aplicado, mas, sobretudo, da estrutura de gasto por setor de aplicação, repre-senta um velho desafio para o avanço tecnológico e aumento da competitividade da economia nacional. Mais recentemente, a formalização de uma Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior – Pitce (BRASIL, 2003), articulando simultaneamente o estímulo à eficiência produtiva, ao comércio exterior, à inovação e ao desenvolvimento tecnológico como

vetores dinâmicos da atividade industrial, podem sur-tir efeitos bastante positivos no médio e longo prazos. No que tange aos instrumentos propriamente ditos, é de destacar o apoio a programas de investimento das empresas com vistas à construção ou reforço da infra-estrutura de pesquisa, desenvolvimento e engenharia disponível, tais como os recém-lançados Programa de Desenvolvimento da Inovação – PDI, Programa Inovação-Produção e Fundo Tecnológi-co – Funtec, além de todos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES,7 e mobilizando recursos da ordem de R$ 1 bilhão, que podem ser tomados como resposta à crônica insufi-ciência no país de dispositivos públicos voltados ao fomento à pesquisa industrial.

vale observar que, no curto prazo, a nova Lei de Inovação, sancionada pelo Presidente da República em 02/12/2004 (BRASIL, 2004), poderá ter tam-bém papel central na tentativa de reversão do quadro acima esboçado. Organizada em torno de três eixos – “constituição de um ambiente propício a parcerias estratégicas entre o meio acadêmico e a iniciativa privada”, “estímulo à participação de instituições de C&T no processo de inovação” e “incentivo à ino-vação nas empresas” – a nova legislação poderá po-tencializar a aplicação de um volume bem maior de recursos em P&D nas instituições públicas e priva-das. Nesse sentido, ela constitui a base legal de im-plementação da nova política industrial, tecnológica e de comércio exterior que vem sendo adotada pelo governo brasileiro.

exPansão do ensino suPerior (Graduação e Pós-Graduação)

Para os anos de 1998 a 2002, dados do Instituto Na-cional de Estudos e Pesquisas Educacionais – Inep apontam clara aceleração do ritmo de crescimento da matrícula de ensino superior no Brasil em relação ao período compreendido entre 1995 e 1998, com a entrada de mais de 1,3 milhão de alunos no sistema. Esta aceleração está associada, em grande parte, à duplicação do número de concluintes no ensino mé-dio no período observado, decorrente da política de universalização do ensino fundamental, ocorrida no governo Fernando henrique Cardoso (1994-1998);

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porém, ela reflete também um movimento de pro-gressiva interiorização do sistema pelo território na-cional, associado a uma tendência de diversificação institucional (a exemplo da criação das universida-des abertas, corporativas, setoriais e as instituições de intermediação), como apontam Braga e Mon-teiro (2005), bem como uma maior flexibilidade na oferta de cursos pelos estabelecimentos já existentes (como os superiores de curta duração e os de ensino a distância).

De maneira geral, o exame da evolução recen-te do sistema de ensino superior parece consolidar as tendências já apontadas em trabalhos anteriores (FaPESP, 2002). Entre 1998 e 2002, o Estado de São Paulo manteve trajetória ascendente, não apenas em termos do número de matrículas, mas também de cursos e de instituições de ensino, a taxas de 46%, 89% e 40%, respectivamente. No contexto brasileiro, esse crescimento foi bem mais acentuado, atingindo taxas de 64%, 107% e 68%, nas respectivas catego-rias. Concentrando quase um quarto da população de 18 a 24 anos do país, São Paulo passa a ser res-ponsável por uma parcela de 28% do total de matrí-culas na graduação, em 2002, e por igual parcela do conjunto de instituições credenciadas em todo o país (Tabela 2).

Dados complementares revelam, contudo, que tanto no Estado de São Paulo quanto no país como um todo, essa expansão da graduação foi predomi-nantemente conduzida pela rede privada, na qual o número de matrículas, no período aqui observado, cresceu a taxas de 50% e 84%, respectivamente. Por conseguinte, a parcela do segmento particular atin-giu, em 2002, o patamar de 85% do total de matrí-culas em São Paulo e de 70% no Brasil – um cres-cimento extraordinário, tanto em termos absolutos como relativos.

No bojo das medidas governamentais de descen-tralização da base de C&T instalada no território nacional, os dados revelam também um nítido des-locamento da graduação para fora das capitais e das regiões Sudeste e Sul do país, a que alguns especia-listas chamam de “triplo movimento de difusão espa-cial”.8 Mais especificamente, trata-se de:

• desconcentração das matrículas no interior da Re-gião Sudeste, em favor dos outros Estados que não São Paulo;

• desconcentração das matrículas da Região Sudeste em direção a regiões menos desenvolvidas do país;

• “interiorização” dos cursos ou “deslocamento das redes”, tanto pública como privada, para os muni-cípios localizados no interior dos Estados.A tendência de desconcentração inter e intra-

regional fica evidenciada pelas diferenças no ritmo de expansão das matrículas: no período entre 1998 e 2002, o crescimento das matrículas no Estado de São Paulo (46%) foi bem inferior ao verificado para a Região Sudeste como um todo, excluindo São Paulo (61%); ao mesmo tempo, o crescimento das matrícu-las nas regiões Sudeste e Sul, no mesmo período, foi claramente inferior ao observado nas outras regiões do país.9

Quanto ao chamado processo de “interiorização”, os dados do Inep revelam que a maior parcela das matrículas na graduação está crescentemente locali-zada nos municípios do interior dos Estados brasi-leiros. No Estado de São Paulo, essa tendência tem se mostrado mais acentuada: em 2002, 62% do total dos matriculados pertenciam a instituições sediadas em municípios do interior paulista, contra 38% na capital; para o conjunto do país, esses percentuais situaram-se, naquele mesmo ano, em 54% e 46%, respectivamente. Esse movimento se deu, em boa medida, porque grandes instituições de ensino (tais como a Universidade Estácio de Sá, no rio de Janei-ro, e a Universidade Paulista – Unip), esgotaram sua capacidade de crescimento em seu local de origem e passaram a ocupar municípios interioranos em todo o território nacional (BRAgA; MONTEIRO, 2005), tendência esta que tem sido seguida por muitas novas Instituições de Educação Superior – IES particulares criadas no período.

A expansão da pós-graduação no Brasil é um fe-nômeno ainda mais recente que a expansão do ensino de graduação e teve como um de seus principais obje-tivos garantir que o crescimento do sistema brasileiro de ensino superior não se desse em detrimento de uma progressiva melhora de sua qualidade.

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tabela 2

Participação do Estado de são Paulo nos Esforços Brasileiros em P&d

Indicador São Paulo Brasil SP/Brasil (%)

INDICADORES DE INSUMO PARA P&D

Dispêndios em P&D

Dispêndios totais em P&D (milhões R$, 2000) 3.980 10.970 36,3

Dispêndios totais em P&D (US$ PPP, 2000) 4.544 12.525 36,3

Dispêndios do setor público em P&D (milhões R$, 2000) 1.825 6.409 28,5

Dispêndios do setor empresarial em P&D (milhões R$, Pintec 2000/IBGE) 2.121 3.742 56,7 Ensino superior (graduação)

Número de vagas oferecidas na graduação (total, 2002) 555.152 1.773.087 31,3

Número de vagas oferecidas na graduação (rede privada, 2002) 512.058 1.477.733 34,7

Número de matrículas na graduação (total, 2002) 988.696 3.479.913 28,4

Número de matrículas na graduação (rede pública, 2002) 153.432 1.051.655 14,6

Número de matrículas na graduação (rede privada, 2002) 835.264 2.428.258 34,4

Número de concluintes na graduação (total, 2002) 160.051 466.260 34,3

Número de concluintes na graduação (rede privada, 2002) 1 37.257 315.159 43,6

Número de instituições de ensino superior (total, 2002) 450 1.637 27,5

Número de instituições de ensino superior (rede privada, 2002) 408 1.442 28,3

Número de cursos de graduação (total, 2002) 3.425 14.399 23,8

Número de cursos de graduação (rede privada, 2002) 2.872 9.147 31,4

População de 18 a 24 anos que freqüenta curso superior (2002) 646.304 2.271.118 28,5

Taxa de escolaridade líquida – que freqüenta curso superior/total (%) 12,7 9,8 ...

Número de funções docentes no ensino superior (total, 2002) 66.138 242.475 27,3

Relação aluno/docente – número de matrículas/número de docentes (total, 2002) 15,5 15,3 ...

Relação aluno/docente – número de matrículas/número de docentes (rede estadual, 2002) 8,6 12,8 ...

Número de funções docentes no ensino superior com doutorado (total, 2002) 18.153 49.287 36,8

Número de funções docentes no ensino superior com doutorado (rede estadual, 2002) 8.695 12.609 69,0

Número de funções docentes no ensino superior com doutorado (rede privada, 2002) 7.987 17.189 46,5

Porcentual de cursos com conceitos A ou B no Exame Nacional de cursos da rede estadual (2002) 71,7 33,1 ...

Ensino superior (pós-graduação)

Número de alunos matriculados na pós-graduação (mestrado, 2003) 24.012 66.959 35,9 Número de alunos matriculados na pós-graduação (doutorado, 2003) 20.140 40.213 50,1 Número de alunos titulados na pós-graduação (mestrado, 2002) 8.501 23.359 36,4 Número de alunos titulados na pós-graduação (doutorado, 2002) 4.055 6.893 58,8 Número de cursos de pós-graduação (mestrado, 2002) 515 1.593 32,3 Número de cursos de pós-graduação (doutorado, 2002) 403 920 43,8

Recursos humanos para pesquisa

Número de pesquisadores pertencentes a grupos de pesquisa (2002) 18.314 64.762 28,3 Número de pessoas pertencentes a grupos de pesquisa (2002) 43.130 146.209 29,5 Pessoal em P&D nas empresas industriais (amostra Pintec 2000/IBGE) 22.301 41.467 53,8

(continua)

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tabela 2

Participação do Estado de são Paulo nos Esforços Brasileiros em P&d

Indicador São Paulo Brasil SP/Brasil (%)

INDICADORES DE RESULTADO DE P&D

Produção científica

Número de publicações indexadas na base Scie/ISI (2002) 8.538 15.846 53,9

Taxa de crescimento (%) (2002/2001) 19,2 15,6 ...

Participação no total mundial (%) (2002) 0,8 1,5 ... Número de publicações em colaboração com outros países indexadas na base Scie/ISI (2002) 2.356 4.793 49,2 Número de publicações em colaboração com outros Estados brasileiros na base Scie/ISI (2002) 1.335 2.118 63,0

Atividade de patenteamento no Brasil

Número de pedidos de patentes depositados no Inpi (total, 2001) 2.811 5.501 51,1

Número de pedidos de patentes depositados no Inpi por pessoas jurídicas (2001) 774 1.379 56,1 Número de pedidos de patentes depositados no Inpi por pessoas físicas (2001) 2.037 4.122 49,4 Número total de municípios com pedidos de patentes depositados no Inpi (1999-2001) 257 886 29,0

Porcentual de municípios com pedidos de patentes depositados no Inpi (1999-2001) 39,8 16,0 ...

Atividade de patenteamento no exterior

Número de patentes concedidas pelo Uspto (total, 2002) 55 112 49,1 Número de patentes concedidas pelo Uspto a pessoas jurídicas (total, 2002) 48 96 50,0 Número de patentes concedidas pelo Uspto a pessoas jurídicas (subsid. de transnacionais, 1981-2002) 81 84 96,4

Número de patentes concedidas pelo Uspto a pessoas jurídicas (residentes, 2002) 28 56 50,0

Perfil do comércio externo de produtos e serviços com conteúdo tecnológico

Total de exportações da “indústria intensiva em P&D” (categoria CTP, milhões US$, 2003) 1.830 4.140 44,2

Total de importações da “indústria intensiva em P&D” (categoria CTP, milhões US$, 2003) 4.076 7.379 55,2 Total de exportações de produtos de “alta tecnologia” (milhões US$, 2003) 4.715 9.317 50,6 Total de importações de produtos de “alta tecnologia” (milhões US$, 2003) 8.158 15.685 52,0

Valor médio das exportações da “indústria intensiva em P&D” (US$, 2003) 8,14 7,54 ... Valor médio das importações da “indústria intensiva em P&D” (US$, 2003) 14,80 13,50 ... Valor médio das exportações de produtos de “alta tecnologia” (US$, 2003) 6,75 5,73 ... Valor médio das importações de produtos de “alta tecnologia” (US$, 2003) 15,84 14,05 ...

Empresas inovadoras

Número de empresas inovadoras (universo Pintec 2000/IBGE) 8.664 22.698 38,2 Número de empresas com atividades de P&D (universo Pintec 2000/IBGE) 3.373 7.412 45,5 Dispêndios em P&D (milhões R$, 2000) 2.121 3.742 56,7

Taxa de inovação na indústria – número de empresas inovadoras/total investigado (%) (2000) 32,6 31,5 ... Porcentual das empresas investigadas que introduziram inovações de produto novo para o mercado (2000) 6,1 4,1 ...

(continua)

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Tal expansão, de forma muito mais acentuada que na graduação, é marcada pela fortíssima concentra-ção no Estado de São Paulo, com apenas algumas va-riações segundo o indicador observado: com relação ao número de alunos ingressantes, em 2002, a parti-cipação do Estado atingiu 33% no mestrado e 51% no doutorado; quanto aos alunos titulados, esses per-centuais sobem para 36% e 59%, respectivamente.10 Em número de cursos oferecidos, as proporções são semelhantes a estas últimas. Considerando a Região Sudeste como um todo, em 2004, ela foi responsável pela titulação de 58% dos mestres e 76% dos dou-tores do país. Em outras palavras, cerca de três em cada quatro doutores brasileiros concluíram o dou-torado em universidades localizadas nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas gerais ou Espíri-to Santo. É importante lembrar, entretanto, que boa parte desses titulados é proveniente de outras regiões do país, que buscam no Sudeste mais opções de qua-lificação avançada.

Vale comentar que o novo Plano Nacional de Pós-graduação – PNPg 2005-2010, em vigor desde janeiro de 2005, reconhece e busca equacionar essa

assimetria, estimulando, entre outras ações, a “atu-ação em rede” (SÁ BARRETO, 2006). O objetivo dessa medida é suplantar os desequilíbrios regionais na oferta e desempenho da pós-graduação, pelo es-tabelecimento de programas estratégicos específicos a serem idealizados e sugeridos pelas agências de fo-mento, a partir de consultas às universidades, aos ins-titutos de pesquisa, aos órgãos de governo estaduais e ao setor empresarial, para o enfrentamento de cada tipo de assimetria observada. a proposta pressupõe forte articulação entre as agências de fomento fede-rais – Capes, CNPq e Finep – e destas com as Funda-ções de Amparo à Pesquisa e Secretarias de Ciência e Tecnologia dos governos estaduais. o tratamento da questão regional dessa forma articulada, além de inu-sitada no país, pode vir a contornar importantes bar-reiras e limitações, sobretudo de natureza sistêmica, que têm obstaculizado um avanço mais equilibrado dos esforços nacionais no setor de C&T.

Também de forma inversa à realidade da gradua-ção, a pós-graduação brasileira é eminentemente ofe-recida pela rede pública, que vem mantendo o ritmo de crescimento observado ao longo dos anos 1990. a

tabela 2

Participação do Estado de são Paulo nos Esforços Brasileiros em P&d

Indicador São Paulo Brasil SP/Brasil (%)

Intensidade do esforço em P&D das empresas inovadoras – dispêndios P&D/receita líquida vendas (2000) 0,8 0,6 ... Intensidade do esforço inovativo das empresas inovadoras – dispêndios atividades inovativas/receita líquída vendas (2000) 4,2 3,8 ...

Produção e difusão das TICs

Número de unidades locais nos setores de indústria e de serviços de TICs (2001) 22.425 42.654 52,6

Número de pessoas ocupadas nos setores de indústria e de serviços de TICs (2001) 187.047 444.169 42,1

Salários e outras remunerações nos setores de indústria e de serviços de TICs (mil R$, 2001) 5.326 10.122 52,6 Receita total do setor da indústria de TICs (mil R$, 2001) 23.102 40.647 56,8 Receita total do setor de serviços de TICs (mil R$, 2001) 30.642 80.531 38,0 Número de domínios “.com.br” e “.org.br” (total, 2003) 243.777 495.014 49,2

Densidade de domínios “.com.br” e “.org.br” por 1.000 habitantes (2002) 5,1 2,2 ... Densidade de domínios “.com.br” e “.org.br” por 1.000 estabelecimentos (2002) 284,6 159,0 ...

Fonte: Fapesp (2005). Elaboração do autor. (conclusão)

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rede privada permanece, por sua vez, bastante margi-nal no esforço global: em número de cursos ofereci-dos, eles não ultrapassavam, em 2002, 17% do total no mestrado e 7% no doutorado. Além da baixa par-ticipação, esses cursos são, via de regra, de pequeno porte; tendem a se concentrar, ao contrário do que ocorre na rede pública, nas áreas não-tecnológicas e em nível de mestrado; e são suscetíveis a conceitos inferiores nos processos oficiais de avaliação.

Por fim, embora ainda fortemente concentrada em São Paulo, os dados disponíveis mostram que a pós-graduação continua em franca expansão no resto do país, mesmo que a um ritmo menor que o da gra-duação. A expansão positiva verificada entre 1998 e 2002, mais acentuada para o nível de doutorado, fica duplamente demonstrada: em número de matrículas, 62% de aumento para os outros Estados brasileiros, contra 26% para São Paulo; em número de titulados, 113% contra 55%, respectivamente. o exame destas taxas de crescimento, em geral bastante extraordiná-rias, leva alguns autores a defender a idéia de que o sistema de pesquisa e pós-graduação no Brasil não precisa mais crescer de forma tão acelerada, mas sim estar voltado à consolidação da infra-estrutura já ins-talada (SÁ BARRETO, 2006).

limitado estoque de reCursos Humanos disPoníveis em C&t

Em 2001, os recursos humanos alocados em ativida-des de C&T – RHCT, calculado sob a perspectiva da ocupação e da escolaridade, totalizaram em torno de 11,2 milhões de pessoas no Brasil e 3,6 milhões no Estado de São Paulo, que concentra cerca de um ter-ço do estoque nacional.11 Se comparados com os va-lores estimados pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OECD, 2003), em termos absolutos, o contingente de rhCT do Brasil situa-se em patamar comparável ao de importantes economias européias, como a França e o reino Uni-do; o Estado de São Paulo, por sua vez, apresenta va-lores comparáveis aos da holanda e bem superiores aos de países como a Bélgica e a Suécia. Entretanto, quando considerados relativamente à população eco-nomicamente ativa – PEA, os indicadores brasileiros e paulistas denunciam uma realidade bastante dife-

rente e desfavorável em ambos os casos. Situando-se num patamar muito abaixo da totalidade dos países europeus para os quais se dispõe desse tipo de in-dicador. Em 1999, os rhCT disponíveis no Brasil representavam não mais que 12% da PEA e, em São Paulo, 17%, contra os cerca de 30% a 45% vigentes naqueles países.

Esses resultados põem à mostra o peso reduzido das ocupações mais qualificadas na estrutura ocupa-cional brasileira. Diante disso, é possível identificar duas dimensões principais que as políticas nacionais devem contemplar para o efetivo aumento do esto-que de recursos humanos em C&T. A primeira diz respeito à ampliação e diversificação da formação de recursos humanos especializados em áreas tecnoló-gicas. Em que pesem os esforços feitos na direção da expansão do sistema educacional brasileiro, que têm se realizado com relativo sucesso nos últimos anos (como demonstram os dados de ensino supe-rior comentados na seção anterior), esses resultados positivos parecem não estar se refletindo nas mesmas proporções no aumento dos rhCT disponíveis.

A segunda dimensão está relacionada à criação de postos de trabalho mais qualificados. Aqui reside um dos muitos desafios que a nova Pitce terá que enfren-tar para ver atingido seu objetivo de gerar capacita-ções que permitam aumentar a capacidade inovativa das empresas e, conseqüentemente, a competitividade da economia brasileira no cenário internacional.

Com relação ao pessoal alocado em atividades de P&D no setor empresarial, de acordo com dados da pesquisa Pintec 2000, realizada pelo IBgE, as mais de 8.600 empresas industriais que implementaram inovações no Estado de São Paulo naquele ano em-pregavam um total de 22,3 mil pessoas ocupadas em P&D, das quais 11,6 mil com nível superior, 7,3 mil de nível médio e 3,4 mil com outro nível de escola-ridade. Quando se agregam a esses valores os dados obtidos junto ao Diretório dos grupos de Pesqui-sa do CNPq,12 estima-se para São Paulo um total de quase 30 mil pesquisadores (um terço no segmento industrial), 17,8 mil pessoas em atividades de apoio à P&D e 17,7 mil estudantes de pós-graduação. Es-tas estimativas colocam São Paulo numa posição de clara liderança comparativamente a todos os outros

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Estados brasileiros, porém ainda bastante distante dos padrões observados em outras economias inter-mediárias, especialmente no que concerne às parcelas correspondentes às esferas pública e privada.

ConCEnTRAção REgionAl dA PRodução CiEnTíFiCA E TECnológiCA nACionAl

Os recursos financeiros, físicos e humanos disponí-veis para P&D no Estado de São Paulo, tratados nas seções precedentes, geraram, no período entre 1998 e 2003, importantes resultados nos âmbitos científico e tecnológico. Tais resultados, por vezes surpreenden-tes, também revelam, em distintos aspectos, indiscu-tíveis debilidades que ainda prevalecem na dinâmica e desempenho do setor de C&T no conjunto do país. Com base nas informações publicadas na edição Indicadores de Ciência, Tecnologia e Inovação em São Paulo 2004 (FaPESP, 2005), são apresentados, nesta seção, os principais indicadores associados a essa realidade no que concerne a: produção científica, atividade de patenteamento, comércio externo de produtos com conteúdo tecnológico e esforços inovativos no setor empresarial.

Produção CientíFiCa

Com base em indicadores construídos a partir de ar-tigos científicos de residentes no país publicados em periódicos indexados nas principais bases bibliográ-ficas internacionais, é possível constatar que a pro-dução científica do Brasil, como a do Estado de São Paulo, vem mantendo um crescimento contínuo ao longo do tempo, bem superior ao da produção mun-dial como um todo.

De acordo com dados extraídos da base Science Citation Index Expanded – SCIE do Institute for Scientific Information – ISI, que é referência em nível internacio-nal, a produção brasileira passou de um total de 10.279 artigos indexados, em 1998, para 15.846, em 2002.13 Essa evolução corresponde a um crescimento de 54% no período, muito superior ao crescimento médio da produção mundial, que ficou em torno de 9%. Assim, a participação do Brasil no total mundial, que era de 1,1%, em 1998, atingiu 1,5%, em 2002, mantendo a

sua posição de destaque entre os países da América Latina. Nesse período, também foram expressivas as taxas de crescimento da produção científica de alguns países da região, especialmente da Argentina, do Chile e do méxico, mas todas num patamar bem inferior ao da taxa verificada para o Brasil.

Certamente, esse crescimento expressivo está em grande parte associado à expansão recente da pós-graduação. A política de avaliação dos programas de pós-graduação implementada pela Capes, bem como a própria avaliação institucional docente, que balizam e fundamentam essa expansão, tendem a sobrevalori-zar os aspectos de publicação e produção de resulta-dos. Por conseqüência, os docentes e pesquisadores, especialmente aqueles vinculados às universidades públicas, se vêem fortemente estimulados a alcançar uma maior e contínua produtividade científica. Con-tudo, como tem sido amplamente discutido pela co-munidade acadêmica, a prevalência da publicação de artigos científicos como critério exclusivo de mensu-ração da produtividade científica tem sido objeto de importantes controvérsias.

Mantendo o padrão histórico de concentração que vem sendo revelado em diferentes estudos (FaPESP, 2002; vIOTTI; MACEDO, 2003), o Estado de São Paulo representou, na média do período entre 1998 e 2002, 52% do esforço nacional, mas a uma taxa de crescimento mais elevada que a do país como um todo (63% contra 54%, respectivamente). Em 2002, a produção científica paulista (8.538 artigos) atingiu o percentual de 0,8% da produção mundial indexada na base SCIE.

É importante destacar que, confirmando o padrão brasileiro de produção científica, no qual os esforços localizam-se quase que exclusivamente no ambiente acadêmico de ambos os sistemas, federal e estadual, 17 das 20 primeiras entidades em número de publica-ções indexadas na base SCIE, no período em exame, referem-se a estabelecimentos de ensino superior. Das oito primeiras colocadas, cinco estão localiza-das no Estado de São Paulo. Dentre as instituições líderes, destacam-se: a USP que, sozinha, concentra cerca de 26% da produção brasileira no período; a Unicamp, com 11%; e a Universidade Federal do rio de Janeiro – UFRJ na terceira posição, com 9%.

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Nos últimos anos, chama a atenção, contudo, a participação crescente de outros Estados brasileiros, fora São Paulo, na produção científica nacional. Esse movimento parece apontar para uma tendência de desconcentração dos esforços de C&T, que é corro-borada por distintas famílias de indicadores. apesar da ainda forte preponderância da Região Sudeste, que concentrava cerca de 77% do total nacional no perío-do em análise, a produção científica de outras regiões, como o Sul e o Nordeste, tem crescido a taxas supe-riores (71% e 65%, respectivamente). Atingindo Es-tados menos favorecidos do país, que historicamente têm apresentado resultados bastante tímidos em ter-mos de publicações em revistas científicas indexadas em bases bibliográficas internacionais, a mencionada expansão geográfica recente da pós-graduação parece estar desempenhando um papel decisivo nesse ainda lento, porém efetivo, processo de desconcentração da produção científica nacional.

atividade de Patenteamento

Como amplamente discutido na literatura de refe-rência, o forte crescimento da produção científica brasileira e paulista verificado nos últimos anos, con-forme ilustrado na seção anterior, parece ainda não produzir efeito real no incremento da produção tec-nológica e na intensificação dos esforços de inovação das empresas brasileiras. os indicadores de atividades de patenteamento, apresentados a seguir, procuram melhor caracterizar essa realidade. Para tanto, foram considerados os depósitos de pedidos de patentes junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI por residentes no Brasil, entre 1990 e 2001, e as patentes concedidas pelo escritório de patentes norte-americano, United States Patent and Trademark Office – USPTO, entre 1981 e 2002.14

Os dados relativos às patentes concedidas por esta última agência entre 1999 e 2001 revelam que o Bra-sil vem apresentando crescimento bastante modesto, embora persistente, mas atingindo não mais do que 0,07% do total mundial em 2001. A contribuição do Estado de São Paulo no esforço nacional situou-se em torno dos 50%, na média do período, um percen-tual similar à participação do Estado nos depósitos

de pedidos de patentes junto ao INPI. Neste caso, diferentes cruzamentos dos dados disponíveis, apre-sentados em Fapesp (2005), põem à mostra a sólida posição de liderança do Estado em relação ao resto do país e, em decorrência, o seu papel determinante na configuração do padrão tecnológico nacional. Por outro lado, os indicadores construídos com base nas patentes do USPTo tornam ainda mais evidente que São Paulo é, em boa medida, responsável pelo perfil de especialização apresentado pelo Brasil no cenário internacional.

Porém, um aspecto marcante revelado por esses resultados refere-se ao peso extremamente elevado, superior a 70%, no sistema INPI, dos pedidos de pa-tentes de indivíduos em contraposição às patentes de pessoas jurídicas, tanto para o Brasil como para São Paulo. De acordo com a literatura especializada, essa prevalência está associada à realidade de atraso e sub-desenvolvimento (PENROSE, 1973). De fato, na fase madura do processo de industrialização da economia na qual os países desenvolvidos se encontram atual-mente, a P&D comercial, potencialmente geradora de patentes, é realizada quase que exclusivamente por laboratórios corporativos associados a empresas in-dustriais; inversamente, no Brasil, à imagem do que ocorre na maior parte dos países latino-americanos e nas demais economias periféricas, o que prevalece é um baixo investimento em P&D por parte do setor empresarial, associado à falta de cultura para a prote-ção industrial das inovações nele geradas.

Vale ressaltar, entretanto, que apesar da forte cor-respondência existente entre as duas esferas, os dados mostram que, para São Paulo, a parcela das patentes de pessoas jurídicas é um pouco superior à do Brasil: 26,1% contra 23,5%, sugerindo uma posição mais fa-vorável, em termos de menor atraso tecnológico, do Estado em relação ao país como um todo. Nesse sen-tido, atuais medidas adotadas pelo governo federal, tais como mudanças no aparelhamento e modelo de atuação do INPI, incentivo às parcerias técnico-cien-tíficas e à P&D industrial, por meio de uma ampla gama de instrumentos financeiros e jurídicos, buscam criar condições estruturais para que as firmas se tor-nem mais ativas no sistema tecnológico nacional.

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Em contraposição ao padrão prevalecente no sis-tema nacional de patenteamento, no internacional a situação é inversa: com base nos dados do USPTO, para São Paulo, as patentes de indivíduos não ultra-passaram 26% do total entre 1981 e 2002. No que tange às patentes de pessoas jurídicas, é de destacar a presença expressiva de empresas transnacionais: agregando a parcela dos “residentes” e dos “não-residentes”, elas totalizaram 55% dos registros na-quele período, num patamar superior ao observado para o país como um todo (41%). Esses resultados revelam que as atividades tecnológicas de empresas transnacionais localizadas no Estado de São Paulo geram mais patentes no sistema americano do que a atividade das empresas localizadas em outros Es-tados brasileiros.

Com relação às entidades líderes em registros de patentes junto ao INPI e ao USPTO, no Brasil e em São Paulo, os dados mais recentes revelam diferenças expressivas. No que concerne aos dados do INPI, das 20 líderes entre 1990 e 2001, sete localizavam-se no Estado de São Paulo. O peso das instituições de ensino e pesquisa revelou-se expressivo: dessas sete, constam duas universidades e três institutos de pes-quisa (Unicamp e USP; e CTa, Embrapa e Centro de Pesquisas e Desenvolvimento em Telecomunica-ções – CPqD). No entanto, é de destacar que estas cinco instituições, situadas entre os 20 primeiros no INPI, não figuravam na lista de líderes no USPTO, o que indica que a atividade de patenteamento dessas instituições restringe-se fundamentalmente às fron-teiras nacionais, tendência que merece investigação mais aprofundada para apreensão do seu real alcance e significado.

Finalmente, a diversificação das atividades inovati-vas do Estado de São Paulo, em termos de domínios e subdomínios tecnológicos, pode ser analisada a partir de diferentes sistemas de classificação das patentes e das empresas.15 Em todas elas, verifica-se que os qua-tro subdomínios líderes em patenteamento no INPI, nos casos de São Paulo e do Brasil, correspondem a setores mais tradicionais, de média ou baixa intensi-dade tecnológica. Em contrapartida, os seis domínios que ocupam as últimas posições estão relacionados a setores mais avançados e mais sofisticados tecnolo-

gicamente, tais como biotecnologia, química macro-molecular, semicondutores, etc. ressalte-se que sinais de estagnação tecnológica tornam-se também mais evidentes: entre 1990 e 2001, não foram identificadas mudanças significativas nas classes tecnológicas líde-res nos pedidos de patentes depositados no INPI, o que impele o aprofundamento da posição desfavorá-vel do Estado e do país no panorama internacional.

ComérCio externo de Produtos Com Conteúdo teCnolóGiCo

A análise da evolução dos fluxos comerciais interna-cionais (compras e vendas de produtos, pagamentos e recebimentos de serviços) de caráter tecnológico do Brasil e do Estado de São Paulo, a partir de mea-dos dos anos 1990, contrapõe dois momentos dis-tintos da economia brasileira recente: o período até 1998, marcado por uma forte apreciação da moeda nacional e de elevado déficit na balança comercial; e o período iniciado em 1999, com a desvalorização do real, quando se inicia uma fase de incremento das exportações e redução das importações, que acabou levando ao atual superávit na balança comercial.16

observando as realidades brasileira e paulista no contexto internacional, constata-se que o Brasil, as-sim como o Estado de São Paulo, pertence a um gru-po de países (como Canadá, China, Espanha, méxico e Polônia) cujas principais características podem ser assim resumidas: as vendas para o exterior de bens de alta tecnologia situam-se entre 20% e 30% do to-tal, e as compras, entre 25% e 45%; quanto aos bens de média tecnologia, as vendas elevam-se para cer-ca de 70%, e as compras internacionais entre 50 e 60%.17 Em síntese, são países para os quais o padrão do comércio externo define-se, fundamentalmente, pelo saldo negativo no comércio de bens com ele-vado conteúdo tecnológico, e pelo saldo positivo no comércio de bens com médio e baixo conteúdo tecnológico.

De acordo com os principais resultados das ba-lanças comerciais brasileira e paulista, entre 1998 e 2002, as exportações brasileiras cresceram 18% e as do Estado de São Paulo, 15%, enquanto as importa-ções apresentaram redução de 18% e 24%, respec-tivamente. o saldo comercial brasileiro passou, en-

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tão, de deficitário em US$ 6,6 bilhões, em 1998, para superavitário em cerca de US$ 13 bilhões, em 2002, como decorrência não apenas da desvalorização do real, mas também de outros fatores de ordem micro e macroeconômica.18

Depois da desvalorização cambial de 1999, o peso do Estado de São Paulo no comércio exterior do Bra-sil manteve-se bastante elevado: em 2002, ele respon-dia por 33% das exportações e 42% das importações brasileiras. Ademais, a conformação dos fluxos de co-mércio põe à mostra o maior conteúdo tecnológico da pauta paulista comparativamente à brasileira: no período entre 1998 e 2002, a participação dos pro-dutos de alta tecnologia nas exportações paulistas si-tuou-se entre 25% e 30%, enquanto a do Brasil ficou entre 15% e 20%.19

No entanto, uma das tendências mais importan-tes reveladas pelos indicadores publicados na última edição da série Fapesp (2005), refere-se às mudanças recentes no padrão do comércio segundo as catego-rias de produtos. Especificamente, no que tange aos produtos de elevado conteúdo tecnológico, as re-lações entre o Estado de São Paulo e o restante do Brasil vêm sendo bastante alteradas. Enquanto as magnitudes das exportações de produtos com eleva-do conteúdo tecnológico de São Paulo se mantiveram em patamares praticamente estáveis, em torno de US$ 4,8 bilhões, as vendas externas dos demais Esta-dos brasileiros quase dobraram, alcançando, em 2002, US$ 6 bilhões, aproximadamente. ao mesmo tempo, os produtos de baixa densidade tecnológica ganharam expressão comercial, acarretando diminuição relativa do conteúdo tecnológico das exportações paulistas.

Algumas explicações para este fenômeno refe-rem-se ao acirramento da competição entre as em-presas, à forte crise financeira dos Estados brasileiros (ARAÚJO JR., 2003) e à conjuntura macroeconô-mica restritiva do país no período analisado. Estes fatores levaram muitos Estados a criarem incentivos para a atração de empresas, e estas, por sua vez, vi-sando reduzir custos, passaram a instalar-se em loca-lidades fora do Estado de São Paulo. Assim, é possí-vel verificar que os produtos que fizeram a diferença no comércio externo brasileiro nas categorias alta e média-alta tecnologia, nos quais há presença marcan-

te de empresas multinacionais, foram equipamentos de rádio, televisão e comunicação, e veículos automo-tores, reboques e semi-reboques (SIMÕES, 2006), possuindo unidades de produção e exportação con-centradas em locais como: a zona Franca de manaus – ZFM e o Pólo Industrial de Manaus, no Estado do Amazonas; gravataí, no Rio grande do Sul; Resende e Porto Real, no Rio de Janeiro; São José dos Pinhais, no Paraná; e Juiz de Fora, em Minas gerais.

Em suma, os indicadores de comércio exterior para o período mais recente sugerem que o perfil de especialização das exportações de São Paulo, que ao longo da década de 1990 caracterizou-se pelo cres-cimento dos itens de elevado conteúdo tecnológico, rumou em direção aos de bens de menor densida-de tecnológica no período imediatamente posterior. Em decorrência, a participação relativa do Estado nas vendas internacionais do país para os produtos de alta tecnologia caiu de 62% para 32%, em 2002, o que parece indicar um significativo avanço de outros Estados do ponto de vista tecnológico.

Por outro lado, as importações paulistas experi-mentaram um movimento generalizado de retração, especialmente para as indústrias com elevado conteú-do tecnológico (-20%). Em 2002, as importações de São Paulo em produtos de alta tecnologia limitaram-se a 50% das compras externas, não ultrapassando o montante de US$ 10,2 bilhões. No mesmo período, as importações brasileiras apresentaram um compor-tamento similar de redução de fluxos, mas não tão intensa como a paulista.

Em conclusão, entre 1998 e 2002, a redução do déficit em produtos de alta tecnologia e a elevação do superávit dos produtos de média tecnologia, am-bos devido à diminuição das importações e aumen-to das exportações, modificaram progressivamente a balança comercial do país em direção ao saldo de US$ 20 bilhões observado em 2003. os indicadores disponíveis sugerem, então, que a capacitação tecno-lógica brasileira, classificada em nível intermediário entre os países desenvolvidos, quando medida em termos do comércio, está hoje menos fragilizada do que no final dos anos 1990. Não obstante, o comér-cio externo brasileiro é ainda fortemente assimétrico do ponto de vista tecnológico, quando considerados

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a origem e os destinos dos fluxos, e suas indústrias mantêm elevada dependência da tecnologia produzida no estrangeiro (FURTADO; QUADROS, 2005).20

inovação no setor emPresarial

os indicadores mais abrangentes e consistentes dis-poníveis sobre a inovação tecnológica na indústria brasileira baseiam-se na Pintec realizada pelo IBgE, atualmente na sua terceira edição. Os resultados des-sa pesquisa permitem abordar três dimensões funda-mentais do tema enfocado:• indicadores de resultado do processo de inovação

(empresas inovadoras e tipo de inovação);• indicadores relativos às fontes internas e externas

de que se utilizam as empresas para inovar, com-plementados por uma análise dos laços de coope-ração firmados com outras empresas e entidades;

• indicadores da natureza e do volume dos dispên-dios feitos pelas empresas nas várias atividades que compõem seus esforços inovativos. A primeira edição da Pintec, referente ao ano de

2000, identificou 8.664 empresas industriais inova-doras no Estado de São Paulo, ou seja, empresas que introduziram pelo menos uma inovação tecnológica de produto e/ou processo entre 1998 e 2000 (IBgE, 2002). Isso correspondeu à “taxa de inovação” de 32,6%, que representa o percentual das empresas ino-vadoras no conjunto das empresas paulistas que com-põem o universo da pesquisa. Em outros termos, cerca de uma em cada três empresas paulistas pesquisadas introduziu pelo menos uma inovação tecnológica no período observado. Essa “taxa de inovação” paulista ficou muito próxima à taxa brasileira, de 31,5%, em-bora ainda num patamar bastante inferior ao da média européia, de 44% (FaPESP, 2005, v. 2, p. 8-13).

Dando continuidade à série iniciada com a Pintec 2000, a segunda edição da pesquisa, focalizando o pe-ríodo entre 2001 e 2003 (IBgE, 2005), mostrou, con-tudo, uma inversão nesse cenário: foram identificadas 9.209 empresas industriais inovadoras, das 29.650 do universo pesquisado no Estado de São Paulo, o que correspondeu a uma “taxa de inovação” de 31,1%, ou seja, uma redução de 1,5% em relação ao período precedente. Numa situação contrária, a “taxa de ino-

vação” para o Brasil como um todo apresentou um crescimento de 1,7%, elevando-se a 33,3%, superior à taxa paulista. Os resultados mais recentes sugerem, portanto, uma redução relativa, para o Estado de São Paulo, da parcela de empresas inovadoras no conjun-to investigado entre 1998 e 2003. Como comentado a seguir, um fator a ser considerado na interpretação desse resultado é o tamanho da empresa: em termos desagregados, a taxa de inovação aumentou, no perío-do em exame, apenas entre as pequenas empresas, que são mais numerosas e dispersas pelo território nacional. Inversamente, entre as médias e grandes empresas, mais concentradas no Estado de São Pau-lo, a taxa de inovação caiu. Uma análise mais aprofun-dada das causas e desdobramentos desses resultados demandaria esforços adicionais que fogem ao escopo do presente artigo.

Confirmando tendência já identificada em anos anteriores e amplamente discutida na literatura es-pecializada, os dados da primeira tomada da Pintec comprovam que, no Brasil, a participação das ativida-des de P&D no esforço tecnológico das empresas é ainda fortemente influenciada pelo tamanho da mes-ma (QUADROS et al., 2000; FAPESP, 2002, cap. 8; gONÇALvES; LEMOS; DE NEgRI, 2006). Com exceção de parte das empresas de base tecnológica, as pequenas e médias empresas brasileiras mantêm-se pouco propensas a se engajar em atividades sistemá-ticas de P&D. No período compreendido entre 1998 e 2000, enquanto 28,6% das pequenas empresas pes-quisadas (de 10 a 99 pessoas ocupadas) eram inova-doras, esse percentual atingiu 75,7% para o grupo de empresas com 500 ou mais empregados – um perfil muito similar ao observado no Estado de São Paulo.

No triênio subseqüente, como mostram os resulta-dos da segunda tomada da pesquisa, esse quadro ain-da se confirma para o Brasil como um todo. Indícios de uma possível redução da distância entre as taxas de inovação correspondentes aos grupos de pequenas e grandes empresas foram, contudo, identificados: um ligeiro crescimento na taxa para pequenas empresas pesquisadas (31,6%) e um decréscimo percentual-mente equivalente no valor da taxa referente às em-presas com 500 ou mais pessoas ocupadas (72,5%).

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Por outro lado, as informações obtidas da Pintec 2000 sugerem que o setor industrial a que perten-ce a empresa é outro atributo determinante do seu desempenho inovador.21 As “taxas de inovação” se-toriais na indústria paulista distribuem-se, no geral, de forma similar à brasileira, mas com algumas di-ferenças importantes: além das indústrias produtoras de bens e serviços em tecnologias da informação e comunicações, destacam-se, com uma “taxa de ino-vação” claramente superior à nacional, os setores de “produtos químicos”, “produtos farmacêuticos”, “automóveis, caminhonetas e utilitários, caminhões e ônibus”, “peças e acessórios para veículo” e “outros equipamentos de transporte” (cujo comportamento inovativo é fortemente determinado pela indústria aeronáutica), todos setores mediana ou altamente in-tensivos em tecnologia. Ressalte-se, por fim, que o desempenho inovador em São Paulo apresenta uma dispersão setorial mais pronunciada que a média na-cional. De acordo com os dados da pesquisa, duas tendências principais marcam esta dispersão:• na quase totalidade dos setores de alta e média-alta

tecnologia, a indústria paulista revela um desem-penho inovador acima da média brasileira;

• nos setores de baixa intensidade tecnológica, a tendência é inversa.22

Em termos gerais, a edição 2003 da Pintec con-firmou o perfil acima esboçado do comportamento inovativo das empresas industriais por setor, tanto para o Estado de São Paulo como para o Brasil, ha-vendo, no entanto, um aspecto discrepante a desta-car: o setor de “outros equipamentos de transporte” no Estado apresentou uma “taxa de inovação” (de 21,9%) consideravelmente menor do que a média es-tadual (31,1%). Contudo, em se considerando o dis-pêndio médio por empresa inovadora em atividades inovativas neste setor,23 os resultados mais recentes revelam crescimento de 373%. Assim, pode-se inferir que, em São Paulo, apesar da proporção de empre-sas inovadoras fabricantes de “outros equipamentos de transporte” ter diminuído, o gasto médio dessas empresas em atividades inovativas elevou-se consi-deravelmente; ou seja, é possível observar uma con-centração desses dispêndios em um número menor de empresas de 2000 a 2003. Essa tendência não se

restringiu apenas ao setor de “outros equipamentos de transporte”; para outros setores, foi igualmente verificada uma clara concentração, porém com me-nor intensidade.

Finalmente, é importante destacar que, no seu con-junto, o dispêndio médio das empresas em atividades inovativas em São Paulo era, em 2000, 38% maior do que no Brasil como um todo; porém, em 2003, esse percentual se eleva a 56%. Em suma, a inversão da li-derança de São Paulo em relação ao Brasil em termos de “taxa de inovação” entre os dois períodos obser-vados não se reproduziu no que se refere ao volume de dispêndios aplicados em atividades inovativas por empresa inovadora; neste caso, a liderança paulista se acentuou de maneira significativa.

soBRE o ACEsso E diFusão dAs TiCs E REdEs digiTAis

Nesta última seção, numa perspectiva complementar aos diferentes aspectos abordados nas seções prece-dentes, serão brevemente comentados alguns indica-dores relacionados ao setor de TICs24 que ilustram, de forma ainda mais contundente, a concentração no Estado de São Paulo do estoque de conhecimentos e de capacitação tecnológica nacional.

a partir de informações obtidas de pesquisas es-truturais do IBgE25, é possível identificar e quantifi-car o elevado grau de concentração dos segmentos do setor produtor de bens e de serviços de TICs em São Paulo em relação ao resto do país. Em 2001, con-forme tipologia proposta pela oECD (2002), para os setores industriais produtores de bens e equipamen-tos de TICs, de serviços de telecomunicações e de serviços de informática, São Paulo concentrava 53% do número de unidades, 42% do pessoal ocupado e 44% das receitas geradas no Brasil. Essas atividades eram desenvolvidas por cerca de 22 mil unidades lo-cais e empregavam mais de 187 mil pessoas no Esta-do. Uma maior concentração da massa salarial seto-rial sugere ainda alta concentração em São Paulo das ocupações mais qualificadas e melhor remuneradas.

Sob uma outra perspectiva, o mapeamento de do-mínios no Brasil, a partir da fonte registro.br (2003), constitui-se num importante indicador de conecti-

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vidade relacionado ao uso das TICs. As estatísticas de produção de conteúdo apóiam-se nos registros de domínios “.com.br” e “.org.br”, que representam mais de 90% do total de domínios. A sua distribuição no território nacional torna flagrante a elevada con-centração no Estado de São Paulo: sozinho, o Estado representou aproximadamente 50% do total de regis-tros de domínios acumulados no Brasil até 2003; para o rio de Janeiro, que ocupa o segundo lugar, obtém-se um total cerca de cinco vezes menor.

A geografia dos registros de domínios no territó-rio paulista confirma a tendência mundial, ou seja, de acentuada concentração da oferta e da demanda por conteúdos no entorno de regiões altamente urbaniza-das e das regiões metropolitanas. até 2003, o municí-pio de São Paulo foi responsável por cerca de 58% da produção de domínios no Estado, muito superior à do segundo colocado, Campinas, com menos de 4%. Nesse sentido, entre 1999 e 2003, apenas 12 dos 645 municípios paulistas concentravam mais de 75% de toda a produção de domínios “.com.br” e “.org.br” do Estado.

Torna-se importante destacar aqui a grande discre-pância na intensidade de produção de domínios entre as unidades da Federação: menos de mil registros nos Estados com baixo número de registros (Rondônia, Piauí, Tocantins, amapá, acre e roraima) e mais de 240 mil no Estado com a maior produção. Dito de outra maneira, em plena virada do século XXI, não mais do que 8 dos 27 Estados brasileiros con-centravam cerca de 90% dos domínios no país. Essa concentração torna-se ainda mais evidente quando a produção é relacionada ao número de habitantes: em 2003, o Estado de São Paulo revelava uma taxa de seis domínios por mil habitantes, enquanto a média nacional não passava de três. Também em termos de número de estabelecimentos econômicos, a lide-rança paulista é incontestável: cerca de 250 domínios “.com.br” e “.org.br” para cada mil estabelecimentos, na média do período de 1992 a 2002, contra 140 para o Brasil como um todo.

Como concluem os especialistas responsáveis pelo levantamento e análise dos dados acima citados, in-fere-se dessa observação a necessidade de relativizar as expectativas de que a difusão das redes digitais

(e da Internet, em particular) seja capaz de rom-per hierarquias pré-existentes e determinadas pelos padrões históricos de desenvolvimento e de indus-trialização da economia nacional.26 Na realidade, os indicadores disponíveis parecem corroborar a hipó-tese de que os ambientes de inovação tecnológica já existentes condicionam o ritmo de expansão e a loca-lização dos provedores de conteúdo na rede. Tentar contornar essa desigualdade, já prevalecente desde as origens do setor de TICs no Brasil, por meio da definição de políticas e ações estratégicas a ele dire-cionadas, mas de forma articulada com as políticas de desenvolvimento industrial e tecnológico, constitui o desafio que tem se colocado de forma cada vez mais intensa para governos e gestores.

ConsidERAçõEs FinAis

Quando contrapostos aos de anos anteriores, os resultados aqui comentados referentes à produção científica e tecnológica paulista, e sua inserção no panorama nacional, no período de 1998 a 2002, ofe-recem indícios de novas e importantes tendências em distintas esferas. Não obstante, eles também sugerem que essas tendências nem sempre estão associadas a rupturas significativas. Como esta síntese procurou enfatizar, na maioria das vezes, elas nos remetem ao enfrentamento de velhos desafios que têm sido colo-cados ao longo das últimas décadas à consolidação do sistema nacional de C&T e à ampliação do poten-cial inovador do país.

Nesse sentido, simultaneamente aos avanços ob-servados no período mais recente – como a inversão da tendência de redução dos dispêndios governa-mentais com execução e fomento das atividades de P&D; a elevação da participação do setor empresarial nos gastos totais com essas atividades; o aumento na intensidade de expansão do ensino superior em todo o território nacional; indícios, inéditos na his-tória recente da C&T no Brasil, de uma relativa des-concentração dos esforços de pesquisa e inovação da Região Sudeste (e, particularmente, do Estado de São Paulo) para regiões menos desenvolvidas no país, en-tre outros aspectos – constata-se a persistência de im-portantes barreiras ou fatores limitadores dos efeitos

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esperados. Trata-se, fundamentalmente do contraste entre o avanço da capacidade de produção científica e a relativa estagnação da capacidade de geração de inovações tecnológicas que ainda prevalece no país; do limitado desempenho do setor empresarial nacio-nal em atividades de P&D, somado à fraca interação deste com o setor acadêmico no desenvolvimento de atividades inovativas; e, conseqüentemente, da preva-lência de um padrão tecnológico fortemente depen-dente de fontes externas.

Mas no caso do Brasil, essas barreiras são ainda potencializadas por um condicionante de caráter ab-solutamente central: a perpetuação do forte desequi-líbrio regional e local dos esforços e da base de C&T instalada no país, acentuando o papel determinante do Estado de São Paulo na configuração do padrão técnico-científico nacional. Este traço fundamental do sistema brasileiro de C&T fica demonstrado de forma contundente na Tabela 2. Se, em termos dos recursos financeiros, humanos e laboratoriais para P&D, São Paulo concentra, em média, 30% a 40% da infra-estrutura disponível, em termos dos resultados gerados por esses recursos e representa entre 50% e 60% da produção científica e tecnológica nacional. Infere-se, assim, que além do fato de concentrar boa parte da base de C&T instalada no país, o sistema paulista revela-se mais produtivo em comparação com os outros Estados brasileiros.

O mapeamento periódico desse desequilíbrio e de suas dinâmicas internas, nos moldes do realizado na série Indicadores de CT&I em São Paulo editada trie-nalmente pela Fapesp e referenciada ao longo deste artigo, além de estimular o debate mais ampliado e aprofundado sobre o estado da arte e principais debi-lidades da produção científica e tecnológica do país, torna-se instrumento imprescindível para um proces-so permanente de acompanhamento e formulação de novas ações e políticas governamentais para o setor.

Nos últimos anos, diferentes autores e analistas têm insistido na necessidade de adoção de políticas regio-nais efetivas de C&T que permitam reverter a situação de extrema desigualdade inter e intra-regional. Para tanto, é essencial que estejam articuladas com progra-mas de desenvolvimento nacional, particularmente com a política industrial, articulação esta que, no Brasil,

tem permanecido historicamente débil, descontínua e totalmente à mercê de fatores conjunturais.

Essa estratégia pressupõe ações que contemplem, por um lado, a ampliação da base de C&T instalada, por meio de investimentos diretos em infra-estrutura laboratorial, de recursos humanos e de apoio a ati-vidades de pesquisa e desenvolvimento nas regiões menos favorecidas, de forma minimamente equilibra-da e espacialmente desconcentrada. Por outro lado, impõe, também, a adoção de um modelo de gestão de recursos alocados em C&T baseado em parcerias entre os governos estaduais e o governo federal, ado-tando-se critérios diferenciados de contrapartida para os Estados, bem como a definição de agendas re-gionais específicas (MELLO, 1992; BARROS, 2000; SICSÚ; LIMA, 2001; ALBUQUERQUE; ROCHA NETO, 2005). A política de articulação com os Esta-dos ainda se processa de forma lenta; porém, a estra-tégia de ação regional pelo desenvolvimento dessas parcerias do governo federal com os Estados tem se apresentado, segundo diferentes autores, como o ca-minho mais seguro e adequado a seguir.

A preparação de publicações periódicas, como a série de indicadores da Fapesp, põe em evidência que um dos aspectos a serem considerados no âmbito dessas parcerias diz respeito à produção de indicado-res de C&T, tomados como importantes instrumen-tos para o acompanhamento e avaliação dos esforços nacionais no setor.

Torna-se premente a necessidade de implementa-ção, no âmbito das diferentes agências governamen-tais, de sistemas de informação mais completos e compatíveis entre si, conformando o que se poderia chamar de um “sistema nacional integrado de estatís-ticas de C&T”. Pela adoção de um marco conceitual e metodológico comum, tal sistema facilitaria a realiza-ção sistemática de estudos e compêndios estatísticos, de acordo com procedimentos já consolidados inter-nacionalmente. Um sistema dessa natureza demanda-ria também a manutenção, no interior das diferentes agências – especialmente da esfera estadual – de uma infra-estrutura mínima e de competências específicas, na maioria das vezes ainda inexistentes.

Para concluir, a “estadualização” ou “regionali-zação” de fontes de dados oficiais demanda traba-

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notas

Este trabalho deriva do primeiro capítulo da última edição da série trienal produzida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp Indicadores de ciência, tecnologia e inovação em São Paulo 2004, intitulado “Panorama recente da CT&I em São Paulo: novas tendências, velhos desafios”, de autoria de Regina gusmão (FAPESP, 2005).1. vale destacar que o Estado de São Paulo foi pioneiro na criação de uma FAP, nos moldes daquelas que foram sendo implantadas em todo o território nacional. A Fapesp foi criada em 1962, desfrutando historicamente de situação bastante pri-vilegiada em relação às demais fundações estaduais – tanto em termos do volume de recursos financeiros e organizacionais mobilizados como em termos da estabilidade institucional e funcional de que sempre se beneficiou. Atualmente, os recur-sos da Fundação têm papel decisivo na manutenção e amplia-ção da infra-estrutura laboratorial e dos esforços de pesquisa realizados pelas universidades e institutos de pesquisa localiza-dos no Estado.2. As duas últimas edições, incluindo uma versão em inglês, encontram-se disponíveis em <http://www.fapesp.br/indicadores/>.3. Expressos a preços constantes de 2003. Nota aplicável a todos os valores apresentados e comentados nesta seção.4. Dados do Sistema de Administração Financeira para Es-tados e Municípios – Siafem, Balanços gerais do Estado, Universidade de São Paulo – USP, Unicamp, Universidade Estadual Paulista – Unesp, Fapesp, MCT, Sistema Integrado de Administração Financeira do governo Federal – Siafi, Con-selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, Centro Associativo dos Profissionais de Ensino do Estado de São Paulo – Capesp, Financiadora de Estudos e Pro-jetos – Finep, Universidade Federal de São Carlos –UFSCar, Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, Pontifícia Uni-versidade Católica de São Paulo – PUC-SP, Pesquisa Industrial de Inovação Tecnológica – Pintec 2000/Instituto Brasileiro de geografia e Estatística – IBgE (ver FaPESP, 2005, v. 1, anexo 4, § 4.1). Nota aplicável a todos os valores apresentados e co-mentados nesta seção.

5. mais precisamente, dos ministérios da Defesa (CTa e Centro Tecnológico da Marinha – CTMSP), da Ciência e Tec-nologia (Inpe, Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares – Ipen, Centro de Pesquisas Renato Archer –CenPRA e Labo-ratório Nacional de Luz Síncrotron – LNLS) e da Agricultura (unidades paulistas da Empresa Brasileira de Pesquisa agrope-cuária – Embrapa).6. Dados obtidos a partir da primeira Pintec 2000, realizada pelo IBgE (IBgE, 2002).7. ver <http://www.bndes.gov.br/inovacao/default.asp>.8. ver análise realizada por Castro et al. em Fapesp (2005, v. 1, cap. 3, p. 3-1; 3-32).9. Note-se que nas regiões Norte e Centro-oeste, que pos-suem as menores redes de ensino superior do país, as matrícu-las cresceram, no período, a taxas de 123% e 98%, respectiva-mente, contra 60% nas regiões Sul e Sudeste.10. Dados da Capes, detalhados em Fapesp (2005, v. 1, anexo 4.2, p. A-25–A-28). Nota aplicável a todos os valores apresen-tados e comentados nesta seção.11. Dados da Pesquisa Nacional por amostra de Domicílios PNAD/IBgE. ver especificações de cálculo e análise realiza-da por Ferreira et al. em Fapesp (2005, v. 1, cap. 4, p. 4-1–4-31, e anexo 4.3).12. Disponível em: <http://lattes.cnpq.br/index.htm>.13. ver Fapesp (2005, v. 1, cap. 5, p. 5-1–5-44).14. Ver dados apresentados e comentados por albuquerque et al. em Fapesp (2005, v. 1, cap. 6, p. 6-1– 6-37).15. Trata-se da Classificação Nacional das Atividades Econô-micas – CNAE, do IBgE, da Classificação Internacional de Patentes adotada pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual – Ompi, como também da classificação proposta por organismos internacionais especializados, como o Observatoire des Sciences et des Techniques – OST. A esse respeito, ver Fapesp (2005, v. 1, Anexos Metodológicos, seção 4.5).16. Marcado como o ano que registrou a menor participação brasileira nas exportações mundiais desde o início dos anos 1990, o ano de 1999 pode ser tomado, segundo alguns autores, como divisor de águas para o Brasil em termos de comércio

lho árduo e criterioso de consistência, necessidades estas a que importantes iniciativas do ministério de Ciência e Tecnologia – MCT buscam atender. Trata-se de equipar os diferentes Estados brasileiros de infra-estrutura e competências mínimas para a pro-dução de estatísticas de C&T. Neste aspecto, ins-tâncias como o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais para assuntos de Ciência, Tecnologia e Inovação – Consecti e o Conselho Nacional das Fundações de Amparo à Pesquisa – Confap têm importante papel a desempenhar, ancoradas na

coordenação dos esforços dos agentes federais e estaduais, atuando em cada uma das unidades da Federação. Porém, não se trata apenas de garantir a publicação periódica de volumes abrangentes de indicadores estaduais de C&T, mas, essencialmente, de viabilizar o estabelecimento de uma “plataforma” comum ou de uma “base nacional de estatísticas de C&T”, passível de ser utilizada de forma permanen-te pelos diferentes atores locais para a produção de indicadores que correspondam a suas necessidades específicas ou pontuais.

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internacional. ver análise realizada por gomes et al. em Fapesp (2005, v. 1, cap. 7, p. 7-1–7-42).17. Dados de Personal Computer Trade Analysis System – PC-TAS, do International Trade Center/United Nations Statistics Division (FaPESP, 2005, v. 2, Tabelas anexas 7.7 e 7.8).18. Dados da Secretaria de Comércio Exterior – Secex, deta-lhados em Fapesp (2005, v. 2, tabelas anexas 7.14 a 7.33). Nota aplicável a todos os demais valores apresentados nesta seção.19. observe que, em 1998, as exportações brasileiras ainda se mantinham fortemente atreladas aos produtos de médio conteúdo tecnológico, particularmente aos intensivos em es-cala e aos produtos primários agrícolas e agroindustriais, que representavam cerca de 50% das vendas para o exterior. Em contrapartida, a pauta de exportações do Estado de São Paulo já se destacava pela participação mais importante dos produtos de alta tecnologia, que atingiram, naquele ano, 27% do total, contra 15% para o conjunto do país (FaPESP, 2005, v. 1, cap. 7, p. 7-14–7-22).

20. a esse respeito, ver dados apresentados em Fapesp (2005, v. 1, cap. 7, p. 7-22–7-25).21. ver análise realizada por Quadros et al. em Fapesp (2005, v. 1, cap. 8, p. 8-1–8-30).22. ver análise realizada por Quadros et al. em Fapesp (2005, v. 1, cap. 8, p. 8-1– 8-30).23. De acordo com a definição adotada pela Pintec, “atividades inovativas” são aquelas que as empresas empreendem para ino-var e incluem: P&D e outras atividades não relacionadas com P&D, envolvendo aquisição de bens, serviços e conhecimentos externos (IBgE, 2005).24. Dados e informações extraídos de Fapesp (2005, v. 1, cap. 10, p. 10-1–10-38).25. Pesquisa Industrial Anual – PIA e Pesquisa Anual de Serviços – PAS.26. ver Schwartz et al. em Fapesp (2005, v. 1, cap. 10, p. 10-1–10-38).

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Regina gusmão

Doutora em Política Científica e Tecnológica pelo Conservatoire National des Arts et Métiers (Paris) com pós-doutoramento e atividades profissionais e de pesquisa realizados no Observatoire des Sciences et des Techniques – OST francês.

Assessora técnica no Centro de Gestão e Estudos Estratégicos.([email protected])

milena Y. Ramos

Engenheira de Alimentos e Mestre em Administração. Analista de indicadores de ciência, tecnologia e inovação para o Estado de São Paulo, Brasil e algumas comparações internacionais na Fapesp.

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artigo recebido em 14 de junho de 2006. aprovado em 21 de setembro de 2006.

Como citar o artigo:gUSMãO, R.; RAMOS, M.y. Concentração regional da C&T no Brasil: perfil da liderança paulista no cenário nacional. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 20, n. 3, p. 120-141, jul./set. 2006. Disponível em: <http://www.seade.gov.br>; <http://www.scielo.br>.

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