o andrógino meigo
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O ANDRÓGINO MEIGO
Por
BRUNO COSENTINO
Aluno do Curso de Doutorado em Literatura Brasileira
(Programa de Vernáculas)
Trabalho apresentado à professora Anélia Montechiari Pietrani,
no curso “Poéticas da literatura brasileira”,
código LEV 845.
Faculdade de Letras da UFRJ
2 ० semestre de 2015
I
O poema Ariana, a mulher foi publicado em separata ao segundo livro de Vinicius de
Moraes, Forma e exegese, em 1936. Pode-se dizer que ele se situa como um ponto de inflexão na
obra do poeta, entre a primeira fase, voltada para temas sublimes e altissonantes, e a segunda fase,
voltado para a terra e a materialidade do mundo. É preciso sublinhar que essas duas fases (assim
definidas pelo próprio poeta no prefácio a sua Antologia poética e reiterada pelos críticos) estão
ligadas à dois pólos de sua formação: por um lado, a educação católica, e por outro, a experiência
de menino de ilha durante as férias nas praias da Ilha do governador. Mais do que duas experiências
de infãncia e juventude, elas são definidoras da personalidade de Vinicius; são elas as duas forças
contrárias que predominam em uma e outra fases, às quais podemos atribuir qualidades gerais — à
primeira — como céu, alma, escrita, abstrato, catolicismo, espírito, deus, artificial, intelectual,
sublime, formal, eterno e — à segunda — terra, corpo, canção, concreto, candomblé, carne, mulher,
natural, sensual, real, coloquial, instante. Os dois pólos funcionam em constante tensão; portanto, as
fases podem até ser esquematicamente definidas, mas o que restou da primeira na segunda e o que
da segunda já era sugerido na primeira, como, sobretudo, se deram algumas transposições entre uma
e outra, a isso se deve atentar; mais interessante portanto é percebê-los como conformadores de uma
personalidade complexa, fruto do embate entre esses dois regimes existenciais — de alguma
maneira, a lírica amorosa de Vinicius é a tentativa desesperada e impossível de aproximar os dois
mundos de menino. Assim, seus dois primeiros livros, O caminho para a distância e Forma e
exegese são situados na primeira fase, Cinco elegias entre uma e outra, e a partir de Novos poemas,
incluindo posteriormente o trabalho como cancionista, incluídos na segunda fase.
Ariana, a mulher, portanto, se encontra num ponto de inflexão de sua obra. É um presságio
do que está por vir. Como disse Otávio de Faria, é a sombra que pairava sobre o futuro do poeta
(“uma garantia de que jamais as atrações etéreas dos céus mortos poderiam ser bastante fortes para
separá-lo da terra e de suas emoções básicas”). O poema narra uma epifania em forma de sonho; por
meio dela, há a revelação de Ariana, que culmina com uma espécie de conversão do poeta, que
acorda renascido após a experiência. Ariana, a mulher, passa então a ser o equivalente de Deus —
“compreendi que só onde cabia Deus cabia Ariana” — e a via de acesso ao sagrado; se o desejo de
absoluto ainda está presente (e nunca deixará de estar), ele agora se dá não mais através da
abstração intelectual, mas através da mulher, ainda que ela vá oscilar sempre entre a mulher de
carne e osso e a mulher idealizada; é a isso que se refere David Mourão Ferreira:
Deixou escritas Novalis, num dos seus admiráveis fragmentos, estas proposições: “Para o homem, aequação é corpo-alma. Para a espécie, homem-mulher.” A evolução poética de Vinicius de Moraes
documenta, flagrantemente, a passagem de um plano para o outro. No entanto, a primeira equação não
ficou resolvida; e o conflito que refletia essa procura, insidiosamente se introduziu na segunda, frustrando-lhe também a solução desejada.
II
Ariana, a mulher:
Quando, aquela noite, na sala deserta daquela casa cheia da montanha em tornoO tempo convergiu para a morte e houve uma cessação estranha seguida de um debruçar do
[instante para o outro instante
Ante o meu olhar absorto o relógio avançou e foi como se eu tivesse me identificado a ele e
[estivesse batendo soturnamente a Meia-Noite
E na ordem de horror que o silêncio fazia pulsar como um coração dentro do ar despojadoSenti que a Natureza tinha entrado invisivelmente através das paredes e se plantara aos meus
[olhos em toda a sua fixidez noturna
E que eu estava no meio dela e à minha volta havia árvores dormindo e flores desacordadas pela
[treva.
Como que a solidão traz a presença invisível de um cadáver — e para mimera como se a
[Natureza estivesse morta
Eu aspirava a sua respiração ácida e pressentia a sua deglutição monstruosa mas para mim era
[como se ela estivesse morta
Paralisada e fria, imensamente erguida em sua sombra imóvel para o céu alto e sem luaE nenhum grito, nenhum sussurro de água nos rios correndo, nenhum eco nas quebradas ermasNenhum desespero nas lianas pendidas, nenhuma fome no muco aflorado das plantas carnívorasNenhuma voz, nenhum apelo da terra, nenhuma lamentação de folhas, nada.
Em vão eu atirava os braços para as orquídeas insensíveis junto aos lírios inermes como velhos[falos
Inutilmente corria cego por entre os troncos cujas parasitas eram como a miséria da vaidade
[senil dos homens
Nada se movia como se o medo tivesse matado em mim a mocidade e gelado o sangue capaz de
[acordá-los
E já o suor corria do meu corpo e as lágrimas dos meus olhos ao contato dos cactos esbarrados
[na alucinação da fuga
E a loucura dos pés parecia galgar lentamente os membros em busca do pensamentoQuando caí no ventre quente de uma campina de vegetação úmida e sobre a qual afundei minha
[carne.
A primeira estrofe descreve o estado de solidão noturna do poeta “ na sala deserta daquela casa
cheia da montanha em torno”. Há uma suspensão do tempo e um sentimento de horror — que
segundo Octávio Paz, denota ao mesmo tempo deslumbre e terror, ou seja, atração e repulsa —
diante da Natureza, que entra “invisivelmente através das paredes” e prostra-se ao seu redor
instalando a morte e as trevas. Diz ele já na segunda estrofe: a solidão traz a presença invisível de
um cadáver — para mim era como se [Ela] estivesse morta”. O cadáver aqui pode ser lido como o
do próprio poeta, que, só, sem a mulher amada, é como se estivesse morto. Embora o poeta pudesse
sentir a presença da Natureza, em “sua respiração ácida”, há uma completa imobilidade, sem sons
ou emoções, “nenhum desespero (...) nenhuma voz, nenhum apelo da terra”. Na estrofe seguinte, o
corpo do poeta, que até então somente observava, reage, se atirando contra os cactos e as “orquídeas
insensíveis juntos aos lírios inermes como velhos falos”; inutilmente, diz, porque era como se o
medo tivesse gelado nele “o sangue capaz de acordá-los”. Quando, finalmente, já sem forças e na
alucinação da fuga, cai “no ventre quente de uma campina de vegetação úmida”, sobre a qual
afunda sua carne.
Foi então que compreendi que só em mim havia morte e que tudo estava profundamente vivoSó então vi as folhas caindo, os rios correndo, os troncos pulsando, as flores se erguendoE ouvi os gemidos dos galhos tremendo, dos gineceus se abrindo, das borboletas noivas se finandoE tão grande foi a minha dor que angustiosamente abracei a terra como se quisesse fecundá-laMas ela me lançou fora como se não houvesse força em mim e como se ela não me desejasseE eu me vi só, nu e só, e era como se a traição tivesse me envelhecido eras.
O tom da descrição lembra a primeira cena da criação do mundo:
E Deus disseque as águas esfervilhemseres fervilhantes alma-da-vidaE aves voem sobre a terraface à face do céufogoágua
E Deus criou os grandes monstros do marE todas as almas-de-vida rastejantesque fervilham nas águas segundo sua espéciee todas as aves de pena segundo sua espécieE Deus viu que era bom
E Deus os bendisse dizendoFrutificai multiplicai cumulai nas águasdo mar-de-águase que a ave multiplique na terra
E foi tarde e foi manhãdia quinto
E Deus disse produza a terra almas-de-vidasegundo sua espécieanimais-gado e répteis e animais-ferassegundo sua espécieE foi assim
E Deus fez os animais-feras segundo sua espéciee os animais-gado segundo sua espéciee todos os répteis do solo segundo sua espécieE Deus viu que era bom
E Deus dissefaçamos o homem à nossa imagem
conforme-a-nós-em-semelhançaE que eles dominem sobre os peixes do mare sobre as aves do céue sobre os animais-gado e sobre toda a terrae sobre todos os répteis que rastejem sobre a terra
E Deus criou o homem à sua imagemà imagem de Deus ele o criouMacho e fêmea ele os criou
Mas aqui é o homem — o poeta — que anima a Natureza; uma vez no ventre da mãe terra,
compreende que quem estava morto não era a natureza, mas ele. A dor (da solidão) ainda assim lhe
parecia tão grande que, num movimento de retorno ao útero, quis fecundar a terra. É impressionante
a intuição imemorial, pode-se dizer instintiva, que é desvelada nesses versos; como duas faces de
um mesmo movimento, o homem busca intuitivamente entrar pelo buraco de onde saiu, ou seja,
retornar ao ventre se equivale à fecundação; ambos revelam a nostalgia do um originário, seja pela
identificação com a mãe ou pelo desejo sexual de fusão com a mulher amada; nesse estado de
androginia primordial, o homem não está mais sozinho, pois inteiro na reunião dos contrários.
Pode-se dizer que essa obsessão persegue Vinicius durante toda a vida e está presente em muitos de
seus poemas; ela é central para a compreensão de seu sentimento amoroso. Ele continua: “Mas ela
[a terra] me lançou fora (...) / E eu me vi só, nu e só…”. A situação almejada de restauração do um
não pode ser realizada e ele é jogado de novo á solidão; resta só, nu, como Adão no Jardim do Éden.
Mas assim como sucede ao primeiro homem, que pede a Deus uma parceira a par dele, Eva, criada
a partir sua costela e a quem reconhece —
E disse o homemesta desta vez ossode meus ossose carne de minha carneA esta chamarei MUlherpois do homem-hÚMUs esta foi tomada
Por isso o homem deixaseu pai e sua mãeE se apega à sua mulher
e eles serão uma carne una.
— brota da alma do poeta o nome de Ariana. E, como um recém nascido em busca do seio da mãe,
o poeta sai à procura da Amada:
E sem pensar caminhei trôpego como a visão do Tempo e murmurava — Ariana!E tudo em mim buscava Ariana e não havia Ariana em nenhuma parteMas se Ariana era a floresta, por que não havia de ser Ariana a terra?Se Ariana era a morte, por que não havia de ser Ariana a vida?Por que — se tudo era Ariana e só Ariana havia e nada fora de Ariana?
Baixei à terra de joelhos e a boca colada ao seu seio disse muito docemente — Sou eu, Ariana...Mas eis que um grande pássaro azul desce e canta aos meus ouvidos — Eu sou Ariana!E em todo o céu ficou vibrando como um hino o muito amado nome de Ariana.Desesperado me ergui e bradei: Quem és que te devo procurar em toda a parte e estás em cada
[uma?Espírito, carne, vida, sofrimento, serenidade, morte, por que não serias uma?Por que me persegues e me foges e por que me cegas se me dás uma luz e restas longe?
Mas nada me respondeu e eu prossegui na minha peregrinação através da campinaE dizia: Sei que tudo é infinito! — e o pio das aves me trazia o grito dos sertões desaparecidosE as pedras do caminho me traziam os abismos e a terra seca a sede nas fontes. No entanto, era como se eu fosse a alimária de um anjo que me chicoteava — Ariana!E eu caminhava cheio de castigo e em busca do martírio de ArianaA branca Amada salva das águas e a quem fora prometido o trono do mundo.
Eis que galgando um monte surgiram luzes e após janelas iluminadas e após cabanas iluminadasE após ruas iluminadas e após lugarejos iluminados como fogos no mato noturnoE grandes redes de pescar secavam às portas e se ouvia o bater das forjas.E perguntei: Pescadores, onde está Ariana? — e eles me mostravam o peixeFerreiros, onde está Ariana? — e eles me mostravam o fogoMulheres, onde está Ariana? — e elas me mostravam o sexo.
Mas logo se ouviam gritos e danças, e gaitas tocavam e guizos batiamEu caminhava, e aos poucos o ruído ia se alongando à medida que eu penetrava na savanaNo entanto era como se o canto que me chegava entoasse — Ariana!E pensei: Talvez eu encontre Ariana na Cidade de Ouro — por que não seria Ariana a mulher
[perdida?
Por que não seria Ariana a moeda em que o obreiro gravou a efígie de César?Por que não seria Ariana a mercadoria do Templo ou a púrpura bordada do altar do Templo?
E mergulhei nos subterrâneos e nas torres da Cidade de Ouro mas não encontrei ArianaÀs vezes indagava — e um poderoso fariseu me disse irado: — Cão de Deus, tu és Ariana!E talvez porque eu fosse realmente o Cão de Deus, não compreendi a palavra do homem ricoMas Ariana não era a mulher, nem a moeda, nem a mercadoria, nem a púrpuraE eu disse comigo: Em todo lugar menos que aqui estará ArianaE compreendi que só onde cabia Deus cabia Ariana.
Acompanhamos um sentimento de panteísmo identificado ao nome de Ariana; ela se
confunde com a floresta, a morte, os peixes, o fogo, o sexo, a música; ela está em toda a parte e em
cada uma — sua onipresença culmina com a compreensão do poeta de que “só onde cabia Deus
cabia Ariana”. A personalização da natureza na figura da mulher, que já estava na imagem do ventre
da terra, é reiterada; o poeta, agora colado ao seio da terra, sopra docemente o nome da amada e
busca reconhecimento: “Sou eu”. Mas quem atende ao chamado é um pássaro azul que faz ecoar no
céu o nome de Ariana. Tem início o jogo antitético que ficará mais evidente após a necessária
convulsão da natureza para o surgimento de Ariana. Por enquanto, há somente a intuição de que
“espírito, carne, vida, sofrimento, serenidade, morte” possuem uma origem comum, onde os opostos
estão conciliados numa unidade originária anterior à diferenciação do ato criador. A busca de Ariana
pelo poeta se torna um flagelo; as imagens são de escassez e desolação: “sertões desaparecidos’,
“abismos”, “a terra seca”, “a sede nas fontes”. Se até então a relação era entre poeta e natureza,
surge na oitava estrofe o elemento humano, “lugarejos iluminados como fogos no mato noturno”,
pescadores, ferreiros, mulheres, gritos e dança — em tudo e todos, está Ariana. O poeta busca “a
mulher perdida” no Eldorado, mas não a encontra; eis que é abordado por um fariseu, que lhe rebate
impacientemente a ladainha: “Cão de Deus, tu és Ariana!”. Esse episódio é chave para a leitura. Em
outro poema, “Epitalâmio”, acontece algo semelhante; trata-se também da busca pela mulher, só
que agora citando vertiginosamente nomes de mulheres reais — prima Alice, Maria, Nina, Alba,
Marina, Maja, Clélia — e as experiências com cada uma delas, indagando no final: “Quem és,
responde! / És tu a mesma em todas renovada? // Sou eu! Sou eu! Sou eu! Sou eu! Sou eu!”. O que
Vinicius deseja é a restauração do um originário na indistinção entre o homem e a amada. No último
verso do poema, isso está formalmente acabado na ambivalência da resposta “Sou eu!”, que pode
tanto significar a resposta da mulher (em todas renovada) a quem dirige a pergunta como à própria
voz do poeta identificando-se com a mulher. Quando o poeta indaga por Ariana é também por ele
que está perguntando; é uma busca de si mesmo a partir do outro, como ensina Rilke ao jovem
poeta — quando amamos nos tornamos um mundo a partir do outro. Assim, poderíamos dizer que
há duas solidões, uma solidão a um e uma solidão a dois; a solidão a dois é uma solidão no amor,
porque pressupõe a outra pessoa. O poema trata a meu ver dessa passagem. O que se dá através da
revelação de Ariana e a conversão da solidão do poeta de uma solidão a um para uma solidão a dois
— que é nostálgica do estado de androginia original. É claro que aqui a mulher ainda é uma
abstração aparecida em sonho, uma epifania, mas também o presságio do lugar que a mulher
ocupará na poesia futura de Vinicius. Não encontrando Ariana na cidade perdida, compreende então
“que só onde cabia Deus cabia Ariana” — esse é o ponto da iluminação, quando a experiência
mística começa a ganhar sentido para o poeta.
Então cantei: Ariana, chicote de Deus castigando Ariana! e disse muitas palavras inexistentesE imitei a voz dos pássaros e espezinhei sobre a urtiga mas não espezinhei sobre a cicuta santaEra como se um raio tivesse me ferido e corresse desatinado dentro de minhas entranhasAs mãos em concha, no alto dos morros ou nos vales eu gritava — Ariana!E muitas vezes o eco ajuntava: Ariana... ana...E os trovões desdobravam no céu a palavra — Ariana.
E como a uma ordem estranha, as serpentes saíam das tocas e comiam os ratosOs porcos endemoninhados se devoravam, os cisnes tombavam cantando nos lagosE os corvos e abutres caíam feridos por legiões de águias precipitadasE misteriosamente o joio se separava do trigo nos campos desertosE os milharais descendo os braços trituravam as formigas no soloE envenenadas pela terra descomposta as figueiras se tornavam profundamente secas.
Dentro em pouco todos corriam a mim, homens varões e mulheres desposadasUmas me diziam: Meu senhor, meu filho morre! e outras eram cegas e paralíticasE os homens me apontavam as plantações estorricadas e as vacas magras. E eu dizia: Eu sou o enviadodo Mal! e imediatamente as crianças morriamE os cegos se tornavam paralíticos e os paralíticos cegosE as plantações se tornavam pó que o vento carregava e que sufocava as vacas magras.
Mas como quisessem me correr eu falava olhando a dor e a maceração dos corposNão temas, povo escravo! A mim me morreu a alma mais do que o filho e me assaltou a indiferença mais do que a lepraA mim se fez pó e carne mais do que o trigo e se sufocou a poesia mais do que a vaca magraMas é preciso! Para que surja a Exaltada, a branca e sereníssima ArianaA que é a lepra e a saúde, o pó e o trigo, a poesia e a vaca magraAriana, a mulher — a mãe, a filha, a esposa, a noiva, a bem-amada!
As quatro estrofes acima descrevem a iluminação do poeta e a convulsão da natureza que
sucede a ela; ele compreende que Ariana é Deus — Ariana é então o sucedâneo de Deus, isto, é não
mais fé na abstração, mas no semelhante; e se pensarmos que, a partir de uma perspectiva telúrica,
palpável, cética, Deus pode ser percebido como aquilo que nos torna iguais, e a fraternidade
universal como projeto utópico do cristianismo, pode-se dizer que a revelação da mulher amada e a
vida amorosa a dois é a manifestação palpável de Deus na terra. O poeta desce das alturas para
buscar no mundo concreto de coisas e pessoas o absoluto da vida, a verdade contingente da
existência — no amor, é claro. Parece tratar-se de uma epifania da luz. “Era como se um raio tivesse
me ferido e corresse desatinado dentro de minhas entranhas”, diz. A imagem do raio, que por sua
vez percente ao mesmo campo semântico e simbólico das características de brancura e pureza
atribuídas à Ariana, está relacionada a uma longa tradição de experiências místicas da luz, como
explica Mircea Eliade:
A instantaneidade da iluminação espiritual foi comparada, em grande número de religiões, ao relâmpago. Mais ainda: ao brusco lampejo do raio que rasga as trevas atribuiu-se o valor de um mysterium tremendum que, ao transformar o mundo, enche a alma de terror sagrado. (…) A pessoa quesobrevive à experiência do raio muda completamente; na verdade, começa uma nova existência, é um homem novo.
Dentre alguns pontos em comum com diversas experiência de epifania da luz, Eliade destaca
que muitas vezes ela vem de forma súbita, mas é resultado de uma longa preparação (podemos
pensar na formação religiosa do poeta). À cor branca é conferido o valor místico que “simboliza
transcendência, perfeição, santidade”; a iluminação traz consigo “um conhecimento de ordem
mística”. O poeta grita pelo nome de Ariana, como se a sentisse mais próxima a partir da
compreensão da equivalência com Deus e de sua iluminação. O surgimento de Ariana é antecedido
por uma convulsão da natureza, em que “serpentes saíam das tocas e comiam ratos”, “porcos
endemoninhados de devoravam”, águias se precipitavam ferindo corvos e abutres, e também “o joio
se separava do trigo”, “as figueiras se tornavam profundamente secas”. Na estrofe seguinte, o poeta
faz as vezes de profeta e pessoas desgraçadas pela força destrutiva da natureza se dirigem a ele
clamando por milagres. Mas ele apenas diz que é o “enviado do Mal”. A cena é de miséria
avassaladora: crianças morrem, as plantações estorricam, as vacas ficam magras, os cegos se tornam
paralíticos e os paralíticos cegos. O poeta profeta, nunciador da vinda de Ariana, olhando para a
paisagem desoladora (“eu falava olhando a dor e a maceração dos corpos”), pede para o povo não
temer, pois a ele a morte espiritual, mais do que a desgraça material, lhe ocorrera. “Mas é preciso”,
diz, “para que surja a Exaltada, a branca e sereníssima Ariana / A que é a lepra e a saúde, o pó e o
trigo, a poesia e a vaca magra”. Ariana é a terra mãe, mulher, a natureza que dá e tira. Jean
Delumeau observa que as mulheres são vistas mais do que os homens como mais ligadas ao ciclo da
vida, ao eterno retorno, “que arrasta todos os seres da vida para a morte e da morte para a vida”.
Essa ambiguidade fundamental da mulher que dá a vida e anuncia a morte foi sentida ao longo deséculos, e especialmente expressa pelo culto das deusas-mães. A terra mãe é o ventre que nutre, mastambém o reino dos mortos sob o solo ou na água profunda. É cálice de vida e de morte. (…) Ela “temuma face de trevas”, escreve Simone de Beauvoir, “é o caos de onde tudo se originou e para onde tudodeve um dia retornar (…). É noite nas entranhas da terra. Essa noite onde o homem é ameaçado deabismar-se, e que é o avesso da fecundidade, o apavora”.
Se isso é verdade, é interessante notar que quando o poeta diz que a ambivalência atroz da
mulher-natureza é necessária para que surja Ariana se trata do enfrentamento de um medo. O medo
da mulher é analisado por Afonso Romano de Sant'anna num ensaio sobre a misoginia de Vinicius
presente em seus dois primeiros livros. Confirma-se também nesse ponto a posição desse poema
como um ponto de inflexão de sua obra. Encarando o pavor, o poeta clama o nome da mulher num
ato de fé na natureza feminina. Há também a referência a um estado primordial de amoralidade
anterior à criação, quando o Diabo ainda é parceiro e irmão de Deus; o bem e o mal, assim como “a
lepra e a saúde, o pó e o trigo, a poesia e a vaca magra”, coexistem numa unidade em que os
opostos estão harmonizados. O poema segue com a conversão do povo e a transfiguração da
paisagem de horror em vida exuberante.
E à medida que o nome de Ariana ressoava como um grito de clarim nas faces paradasAs crianças se erguiam, os cegos olhavam, os paralíticos andavam medrosamenteE nos campos dourados ondulando ao vento, as vacas mugiam para o céu claroE um só clamor saía de todos os peitos e vibrava em todos lábios — Ariana!E uma só música se estendia sobre as terras e sobre os rios — Ariana!E um só entendimento iluminava o pensamento dos poetas — Ariana!
Assim, coberto de bênçãos, cheguei a uma floresta e me sentei às suas bordas — os regatos cantavam límpidosTive o desejo súbito da sombra, da humildade dos galhos e do repouso das folhas secasE me aprofundei na espessura funda cheia de ruídos e onde o mistério passava sonhandoE foi como se eu tivesse procurado e sido atendido — vi orquídeas que eram camas doces para a fadigaVi rosas selvagens cheias de orvalho, de perfume eterno e boas para matar a sedeE vi palmas gigantescas que eram leques para afastar o calor da carne.
Descansei — por um momento senti vertiginosamente o húmus fecundo da terraA pureza e a ternura da vida nos lírios altivos como falosA liberdade das lianas prisioneiras, a serenidade das quedas se despenhando.E mais do que nunca o nome da Amada me veio e eu murmurei o apelo — Eu te amo, Ariana!E o sono da Amada me desceu aos olhos e eles cerraram a visão de ArianaE meu coração pôs-se a bater pausadamente doze vezes o sinal cabalístico de Ariana...
Dá-se uma segunda criação e a sucessão de milagres que acompanham a fé em Ariana, nome
que não cessa de ecoar na mente e no espírito das pessoas convertidas e na natureza como música.
Finalmente, apaziguado, “coberto de bençãos”, o poeta se senta às bordas da floresta, num cenário
edênico orvalho, perfume eterno e palmas gigantescas “que eram leques para afastar o calor da
carne” — o encontro com Ariana é um encontro de almas, herdeiro da nobreza do amor de tradição
platônica e cristã. Observe-se que as orquídeas e os lírios, que nas trevas da terceira estrofe eram
“insensíveis” e “inermes como velhos falos”, são agora “camas doces para a fadiga” e “altivos
como falos”. O poeta sai renovado da experiência mística e toda a sua percepção da natureza em
torno se transforma com e a partir dele. Finalmente, nesse estado de plenitude amorosa, lhe vem
mansamente e mais uma vez o nome da amad; e ele se declara: “Eu te amo, Ariana!”. O sono da
amada lhe desce aos olhos e cerram sua visão. As badaladas do relógio batem junto com seu
coração “doze vezes o sinal cabalístico de Ariana”. O sonho termina.
Depois um gigantesco relógio se precisou na fixidez do sonho, tomou forma e se situou na minha frente, parado sobre a Meia-NoiteVi que estava só e que era eu mesmo e reconheci velhos objetos amigos.Mas passando sobre o rosto a mão gelada senti que chorava as puríssimas lágrimas de ArianaE que o meu espírito e o meu coração eram para sempre da branca e sereníssima ArianaNo silêncio profundo daquela casa cheia da Montanha em torno.
Separada por uma linha pontilhada do resto do poema, a última estrofe descreve o poeta já
acordado, fora do sonho epifânico. Ele percebe que está só e reconhece “velhos objetos amigos”. O
tempo, que havia sido suspenso no início do poema, retorna a sua linearidade cronológica. Mas
agora a realidade é completamente outra após a revelação de Ariana. Então, o poeta passa a mão no
rosto e, na interseção entre sonho e realidade, sente que suas lágrimas são as “puríssimas lágrimas
de Ariana”. O poema encerra com um verso, salvo variações, igual ao primeiro. Neles, a solidão é
sentida agudamente na imagem “daquela casa cheia da montanha em torno”. Importante notar, no
entanto, que as mesmas palavras denotam, nos dois momentos, tipos diferentes de solidão. No
início, trata-se da solidão a um, em estado de instabilidade emocional desolador; já no final, o poeta
continua só no “silêncio profundo”, mas trata-se de uma solidão no amor, a dois, pois ele sente que
seu espírito e seu coração serão para sempre a partir de então da “branca e sereníssima Ariana”.
III
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Riode Janeiro: Contraponto: Ed.PUC-Rio, 2010.
COSTA, Paulo da. Da poesia à canção: notas sobre o Vinicius de Moraes letrista. In: MORAES,Vinicius de. Livro de letras. São Paulo: Companhia das letras, 2015.