O âmbito do orientalismo

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Edward W. Said. O âmbito do orientalismo. In: Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia das Letras, 1990. (Introdução) Said entende que por Orientalismo há diversas interpretações e todas se interdependem. Sobre essas diversas formas de entendimento, a designação para o orientalismo mais aceita é a acadêmica e essa idéia é propagada em algumas instituições acadêmicas. Assim, todo aquele que dá aulas, escreve ou pesquisa sobre o Oriente – sendo esses antropólogos, sociólogos, historiadores etc. – tanto de forma específica ou organizada, é um orientalista e sua produção é um orientalismo. (SAID, 1990, p. 14). “Comparado com estudos orientais ou estudos de área, é verdade que o termo orientalismo, hoje em dia, vem caindo na preferência dos especialistas, tanto por ser vago e geral demais quanto por ser conotativo da arrogante atitude executiva do colonialismo europeu do século XIX e início do século XX. Mesmo assim são escritos livros e organizados congressos com o “Oriente” como foco principal, e com o orientalista, em sua versão nova ou antiga, como a principal autoridade. A questão é que mesmo que não sobreviva como antigamente, o orientalismo continua a viver academicamente através de suas doutrinas e teses sobre o Oriente e o oriental”. (SAID, 1990, p. 14). Segundo Said é sob esse pensamento tradicional (acadêmico) de “destinos, transmigrações, especializações e transmissões que relaciona-se com a idéia geral de orientalismo. O orientalismo é a forma pela qual é distinto (ontológica e epistemologicamente) o Oriente do Ocidente. Muitos são os escritores, entre eles poetas, romancistas, filósofos teóricos políticos etc, que aceitam e propagam a distinção feita entre Oriente e Ocidente, partindo de teorias, descrições das sociedades e relatos a respeito dos povos orientais, costumes, e até mesmo como pensam. (SAID, 1990, p. 14). Segundo SAID, 1990, a academia e a imaginação do orientalismo estiveram caminhando juntas desde o final do século XVIII. E sob esse aspecto o orientalismo é histórica e materialmente definido, pois, de ‘grosso modo’ é tomando o final do século XVIII que o orientalismo pode ser analisado “como a instituição organizada para negociar com o Oriente.” (SAID, 1990, p. 15). É nesse momento que o Ocidente ganha espaço para fazer declarações a respeito do Oriente, assim como, descrevê-lo e colonizá-lo. Ou seja, o orientalismo significou uma forma ocidental de dominar e autorizar opiniões sobre o Oriente. Foi sob esse parâmetro que Said achou indispensável a apropriação da noção de discurso que Michel Foucault descreve em ‘Arqueologia do saber’ e em ‘Vigiar e punir’ para identificar o orientalismo. Assim, para compreender como a cultura européia administrou e produziu a política, a ideologia, o desenvolvimento científico e as maneiras de pensar do Oriente durante o pós-Iluminismo. (SAID, 1990, p. 15). Assim, “por causa do orientalismo, o Oriente não era (e não é) um tema livre de pensamento e de ação”. Entretanto, não significa que o orientalismo é um determinante para o que pode ser dito sobre o oriente, mas que este orientalismo representa o discurso daqueles que o produzem. “[...] como isso acontece é que este livro tenta demonstrar. Tenta também, mostrar que a cultura européia ganhou em força e identidade comparando-se co o Oriente como uma espécie de identidade substituta e até mesmo subterrânea, clandestina”. (SAID, 1990, p. 15).

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Edward W. Said. O âmbito do orientalismo. In: Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia das Letras, 1990. (Introdução)

Said entende que por Orientalismo há diversas interpretações e todas se interdependem. Sobre essas diversas formas de entendimento, a designação para o orientalismo mais aceita é a acadêmica e essa idéia é propagada em algumas instituições acadêmicas. Assim, todo aquele que dá aulas, escreve ou pesquisa sobre o Oriente – sendo esses antropólogos, sociólogos, historiadores etc. – tanto de forma específica ou organizada, é um orientalista e sua produção é um orientalismo. (SAID, 1990, p. 14).

“Comparado com estudos orientais ou estudos de área, é verdade que o termo orientalismo, hoje em dia, vem caindo na preferência dos especialistas, tanto por ser vago e geral demais quanto por ser conotativo da arrogante atitude executiva do colonialismo europeu do século XIX e início do século XX. Mesmo assim são escritos livros e organizados congressos com o “Oriente” como foco principal, e com o orientalista, em sua versão nova ou antiga, como a principal autoridade. A questão é que mesmo que não sobreviva como antigamente, o orientalismo continua a viver academicamente através de suas doutrinas e teses sobre o Oriente e o oriental”. (SAID, 1990, p. 14).

Segundo Said é sob esse pensamento tradicional (acadêmico) de “destinos, transmigrações, especializações e transmissões que relaciona-se com a idéia geral de orientalismo.

O orientalismo é a forma pela qual é distinto (ontológica e epistemologicamente) o Oriente do Ocidente.

Muitos são os escritores, entre eles poetas, romancistas, filósofos teóricos políticos etc, que aceitam e propagam a distinção feita entre Oriente e Ocidente, partindo de teorias, descrições das sociedades e relatos a respeito dos povos orientais, costumes, e até mesmo como pensam. (SAID, 1990, p. 14).

Segundo SAID, 1990, a academia e a imaginação do orientalismo estiveram caminhando juntas desde o final do século XVIII. E sob esse aspecto o orientalismo é histórica e materialmente definido, pois, de ‘grosso modo’ é tomando o final do século XVIII que o orientalismo pode ser analisado “como a instituição organizada para negociar com o Oriente.” (SAID, 1990, p. 15). É nesse momento que o Ocidente ganha espaço para fazer declarações a respeito do Oriente, assim como, descrevê-lo e colonizá-lo. Ou seja, o orientalismo significou uma forma ocidental de dominar e autorizar opiniões sobre o Oriente.

Foi sob esse parâmetro que Said achou indispensável a apropriação da noção de discurso que Michel Foucault descreve em ‘Arqueologia do saber’ e em ‘Vigiar e punir’ para identificar o orientalismo. Assim, para compreender como a cultura européia administrou e produziu a política, a ideologia, o desenvolvimento científico e as maneiras de pensar do Oriente durante o pós-Iluminismo. (SAID, 1990, p. 15).

Assim, “por causa do orientalismo, o Oriente não era (e não é) um tema livre de pensamento e de ação”. Entretanto, não significa que o orientalismo é um determinante para o que pode ser dito sobre o oriente, mas que este orientalismo representa o discurso daqueles que o produzem.

“[...] como isso acontece é que este livro tenta demonstrar. Tenta também, mostrar que a cultura européia ganhou em força e identidade comparando-se co o Oriente como uma espécie de identidade substituta e até mesmo subterrânea, clandestina”. (SAID, 1990, p. 15).

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Said salienta que há uma diferença quantitativa e qualitativa, entre a empresa cultural francesa e britânica no Oriente (até a ascendência americana pós- II Guerra) e as outras potências européias e atlântica. (SAID, 1990, p. 15).

“O que quero mostrar é que o orientalismo deriva de uma proximidade particular que se deu entre a Inglaterra e a França e o Oriente, que até o início do século passado significara apenas a Índia e as terras bíblicas. A partir do início do século XIX até o final da Segunda Guerra, a França e a Inglaterra dominaram o Oriente e o orientalismo; desde a Segunda Guerra os Estados Unidos têm dominado o Oriente, e o abordam do mesmo modo que a França e a Inglaterra o fizeram outrora. Dessa proximidade, cuja dinâmica é enormemente produtiva, mesmo que sempre demonstre a força comparativamente maior do que Ocidente (britânico, francês ou americano), vem o grande corpo de textos que eu chamo de orientalistas.” (SAID, 1990, p. 16).

Mesmo analisando um considerável número de obras e autores, Said diz que deixou de examinar um número muito maior. Seu argumento baseia-se ao invés de catalogar os textos que tratam do Oriente numa alternativa metodológica que analisa as generalizações históricas sobre o Oriente.

Segundo SAID, 1990, devemos considerar que a concepção de lugar, região e setores geográficos – assim como sua história – como “Oriente” e “Ocidente” são entidades criadas pelo homem. Ou seja, “assim como o próprio Ocidente, o Oriente é uma idéia que tem uma história e uma tradição de pensamento, imagística e vocabulário que lhes deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas, desse modo, apóiam e, em certa medida, refletem uma à outra.” (SAID, 1990, p. 16-17).

Said ressalta que seria um equívoco concluir que o Oriente era, em sua essência apenas uma idéia imaginada ou criada, sem haver qualquer realidade correspondente. De qualquer maneira, Said tem como objetivo, não tratar da correspondência entre o orientalismo e suas idéias sobre o Oriente, a despeito ou além de qualquer correspondência, ou falta de, com um Oriente “real”. (SAID, 1990, p. 17).

Said considera indispensável a associação de análises entre as idéias, culturas e histórias sobre o Oriente e as configurações de poder que veiculam essas idéias.

“Achar que o Oriente foi criado – ou, como eu digo, ‘orientalizado’ – e acreditar que tais coisas acontecem simplesmente como uma necessidade da imaginação é agir de má-fé.”

Logo, devemos observar que entre o Ocidente e o Oriente há uma relação de dominação e poder que possui diferentes “graus de uma complexa hegemonia.” (SAID, 1990, p. 17).

Há uma outra preocupação: Said acredita que não devemos pensar que a essência do orientalismo firma-se em mentiras ou mitos que, se fossem desmascarados, “partiriam com o vento”, mas sim, observar o orientalismo como um sinal de poder europeu – atlântico sobre o Oriente que um discurso verídico sobre o Oriente (que é o que, em sua forma acadêmica ou erudita, ele afirma ser). Assim, o que temos que observar (‘respeitar e tentar aprender’) é a força dos discursos orientalistas, quais as suas ligações com as instituições sócio-políticas e econômicas (que veiculam esses discursos) e a sua “temível durabilidade.” (SAID, 1990, p. 18).

O orientalismo não é uma “fantasia” qualquer que a Europa investiu sobre o Oriente, mas uma criação que envolve teoria e prática e que por muito tempo recebeu

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investimento material e que conseqüentemente fez com que as declarações feitas pela consciência ocidental a respeito do Oriente para a “cultura geral.” (SAID, 1990, p. 18).

Para Said é a “supremacia” européia (ou o resultado desta em ação) que fortalece o orientalismo que o autor trata.

Denys Hay conceitua a idéia européia relacionada a uma “noção coletiva” que observa o “nós” europeu em oposição aos “não-europeus” e é esse fato que Said acredita ser importante para a compreensão do orientalismo: essa idéia de “Europa hegemônica” acabou criando a concepção de que a Europa é em termos culturais superior a outros povos não-europeus. (Essa idéia é propagada dentro da Europa, como também fora dela.)

O orientalismo para a sua própria estratégia necessita dessa idéia de “superioridade” entre todas as relações possíveis entre Ocidente e Oriente sem que o Ocidente perca sua “vantagem relativa”. (SAID, 1990, p. 19).

Deve-se considerar que, desde a Renascença até o presente, estudiosos, religiosos, soldados, negociantes etc., estavam ou pensavam o Oriente porque “podiam estar lá” ou podiam pensar sobre o Oriente porque não havia resistência por parte deste. Assim, desde aproximadamente o final do século XVIII que o Oriente vem sendo objeto de estudos nas academias, museus, ilustração teórica em teses de antropólogos, biólogos, historiadores etc. sobre a humanidade e o universo.” (SAID, 1990, p. 19).

“Além disso, o exame imaginativo das coisas orientais estava baseado mais ou menos exclusivamente em uma consciência européia soberana, de cuja inconteste centralidade surgiu no mundo oriental, primeiro de acordo com idéias gerais sobre quem e o que era oriental, depois segundo uma lógica detalhada governada não apenas pela realidade empírica, mas por um conjunto de desejos, repressões, investimentos e projeções.” (SAID, 1990, p. 19).

Para discutir a idéia de orientalismo, Said ressalta que há duas possibilidades, a geral e a particular. No primeiro, há um grupo de idéias que permeiam a supremacia européia e vários tipos de doutrinas como o racismo e o imperialismo, além de observar o “oriental” de forma dogmática e estática. Já a alternativa particular seria ressaltar o trabalho daqueles escritores individuais que tratam do Oriente.

Temendo uma “distorção e falta de precisão – ao lidar com essas duas possibilidades – generalidade dogmática, ou um foco localizado positivista demais”. (SAID, 1990, p. 20).

Said questiona: “Como, então, reconhecer a individualidade e conciliá-la com o seu contexto geral e hegemônico inteligente e de modo algum passivo ou meramente ditatirial?”

Para lidar com essa dificuldade metodológica, Said buscou em sua pesquisa e escrita observar três aspectos de sua própria realidade contemporânea.

Para Said a maior parte do conhecimento produzido no Ocidente contemporâneo (nos EUA, principalmente) é tudo por aqueles que o produzem como “apolítico”, ou seja, “erudito, acadêmico, imparcial e acima de qualquer crença doutrinária, engajada ou limitada”. (SAID, 1990, p. 21). Contudo, Said acredita que, “ninguém nunca descobriu um método para separar o erudito das circunstâncias da vida, do fato do seu envolvimento (consciente ou inconsciente) com uma classe, com um conjunto de crenças, uma posição social ou da mera atividade de ser um membro da sociedade”. (SAID, 1990, p.21).

“O que me interessa agora é sugerir como o consenso liberal geral de que, o verdadeiro conhecimento é fundamentalmente

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apolítico (e de que ao contrário, o conhecimento abertamente político não é conhecimento ‘verdadeiro’) obscurece as circunstâncias políticas extremamente organizadas, ainda que de modo obscuro, que predominam quando o conhecimento é produzido”. (SAID, 1990, p. 22).

“Pois, se for verdade que nenhuma produção de conhecimento nas ciências humanas pode jamais ignorar ou negar o envolvimento de seu autor como sujeito humano em suas próprias circunstâncias, deve então ser europeu ou um americano que esteja estudando o Oriente, não pode haver negação das circunstâncias mais importantes da realidade dele: que ele chega ao Oriente primeiramente como um europeu ou um americano, e depois como individuo. E ser um europeu ou americano nessa situação não é de modo algum um fato inerte. Queria e quer dizer estar consciente, ainda que vagamente, de se fazer parte de uma potência com interesses definidos no Oriente e, mais importante, de que se pertence a uma parte da terra como uma história definida de envolvimento no Oriente quase desde os tempos de Homero” (SAID, 1990, p. 23).

Para Said essas “realidades políticas” só se tornaram interessantes não são descartados os interesses culturais, ou seja, em sua concepção, Said acredita que, tanto o interesse europeu, como o americano pelo Oriente era político em determinados aspectos históricos, mas que a cultura foi o principal elemento para criação desse interesse, que agiu concomitantemente “com as indisfarçadas fundamentações políticas econômicas e militares para fazer do Oriente o lugar variado e complicado que ele obviamente era no campo que eu chamo de orientalismo”. (SAID, 1990, p. 23).

Com essas considerações é notável que o orientalismo para Said é um fato político e cultural, porém, não é um tema de estudos de campo que é refletido passivamente pela cultura e/ou pelas instituições; nem tampouco a difusão de textos que tratam o Oriente, ou um complô ocidental que subjuga e subestima o Oriente.

Para SAID, 1990, o orientalismo é:“[...] antes de uma distribuição de consciência geopolítica em textos estéticos, eruditos, econômicos, sociológicos, históricos e filológicos; é uma elaboração não só de uma distinção geográfica básica (o mundo é feito de duas metades, o Ocidente e o Oriente), como também de toda uma série de ‘interesses’ que, através de meios como a descoberta erudita, a reconstituição filológica, a análise psicológica e a descrição paisagística e sociológica, o orientalismo não apenas cria como mantém; ele é, em vez de expressar, uma certa vontade ou intenção de entender, e em alguns casos controlar, manipular e até incorporar, aquilo que é um mundo manifestamente diferente (ou alternativo e nova) é acima de tudo, um discurso que não está de maneira alguma em relação direta, correspondente, ao poder político em si mesmo, marque antes é produzido e, existe em um intercâmbio desigual com vários tipos de poder.” (SAID, 1990, p. 24). (poderes intelectual, político, cultural, moral)

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Said estuda o orientalismo observando dinamicamente os autores individuais e os grandes interesses políticos da França, Inglaterra e Estados Unidos, sendo nesses lugares que a escrita foi produzida.

Said não se interessa em analisar a “verdade política” dos ocidentais serem superiores aos Orientais, mas como os autores, como Lane, Flaubert ou Renan contribuíram para a formação de uma tradição imperialista como a orientalista. (SAID, 1990, p. 23).

Para SAID, 1990, todo trabalho há um método que deve permitir uma seqüência. Assim, Said inicia seu estudo delimitando quais os textos, autores e períodos que melhor se adequaria para o estudo e assim criando uma problemática.

Said achou inviável escrever uma história narrativa enciclopédica do orientalismo por três motivos: o primeiro é que se sua problemática fosse a idéia da Europa sobre o Oriente, a infinidade de textos dificultaria o tratamento com o material; segundo porque não se interessa pela escrita narrativa e por último, porque já existem muitos autores que fizeram trabalhos enciclopédicos e que tratam da relação Europa-Oriente. (SAID, 1990, p. 28)

Assim, Said parte da experiência inglesa, francesa e americana no Oriente, limitando essa relação ais árabes e ao islã, que durante um longo período representaram o oriente. (SAID, 1990, p. 28).

Assim, limitou-se o estudo à essas duas religiões do Oriente Próximo, ou do Islã, uma vez que estas eram possíveis de serem analisadas separadamente do Extremo Oriente, como Índia, Japão, China, etc. (SAID, 1990, p. 28)

Do mesmo modo, se houve um interesse da história européia geral pelo Leste do Oriente, “como o Egito, a Síria e a Arábia não podem ser discutidas sem também se estudar o envolvimento europeu nas partes mais distantes, das quais a Pérsia e a Índia eram as mais importantes; relativo a isso, um caso notável é a conexão entre o Egito e a Índia, pelos menos no que diz respeito à Inglaterra dos séculos XVIII e XIX”. (SAID, 1990, p. 28).