O ACESSO À JUSTIÇA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO REGIME ... · no regime jurÍdico militar...

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ MESTRADO EM DIREITO O ACESSO À JUSTIÇA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO REGIME JURÍDICO MILITAR Mestranda: Rejane Ribeiro Redon Orientador: Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho Rio de Janeiro 2008

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ MESTRADO EM DIREITO

O ACESSO À JUSTIÇA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO REGIME JURÍDICO MILITAR

Mestranda: Rejane Ribeiro Redon

Orientador: Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho

Rio de Janeiro 2008

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REJANE RIBEIRO REDON

O ACESSO À JUSTIÇA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO REGIME JURÍDICO MILITAR

Dissertação apresentada como requisito para

obtenção do título de Mestre em Direito, pela

Universidade Estácio de Sá.

Orientador: Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho

Rio de Janeiro

2008

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A meus pais, exemplos de caráter e retidão,

pelo apoio e incentivo em toda a minha jornada.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu muito amado marido, LAERTE. Sem ele, nada disso estaria se realizando.

Muito obrigada pela presença firme e o incansável incentivo no presente trabalho.

Ao professor HUMBERTO DALLA pelo tratamento dispensado aos alunos do

mestrado. Pela simplicidade e facilidade na transmissão de seus conhecimentos e

pelo constante incentivo aos estudos e à pesquisa.

À LUCIANA ALMEIDA. Deus me presenteou novamente com uma irmã e amiga para

todas as horas.

Aos funcionários FÁBIO PRIOR MARTINS e PAULO ROBERTO DE SOUZA

SANTOS, da secretaria do Curso de Mestrado, pela eficiência e presteza em atender

a todos, e principalmente pela amizade e bom humor.

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Uma Justiça que não cumpre sua função dentro de um prazo razoável é, para muitas pessoas, uma Justiça inacessível, o que vale dizer, uma autêntica denegação de Justiça. Cappelletti.

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ABSTRACT

The present survey treaded the Research Line “ Access to Justice and Effectiveness

of Process” rooted on Master’s Course in Law at Estácio de Sá University which

goals to critically set about Access to justice concerning contemporary military

administration system. Firstly, it aims to scrutinize the fundamental rights evolution

for it is an indispensable issue in order to approach the access to justice

effectiveness so to apply its postulate towards Brazilian law a propos the military role.

Moreover, it is outlined subjects pertaining to Brazilian armed forces such as its

function, legal system and institutional guarantees assuming the three forces namely

Navy, Army and Air Force as national institutions, regular and permanent, grounded

on hierarchy and discipline, under the commander-in-chief ´s supreme authority, plus

heading to the nation’s defense, constitutional power guarantee and due to either the

latter or the former set up also to law and order. Consequently, statutes, by-laws in

addition to professional restrictions and risks in contemporary social order are equally

explored vis-à-vis its duty within Brazilian constitutions, democracy and Democratic

State. Additionally, it is held contributions along with an doctrine and legislation

followed.

Key-words: Access to Justice – Fundamental Rights – Armed Forces – Military

Activities.

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RESUMO

A presente dissertação faz parte da Linha de Pesquisa de Acesso à Justiça e a

Efetividade do Processo, do Mestrado em Direito da Universidade Estácio de Sá, e

tem o objetivo de abordar criticamente o mote do acesso à justiça no âmbito da

administração militar atual. Nesta perspectiva, aspira-se por escrutinar a evolução

dos Direitos Fundamentais, matéria basilar para aventar a efetividade do acesso à

justiça, a fim de empregar seus postulados no Direito Brasileiro à atividade militar.

Serão enfocados pontos pertinentes às Forças Armadas tais como função, regime

jurídico e garantias institucionais; observando-as enquanto constituídas por Marinha,

Exército e Aeronáutica, instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas

com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da

República, e destinando-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes

constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Sob este

prisma, são sopesados estatutos, regulamentos, restrições e riscos da profissão na

sociedade contemporânea; ressalvando suas funções nas constituições brasileiras,

na democracia e no Estado Democrático. Finalmente, o estudo é locupletado com

contribuições de doutrinadores e legislações pretéritas e vigentes.

Palavras-chave: Acesso à justiça - Direitos Fundamentais – Forças Armadas –

Atividade Militar.

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LISTA DE ABREVIATURAS

CF Constituição Federal de 1988

CPM Código Penal Militar

CPPM Código de Processo Penal Militar

EM Estatuto dos Militares

LPE Lei de Preparo e Emprego das Forças Armadas

LSM Lei do Serviço Militar

R-4 Regulamento Disciplinar do Exército

RDAer Regulamento Disciplinar da Aeronáutica

RDM Regulamento Disciplinar para a Marinha

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

2 – POSTULADOS DO ACESSO À JUSTIÇA NO DIREITO

BRASILEIRO

18

2.1. CONCEITUAÇÕES 19

2.1.1. Pressupostos do acesso à justiça 20

2.1.2. Dimensões do acesso à justiça 21

2.1.3. Aspectos do acesso à justiça 22

2.1.4. Fundamentos do acesso à justiça 25

2.1.5. Sentidos do acesso à justiça 27

2.1.6. Conteúdos do acesso à justiça 28

2.1.7. Questionamentos possíveis acerca do acesso à justiça 29

2.2. CRONOLOGIA E DESENVOLVIMENTO DO ACESSO À

JUSTIÇA

30

2.2.1. Origens do acesso à justiça 30

2.2.2. O Projeto Florença 33

2.2.3. Evolução do acesso à justiça 34

2.3. ACESSO À JUSTIÇA NO ORDENAMENTO PÁTRIO 35

2.3.1. Eficácia na sociedade hodierna 37

2.3.2. O advento da Emenda Constitucional 45 38

2.4. O CASO ESPECIALÍSSIMO DO ACESSO À JUSTIÇA PELOS

INTEGRANTES DAS FORÇAS ARMADAS

39

3 – O MODELO CONSTITUCIONAL DE FORÇAS ARMADAS 40

3.1. UM MODELO HISTORICAMENTE VOLTADO PARA A SEGURANÇA E A DEFESA

40

3.2. OS PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS DA FUNÇÃO MILITAR

49

3.3. A ADMINISTRAÇÃO MILITAR E A INSTITUIÇÃO MILITAR 54

3.4. A SINGULARIDADE DA COMPONENTE SUBJETIVA DA FUNÇÃO MILITAR

57

3.4.1 – Aspectos gerais 58

3.4.2 – As particularidades da carreira militar: evolução, riscos e impedimentos

60

3.5. OS PRINCÍPIOS DA HIERARQUIA E DA DISCIPLINA 66

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3.6. O REGIME JURÍDICO ESPECIAL 74

3.6.1 O estatuto dos militares 74

3.6.2 Os regulamentos disciplinares 76

4. ACESSO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 80

4.1 À GUISA DE INTRODUÇÃO 80

4.1.1 O problema da eficácia 83

4.1.2 verticalidade e horizontabilidade da eficácia 89

4.1.3 Os efeitos trazidos pelo neoconstitucionalismo. 92

4.2 ACESSIBILIDADE E RESTRIÇÕES DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO MILITAR

96

4.3. OS RESUMIDOS DIREITOS SOCIAIS DOS MILITARES 99

4.4. O DIREITO À IGUALDADE 103

4.5 O DIREITO À VIDA E À INTEGRIDADE FÍSICA 105

4.6 A LIBERDADE DE PENSAMENTO, RELIGIOSA, DE CULTO E

A ESCUSA DE CONSCIÊNCIA

109

4.7 O DIREITO DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO 113

4.8 PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DA LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO 114

4.9 O DIREITO DE PETIÇÃO E DE ACESSO À INFORMAÇÃO 116

5. UMA RELEITURA PÓS-POSITIVISTA DE ALGUNS “HARD

CASES”

117

5.1 O SISTEMA DE QUOTAS RELIGIOSAS NO ACESSO À

FUNÇÃO DE CAPELÃO MILITAR

121

5.2 A ACESSIBILIDADE À FUNÇÃO MILITAR POR FIEL IMPEDIDO

DE EXERCER “ATIVIDADES SECULARES” NO MOMENTO DA

REALIZAÇÃO DO CONCURSO

122

5.3 O ACESSO Á FUNÇÃO MILITAR POR PESSOAS

PORTADORAS DA SÍNDROME DA IMUNODEFICIÊNCIA

ADQUIRIDA (siDA). A REFORMA DO MILITAR HIV POSITIVO

ASSINTOMÁTICO

123

5.4 O ACESSO AO JUDICIÁRIO CONDICIONADO AO

ESGOTAMENTO DAS VIAS ADMINISTRATIVAS

128

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6. CONCLUSÃO 131

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 135

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INTRODUÇÃO

O direito brasileiro hodierno quer na esfera cível, quer na criminal, seja na

justiça comum, seja na especial, norteia-se segundo a Lei Maior, em consonância

com os seus princípios e normas. Esse sistema singulariza os direitos fundamentais,

que têm sido objeto de uma releitura ao longo dos tempos, em que pese ao fato de

remontarem aos séculos XVIII e XIX, na forma de cartas, convenções e declarações

nascidas na Europa e nos Estados Unidos. Tais documentos serviram de base à

nossa Constituição de 1988, que traz em seu bojo um rol de direitos fundamentais,

cuja concretização pode ser considerada como o cerne do acesso à justiça, mote

deste trabalho.

De fato, por ser norma hierarquicamente superior às demais, a Constituição é

portadora de valores a serem observados por todo o ordenamento jurídico, de modo

que todos os outros direitos tenham seu fundamento no núcleo constitucional. Este

dogma, que fundamenta o Princípio da Supremacia da Constituição, importa uma

reconstrução dos direitos em face dos preceitos contidos na Magna Carta,

proporcionando uma busca pela realização dos direitos fundamentais.

Por sua vez, os direitos fundamentais encontram-se intrinsecamente

conectados à própria dignidade da pessoa humana, pois na verdade eles nada mais

são que garantias à dignidade da pessoa humana, princípio fundamental que orienta

a República Federativa do Brasil1 e os Estados Democráticos de Direito.

A noção mais antiga a respeito destes direitos que se tem notícia data de

tempos remotos, que antecedem a Era Cristã2. Tal concepção tinha um viés

individualista, fundamentado no Direito Natural o qual, com o advento do positivismo,

sofreu uma reformulação, que nas palavras de BOBBIO3, voltou estes direitos para

uma compleição mais coletiva, globalizadora e universal. Esta percepção está, como

citado anteriormente, dirigida pelo princípio da dignidade humana e igualmente 1 Constituição Federal de 1988, art. 1º, III. 2 Alexandre de Moraes lembra que o Código de Hamurabi (1690 a.C.) é, talvez, a primeira codificação a consagrar um rol de direitos humanos a todos os homens. Direitos Humanos Fundamentais, 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 24. 3 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho.10.ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p 57.

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asseada com o compromisso constitucional de construir uma sociedade que seja ao

mesmo tempo igualitária, justa e fraterna.

O juízo acerca dos direitos aplicáveis ao binômio homem-Estado, é matéria

categórica de muitos apontamentos com o objetivo de sugerir um limite às ações do

indivíduo e de seu sistema político, tópicos aclarados pelo contrato social de

Rousseau. Esta limitação ao poder exagerado do Estado é um dos fatores

primordiais do Estado de Direito e do seu curso evolutivo para o Estado

Democrático, a partir de muitos documentos políticos de estima singular, tais como:

1. Magna Charta Libertatum (Inglaterra, 1215);

2. Petition of Right (Inglaterra, 1628);

3. Hábeas Corpus Act (Inglaterra, 1679);

4. Bill of Rights (Inglaterra, 1689);

5. Declaração de Direitos da Virgínia (1776);

6. Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776);

7. Constituição dos Estados Unidos da América (1787)

8. Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (Revolução Francesa, 1789);

9. Constituição francesa (1793);

10. Constituição espanhola (1812);

11. Constituição portuguesa (1822);

12. Constituição belga (1831);

13. Declaração de Direitos da Constituição francesa (1848);

14. Constituição mexicana (1917);

15. Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado (1918);

16. Constituição de Weimar (Alemanha, 1919);

17. Carta do Trabalho (Itália, 1927); e

18. Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948)

Todos esses são resultado de um arcabouço de teorias, possibilidades e

justificativas, a fim de permitir ao homem ser um cidadão pleno, inserido em uma

sociedade pacífica, solidária, digna e capaz de compor conflitos.

Assim, será o cerne desta pesquisa o acesso à justiça, abordando

pontualmente a situação especial dos integrantes da Forças Armadas, em virtude de

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sua importância daquele direito enquanto instrumento de gestão pública e de

utilidade social, e visando uma aplicação proporcional e individualizada, mas ao

mesmo tempo universal e igualitária.

Nessa linha de trabalho, têm-se plena ciência que o interesse em estudar os

direitos fundamentais do pessoal militar é algo distante dos meios acadêmicos, em

especial dos cursos jurídicos. Nos dias atuais, esse distanciamento resulta em

refutações ao Direito Castrense, sempre à luz de interpretações superficiais e

açodadas do ordenamento jurídico vigente, o que via de regra revela o grande vácuo

do saber acerca da situação específica da classe militar.

Em sua maioria, tais questionamentos são postos à conta da discussão a

respeito dos limites que devem ser impostos à Administração militar, em razão das

suas especificidades. Sem dúvida estas existem e são pouco conhecidas e

discutidas; uma lacuna que, em muitas situações, culmina nas comparações

açodadas com o serviço público civil.

Aliás, é possível que este conhecimento precário, bem como o pouco

interesse pelo assunto por parte daqueles que formam a opinião do meio jurídico,

ainda encontre justificativas na aversão a um passado autoritário, somada à nova

ordem constitucional que prestigia uma diretriz pacifista nas relações internacionais4.

Entretanto, mesmo não sendo assunto fluente, não se pode olvidar que no

plano interno, em situações críticas de segurança pública — bem mais presentes

nos dias atuais —, os militares e as Forças Armadas sempre ganham alguma

atenção da sociedade brasileira, por constituírem um organismo inegavelmente

voltado para a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem5.

Diante de tal contextura, é plenamente admissível que a composição dos

conflitos que envolvem essa categoria de agentes do Estado lance um grande

desafio aos operadores do direito. Realmente, a dimensão atribuída aos direitos

fundamentais dos militares exige, do intérprete, uma atitude harmonizadora,

lastreada na ponderação e na razoabilidade, pois qualquer obtusidade pode gerar

reflexos nos alicerces institucionais e, por conseqüência, refletir-se negativamente

na segurança interna e na defesa do país, bens estes igualmente inestimáveis e

intangíveis.

4 Constituição Federal, art. 4º, VI e VII. 5 Constituição Federal, art. 142.

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Neste propósito, analisa-se a situação atual dos profissionais das Forças

Armadas e a aplicação da atual Constituição Federal às suas funções, observando

sua interface com o regime jurídico-militar, na tentativa de trabalhar o ideário de

acessibilidade à justiça a partir de uma visão alternativa à dogmática jurídica

conservadora.

Apesar de estar começando a ser aprofundado no meio jurídico brasileiro, o

estudo dos direitos fundamentais potencializa a relevância do objeto desta

dissertação, no passo em que apresenta as especificidades que envolvem o modelo

militar vigente no Brasil, o qual pode e deve estabelecer um diálogo estável e

inteligente com a Carta Magna.

Dessa forma, o acesso à justiça do profissional militar ajusta-se às

expectativas do processo de constitucionalização deste direito, do que resulta ser

necessário buscar incessantemente a atualização e a adequação da legislação

aplicável à vida castrense, de modo a sintonizar conceitos e práticas à evolução do

ordenamento jurídico, sem se perder de vista as peculiaridades das instituições

interessadas, as quais encontram-se igualmente protegidas pela Constituição.

Esta dissertação encontra-se dividida em quatro capítulos. No primeiro,

aponta-se o marco dos direitos fundamentais no mundo, particularmente nos

continentes europeu e norte-americano, oferecendo uma exposição geral de

aspectos relacionados à suas origens e evolução.

O segundo capítulo perquire o acesso à justiça na sociedade contemporânea,

proporcionando breves apontamentos no que tange a juristas e filósofos

estrangeiros e brasileiros. O imo deste capítulo é apresentar o acesso à justiça como

um alicerce para a organização do Estado Democrático, sendo este princípio

concebido como um bem subjetivo posto que cada cidadão, por ser livre, tem entre

seus direitos mais basilares a capacidade para reivindicação perante o Estado. Tais

pleitos poderão ser oferecidos à apreciação do Poder Judiciário, a quem competirá

avaliar e restabelecer o direito. Discorre-se, ainda, acerca do acesso à justiça

enquanto movimento sócio-democrático, parte do processo de afirmação dos direitos

sociais em todo o mundo.

Os parâmetros são as alocuções de CAPELLETTI6 e o sistema capitalista

inserto no estágio evolutivo do Welfare State. Estes dados são importantes para a

6 CAPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988, p 76.

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compreensão da ampliação da legislação e proteção sociais, responsáveis pela

preocupação do Estado em efetivar os direitos buscando ações que ajudem a

implementar o acesso á justiça, estabelecido então pela primeira vez como um

direito fundamental. Por fim, o Brasil, em sua Constituição vigente7, também eleva a

assistência judiciária à condição de direito fundamental formal, o que englobaria um

dispositivo de garantia tanto ao acesso quanto aos próprios direitos.

O terceiro capítulo versa sobre modelo constitucional de Forças Armadas

adotado no país, desvendando suas peculiaridades e seu regime jurídico,

amplamente sustentados na hierarquia e na disciplina. A hierarquia e a disciplina —

bases institucionais de qualquer organismo militar — são escrutados como

elementos integrantes da própria definição constitucional das Forças Armadas,

elementos quiçá erigidos à categoria de princípios.

No quarto capítulo tem-se a questão dos direitos fundamentais aplicáveis à

função militar, em uma abordagem crítica, de modo a descrever aspectos relevantes

e polêmicos, analisando as possíveis restrições existentes na sua aplicação ao

pessoal militar. Direitos políticos e sociais, direitos à vida, à integridade física, à

nacionalidade, à igualdade, à liberdade de pensamento, sindical e religiosa, de

reunião e associação, de greve, petição e acesso à informação. Destarte, trata-se de

uma abordagem geral dos direitos fundamentais que visa inserir o contexto militar e

examinar sua acessibilidade, além de oferecer uma releitura pós-positivista no que

tange aos postulados do acesso à justiça, escrutinando todos os pormenores

concernentes aos costumes castrenses.

Em todos os capítulos, buscou-se cativar o leitor, a fim de que ele repense os

direitos fundamentais no âmbito da vida na caserna, com a expectativa de poder

contribuir de alguma forma para os estudos acadêmicos desenvolvidos em todo o

país. Esta pesquisa esboça apenas um ponto de partida para o preenchimento de

uma lacuna no trato de um tema que alcança expressiva parcela de agentes do

Estado8, o que não a exime, portanto, de apresentar paradoxos, indeterminações e

as dificuldades naturais de um trabalho que tenta discorrer sobre tópicos amparados

por poucas fontes especializadas de consulta no direito pátrio. Espera-se que, ao

7 Constituição Federal, art. 5º LXXIV. 8 As Forças Armadas brasileiras gozam de um efetivo autorizado pelas Leis nº. 7.150/1983, nº. 9.519/1997 e nº. 11.320/2006 de cerca de 420.000 militares.

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final, possam ser elaboradas críticas e sugestões sobre o tema, que resultem no

aprimoramento e numa maior aproximação dos assuntos enfocados no trabalho.

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2 – POSTULADOS DO ACESSO À JUSTIÇA NO DIREITO BRASILEIRO

Este capítulo trabalhará o acesso à justiça na sociedade brasileira atual, de

modo a fornecer proposições confiáveis posto que o tema é pedra angular para a

organização do Estado Democrático.

A Constituição de 1988 delineia a assistência judiciária na condição de direito

fundamental formal que englobaria um dispositivo de garantia tanto ao acesso

quanto aos direitos. Importa avultar que muitos documentos internacionais serviram

de base para esta inserção, razão pela qual traz em seu bojo preceitos que

permitem almejar a realização dos direitos fundamentais e destarte a concretização

de um Estado Democrático de Direito.

Para tanto, indispensável é, em primeiro lugar, expor que os direitos

fundamentais constituem um conjunto de direitos inevitavelmente atrelados aos

direitos humanos, e, por conseguinte, coadjuvantes do princípio da dignidade da

pessoa humana, porquanto tais direitos humanos constituem a base do Estado de

Democrático de Direito.

Dentre estes direitos fundamentais, o cerne de investigação desta pesquisa é

o acesso à justiça, devido à sua acuidade enquanto ferramenta de gestão pública e,

sobretudo de utilidade social por formar instrumento imprescindível à prática de

idealizações e programas capazes de atender satisfatoriamente não apenas a

população hiposuficiente em recursos financeiros e informação, mas também

aqueles que por opção de ofício e imposições disciplinares encontrem certas

dificuldades na composição de conflitos perante o Estado.

No que concerne à metodologia aplicada, foi utilizada uma perspectiva

didático-pedagógica com o fito de que todo e qualquer cidadão, da área jurídica ou

não, obtenha um conhecimento básico, todavia geral, no que diz respeito ao

significado do acesso à justiça, as características e desdobramentos dele

decorrentes, bem como que relação mantém com o sistema jurídico contemporâneo

e com a sociedade brasileira, utilizando um vocabulário simplificado e conciso.

Finalmente, o escopo desta pesquisa visa afunilar a matéria de modo a

assoalhar nomeadamente o acesso à justiça no direito brasileiro e seus postulados

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considerando, em última análise a atividade militar, conforme será explorado nos

capítulos subseqüentes.

2.1. CONCEITUAÇÕES

Inicialmente, cumpre observar as definições admissíveis juridicamente no que

diz respeito ao termo vertente, a fim de que sua acepção mais apropriada seja

aplicada.

Tendo isto em mente, o acesso à justiça pode ser definido como princípio

constitucional, dissidente dos direitos fundamentais e vinculado aos direitos

humanos posto que se trata de uma garantia instrumentalizadora do exercício de

vários outros direitos presentes em textos constitucionais. Destarte, acesso à justiça

significa, na prática, um mecanismo de efetivação da ordem jurídica substancial bem

como elemento crucial a fim de promover justiça participativa, idéia que é

corroborada por WATANABE9 ao afirmar que acesso à justiça é o acesso à ordem

jurídica justa.

Nas palavras de doutrinadores como PELLEGRINI e DINAMARCO10, o acesso

à justiça não pode se limitar à faculdade de estar em juízo, porque para que haja um

efetivo acesso é indispensável que o maior número possível de pessoas seja

admitido a demandar e a defender-se adequadamente. Isto quer dizer que, em

sentido amplo, o acesso só se dará no momento em que houver a chance de

participação efetiva no processo de solução da controvérsia.

Já PORT11 sintetiza a questão relatando que a melhor tradução da expressão

acesso à Justiça seria mais que o simples popularizar do ingresso do cidadão ao

Poder Judiciário, isto é, seria, efetivamente, propiciar a solução do litígio de maneira

justa e equânime, com a segurança que o jurisdicionado espera do Judiciário.

LIMA FILHO12, em sua obra “Acesso à justiça e ineficácia instrumental do

Poder” discursa que :

9 WATANABE, Kazuo. Filosofia e características básicas do juizado especial de pequenas causas. In: Juizado Especial de pequenas causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p 78. 10 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. A conciliação extrajudicial no quadro participativo. In: Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p 85. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p 52. 11 PORT, Marli Eulália. O Acesso à Justiça: aspectos constitucionais. Disponível em: www.textpro.br. Acesso em 12/11/2007. 12 LIMA FILHO, Francisco. Acesso à justiça e ineficácia instrumental do Poder.

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“o acesso à justiça se constitui em um direito fundamental do homem, pois, em síntese, visa a garantia da liberdade, como predicado de todo ser humano. Por ele também se assegura a efetividade dos demais direitos: toda a atividade jurisdicional do Estado encontra-se permeada pelo princípio. Sua finalidade, pois, refere-se aos indivíduos e ao Poder. Aos indivíduos, com o sentido de lhes proporcionar um bem imanente à sua condição humana; e ao Poder, porque estabelece método de pacificação social, é dizer: de solução dos conflitos sociais.”

2.1.1. Pressupostos do acesso à justiça

Nesta linha de raciocínio, o acesso à justiça denota a proteção a qualquer

direito sem qualquer restrição econômica, ou seja, se trata de uma garantia, ao

mesmo tempo, formal e material, assegurando a todos os cidadãos a prática da lei.

Tal garantia não se concretiza somente em permitir o acesso aos tribunais, mas

também em viabilizar o acesso a uma ordem jurídica justa.

Essa perspectiva torna-se possível por meio do atendimento a certos

pressupostos vitais, como ensina WATANABE13, enumerados a seguir:

I. Acesso ao direito à informação;

II. Acesso ao direito à adequação entre a ordem jurídica e a realidade sócio-

econômica do país;

III. Acesso ao direito a uma justiça adequadamente organizada e formada por

operadores do direito, em especial os juízes, inseridos na realidade social

e comprometidos com o objetivo de realização da chamada ordem jurídica

justa;

IV. Acesso ao direito à preordenação dos instrumentos processuais capazes

de promover a objetiva tutela dos direitos;

V. Acesso ao direito de remoção dos obstáculos que se anteponham ao

acesso efetivo a uma justiça que tenha tais características.

Nesse contexto, depreende-se que não obstante os riscos que o sistema

judicial possa apresentar, imperioso é assegurar as pessoas o mínimo formalmente

previsto seja pela constituição pátria, seja por tratados internacionais de direitos

humanos. Por outro lado, urge aos cidadãos condições pecuniárias mínimas e

13 Op. Cit., p. 89.

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alguma consciência jurídica a fim de que lhes seja possível fazer valer seus direitos,

o que lhes viabiliza a garantia constitucional em pauta.

Por fim, ao governo caberiam medidas sociais e econômicas capazes de

erradicar ou pelo menos reduzir os níveis de pobreza, implementar programas

educativos de acesso ao conhecimento do direito e desenvolver projetos com fins de

reestruturação do sistema judicial que permita uma real celeridade na outorga da

prestação jurisdicional.

2.1.2. Dimensões do acesso à justiça

Para que os pressupostos escrutinados sejam passíveis de aplicação eficaz,

os juristas discorrem acerca de certas dimensões que não poderiam ser divorciadas

do mote. Segundo SILVA NETO14, as dimensões atuais do acesso à justiça, podem

ser divididas da seguinte maneira:

I. Dimensão processual

II. Dimensão sociológica

III. Dimensão política

A dimensão processual trata da adequação da lei processual à demanda por

serviços judiciários. Considera-se aqui que o processo é o instrumento pelo qual o

cidadão obtém, de modo coativo, a tutela do seu interesse, sujeitando o de outrem.

Assim sendo, o processo figura como um dado idealizador de direitos individuais,

sendo todavia passível de deparar-se com barreiras opostas ao acesso à justiça, ao

que se devem envidar esforços para eliminar tais impedimentos.

Por outro lado, à dimensão sociológica competem os exames das ocorrências

impeditivas no meio social do acesso ao Poder Judiciário pelos cidadãos de modo

particular os denominados hipossuficientes. Nesta linha de compreensão, tem-se a

condição existencial como suficiente per se para inviabilizar um efetivo acesso à

justiça. Aqui, o tema concerne à condição do indivíduo enquanto integrado a

determinada realidade social, realidade esta inibidora do aceso ao Judiciário.

14 SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2006, p 72.

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Por final, a dimensão política enfoca a compreensão do acesso à justiça como

acesso à ordem jurídica justa. Nesta, há ainda a premência de tornar o acesso à

justiça como a expressão sinônima de acesso a esta ordem jurídica justa.

LIMA FILHO15, a respeito de tais dimensões, esclarece que:

“O acesso à justiça possui, pois, uma dupla dimensão: constitui um direito fundamental do homem e, ao mesmo tempo, uma garantia à realização efetiva dos demais direitos. Como direito-garantia, seu fim último será sempre o de realização da justiça e, por isso mesmo, informado pelo princípio da igualdade. Entretanto, para que o acesso à justiça possa ser constituir em garantia efetiva, concreta, dos direitos fundamentais do homem, não é suficiente expandir todos seus postulados no ordenamento jurídico. Ao contrário, é mister que se traduza em uma resposta concreta do Estado, tornando-a real e não aparente ou ilusória. É esse aspecto – realização concreta das garantias – que diferem as oportunidades de efetivo acesso nos diversos momentos históricos e ordenamentos jurídicos. Muito embora os ordenamentos jurídicos possam conter previsões formais – como a Constituição Brasileira – o acesso efetivo à justiça nesses ordenamentos pode ser e quase sempre o é, inibido por obstáculos, no momento de sua conversão prática. Essa visão — bifrontal — do acesso à justiça pode sofrer inibição sob dupla forma: pela não inclusão no ordenamento jurídico de norma conferidora desse direito, ou, ainda, embora prescrita a garantia, não são criadas as condições materiais ou oferecidos os instrumentos e mecanismos capazes de torná-la efetiva.”

2.1.3. Aspectos do acesso à justiça

Os aspectos que concernem o acesso à justiça, consoante a doutrina vigente,

podem ser divididos de acordo dom a matéria em apreço. Assim sendo, o acesso à

justiça consta dos aspectos abaixo relacionados:

I. Aspecto constitucional

II. Aspecto processual

O alicerce do acesso à justiça e conseqüentemente a uma prestação

jurisdicional efetiva é o princípio do Due Process Of Law, que, na verdade, resta

para além de reles princípio posto, já que consiste em uma compilação de todos os

princípios e garantias processuais. Isto ocorre porque certas garantias não se

aplicam isoladamente e sim de forma multidisciplinar, interativa e recíproca. Daí, sua

magnânima importância no escopo dos direitos humanos e destarte para efetividade

15 Op. Cit. p.56.

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do processo. Entretanto, a ponte para que o cidadão alce tais direitos é o eficaz

acesso à justiça, idéia abarcada por CAPELLETTI16:

“O movimento fez-se no sentido de reconhecer os direitos e deveres sociais dos governos, comunidades, associações e indivíduos. Esses novos Direitos Humanos exemplificados pelo preâmbulo da Carta Magna Francesa de 1948, são, antes de tudo, os necessários para tornar efetivos, ou seja, realmente acessíveis a todos, os direitos antes proclamados. Entre esses direitos garantidos nas modernas Constituições estão os direitos ao trabalho, saúde, à segurança material e à educação. Tornou-se lugar comum observar que a atuação positiva do Estado é necessária para assegurar o gozo de todos os direitos sociais básicos.”

CAPELLETTI prevê possíveis contratempos ao sucesso do ideário do acesso à

justiça especificamente no caso de que na aplicação da lei ao problema concreto o

magistrado não deveria se apartar do princípio fundamental que lhe impõe assegurar

a igualdade efetiva.

Dessa maneira é que a epigrafada dimensão constitucional faz-se forçosa para

que o julgador (ao julgar) o faça de modo razoável e imparcial, utilizando-se de

pressupostos de validade de normas inclusive infraconstitucionais, ponderando com

proporcionalidade e sanando plausíveis conflitos entre normas e então estará o

aplicador da lei solucionando o evento em apreço de modo ajustado.

Um aspecto a ser grifado é que o acesso à justiça, enquanto movimento

intelectual alterou o papel do juiz, de maneira que acentuou sua função social no

sentido de que passaria a fixar metas em conexão com princípios constitucionais,

juntamente com um planejamento programático de ação com vistas para o futuro,

pois diante de um acesso universalizado à justiça, a competência do juiz seria a

interpretação dos preceitos constitucionais consagrados nos direitos fundamentais

de modo a verificar sua efetiva e imediata aplicação aos casos concretos.

A obra de CANOTILHO17 permite assinalar algumas peculiaridades

proeminentes no que diz respeito a estes princípios. Sua publicação, logicamente,

concerne o sistema jurídico de Portugal, o qual elege o direito democrático em que o

autor apresenta um sistema de regras e princípios, pois as normas tanto podem

revelar-se sob a forma de princípios como sob sua forma de regras.

Em sua visão, os princípios seriam “multifuncionais” e desempenhariam uma

função argumentativa permitindo denotar uma ratio legis de uma disposição e ao 16 Op. Cit, p. 76. 17 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2002.

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mesmo tempo a função de revelar normas não expressas pelo legislador, integrando

e complementando o direito.

Ademais as regras e os princípios corresponderiam a espécies distintas de

normas, dado que os princípios possuem vários critérios:

a) grau de abstração: os princípios possuem um elevado grau de

abstração, enquanto as regras um reduzido grau;

b) grau de determinabilidade: na aplicação ao caso concreto – os

princípios por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações

concretizadoras , enquanto as regras possuem aplicação direta;

c) caráter de fundamentabilidade: no sistema das fontes de direito – os

princípios são normas de natureza ou possuem papel fundamental no ordenamento

jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema da fontes (como por exemplo os

princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante do sistema jurídico

(como exemplo, o princípio de Estado de Direito);

d) proximidade da idéia de direito: “os princípios são standards

juridicamente vinculantes, radicados nas exigência de justiça ou na idéia de direito.

As regras seriam apenas vinculantes e de caráter funcional;

e) natureza normogenética: os princípios constituem a ratio das regras

jurídicas.

Quanto ao legislador, ele destaca que está vinculado à Constituição e em

razão desta vinculação, não há como admitir que a leitura que se faz das

disposições constantes na legislação infraconstitucional, que regula o mandado de

segurança e a ação popular, por exemplo, possa limitar o exercício efetivo dessas

duas ações constitucionais típicas, pelo patente desrespeito aos princípios da

segurança jurídica e do acesso à justiça.

Para ele, inseridos nos princípios gerais fundamentais (aqueles historicamente

objetivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que

encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional) encontram-

se os princípios processuais (aqueles que tratam da principiologia do processo).

Diante disto, conclui-se que a supremacia e a unidade da Constituição formam uma

exigência coerente e racional do sistema jurídico.

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CALAMANDREI18, outro autor igualmente esclarecedor, dedicou-se a trabalhar

os aspectos processuais e inovou no momento em que indicou não só modalidades

cautelares, mas como também as classificou, porque segundo ele o Estado

Democrático de Direito reclama a pronta resposta dos órgãos jurisdicionais,

conduzindo, cada vez mais, a atividade cautelar do juiz, posto no centro do turbilhão

de conflitos que exigem solução urgente. Esse seria um dos alvos do acesso à

justiça. Vejamos o que é proposto:

Modalidades Cautelares Instrutórias, em que se antecipa a produção

de provas, como no procedimento da vistoria ad perpetuam rei memoriam ou a oitiva

de pessoa que, provavelmente, não poderá aguardar a audiência de instrução;

Modalidades Cautelares Tendentes a garantir a efetividade do próprio

processo, como o arresto e o seqüestro;

Modalidades Cautelares do tipo cauções, como aquela do art. 835 do

Código de Processo Civil, aliás, incompatível com o direito de acesso à jurisdição

nesta época globalizada, ou como as que servem de contracautela, a neutralizar o

risco que a efetivação de outra cautelar possa trazer ao requerido, v.g., o depósito

prévio na ação rescisória; e, finalmente,

Modalidades Cautelares do tipo medidas provisionais, ou antecipatórias

da tutela definitiva, em que se adianta o provimento judicial que se espera ao final da

causa, como, por exemplo, a liminar initio litis na ação possessória e no mandado de

segurança, as antecipações referidas nos arts. 273 e 461 do Código de Processo

Civil, e a prisão preventiva para assegurar a aplicação da lei penal, prevista no art.

312 da lei processual penal.

2.1.4. Fundamentos do acesso à justiça

Assim como os pressupostos e dimensões, os fundamentos do acesso à

justiça constituem fatores indissociáveis e igualmente vitais no que tange à

compreensão mais ajustada do tema. BOBBIO19, a seu turno, propõe que a questão-

chave no que diz respeito aos direitos do homem é a sua proteção, o que não

comporia um problema filosófico e sim político, o que nos remete fatalmente à

18 CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. Vol. 1. Campinas: Bookseller, 1990, p 35. 19 Op. Cit, p. 42.

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dimensão política proposta por Manoel Jorge e Silva Neto. BOBBIO acredita que se

devem buscar, em cada caso concreto, os vários fundamentos possíveis desde que

acompanhados por um estudo das condições dos meios e das situações nas quais

um ou outro direito poderia ser realizado.

Os fundamentos a que BOBBIO se refere constam em vários estudos acerca

do tema e encontram-se divididos em:

I. Fundamentos históricos (documentos internacionais)

II. Fundamentos constitucionais (Constituição Federal de 1988)

A essa busca por fundamentos para o direito social uniram-se as aspirações

oriundas de vários países: o mundo ansiava pelo social. E são estes os fundamentos

históricos que hoje norteiam nossos estudos. ZAVASCKI20, professor da Faculdade

de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em artigo publicado na

Revista da Faculdade, anota as excitantes linhas:

“Um olhar para a história do direito moderno evidencia, com efeito, que no decorrer do século XVIII começou a brotar e ganhar corpo, no mundo ocidental, a idéia dos chamados “direitos fundamentais”, vindo eles a alcançar significado universal com a célebre “Declaração dos Direitos do Homem” da Revolução Francesa. O gênio francês conseguiu sintetizar em seu lema revolucionário, os princípios básicos da dignidade humana: liberdade, igualdade e fraternidade. (...) Assim, o século XIX foi tomado pela normatização do primeiro desses ideais: os direito fundamentais de liberdade, por isso denominados “direitos de primeira geração”. Naquele século, ganharam densidade normativa os direitos civis e políticos, direitos do indivíduo contra o Estado. Quebrou-se a espinha dorsal do Estado absolutista, não intervencionista, garantidor das liberdades individuais, com escassa margem de atuação nas relações sociais. O liberalismo individualista – substrato ideológico dos direitos de primeira geração tinha como princípio político o de que os homens e a sociedade por eles formada têm que realizar diretamente o seu próprio destino. Ao Estado caberia, apenas, deixar as pessoas agirem livremente. Imaginava-se que, rompida a opressão estatal, os direitos de liberdades fariam frutificar uma espécie de harmonia espontânea na convivência sociopolítica. (...) E então, a grande crise do Estado liberal em fins do século passado, fez a humanidade dar um passo adiante. Sem renunciar aos direitos de liberdade, conquistados a duras penas, sem voltar atrás no longo caminho percorrido, o novo século já nasceu iluminado pela necessidade de implementar os direitos de igualdade. A doutrina social da igreja, as filosofias igualitárias e humanistas, a Constituição Mexicana de 1917, a Alemã de 1919, foram marcos importantíssimos na configuração de uma “segunda geração” de direitos fundamentais: os chamados direitos econômicos e sociais. Operou-se, na verdade, um fenômeno de expansão qualitativa dos próprios direitos

20 ZAVASCKI, Teori Albino. Direitos Fundamentais de Terceira Geração. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Síntese, v. 15, 1998, p. 227-232.

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de liberdade. Já não se buscava, apenas, assegurar a liberdade do indivíduo em face do Estado, mas, mais que isso, procuravam-se os meios aptos para assegurar a liberdade do indivíduo em face dos demais indivíduos. Em outras palavras, os direitos sociais e econômicos entraram na história do constitucionalismo pela indeclinável obrigação ética e jurídica de serem estabelecidos padrões mínimos de uma sociedade igualitária. (...) O esgotamento do modelo, todavia, faz com que, mais uma vez, os homens e as mulheres do nosso tempo sejam chamados a dar um novo e importante passo à frente. (...) Nascem, assim, neste limiar de um novo século, os chamados direitos de “terceira geração”, inspirados nos valores da solidariedade. (...) O século XXI há de ser marcado, necessariamente, pelo signo da fraternidade. O Estado do futuro não deverá ser apenas um Estado Liberal, nem apenas um Estado do social: precisará ser um Estado da solidariedade entre os homens.”

O fundamento constitucional para o princípio do acesso à justiça (ou acesso ao

Poder Judiciário – sem a concreta distinção material-formal) pode ser visualizado no

art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, o qual prevê que “a lei não excluirá da

apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Ela assinala que já

existem inclusive algumas decisões no sentido do acesso à justiça possuir relação

intrínseca com o princípio do devido processo legal (previsto expressamente no

inciso LV, do art. 5º da Constituição Federal), corroborando a afirmação do

entrelaçamento dos princípios constitucionais, expressos ou implícitos, na esteira do

entendimento exarado por PORTANOVA21.

2.1.5. Sentidos do acesso à justiça

A este termo acesso à justiça, são atribuídos doutrinariamente dois sentidos:

I. Sentido judiciário

II. Sentido axiológico

O sentido judiciário consiste em atribuir ao vocábulo justiça o mesmo sentido que

o de Poder Judiciário, tornando sinônimas as expressões acesso à justiça e o

acesso ao Poder Judiciário. Já o sentido axiológico, compreende o acesso à justiça

como o acesso a uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o

ser humano. Na visão do autor, o sentido axiológico seria o mais apropriado, por ser

mais amplo e, portanto, absorvente do primeiro. Aliás, este sentido é o mais

adequado ao enfoque que se pretende atribuir ao presente trabalho. 21 PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p 98.

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2.1.6. Conteúdos do acesso à justiça

Para os doutrinadores, o acesso à justiça traz em seu bojo conteúdos que se

desdobram em um numeroso rol de garantias e princípios indispensáveis à sua

eficácia, tais como:

Devido processo legal;

Contraditório;

Ampla defesa;

Imparcialidade do juiz;

Duração razoável do processo;

Inafastabilidade do controle jurisdicional; e

Assistência jurídica aos hipossuficientes

Na Constituição de 1988, o princípio do acesso à justiça consta de dois momentos:

1º) Princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art.5º, XXXV)

2º) Assistência jurídica aos hipossuficientes (art. 5º, LXXIV)

PINTO22 corrobora, explicando que : “A garantia constitucional da assistência jurídica aos hipossuficientes tem por escopo o princípio da igualdade, de forma a dotar os desiguais economicamente de idênticas condições para o pleito em juízo.” (In: A Garantia Constitucional da Assistência Judiciária Estatal. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais”

A esse respeito, vale mencionar que o próprio Supremo Tribunal Federal

asseverou que a garantia da assistência jurídica integral prevista na Constituição

não revoga a garantia de gratuidade da justiça prevista na Lei nº 1.060/50. Para sua

obtenção, bastaria a declaração do hipossuficiente de que a sua situação econômica

não permite vir a juízo sem prejuízo de seu sustento ou do sustento da sua família. A

visão do STF sinalizou que a norma infraconstitucional põe-se, além disso, dentro no

espírito da Constituição, que aspira por que seja facilitado o acesso de todos à

22 PINTO, Robson Flores, In: A Garantia Constitucional da Assistência Judiciária Estatal. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 03, p. 101.

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Justiça. (STF, RE 205.746, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 26/11/96, DJ

de 28/2/97.)

2.1.7. Questionamentos possíveis acerca do acesso à justiça

Para conceber o acesso à justiça a partir de seus postulados, é imperativo que

se compreenda o que o termo postulado traz em seu âmago. Filosoficamente,

postulado é um axioma, isto é, uma proposição que não é provada ou demonstrada

e é considerada como óbvia ou como um consenso inicial necessário para a

construção ou aceitação de uma teoria. Por essa razão, é aceito como verdade e

serve como ponto inicial para dedução e inferência de outras verdades.

Visto por este ângulo, os postulados do acesso à justiça estão presentes nas

proposições de acadêmicos e pesquisadores jurídicos, e objetivam sugerir iniciativas

admissíveis no âmbito jurisdicional na forma de projetos e programas

implementáveis no sistema jurídico.

Trabalhar com qualquer tópico jurídico em um nível social requer uma série de

questionamentos, propostas para uma reflexão no intuito de que no futuro sejam

respondidas ou sanadas, seja por meio de soluções sociais ou remédios legais.

Abaixo seguem algumas afirmativas possíveis, extraídas do saber de

DINAMARCO23

O acesso à justiça é requisito fundamental dos direitos humanos;

O cidadão tem de fazer-se ouvir em juízo;

É preciso conhecer tal direito;

O acesso à justiça é exercício da cidadania;

As mazelas do processo não podem provocar justiça tarda;

A problematização social deve ser um assunto a ser considerado;

O problema não reside na elaboração, mas na efetivação dos direitos sociais;

Desigualdades econômica e social devem ser objeto de preocupações.

23 DINAMARCO, Cândido Rangel. Nasce um novo processo civil. In: Teixeira, Sálvio de Figueiredo (coord). A

reforma do Código Civil. São Paulo. SP. Saraiva, 1996.

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2.2. CRONOLOGIA E DESENVOLVIMENTO DO ACESSO À JUSTIÇA

O acesso à justiça é um preceito nascido na Europa, sendo relativamente

recente em nosso ordenamento jurídico, como veremos mais adiante. Para que se

possa compreender satisfatoriamente o tópico, cabe uma breve análise de sua

cronologia e desenvolvimento no mundo e no Brasil.

2.2.1. Origens do acesso à justiça

O princípio constitucional do acesso à justiça surgiu nas décadas de 60 e 70,

na forma de um movimento intelectual (Access-to-justice movement) cujo plano

acadêmico foi o Florence Project, coordenado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth.

Este movimento dissipou-se por vários países da Europa e da América, e tinha por

desígnio expandir para toda a população os direitos básicos, aos quais ela ainda não

tinha acesso.

O movimento abordou o assunto sob uma perspectiva inovadora, como a

representação evolutiva do acesso à justiça por meio de “ondas”24:

Primeira Onda: Assistência Judiciária para os pobres

Segunda Onda: Representação dos interesses difusos

Terceira Onda: Acesso à representação em juízo

A primeira onda constitui a assistência jurídica e várias soluções práticas para

os problemas de acesso à Justiça, nas palavras de Mauro Capelletti,

passavam justamente pela a assistência judiciária para os pobres. A primeira

onda reconhece a diversidade do ser humano e a opção pelos pobres

reconhece que o acesso à justiça não é efetivamente igual para todos, por

serem enormes as desigualdades econômicas, sociais, culturais, regionais,

etárias etc.

Esta primeira onda constituiria todo o tipo de pobreza: econômica, social,

cultural e jurídica. O objetivo era a superação dos obstáculos decorrentes da

24 Note-se que a figura utilizada foi muito feliz, se considerarmos que uma boa parcela da energia interna de uma onda retorna em sentido oposto para formar novas ondas.

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pobreza, mas para Capelletti este problema não só deixou de ser solucionado, como

também se intensificou. Ele chama à atenção para o fato de que as liberdades civis

e políticas tradicionais tem sido uma promessa fútil, na verdade, um engodo para

aqueles que, por motivos econômicos, sociais e culturais, de fato não são capazes

de atingir tais liberdades e tirar proveito delas25.

CARREIRA ALVIM26, acerca do tema, entende que :

“A primeira onda busca os meios de facilitar o acesso das classes menos favorecidas à Justiça, destrinçando os diversos modelos de prestação de assistência judiciária aos necessitados. Analisam os idealizadores das ondas de acesso à Justiça o Sistema Judicare, que resultou das reformas levadas a efeito pela Áustria, Inglaterra, Holanda, França e Alemanha, sistema através do qual a assistência judiciária é estabelecida como um direito para todas as pessoas que se enquadrem nos termos da lei, em que os advogados particulares são pagos pelo Estado. A finalidade desse sistema é proporcionar aos litigantes de baixa renda a mesma representação (em juízo) que teriam se pudessem pagar um advogado. Analisam, também, o modelo de assistência judiciária com advogados remunerados pelos cofres públicos, com um objetivo diverso do sistema judicare, o que reflete sua origem no Programa de Serviços Jurídicos do Office of Economic Opportunity, de 1965, em que os serviços jurídicos são prestados por “escritórios de vizinhança”, atendidos por advogados pagos pelo governo e encarregados de promover os interesses dos pobres, enquanto classe. As medidas adotadas nos diversos países têm contribuído para melhorar os sistemas de assistência judiciária, fazendo ceder as barreiras de acesso à Justiça…”

A segunda onda concerne à falta de proteção aos direitos difusos em virtude

de uma série de problemas estruturais políticos e econômicos (fraude, corrupção,

adulteração, poluição, etc.), mas também aponta para as reformas necessárias para

legitimação da tutela dos interesses difusos. A este respeito, Carreira Alvim27

entende que :

“Esta onda centra o foco de preocupação especificamente nos interesses difusos, forçando a reflexão sobre noções básicas do processo civil e sobre o papel dos tribunais nos diversos sistemas jurídicos. Numa primeira percepção, são chamados de interesses difusos os “interesses coletivos ou grupais”, diversos daquele interesse dos pobres, que caracteriza a primeira onda. A preocupação com a segunda onda resultou da incapacidade de o processo civil tradicional, de cunho individualista, servir para a proteção dos direitos ou interesses difusos. Essa nova percepção do direito pôs em relevo a transformação do papel do juiz, no processo, e de conceitos básicos como a ‘citação’ e o ‘direito de defesa’, na medida em que os titulares de direitos difusos, não podendo comparecer a juízo — por

25 Op. Cit. P. 51 26 ALVIM, J. E. Carreira. Justiça: acesso e descesso. Teresina, ano 7, n. 65, maio 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4078>. Acesso em: 10 nov. 2007. 27 Op. Cit. .

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exemplo, todos os interessados na manutenção da qualidade do ar, numa determinada região — é preciso que haja um ‘representante adequado’ para agir em benefício da coletividade. A decisão deve, em tais casos, ser efetiva, alcançando todos os membros do grupo, ainda que não tenham participado individualmente do processo. Também o conceito de coisa julgada deve ajustar-se a essa nova realidade, de modo a garantir a eficácia temporal dos interesses e direitos difusos. Essa onda permitiu a mudança de postura do processo civil, que, de uma visão individualista, funde-se numa concepção social e coletiva, como forma de assegurar a realização dos ‘direitos públicos’ relativos a interesses difusos. A melhor solução para garantir a efetividade da tutela dos direitos e interesses difusos, é, sem dúvida, a mista (ou pluralista), em que a iniciativa privada se conjuga com a atividade pública, neutralizando inclusive eventuais influências políticas que possam comprometer a eficiência da tutela de interesses que pertençam a toda a sociedade ou a determinado segmento dela.”

A terceira onda representa a dificuldade da reforma com relação à advocacia,

judicial ou extrajudicial, por advogados públicos ou particulares. O mote se relaciona

a uma representação judicial melhor trabalhada, capaz de levar em conta que

existem direitos que exigem novos mecanismos procedimentais. Destarte, seu

objetivo é a racionalização do processo judicial, com a investigação de novos

mecanismos de pacificação de controvérsias diversas do Judiciário. Este

posicionamento traduz-se em múltiplas tentativas que visam à obtenção de

finalidades variadas, dentre as quais podemos citar:

a) procedimentos mais acessíveis, simples e racionais, mais econômicos,

eficientes e adequados à solução de certos tipos de conflitos;

b) promoção de uma espécie de justiça coexistencial, baseada na conciliação e

no critério de equidade social distributiva;

c) criação de formas de justiça mais acessível e participativa, atraindo para ela

membros dos grupos sociais e buscando a superação da excessiva

burocratização.

CARREIRA ALVIM28 também apresenta uma perspectiva interessante acerca

desta onda: “Essa onda encoraja a exploração de uma ampla variedade de reformas, incluindo alterações das formas de procedimento, mudanças na estrutura dos tribunais ou a criação de novos tribunais, o uso de pessoas leigas, como juízes e como defensores, modificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solução, e a utilização de mecanismos privados ou informais de solução dos litígios. Esse enfoque não receia inovações radicais e compreensivas, que vão muito além da

28 Op. Cit..

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esfera de representação judicial. A reforma dos procedimentos judiciais é de suma importância, para modificar a engrenagem judiciária, de modo a adotar procedimentos simples para demandas simples, e procedimentos complexos para demandas complexas. Além disso, o procedimento deve contar com a presença de leigos com atividade de auxílio dos juízes, não apenas na movimentação do processo (juntada, vista, etc.), mas da própria instrução, que toma a maior parte do tempo do juiz. (13) Os princípios configuradores da oralidade, dentre os quais o da identidade física, que exige a presença física do juiz no comando das audiências, devem ser repensados, para que entrem em cena os servidores “instrutores”. A partir daí, poderia cada juízo ter a seu serviço um certo número de servidores especializados na instrução de processos, notadamente na tomada de depoimentos de partes e testemunhas, reservando-se ao juiz o poder de reinquiri-las, caso entenda necessário para o esclarecimento dos fatos.”

CAPPELLETTI tinha plena consciência de que o acesso à justiça enfrenta

vários obstáculos, dentre os quais a falta de conhecimento dos direitos por parte do

cidadão, agravada pela falta de informação sobre como ajuizar uma demanda.

2.2.2. O Projeto Florença

O Florence Project é uma obra acadêmica, conforme mencionado

anteriormente, elaborada e publicada nos anos 70, que se traduz num documento

precursor e vital no que tange o movimento de acesso à justiça. Em termos de

literatura jurídico-processual, a obra é tão marcante que vários países da Europa e

da América, inclusive a Central e a do Sul a ela aderiram.

Dentre os países latino-americanos estavam o Chile, a Colômbia, o México e

o Uruguai. Lamentavelmente, o Brasil não se fez representar neste projeto, do que

resultou um retardo na publicação da versão resumida do Florence Project em solo

pátrio (1988). A ausência privou o país de importantes pesquisas e experiências no

campo da justiça.

RAMOS29 comentou o “Projeto de Florença” sob o título de Acess to Justice:

the worldwide movement to make rights effective:

“Nenhum aspecto de nossos sistemas jurídicos modernos é imune à crítica. Cada vez mais se pergunta como, a que preço e em benefício de quem esses sistemas de fato funcionam. Essa indagação fundamental que já produz inquietação em muitos advogados, juízes e juristas, torna-se mais perturbadora em razão de uma invasão sem precedentes dos tradicionais domínios do Direito por sociólogos, antropólogos, economistas, cientistas políticos e psicólogos, entre outros. Não devemos, no entanto, resistir a

29 RAMOS, Glauco Gumerato. Revista dos Tribunais. São Paulo. nº 765, p. 50/51.

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nossos invasores; ao contrário, devemos respeitar seus enfoques e reagir a eles de forma criativa. Através da revolução do atual modo de funcionamento de nossos sistemas jurídicos, os críticos oriundos das outras ciências podem, na realidade, ser nossos aliados na atual fase de uma longa baralha histórica — a luta pelo ‘acesso à justiça’. É essa luta, tal como se reflete nos modernos sistemas jurídicos, que constitui o ponto focal deste Relatório Geral do projeto comparativo de Acesso à Justiça que o produziu.”

2.2.3. Evolução do acesso à justiça

Nos séculos XVIII e XIX, o acesso à justiça representava um ideal de proteção

do Estado liberal aos cidadãos, isto é, o direito formal de um indivíduo interpor uma

determinada ação ou dela defender-se. Sob esse prisma, o acesso à justiça

confunde-se com o próprio direito de ação ou direito de defesa, razão pela qual

alguns doutrinadores — dentre os quais, PORTANOVA30 — entendem que:

“[...] o princípio do acesso à justiça, em última análise, informa todos os outros princípios ligados à ação e à defesa: demanda, autonomia de ação, dispositivo, ampla defesa, defesa global, eventualidade, estabilidade objetiva da demanda, estabilidade subjetiva da demanda. [...] é um poder quase absoluto no processo civil, mercê da natureza do direito material a que se visa atuar.”

A questão conceitual da expressão “acesso à justiça” tem duas formas de

interpretação para fins de se chegar a uma definição conceitual: a definição material

e a definição formal, e para isto cita Mauro Cappelletti e Bryant Garth, em que a

expressão em apreço:

“Serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico [...]. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos.”

A autora ainda revela que esse acesso meramente formal corresponde a uma

igualdade também meramente formal e muitas vezes sem efetividade. Ao evoluírem

as relações, naturalmente evoluiu também o Estado, que substituiu sua passividade

por uma atuação mais positiva, visando à asseguração concreta dos direitos sociais

básicos, tais como: trabalho, saúde, educação, etc. Neste prisma, ela afirma que:

30 Op.cit, p. 98-99.

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“acesso à justiça é ‘típico direito prestacional lato sensu’. Por tal razão, não basta afirmar que o acesso à justiça seja tão somente o acesso ao sistema jurídico formal tendo em vista que o simples ‘propiciar o acesso’ nem sempre se coaduna com o ideal de prestação jurisdicional: resultados justos.”

2.3. ACESSO À JUSTIÇA NO ORDENAMENTO PÁTRIO

A partir de 1988, iniciaram-se estudos no Brasil acerca do assunto e

inicialmente pensou-se acesso à justiça como mero direito ou garantia de acesso

aos tribunais, até porque todas as constituições brasileiras enunciaram o princípio de

garantia à via judiciária. Assim, o acesso aos tribunais significaria assegurar o

exercício dos direitos e eleger a justiça como um dos valores supremos da

sociedade e igualmente assegurar a inafastabilidade do controle jurisdicional.

A seguir, brota na esfera catedrática uma controvérsia: seria o acesso em tela

à justiça ou aos direitos? O núcleo da questão repousava no fato de que os cidadãos

não poderiam usufruir a garantia de fazer valer seus direitos perante os tribunais, se

não conhecem a lei nem o limite de seus direitos.

Quanto a isto, o mestre WATANABE31 asseverou:

“(...) o acesso à Justiça não se limita a possibilitar o acesso aos tribunais, mas de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa, a saber: (i) o direito à informação; (ii) o direito à adequação entre a ordem jurídica e a realidade socioeconômica do país; (iii) o direito ao acesso a uma justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo da realização da ordem jurídica justa; (iv) o direito a preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a objetiva tutela dos direitos; (v) o direito à remoção dos obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo a uma justiça que tenha tais características.”

O interesse do Brasil no que concerne o acesso à justiça pode ser sinalizado

no início dos anos 80 bem como explica JUNQUEIRA32:

“Os motivos para o despertar do interesse brasileiro no início dos anos 80 para esta temática, portanto, devem ser procurados não neste movimento internacional de ampliação do acesso à Justiça, mas sim internamente, no processo político e social de abertura política e, em particular, na emergência do movimento social que então se inicia. Invertendo o caminho

31 Op. Cit…p. 131. 32 JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso à Justiça: um olhar retrospectivo. Disponível em: <http://www. cpdoc.fgv.br>.

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clássico da conquista de direitos descrito por Marshall, o caso brasileiro não acompanha o processo analisado por Cappelletti e Garth, a partir da metáfora das três ´ondas’ do ‘acess to justice movement’. Ainda que durante os anos 80 o Brasil, tanto em termos da produção acadêmica, como em termos das mudanças jurídicas, também participe da discussão sobre direitos coletivos e sobre a informalização das agências de resolução de conflitos, aqui estas discussões são provocadas não pela crise do Estado de bem-estar social, como acontecia nos países centrais, mas sim pela exclusão da grande maioria da população de direitos sociais básicos, entre os quais o direito à moradia e à saúde.”

Muito embora os doutrinadores começassem a trabalhar elaborações

intelectuais acerca do acesso à justiça, havia uma barreira: o processo de

aperfeiçoamento do sistema judiciário como um todo ainda não havia começado e

mesmo hoje parece ainda não estar preparado, como bem observou

FIGUEIREDO33:

“A propósito, o sistema judicial brasileiro não se encontra estruturado para garantir os direitos expressos na Constituição, em decorrência de inúmeros fatores e obstáculos limitantes para o acesso à justiça, tais como: (i) fatores econômicos: custas judiciais e custas periciais elevadas para a produção de provas; (ii) fatores sociais: duração excessiva do processo, falta de advogados, juízes e promotores; (iii) fatores culturais: desconhecimento do direito; analfabetismo; ausência de políticas para disseminação do direito; (iv) fatores psicológicos: recusa de envolvimento com a justiça; medo do Poder Judiciário; solução dos conflitos por conta própria; (v) fatores legais- legislação com excesso de recursos e chicanas protelatórias; lentidão na outorga da prestação jurisdicional.”

E igualmente LIMA FILHO34: “Tudo isso, a meu sentir leva, na prática, a uma negação da aplicação do princípio do livre acesso à justiça, pois não se pode dizer que este seja concretizado com o simples movimentar da jurisdição, se no campo da realidade a decisão, quando proferida após vários anos de desgastes para as partes e despesas para o contribuinte, não consegue fazer justiça a quem realmente precisa.”

Outro fator relevante repousa no mote das custas processuais. A doutrina

identifica no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal o grande marco deste anseio,

já que a idéia central consiste em que qualquer pessoa, mediante lesão ou simples

ameaça de lesão ao direito, pode provocar a atuação do Judiciário.

33 FIGUEIREDO, Alcio Manoel de Sousa. Acesso à justiça: uma visão sócioeconômica. In: Revista Juris Síntese, n 31. São Paulo: Síntese, set-out 2001,p 123. 34 LIMA FILHO, Francisco. Os movimentos de acesso à justiça nos diferentes períodos históricos. In: Júris Síntese, n 26. São Paulo: Síntese, nov- dez 2000, p 74.

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Além disso, temos a gratuidade judicial, que é igualmente prevista na

Constituição35 e no ordenamento infraconstitucional36, mas que ainda não logrou a

ampla inserção de todas as camadas sociais nos serviços judiciais, mormente a

camada mais pobre, situação que põe em xeque o princípio da isonomia e a

pretensão de pleno acesso. Ambas as circunstâncias, interferem na efetividade do

acesso à justiça e são pontos amplamente discutidos e problematizados.

A eficácia do princípio é considerada negativa em nosso país, muito em

decorrência da frágil estrutura judicial e, sobretudo, devido ao fator geopolítico.

Diferentemente de muitos países que adotam este princípio com notada efetividade,

o Brasil possuem 26 Estados, um Distrito Federal e inúmeros municípios, cada qual

com suas legislações, muitas vezes divergentes das realidades e expectativas sócio-

culturais de seus habitantes.

2.3.1. Eficácia na sociedade hodierna

Nosso legislador intentou facilitar o acesso da sociedade à justiça com a

promulgação de várias leis que aproximassem a Justiça do cidadão, dentre as quais

podemos citar algumas importantes iniciativas:

Lei da Ação Civil Pública (Lei nº. 7.347/1985);

Estatuto da Criança e do adolescente (Lei nº.8.069/1990);

Código de Defesa do Consumidor, que criou nova ação coletiva para a tutela

dos interesses ou direitos individuais homogêneos (Lei nº. 8.078/1990);

Lei de Arbitragem (Lei nº. 9.307/1996);

Lei nº. 9.958/2000, que dispôs sobre as Comissões de Conciliação Prévia,

permitindo a execução de título executivo extrajudicial na Justiça do Trabalho;

Estatuto do Idoso (Lei nº. 10.741/2003);

Lei nº. 10.173/2001, que dá prioridade de tramitação aos procedimentos

judiciais em que figure como parte pessoa com idade igual ou superior a

sessenta e cinco anos; e

Lei Complementar nº.123/2006, que institui o Estatuto Nacional da

Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, estimulando o acesso aos

35 Constituição Fededral, art. 5º, LXXIV. 36 Lei nº. 1.060/1950

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Juizados Especiais e a utilização dos institutos de conciliação prévia,

mediação e arbitragem.

Além dessas, igualmente marcante foi o combate à morosidade e à ineficiência

do acesso à justiça, por intermédio da Lei nº.9.099/95, que criou os Juizados

Especiais Estaduais e Federais, Cíveis e Criminais, na tentativa de solucionar a

questão, bem como a implementação de programas de agilização processual (como

o e-process) e a aceitação de alternativas diferenciadas que pudessem aumentar a

eficiência e transparência da máquina judiciária.

2.3.2. O advento da Emenda Constitucional 45

A Emenda Constitucional nº 45/2004 trouxe algumas inovações ao

ordenamento jurídico nacional, haja vista que aditou na Constituição Federal a

possibilidade de os Tribunais Regionais Federais instituírem a chamada justiça

itinerante, por meio da realização de audiências e demais funções da atividade

jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de

equipamentos públicos e comunitários37, assim como autorizou o seu funcionamento

descentralizado, por meio de Câmaras regionais, com o fito de assegurar o pleno

acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo38. Tais faculdades

foram também estendidas aos Tribunais Estaduais39.

Além dessas inovações esta Emenda Constitucional criou uma nova cláusula

pétrea, ao inserir por meio do inciso LXXVIII no rol do art. 5º. Com isto agregaram-se

ao princípio do acesso à justiça outros elementos aptos a proporcionar um processo

cuja duração seja razoável através de meios para uma tramitação célere.

Todas estas inovações decerto trouxeram consideráveis mudanças no que se

relaciona ao acesso coletivo da sociedade, com garantia de proteção aos direitos

difusos, coletivos e individuais. E isto, indubitavelmente tornou mais simples o

acesso da população menos favorecida ou esclarecida ao Poder Judiciário, ademais

de permitir que a sociedade civil (associações e sindicatos) em conjunto com os

37 Constituição Fededral, art. 107, §2º 38 Constituição Fededral, art. 107, §3º 39 Constituição Fededral, art. 125, §§ 6º e 7º

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órgãos públicos lograsse legitimidade para propor das ações de interesses difusos,

coletivos e individuais.

Desafortunadamente, o que se observa atualmente é que as barreiras

persistem, e por vezes acarretam danos aos autores das ações têm o seu processo

extinto, sem ter o seu direito atendido; por razões diversas que vão desde a falta de

informação e/ ou orientação acerca do procedimento à falta de conhecimento da lei

e/ou do próprio direito.

2.4. O CASO ESPECIALÍSSIMO DO ACESSO À JUSTIÇA PELOS INTEGRANTES

DAS FORÇAS ARMADAS

A atividade militar e seu tratamento constitucional, no que tange ao acesso à

justiça compõem foco de exame nos capítulos que se seguem. Neste momento,

apenas sugerimos alguns pontos com a finalidade de suscitar reflexões e debates:

Qual a função das Forças Armadas segundo a Constituição de 1988?

Que peculiaridades encerram a atividade militar no Brasil?

Qual o papel dos princípios constitucionais no cotidiano do pessoal militar?

Como superar eventuais conflitos entre os preceitos constitucionais e os

princípios informativos da vida na caserna?

Como se processa o acesso à justiça na esfera militar, ainda que em sentido

axiológico?

A especificidade militar constituiria uma exceção, em algum nível, ao acesso à

justiça?

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3 - O MODELO CONSTITUCIONAL DE FORÇAS ARMADAS

3.1. UM MODELO HISTORICAMENTE VOLTADO PARA A SEGURANÇA E A

DEFESA

A Teoria Geral do Estado triparte as funções do Estado em legislativa, judicial

e executiva, esta última subdividida em funções de governo e de administração. Esta

classificação especializa as funções estatais em razão do vínculo típico que mantêm

com cada um dos Poderes orgânicos e fundamenta-se na evidência de que o Estado

é uma instituição que tem o poder de editar normas para disciplinar o

comportamento de seus membros, assim como legislar para sua própria

sobrevivência, fazendo-se preservar frente à eventuais ameaças internas ou

externas. A razão de ser do Estado é, afinal, a segurança da comunidade que o

integra, que é condição da segurança individual.

Historicamente, as nossas Constituições sempre manifestaram uma grande

preocupação com o tema da segurança, em estreita vinculação com os imbricados

conceitos de soberania e independência, senão vejamos.

No período monárquico, a Constituição Política do Imperio do Brazil já

dispunha:

“Art. 145. Todos os Brazileiros são obrigados a pegar em armas, para sustentar a Independencia, e integridade do Imperio, e defendel-o dos seus inimigos externos, ou internos. Art. 148. Ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar, e Terra, como bem lhe parecer conveniente á Segurança, e defesa do Imperio.”

A primeira Constituição republicana de 1891, com forte influência de Rui

Barbosa, assim se posicionava quanto ao tema:

“Art 14 - As forças de terra e mar são instituições nacionais permanentes, destinadas à defesa da Pátria no exterior e à manutenção das leis no interior Art 48 - Compete privativamente ao Presidente da República: 3º) exercer ou designar quem deva exercer o comando supremo das forças de terra e mar dos Estados Unidos do Brasil, quando forem chamadas às armas em defesa interna ou externa da União;”

Nessa mesma esteira, a prematuramente extinta Constituição de 1934, inicia o

período pós-República Velha, assim tratando do tema:

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Art 162 - As forças armadas são instituições nacionais permanentes, e, dentro da lei, essencialmente obedientes aos seus superiores hierárquicos. Destinam-se a defender a Pátria e garantir os Poderes constitucionais, e, ordem e a lei.

A Constituição de 1937, chamada de “polaca” por inspirar-se na Constituição

da Polônia, foi outorgada por Getulio Vargas, e não votada pelo Congresso

Nacional, por ele mesmo fechado. Com ela, inaugura-se no Brasil o período

conhecido por “Estado Novo”, inovando-se ao subordinar as Forças Armadas à

autoridade do Presidente da República, com o afastamento da participação do

Parlamento, nos seguintes termos:

“Art 161 - As forças armadas são instituições nacionais permanentes, organizadas sobre a base da disciplina hierárquica e da fiel obediência à autoridade do Presidente da República. Art 166 - Em caso de ameaça externa ou iminência de perturbações internas ou existências de concerto, plano ou conspiração, tendente a perturbar a paz pública ou pôr em perigo a estrutura das instituições, a segurança do Estado ou dos cidadãos, poderá o Presidente da República declarar em todo o território do Pais, ou na porção do território particularmente ameaçado, o estado de emergência. Desde que se torne necessário o emprego das forças armadas para a defesa do Estado, o Presidente da República declarará em todo o território nacional ou em parte dele, o estado de guerra. Parágrafo único - Para nenhum desses atos será necessária a autorização do Parlamento nacional, nem este poderá suspender o estado de emergência ou o estado de guerra declarado pelo Presidente da República.”

O período de redemocratização que inspirou a Constituição de 1946 manteve

a orientação centralizadora do comando na figura do Presidente da República, mas

inseriu sua autoridade “dentro dos limites da lei”:

“Art 176 - As forças armadas, constituídas essencialmente pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei. Art 177 - Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem.”

A Constituição de 1967, outorgada pelo Poder Executivo, retoma a idéia de

vincular a atuação das Forças Armadas a uma missão constitucional, nos termos

seguintes: “Art 92 - As forças armadas, constituídas pela Marinha de Guerra, Exército e Aeronáutica Militar, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei. § 1º - Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os Poderes constituídos, a lei e a ordem.”

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A Constituição de 1988 ampliou a orientação trazida pela Constituição de

1946. Manteve o prestígio dos aspectos de segurança e defesa, porém vinculou as

Forças Armadas à defesa das instituições democráticas, assim:

“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. § 1º - Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.(...)”

Em cumprimento ao comando expresso no § 1º, do art. 142 da Constituição

Federal, somente em 1991 foi aprovada a primeira Lei de Preparo e Emprego40, que

estabelecia as normas gerais a serem adotadas na organização, preparo e emprego

das Forças Armadas.

Desde 1999, por força da criação do Ministério da Defesa, encontra-se em

vigor a nova LPE41, que reorganizou o esquema de subordinação das Forças

Armadas. No novo modelo, os antigos Ministérios da Marinha, Exército e

Aeronáutica foram transformados em três Comandos singulares (art. 20),

subordinados ao Ministro da Defesa (art. 3º), a quem caberia — com a assessoria de

um Conselho Militar de Defesa42 — o exercício da direção superior das Forças

Armadas (art. 9º). À nova realidade, seguiu-se a Emenda Constitucional nº 23, de

2.9.1999, recompondo o Conselho de Defesa Nacional, de forma a incluir o Ministro

da Defesa e os Comandantes das Forças singulares entre os membros natos

listados no art. 91 da Constituição Federal.

Nos termos da LPE, a missão constitucional das Forças Armadas é cumprida

pelo desenvolvimento de atividades-fim e atividades-meio. As primeiras, dizem

respeito ao emprego operacional das Forças em atividades bélicas e o preparo

correspondente a tal fim. Aí se incluem a instrução militar, as atividades de ensino,

os exercícios de comando, as manobras e as operações militares propriamente

ditas, seja no âmbito de cada Força, seja em ações conjuntas. A seu turno, as

40 Lei Complementar nº 69, de 23 de julho de 1991. 41 Lei Complementar nº 97, de 9.6.1999, alterada pela Lei Complementar nº117, de 2 de setembro de 2004. 42 Composto pelos três Comandantes de Força e pelo Chefe do Estado-Maior de Defesa, todos nomeados pelo Presidente da República, dentre Oficiais-Generais do último posto.

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atividades-meio, que reúnem as ações de apoio às Forças, dizem respeito,

basicamente, a atividades administrativas e sua articulação no território nacional.

A esse grupo de atividades, somam-se outras de caráter subsidiário, geral e

particular, elencadas nos art. 16 a 18 da LPE, a serem cumpridas sem o

comprometimento de sua missão maior. Em estreita vinculação com o

desenvolvimento nacional e com a Defesa Civil, ganham evidência e prestígio nos

dias atuais, pois abrangem os campos social e econômico e dirigem-se à infra-

estrutura de construção, ao transporte, à educação, à saúde, ao apoio à população

civil em áreas carentes, ao apoio nas calamidades públicas e em diversos outros

campos que envolvam situações de caráter emergencial43. A organização e a

estrutura vascularizadas das Forças Armadas propiciam claramente a execução das

atividades-fim, meio e subsidiárias.

A Marinha do Brasil, por exemplo, além das suas atribuições de natureza

puramente militar, atua em áreas diversificadas, não necessariamente ligadas às

operações bélicas, tais como:

a construção naval, para a construção de novas belonaves e a revitalização

das antigas;

o reparo dos meios navais, que mobiliza empresas civis da mesma área de

atuação; e

investimento em programas de pesquisa e de desenvolvimento, inclusive a

busca da capacitação para projetar, construir e operar plantas nucleares para

propulsão marítima.

O Exército Brasileiro, por sua vez, tem presença real e efetiva em todo o

território nacional. É essa onipresença que o tem capacitado a atuar em prol do

desenvolvimento nacional, particularmente nas atividades voltadas à educação, à

saúde, ao transporte e à superação dos desequilíbrios sócio-econômicos regionais.

Os inúmeros cursos profissionalizantes que se realizam nos quartéis, oferecidos aos

recrutas incorporados, as atividades de transporte e distribuição de alimentos às

populações carentes, o apoio às campanhas de vacinação, à construção de açudes, 43 São exemplos de atividades subsidiárias nas Forças Armadas Brasileiras: o Programa Antártico Brasileiro; o serviço de busca e salvamento no mar; a sinalização e cartografia náuticas; o levantamento da plataforma continental brasileira; preparo do pessoal da Marinha Mercante; o trabalho realizado pelos navios-hospitais na Amazônia, no atendimento médico-odontológico às populações ribeirinhas; a construção de açudes, ferrovias e rodovias; a distribuição de alimentos às comunidades carentes; a normatização e controle das atividades relacionadas à navegação aérea e tantas outras.

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ferrovias e rodovias, são, apenas, alguns exemplos do trabalho que o Exército

realiza em proveito da sociedade brasileira e, em particular, em situações de

emergência.

A participação da Força Aérea nesse esforço a fez levar a bandeira e a noção

de nacionalidade aos mais longínquos rincões do país, na condição de um dos mais

importantes agentes de integração nacional, como resultado de suas características

de mobilidade, alcance e flexibilidade. Mais que estar adestrada para o combate, a

Força Aérea Brasileira atua em diversos programas orientados para os objetivos

nacionais definidos pelo Poder Político. Em evidência, aí se incluem as atividades

relativas ao controle do espaço aéreo, o desenvolvimento de trabalhos nas áreas de

ciência e tecnologia, a construção aeronáutica, a gestão de nossos aeroportos e

auxílios à navegação aérea, bem como o planejamento, o desenvolvimento e o

controle de toda a atividade de aviação civil no país, para ficarmos em alguns

exemplos.

As Forças Armadas devem estar, também, preparadas para as iniciativas que

visem à garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. E aí reside — ou

residia, até a aprovação de primeira LPE — um ponto de alta sensibilidade.

De fato, por omissão do Constituinte não foram indicadas as pessoas

legitimadas para representar pelo emprego das Forças Armadas na defesa da lei e

da ordem. Em tese, um prefeito, um Presidente de Câmara de Vereadores, um juiz

de Direito, um Presidente de Assembléia Legislativa ou um Governador, abstraindo

outras autoridades em nível federal, poderia tomar tal iniciativa. Dirimindo a

controvérsia, a partir da primeira LPE firmou-se o entendimento de que a decisão

final sobre o emprego das Forças Armadas seria responsabilidade exclusiva do

Presidente da República, por iniciativa própria ou a pedido de qualquer dos poderes

constitucionais, em suas instâncias máximas44. Resolviam-se as distorções havidas

anteriormente, nas quais o Exército havia sido acionado por um juiz federal.45 Aqui, a

decisão pelo emprego não é condicionada apenas à formalização de um pedido ou à

existência de um quadro institucional crítico, uma vez que demanda, nos termos do

§2º, do art. 15 da LPE, o esgotamento dos instrumentos destinados à preservação

44 Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal e da Câmara dos Deputados. 45 SOARES, Samuel Alves. Forças Armadas e sistema político na consolidação da democracia: o Brasil pós-1989. Research and Education in Defense and Security Studies. Washington: Center for Hemispheric Defense Studies, p. 7, may. 2001. Disponível: http://www3.ndu.edu/ chds/Portuguese/porindex.htm (acessado em 6.6.2003).

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da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no

art. 144 da Constituição Federal – trata-se, aqui, do aparelho policial: polícia federal,

polícias civis, militares e corpos de bombeiros dos Estados.

Neste passo, parece interessante abrir um parêntese para abordar o emprego

emergencial e temporário das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, que foi

objeto das atenções do Poder Executivo no período de 2001 a 2004.

Em 10.08.2001, o Presidente da República aprovou parecer do Advogado-

Geral da União46 que tratava do emprego emergencial e temporário das Forças

Armadas na garantia da lei e da ordem, conferindo-lhe caráter normativo, nos termos

de sua conclusão:

“O emprego, emergencial e temporário, das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem – viu-se – ocorre após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal (cf. Lei Complementar nº 97, de 1 999, art. 15, § 2º). Em outras palavras: o aludido emprego das Forças Armadas tem por finalidade a preservação (ou o restabelecimento) da ordem pública, inclusive pelo asseguramento da incolumidade das pessoas e do patrimônio (público, e privado). E a realçada preservação (ou restabelecimento) é da competência das Polícias Militares, nos termos da Lei Maior. Em tais situações, portanto, as Forças Armadas, porque incumbidas (emergencial e temporariamente) da preservação, ou do restabelecimento, da ordem pública, devem desempenhar o papel de Polícia Militar, têm o dever de exercitar — a cada passo, como se fizer necessário — a competência da Polícia Militar. Decerto, nos termos e limites que a Constituição e as leis impõem à própria Polícia Militar (v., por exemplo, do art. 5º da Carta, os incisos: II; III, parte final; XI e XVI).”

Amparado na LPE e nas conclusões do citado Parecer Normativo, o

Presidente da República passou a autorizar, em caráter emergencial e temporário, o

emprego da Forças Armadas em momentos cruciais de insegurança pública,

normalmente em situações associadas ao combate ao crime organizado, ao tráfico

de entorpecentes ou em outros cenários de grave crise política ou institucional.

A tais normas, somou-se o Decreto nº. 3.897, de 24 de agosto de 2001, de

questionável constitucionalidade, haja vista que sob o pretexto de regulamentar a lei

complementar, o Presidente da República criou uma nova forma de intervenção

federal e atribuiu poder de polícia às Forças Armadas. Um exercício de Poder

Constituinte ilegítimo, com o silêncio conivente do Congresso Nacional. 46 Parecer nº GM 25. As Forças Armadas, sua atuação, emergencial, temporária, na preservação da ordem pública. Aspectos relevantes e norteadores de tal atuação. Aprovado pelo Presidente da República, em 10.8.2001. DOU Eletrônico, de 13.8.2001. p.6.

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46

A edição desse decreto constitui também um exemplo didático do chamado

"abuso do Poder de Regulamentar" por parte do Executivo, pois regulamentar além

do que se pode segundo o conceito da Constituição, é infringir a Constituição, por

usurpação da função típica de outro poder, o Poder Legislativo47.

A “invasão do Poder pelo Poder” não passou despercebida pela comunidade

jurídica, conforme comprova o pensamento do advogado criminalista e professor

universitário UBIRATAN GUIMARÃES CAVALCANTI48:

“A inconstitucionalidade desse decreto, no episódio da "Guerra da Rocinha", fez com que as atenções se voltassem para um projeto de lei complementar sobre a organização e o emprego das Forças Armadas. O texto original do projeto tinha como objetivo principal o uso do Exército na repressão ao crime organizado, principalmente ao tráfico de entorpecentes e de armas, nas áreas de fronteira. Já vinha marcado, no entanto, pelo pecado original. Foi apresentado por um senador e a matéria nele tratada é da competência do presidente da república. Também atropelava a competência da Polícia Federal, cujas ações - por falta de agentes, de apoio ou de recursos, mas, também, por omissão e cumplicidade de muitos - têm sido ineficazes.(...) A própria Constituição tem o remédio. Ele está no artigo 34, na parte em que admite, excepcionalmente, a quebra da autonomia estadual. Agrade ou desagrade: intervenção federal. (...)As formas até aqui utilizadas para o uso político das Forças Armadas, eufemisticamente denominadas de convênio, acordo, protocolo, etc., são inadequadas uma vez que o fim visado é ilícito, ou seja, burlar a Constituição. O que se tem observado nos últimos anos é a banalização do emprego das Forças Armadas para enfrentar problemas policiais. É de se indagar como fica a auto-estima militar, vendo as Forças Armadas transformadas em força auxiliar das polícias militares, em completa inversão dos papéis.

Abstraindo esse deslize localizado, as responsabilidades das Forças Armadas

brasileiras estão, assim, intimamente associadas à preservação da Pátria,

concretizando-se a missão fundamental das Forças Armadas na defesa contra

agressões externas. Trata-se de se contrapor à ação hostil proveniente de inimigo

externo, com ou sem ocupação do nosso território, ou, ainda, dirigida contra nossos

bens e patrimônio. Tais ações estão geralmente associadas à evolução de um

cenário em que interesses nacionais se chocam com os de outro país, gerando um

quadro de crise entre Estados.

Como regra, essas crises são dirimidas por meios diplomáticos. Entretanto,

faz-se necessária a existência de Forças Armadas em condições de permanente

47 Um caso típico de quebra do princípio inscrito no art. 2º da Constituição Federal, pelo uso indevido pelo Presidente da República da faculdade prevista no art. 84, IV. 48 Artigo intitulado: “Múltiplos Aspectos do Emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem” (In: Revista da Escola de Guerra Naval, 2005, p. 32-46).

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emprego, justamente para sustentar as ações diplomáticas, pois a História mostra

que não há nação que consiga defender seus interesses sem Forças Armadas

adequadas ao seu perfil estratégico e ao conseqüente nível de interesses nacionais.

As ações contra agressões externas demandam a existência, mesmo em

tempo de paz ou em situações em que não se vislumbre nenhuma hipótese de

conflito, de uma estrutura militar equipada dentro de padrões modernos e adestrada

para fazer face aos variados tipos de ameaça.

Por outro lado, a existência, em caráter permanente, de uma estrutura militar

de defesa que seja compatível com a dimensão estratégica do Brasil, é imposição de

um país de imensas riquezas e com um papel relevante no cenário mundial.

De tudo que foi até aqui exposto, observa-se que o Constituinte de 1988 não

ficou alheio à relevância da matéria “segurança”. Aliás, foi além, ao inseri-la como

um direito fundamental do indivíduo49, no mesmo passo em que tratou a soberania e

a independência como, respectivamente, fundamento do Estado Democrático de

Direito50 e princípio fundamental de nossas relações internacionais51.

Ademais, dedicou especial atenção ao chamado sistema constitucional das

crises52, em título próprio denominado "Da Defesa do Estado e das Instituições

Democráticas", no qual os papéis do Presidente da República e das Forças Armadas

são essenciais, mas balizados pela Lei Maior.

Em face desse contexto, pode-se concluir que a defesa do Estado, soberano,

independente e democrático, é o ponto de partida para a concretização da

segurança individual. O Estado tem o dever constitucional de defender-se, e o fará,

em última instância, por intermédio do Poder orgânico que prepondera no preparo e

no emprego dos meios de defesa, tudo dentro dos limites e sob os controles

impostos pela Lei Maior.

Harmonizando com o pensamento de FERREIRA FILHO, esse dever seria

precípuo ao Executivo:

“Dos três Poderes clássicos, é, todavia, o Executivo que tem responsabilidade predominante quanto à segurança. No plano da segurança externa, é ele — apenas sob controle do Legislativo — que dela cuida, seja

49 Constituição Fededral, art. 5º, caput. 50 Constituição Fededral, art. 1º, inciso I. 51 Constituição Fededral, art. 4º, inciso I. 52 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 634.

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pelas articulações internacionais — obra da diplomacia —, seja pelo eventual emprego da força armada”53

Assim também pensou e agiu o Constituinte, ao reconhecer as Forças

Armadas como instituições nacionais permanentes e regulares destinadas à defesa

externa, à garantia dos poderes constitucionais e, em determinadas circunstâncias,

da lei e da ordem. A elas, e aos seus membros, caberia a execução de atividades

típicas da defesa nacional.

Por conseguinte, esse conjunto de atividades desdobradas do exercício

daquilo que poderíamos chamar “função militar”, não é autônomo, isto é, não pode

ser exercido livremente. Submete-se à autoridade suprema do Presidente da

República (art. 142), a qual resulta legitimada pelas urnas e pelo compromisso

prestado na posse do mais elevado cargo da Nação54.

É tão forte o laço de subordinação ao Chefe do Executivo, que a ele cabe

privativamente iniciar o processo legislativo que tenha por objeto a fixação ou a

modificação dos efetivos militares, bem como o que disponha sobre assuntos

diretamente relacionados ao pessoal militar (regime jurídico, provimento de cargos,

promoções, estabilidade e transferência para a inatividade)55. Proposições

legislativas que violem aquela esfera de competência privativa padecem com o vício

de inconstitucionalidade.

Assim entendido, a chamada função militar é uma componente da função

executiva no sistema constitucional vigente no Brasil, que não comporta exercício

atípico pelos Poderes Legislativo e Judiciário. Não se lhes nega o controle de

constitucionalidade político ou judicial, porém a função militar encontra-se

inexoravelmente ligada ao agente político que exerce a Chefia do Estado, do

Governo e do Executivo Federal.

O raciocínio expendido nos permite supor que essa função militar admite uma

componente objetiva, voltada para a salvaguarda do Estado e das instituições

democráticas que o compõem, bem como uma componente subjetiva, personificada

53 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 10. 54 O art. 78 da Constituição Fededral estabelece que "O Presidente e o Vice-Presidente da República tomarão posse em sessão do Congresso Nacional, prestando o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil." 55 Constituição Fededral, art. 61, §1º, incisos I e II, f).

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no conjunto de militares, submetidos à hierarquia e à disciplina militar, que a

corporificam e dinamizam, prestando serviços nas Forças Armadas de maneira

voluntária ou obrigatória.

Desse modo, a legislação de Direito Público relativa ao regime a que estão

submetidas as Forças Armadas, no seu conjunto, e os militares, na condição de

agentes do Estado, pode ser denominada de regime jurídico da função militar.

3.2. OS PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS DA FUNÇÃO MILITAR

Para que possa alcançar uma plena convergência civil-militar urge, não

somente que os militares se abram para a sociedade, senão, o que é mais

importante, que o resto da sociedade — a civil — se abra completamente para o

pessoal militar. Quando se alcançar tal integração será possível compreender o real

significado da função militar.

No Brasil, a literatura jurídica tem apresentado poucas contribuições na área

do direito castrense, o que dificulta a completa integração das instituições e do

estamento militar na sociedade democrática. Nem sempre foi assim, como

demonstram os estudos de Seabra Fagundes e Pimenta Bueno acerca do

tratamento constitucional deferido à função militar.

De fato, asseverou SEABRA FAGUNDES56 que, em todos os Estados, as

Forças Armadas constituem elemento fundamental da organização coercitiva a

serviço do Direito:

“Nelas, na eficácia da sua estrutura e na respeitabilidade que as envolva, repousa a paz social pela afirmação da ordem na órbita interna e do prestígio estatal na sociedade das nações. São, portanto, os garantes materiais da subsistência do estado e da perfeita realização dos seus fins. Em função da consciência que tenham da sua missão está a tranqüilidade interna pela estabilidade das instituições. É em função do seu poderio que se afirmam, nos momentos críticos da vida internacional, o prestígio do Estado e a sua própria soberania.”

Nessa linha de pensamento, reserva-se às Forças Armadas e ao seu

elemento subjetivo indissociável — o militar — uma posição especial e destacada na

organização política do Estado, seja no que tange a estrutura militar, seja no que diz

respeito à missão constitucional do braço armado do Estado. 56 FAGUNDES, M. Seabra. As Forças Armadas na Constituição. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1955. p.11.

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Com efeito, a experiência constitucional brasileira conta com oito

Constituições que não se furtaram ao trato da função militar.

A Constituição de 1824 dedicou um capítulo ao tratamento da "Força

Militar"57, subordinando-a diretamente ao Imperador, a quem caberia, na qualidade

de Chefe do Poder Executivo, nomear e remover os Comandantes da Forças de

Terra e de Mar 58, bem como prover tudo que fosse concernente à segurança interna

e externa do Estado, na forma da Constituição59.

A respeito desse documento político, PIMENTA BUENO ressaltou a

importância da força militar, enquanto nação armada em massa ou todo o poder da

sociedade, citando o célebre e memorável decreto da convenção francesa de 23 de

agosto de 1793, onde se declarava:

"Art. 1º Desde este momento até aquele em que os inimigos tiverem sido expelidos do território da pátria, todos os franceses estão em requisição permanente para o serviço das armas. Os homens feitos irão ao combate, os casados forjarão armas, e transportarão víveres, as mulheres farão barracas e roupas militares, e servirão nos hospitais, as crianças desfiarão linho para as feridas, os velhos irão para as praças públicas excitar a coragem dos guerreiros". 60

O espírito francês foi reproduzido em 1824, ao se estabelecer como uma

obrigação de todos os brasileiros61 pegar em armas, para sustentar a independência

e integridade do Império, e defendê-lo dos seus inimigos externos ou internos.

A Constituição de 1891 foi a que primeiramente conceituou as forças de terra

e de mar como instituições nacionais permanentes, destinadas à defesa da Pátria no

exterior e à manutenção das leis no interior62, dedicando onze artigos à disciplina da

função militar63, distribuídos ao longo de três dos seus cinco títulos.

Esclarece SEABRA FAGUNDES, a esse respeito, que as razões técnicas e

históricas que levaram a conceituá-las assim residiam na importância política do

Exército, que fora ampliada com a proclamação da República, bem como por força

57 Constituição de 1824, art. 145 a 150. 58 Constituição de 1824, art. 102, V. 59 Ibid., art. 102, XV. 60 BUENO, José Antonio Pimenta. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Interiores (Serviço de Documentação), reedição de 1958. p. 90. 61 A Constituição de 1824 já traçava o conceito de nacionalidade em seu art. 6º, de modo que aquela obrigação alcançava não apenas os estrangeiros naturalizados, mas também aos portugueses residentes no País à época da Independência, e que a ela aderiram expressa ou tacitamente pela continuação da sua residência. 62 Constituição de 1891, art.14. 63 Arts. 14; 34 nº 17 e 18; 48, nº 3, 4 e 5; 70, §1º, nº 3; 73; 74; 76; 77; 85; 86; 87.

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de uma melhor compreensão na técnica legislativa constitucional de sua posição no

quadro de elementos fundamentais da estrutura do Estado:

“O serem 'instituição' — acrescenta o jurista — significa que se lhes reconhece a importância e a relativa autonomia jurídica decorrente do caráter institucional, como sucede, nos mais diversos setores, aos órgãos ou elementos vitais do organismo político social. [...] Dizer que são 'permanentes' é vinculá-las à própria vida do Estado, atribuindo-lhe a perduração deste.64

Além de inovar expressamente no que diz respeito à natureza institucional

permanente atribuída às Forças Armadas (a Constituição Imperial apenas as

reconheceu como essenciais à vida do Estado), a Constituição de 1891 adotou a

mesma linha da sua antecessora, subordinando-as ao Chefe do Executivo, a quem

caberia exercer seu comando supremo, administrá-las em suas necessidades e

prover seus cargos65.

Em 1930, cai a República Velha, assolada por inquietações sociais e

rebeliões sucessivas desestabilizadoras, que culminaram no movimento chefiado por

Getúlio Vargas. Surge a Constituição de 1934, que reservou um espaço para tratar

do tema "Segurança Nacional" 66, nele inserindo a função militar.

A Constituição de 1934 introduz um conceito novo no Direito Constitucional

pátrio67 — o da Segurança Nacional — que só viria a ser desenvolvido e difundido

em doutrina68 e jurisprudência69 algum tempo depois. Além desse fato, a grande

inovação do documento político foi a separação entre os militares e funcionários

civis, estes tratados em título a parte.70

64 FAGUNDES, M. Seabra. Op. cit., p. 14. 65 Ibid., arts. 48, nº 3, 4 e 5. 66 O Título VI da Constituição de 1934 era composto por 9 artigos (arts. 159 a 167). 67 A questão não era nova. Realmente, tal assunto já constava da Constituição estadunidense em 1787, sob o título “Segurança do Estado Livre”. A partir de meados do século XX, o trato do tema foi assumido por outras Constituições, tais como: a francesa de 1958, sob o título “Segurança do Estado”; a alemã de 1949, que refere-se às “Leis de Defesa do Estado”; a Carta dos Estados Unidos Mexicanos, que trata da “Defesa da República”, etc. 68 HELY LOPES MEIRELLES adere ao conceito de segurança nacional formulado pela Escola Superior de Guerra: “o grau relativo de garantia que, através de ações políticas, econômicas, psicossociais e militares, o Estado proporciona, em determinada época, à Nação que jurisdiciona, para a consecução ou manutenção dos objetivos nacionais, a despeito dos antagonismos ou pressões existentes ou potenciais". (Cf. Poder de polícia e segurança nacional. Revista dos Tribunais, v. 61, n. 445, p. 287-298, nov. 1972). 69 Não só a doutrina esforçou-se em definir a segurança nacional, como também a jurisprudência, na esteira desta decisão do STF, que assim a conceituou: "Segurança nacional envolve toda a matéria pertinente à defesa da integridade do território, independência, sobrevivência e paz do País, suas instituições e valores materiais ou morais contra ameaças externas e internas, sejam elas atuais e imediatas, ou ainda em estado potencial próximo ou remoto" (Recurso Extraordinário n. 62.739, julgado em 23.8.1967, in Revista de Direito Público, vol. 5, p. 223). 70 Título VII, arts. 168 a 173.

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A Carta do Estado Novo, de 1937, apenas se distancia da anterior quando

desdobra em duas seções71 o que aquela abrangia em apenas uma. Com referência

aos funcionários civis, foi mantido o tratamento diferenciado, em título próprio.

A Constituição de 1946, contemporânea de uma fecunda época de

reconstrução constitucional em todo mundo, reuniu em título especial72 o tratamento

do organismo militar estatal, a destinação constitucional e os órgãos diretivos do

Exército, da Marinha e da recém criada Aeronáutica, mantendo o assento na

hierarquia e na disciplina, bem como o caráter institucional permanente. Tratou ainda

dos temas afetos à defesa nacional e ao pessoal militar, diferenciando-o,

igualmente, dos funcionários civis.

A Constituição de 1967 mantém a fórmula de 1937, tratando "Segurança

Nacional"73 e "Forças Armadas"74 em capítulos separados, individualizando os

militares do tratamento dado aos funcionários civis. Tal técnica não foi tocada pela

Emenda Constitucional nº 1, de 1969.

Por final, o Constituinte de 1988 abandona a tradição legislativa de abordar a

função militar unificada em suas componentes objetiva e subjetiva.

Trata das Forças Armadas em um Capítulo especial, inserto no Título V — Da

Defesa do Estado e das Instituições Democráticas —, e aqui demonstra uma plena

aceitação da importância daquelas instituições como garantes da própria

sobrevivência do Estado. Entretanto, lança o pessoal militar em um capítulo voltado

para o trato genérico da "Administração Pública", equiparando-o ao servidor civil,

com poucas ressalvas.

Com tal lapso, estavam abertas as portas para uma assemelhação

inoportuna, que propiciava interpretações capazes de afrontar o princípio da

isonomia, já que sujeitos e funções desiguais estariam à mercê de um mesmo

tratamento.

No ano de 1996, o Presidente da República deu início ao processo legislativo

com o propósito de restabelecer um tratamento constitucional diferenciado aos

militares com relação aos funcionários públicos civis. A Mensagem Presidencial75 foi

71 "Dos Militares de Terra e Mar" e "Da Segurança Nacional". 72 Título VII, "Das Forças Armadas". 73 Constituição de 1967, art. 89 a 91. 74 Ibid. art. 92 a 94. 75 Mensagem nº 246, de 15.3.1996. Diário da Câmara dos Deputados, Brasília, p. 22295, 10 ago. 1996.

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recebida pela Câmara dos Deputados como Proposta de Emenda Constitucional nº

338-A/96.

Nas razões expostas pelo Executivo76, foi sustentada a tese de que a

condição institucional das Forças Armadas (nacionais e permanentes) as vincularia

primordialmente ao Estado, fato que transcenderia o plano público ordinário, mais

vinculado e identificado com as atividades e os serviços prestados pela

administração pública. Além disso, ressaltavam-se as peculiaridades do perfil da

profissão militar, vinculado à defesa da Pátria, e com particularidades sem

precedentes em outras categorias.

"Na verdade, aos militares são cometidas atribuições que deles exigem características singulares, em razão de sua destinação constitucional, a saber: a) ética profissional rigorosa, que impõe conduta moral irrepreensível e inibe qualquer tipo de reivindicação; b) observância irrestrita do cumprimento do dever, com o compromisso de sacrificar a própria vida em defesa da Pátria, o que ocorre mesmo na paz; c) dedicação exclusiva ao serviço, independentemente de horários, sem qualquer remuneração adicional; d) disponibilidade permanente, durante o mínimo de trinta anos de serviço da Pátria, em condições de aptidão para o cumprimento de missão, em quaisquer circunstâncias; e) afastamento da família por longos e indefinidos períodos (manobras, missões, etc.); f) proibição de sindicalização e greve; g) impedimento do exercício de outra atividade profissional, enquanto na ativa, e dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, quando na inatividade. (...) Aos militares são cometidas obrigações, deveres e preparo físico e psicológico não exigidos em nenhuma outra profissão." 77

Não foi pequena a polêmica gerada pela distinção dos militares como agentes

do Estado e ela ficou evidenciada em debates realizados entre parlamentares e o

Executivo, em audiência pública78 realizada perante a Comissão Especial que

analisava a proposta.

Com referência à resistência oferecida à separação jurídica entre militares e

servidores civis, RIZZO DE OLIVEIRA esclarece que talvez fosse ela motivada pela

reconhecida vertente sindical do Partido dos Trabalhadores, pois a distinção dos

militares em relação a carreiras similares de Estado não contribuiria para o

76 Exposição de Motivos nº. 152, de 1996. 77

Ibid. 78 Audiência nº 18, de 15.1.1997.

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desenvolvimento de um modelo adequado de democracia, nem se conciliaria com o

Estado Democrático.79

Vencidos os argumentos contrários, foi promulgada a Emenda Constitucional

nº 18, de 1998, cujo aspecto mais importante reside na recomposição das

componentes objetiva e subjetiva da função militar, reunindo em um mesmo capítulo

os militares, as Forças Armadas e o propósito constitucional de ambos.

3.3. A ADMINISTRAÇÃO MILITAR E A INSTITUIÇÃO MILITAR

JUAN-CRUZ ALLI TURRILLAS, Professor de Direito Administrativo da

Universidade Pública de Navarra, chama a atenção para o interesse despertado nos

tratadistas de Direito Constitucional espanhol acerca da caracterização jurídica das

Forças Armadas80.

Em sua obra, o autor penitencia-se por não poder resumir em poucas páginas

os intensos debates sobre o assunto em tela, haja vista que na Espanha a

Constituição de 1978 trata das Forças Armadas em um título preliminar81, dedicado

aos princípios fundamentais do Estado, e aborda a Administração militar em outro,

que disciplina o Governo e a Administração Pública82.

Entre nós, como já mencionado, a Emenda Constitucional nº 18, de 1998,

recompôs o status da função militar ao consolidar em um mesmo Capítulo os

sujeitos da relação jurídico-constitucional de poder militar (o Estado, Força Armada e

os militares) e o seu objeto (a defesa da Pátria, a garantia dos poderes

constitucionais e, por iniciativa destes, da lei e da ordem). Em outro ângulo, também

é possível visualizar a natureza institucional prevista no art. 142, bem como o núcleo

duro que a fundamenta — a hierarquia e a disciplina, bases fundamentais,

imprescindíveis à conservação do seu perfil.

79 OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. Brasil. Ministério da Defesa: a implantação da autoridade. Research and Education in Defense and Security Studies. Washington: Center for Hemispheric Defense Studies, p. 19, oct. 2002. Disponível: http://www3.ndu.edu/chds/Portuguese/porindex.htm. 80 TURRILLAS, Juan-Cruz Alli. La profesión militar. Madrid: Ministerio de Administraciones Públicas, 2000. p. 46-47. 81 "Artículo 8.1. Las Fuerzas Armadas, constituidas por el Ejército de Tierra, la Armada y el Ejército del Aire, tienen como misión garantizar la soberanía e independencia de España, defender su integridad territorial y el ordenamiento constitucional." 82 "Articulo 97. El Gobierno dirige lá política interior y exterior, la Administración civil y militar y la defensa del Estado. Ejerce la función ejecutiva y la potestad reglamentaria de acuerdo con la Constitución y las leyes."

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Com respeito esse núcleo duro, não seria precipitado considerá-lo como um

importante peso específico apto a ser ponderado na ratio decidendi em

determinados questionamentos judiciais, nos quais se fizesse necessário demonstrar

as diferenças entre o serviço militar e o serviço público civil.

Na posse desses fatos, e amparados no perfil institucional positivado

historicamente pelas Constituições brasileiras, seria o caso de indagar se as Forças

Armadas realmente integrariam uma Administração especial, dotada de um "algo

mais" capaz de singularizá-las na Administração Pública.

A resposta deve ser buscada no texto da atual Constituição Fededral, uma

vez que é a importância a elas atribuída pelo art. 142 que referenda uma resposta

afirmativa. Portanto, o vínculo com a defesa e sobrevivência do Estado — e do

indivíduo, em conseqüência natural — serve de fundamento às peculiaridades do

regime jurídico da função militar.

Com efeito, a partir de uma perspectiva funcional, as Forças Armadas

realizam uma função constitucional uti universi absorvida nos objetivos da Defesa

Nacional83. Tais objetivos atuam no contexto da sobrevivência do Estado-nação,

concebido este como uma unidade política soberana, que pode vir a sofrer uma

gama variada de ameaças, tanto provenientes do cenário externo, como do interno.

Nessas situações, a segurança do Estado seria um objetivo a ser alcançado por

meio das ações de defesa organizadas pelo corpo estatal e/ou por governos

legitimados pela soberania popular 84.

Esse entendimento também é compartilhado por BOBBIO, em seu Dicionário

de política :

A situação de estabilidade do sistema institucional e de desenvolvimento ordenado da coletividade nacional no quadro dos

83 "São objetivos da Defesa Nacional: a) a garantia da soberania, com a preservação da integridade territorial, do patrimônio e dos interesses nacionais; b) a garantia do Estado de Direito e das instituições democráticas; c) a preservação da coesão e da unidade da Nação; d) a salvaguarda das pessoas, dos bens e dos recursos brasileiros ou sob jurisdição brasileira; e) a consecução e a manutenção dos interesses brasileiros no exterior; f) a projeção do Brasil no concerto das nações e sua maior inserção no processo decisório internacional;e g) a contribuição para a manutenção da paz e da segurança internacionais." (Cf. Política de Defesa Nacional, 1996, item 3.3. Disponível: http://www.planalto.gov.br (acessado em 4.6.2003). 84 Apud SANTOS FILHO, José Luiz Niemeyer dos. Busca-se a segurança, planeja-se a defesa: uma introdução à (re)discussão dos conceitos de segurança e de defesa nacional na realidade brasileira ontem e hoje. Research and Education in Defense and Security Studies. Washington: Center for Hemispheric Defense Studies, p. 2, ago. 2002. Disponível: http://www3.ndu.edu/chds/Portuguese/ porindex.htm.

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princípios constitucionais, originariamente englobados num ordenamento, identifica-se com a sua segurança. Esta, enquanto síntese de conservação e de desenvolvimento, conforme os princípios constitucionais, é o máximo valor jurídico tutelado. Em relação a ela, o conceito de Defesa assume um significado estritamente instrumental, que compreende todas as modalidades organizativas e funcionais destinadas a garantir os valores essenciais sintetizados no conceito de segurança. Entende-se, então, que seja impróprio afirmar que a Defesa pode ser causa e fim do Estado, desde que seja verdade o contrário: somente a exigência da segurança pode ser posta como origem dos fenômenos associativos entre indivíduos e coletividade […] e constitui sempre um dos fins essenciais da entidade estatal, dependente exclusivamente deste, enquanto implica no recurso aos atributos de soberania. 85

A bem da verdade, desde sempre o homem anseia por proteção. O conceito de

defesa — ou a necessidade de segurança inerente ao homem — imprime na

Administração militar um caráter superior ao meramente administrativo. Evidencia-se

tal distinção nos momentos críticos, em especial quando a função militar é ativada

em toda sua plenitude.

Mas, afinal, questiona-se se na paz ou nas crises, quando as atividades-fim

são executadas seria possível encontrar semelhanças entre uma repartição da

Administração civil e, por exemplo, um navio de guerra ou uma unidade de

infantaria?

Pensamos que não, pois em que pese ao fato de as Forças Armadas

apresentarem uma face administrativa retratada na forma de Comandos Militares

(Marinha, Exército e Aeronáutica), desdobrados em diversos órgãos

despersonalizados que assumem o perfil de administração direta, seu emprego

operacional é essencialmente dissonante da moldura estabelecida pelo art. 37 da

Constituição Federal, por exemplo.86

Em reforço, contamos com o entendimento de FERREIRA FILHO, para quem

restam claras a especialidade da Administração militar e a sua oposição à

Administração civil:

As Forças Armadas são um corpo especial da administração, oposto ao setor civil por sua militarização, isto é, pelo enquadramento hierarquizado de seus membros em unidades armadas e preparadas para combate. Embora um setor da administração civil — a polícia — partilhe com elas o uso de armas, com estas não se confunde em

85 BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco. Tradução Carmem C. Varriale [et al.]. Dicionário de Política. 5ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999, v.I, p. 312. (verbete) 86 Veja-se, como exemplo do que se sustenta, o caso da Lei nº 8.666/1993 (art. 24, IX, XVIII e XIX), que confere tratamento especial, com dispensa de licitação, às aquisições de itens de interesse militar.

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virtude da sua complexa estrutura de unidades, do caráter de sua hierarquia e de sua disciplina. De fato, as unidades das Forças Armadas são células que se combinam em tecidos e estes em corpos sempre destinados ao combate enquanto os núcleos policiais são simples e não se agrupam noutros círculos armados. Por outro lado, a hierarquia e a disciplina militares são mais rígidas que as impostas à polícia87.

Em face do exposto, é possível concluir que as Forças Armadas são

instituições, repletas de valores e princípios próprios, que as tornam uma

Administração especial, merecedora das cautelas do legislador no sentido de evitar

uniformizações indevidas com a Administração civil.

3.4. A SINGULARIDADE DA COMPONENTE SUBJETIVA DA FUNÇÃO MILITAR

Nesse passo, em reforço ao caráter especial da administração militar

anteriormente exposto, importa reconhecer o militar como um profissional

diferenciado em relação aos demais agentes públicos.

Nos dias atuais, os quadros de Oficiais e Praças constituem corpos

profissionais, e isso os distingue dos guerreiros do passado. Uma profissão é um

tipo peculiar de grupo funcional com características especializadas, sendo o

profissionalismo, neste particular aspecto, uma característica do militar, no mesmo

sentido em que é característica do advogado ou do médico.

Ao longo do tempo, as características e a importância de outras profissões

têm sido discutidas, porém dificilmente a sociedade, inclusive sua elite, pensa no

militar da mesma forma como o faz em relação ao advogado ou ao médico, além de

não lhe conferir a mesma deferência que é prestada a outras profissões civis. Talvez

aqui tenhamos um reflexo do distanciamento entre as atividades realizadas pelo

militar e as exigências do dia-a-dia dos demais cidadãos.

Aliás, em alguns casos, os próprios militares podem se deixar influenciar pela

imagem que deles faz a sociedade, o que, por vezes, gera dificuldades em visualizar

as implicações de seu status profissional. Quando a palavra "profissional" é usada

em relação aos militares, normalmente o é no sentido antagônico a "amador" e não

no sentido de "ofício" reconhecido socialmente.

87 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

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Prima facie, as expressões "forças armadas profissionais" e "militar

profissional" parecem contaminadas pela redundância, mas na verdade costumam

encobrir a diferença entre o militar visto pela sociedade como um agente público que

trabalha pela obrigação de ganhos monetários, fazendo uso de habilidades bem

similares às utilizadas em qualquer ramo profissional civil, e o militar de carreira, que

é profissional num sentido diferente, isto é, aquele que segue uma "vocação" a

serviço da defesa do Estado e dos poderes constitucionais.

Esse último tipo, vocacionado, nos interessa, pois nele agregam-se algumas

características que o individualiza dos demais.

3.4.1 – Aspectos gerais

Ao ingressar nas Forças Armadas, o militar tem de obedecer a severas

normas disciplinares e a estritos princípios hierárquicos, que condicionam a sua vida

pessoal e profissional. Hierarquia e disciplina são as bases nas quais se assentam

as Forças Armadas de qualquer parte do mundo, que devem ser mantidas em todas

as circunstâncias da vida, estejam na ativa ou na inatividade remunerada.

As atribuições que o militar desempenha, não só por ocasião de eventuais

conflitos, para os quais deve ser preparado, mas também no tempo de paz, exigem

um elevado nível de saúde física e mental. Ao ingressar na carreira militar, às

vésperas de uma promoção ou ao ser selecionado para determinados cursos e

cumprir determinadas missões, ele é submetido a exames médicos e testes de

aptidão física, que condicionam, até mesmo, a sua permanência no serviço ativo.

Não mantendo os padrões mínimos de higidez física e mental, pode ele ser

reformado (se estável) ou licenciado do serviço ativo, conforme prevê o Estatuto do

Militares (art. 106, II e III e 121, §3º, b).

O exercício da profissão militar exige uma rigorosa e diferenciada formação.

Ao longo de sua vida profissional, o militar de carreira passa por um sistema de

educação continuada, que lhe permite adquirir as capacitações específicas dos

diversos níveis de exercício profissional, além de realizar reciclagens periódicas para

fins de atualização e manutenção dos padrões de desempenho. Especializações,

aperfeiçoamentos e cursos militares em nível de mestrado e doutorado, nos termos

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da legislação de ensino militar, constituem requisito de progressão na carreira na

maioria dos casos.

No que concerne à participação no processo político, prevalece neutralidade.

O militar da ativa é proibido de filiar-se a partidos e de participar de atividades

políticas, especialmente de cunho político-partidário, mas pode exercer o direito de

sufrágio não sendo conscrito.

Na mesma esteira da preservação da neutralidade, da hierarquia e da

disciplina, há o impedimento de sindicalização. A proibição de greve decorre do

papel do militar na defesa do país, interna e externa, tarefa prioritária e essencial do

Estado que pretere qualquer interesse individual ou de classe.

A respeito do dever de neutralidade e de fidelidade irrestrita, sustentava RUI

BARBOSA: A disciplina deve manter-se firmemente: [...] Pela mais estreita observancia das normas que vedam ao exercito e á armada as manifestações collectivas; [...] Pelo cuidado em arredar as escolas militares dos centros de agitação politica e contagio sedicioso, elevando, juntamente, ao mais alto grau a sua cultura scientifica e o seu valor pratico, mediante o mais serio desenvolvimento do estudo nas disciplinas militares; [...] Por uma administração, em summa, que exclua totalmente da politica o exercito e a marinha, os encerre unicamente no circulo natural da sua vocação, os reduza emfim ao seu legitimo papel de orgãos defensivos do paiz contra o estrangeiro e sustentadores das instituições constitucionaes, nas mãos do poder constituido, contra a desordem. 88

Soma-se a essa moldura específica, a supressão de vários direitos sociais, de

caráter universal, que são assegurados aos trabalhadores, dentre os quais citamos:

remuneração do trabalho noturno superior à do trabalho diurno;

fundo de garantia por tempo de serviço e seguros sociais;

adicionais pelo exercício de atividades perigosas ou insalubres;

jornada de trabalho diário limitada a oito horas;

obrigatoriedade de repouso semanal remunerado; e

remuneração de serviço extraordinário.

88 BARBOSA, Rui. Commentarios á Constituição Federal Brasileira. vol.VI. Rio de Janeiro: Livraria Academica Saraiva, 1934. p. 271-272.

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3.4.2 – As particularidades da carreira militar: evolução, riscos e impedimentos

Qual ou quais as habilidades comuns aos militares das quais não

compartilham os grupos profissionais civis? À primeira vista, parece difícil conceber

alguma habilidade especializada militar que não encontre a sua contrapartida no

meio civil. Médicos, dentistas, engenheiros, bacharéis em Direito, pilotos, técnicos

em armamento, enfermagem ou comunicações, todos encontrados no meio civil,

integram um rol não taxativo que serve para turvar as enormes diferenças

existentes.

Entretanto, é muito fácil evidenciar que a função militar requer um alto grau de

especialização. Indivíduo algum, quaisquer que sejam sua capacidade intelectual e

suas qualidades de caráter e liderança, poderá desempenhar eficientemente essa

função sem treinamento e experiência consideráveis.

Em casos de emergência, um civil despreparado pode ser capaz de agir como

um militar, de nível comum, por um breve período de tempo. Do mesmo modo, um

leigo inteligente também pode, na emergência, prestar socorro até que chegue o

médico. Hoje, porém, só a pessoa que dedica por completo suas horas de trabalho a

essa tarefa pode esperar desenvolver um nível razoável de competência

profissional. Contudo, a habilidade do militar não deve ser uma técnica

essencialmente mecânica, nem uma arte que exige talentos naturais; ao contrário,

ela requer estudo e treinamento abrangentes, de modo a lapidar o profissional das

armas e prepará-lo para o cumprimento do árduo mister da defesa nacional. Por

certo, disparar um fuzil exige uma perícia basicamente mecânica, no entanto

comandar uma companhia de fuzileiros navais ou uma belonave exige um tipo de

perícia inteiramente diferente, que deve ser aprendida nos vários anos de

escolaridade formal e na experiência.

Afinal, aquele que exerce o poder de mando sempre terá em suas mãos dois

bens jurídicos importantíssimos que podem sofrer as conseqüências de um erro de

avaliação: primeiramente, o patrimônio do Estado ou, em última análise, do

contribuinte; o outro, de valor inestimável, a vida humana, sua ou de subordinado ou,

ainda, de terceiros inocentes. E é exatamente por isso que o ingresso, a formação e

o aperfeiçoamento profissional devem ser seletivos e rigorosos.

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O ingresso na carreira militar89 ocorre mediante processo seletivo público, do

qual participam candidatos de várias faixas etárias e escolaridades. As razões

técnicas do planejamento de carreiras militares exigem o estabelecimento de limites

etários para acesso à função militar, pois o exercício de atividades militares nos

primeiros postos e graduações — onde o vigor físico é fator imprescindível — por

pessoas em idade avançada, compromete inequivocamente a operacionalidade da

Força.

No mais, as carreiras são planejadas com interstícios variáveis entre postos e

graduações90, que permitem o aproveitamento do indivíduo por trinta anos de

serviço, levando-se em conta que existe um limite etário previsto em lei91 para

permanência na ativa. O interstício entre um grau hierárquico e outro permite que o

militar adquira o tirocínio profissional necessário à ascensão hierárquica.

Entretanto, se a fixação de idades-limite para ingresso ocorre em regulamento

não autorizado por lei, podem surgir questionamentos judiciais, que na maioria dos

casos geram grandes embaraços administrativos. Convém salientar, que os

processos seletivos para admissão no serviço ativo são, em geral, planejados de

forma a propiciar a matrícula do candidato nos cursos de formação no prazo máximo

de um ano, contado da inscrição no processo seletivo. Não temos notícia de

qualquer processo seletivo que tenha extrapolado seu prazo de validade

À seleção para ingresso, segue-se o período de formação e adaptação à vida

militar, cumprido em estabelecimentos de ensino superior92 ou escolas de

formação93. Esses estabelecimentos de ensino, organizam suas atividades de modo

muito exigente: formaturas, aulas, reuniões, manobras, exercícios físicos e

inspeções. Uma programação que começa, diariamente, às 6:00 h da manhã com a

"alvorada" e termina às 22:00 h com o "toque de silêncio".

Não se trata de uma situação acadêmica normal, em que, terminada a aula,

ou mesmo antes, o aluno retira-se para sua casa ou onde lhe aprouver. Durante

89 Não se trata neste ponto o ingresso para a prestação do serviço militar obrigatório . 90 Em geral, o planejamento varia entre Oficiais e Praças: para os primeiros, considera os postos que vão de Segundo-Tenente a Coronel ou Capitão-de-Mar-e-Guerra (os postos do generalato não são considerados, pois a promoção se dá por escolha do Presidente da República); quanto às Praças, considera normalmente as graduações que vão de Soldado ou Marinheiro até Suboficial ou Subtenente (não existe promoção ao Oficialato sem processo seletivo). 91 Veja-s o art. 98, I, a a c, do EM 92 Escola Naval, Academia da Força Aérea e Academia Militar das Agulhas Negras, por exemplo. 93 Centro de Recrutas, Escolas de Aprendizes-Marinheiros, Centros de Instrução, etc.

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todo dia, estão presentes os encargos e deveres, as condições de disciplina e a

exposição aos riscos do treinamento militar, em qualquer nível.

A responsabilidade no processo de seleção dos futuros militares de carreira é

muito grande, pois estes, em última análise, serão os depositários da confiança da

Nação e de todos aqueles que servirão sob suas ordens.

Neste ponto, justifica-se o rigor no ambiente de uma escola militar, onde

aqueles que voluntariamente optaram pela carreira das armas são submetidos a

freqüentes testes de avaliação, abrangendo não apenas o campo intelectual, mas

inclusive os campos psicológicos, físico, moral, disciplinar e de aptidão específica

para a carreira militar.

Os valores e as atitudes próprios do militar94 e a necessária capacitação

profissional são desenvolvidos por meio do serviço diário, da orientação e de um

programa de ensino e de instrução, que abrange aulas, conferências, exercícios

práticos e manobras, em que o risco estará sempre presente, como em qualquer

atividade militar.

Os objetivos dos sistemas educacionais95 das Forças Armadas se referem,

assim à:

formação e ao aperfeiçoamento do militar, combatente ou não;

formação da chefia militar para os diferentes níveis hierárquicos da carreira; e

especialização de profissionais em áreas como: Planejamento, Engenharia

Nuclear, Informática, Medicina, Hidrografia, Direito e inúmeras outras.

Por sua vez, o processo de ascensão funcional na carreira militar difere das

práticas adotadas pela Administração civil, uma vez que leva em consideração

rígidos critérios de seleção. Nem sempre há promoção, mesmo que existam vagas

para tal.

De fato, a ascensão aos postos (grau hierárquico dos Oficiais) e às

graduações (grau hierárquico das Praças) guarda correlação direta com faixas

etárias e com o cumprimento de interstício mínimo no grau hierárquico

imediatamente anterior, quando é adquirida a experiência profissional desejável para

a promoção.

94 EM, art. 27, 28 e 31 95 O sistema de ensino militar não é compreendido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, sendo regido por leis específicas.

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Além desses, outros requisitos de carreira são exigidos, tais como:

conclusão de cursos com aproveitamento, para os quais o militar já foi

submetido a um processo seletivo mesmo antes de iniciá-los;

exercício de determinadas funções operativas, administrativas ou técnicas por

certo tempo;

aptidão físico-psíquica, aferida em perícias médicas que antecedem aos

processos seletivos para promoção;

seleção por órgãos colegiados (comissões de promoção), sempre compostas

por militares altamente qualificados, que levarão em consideração as

avaliações periódicas do militar.

O sistema de mérito que define se alguém será ou não promovido, por

antigüidade ou merecimento, é complexo e varia entre as Forças. Normalmente são

consideradas as avaliações subjetivas dos comandantes e chefes militares,

pautadas na observação de atributos morais (comportamento social, discrição,

senso de responsabilidade e de justiça, ética, equilíbrio emocional, espírito de

cooperação, por exemplo), atributos profissionais (interesse pelo serviço,

apresentação pessoal, iniciativa, senso de disciplina, expressão oral e escrita,

conhecimento profissional, capacidade administrativa, por exemplo) e potencial

profissional (cultura geral, ponderação, relacionamento funcional, flexibilidade

intelectual, poder de persuasão, dinamismo etc).

A ascensão funcional subordinada a um sistema de mérito é o ponto alto de

qualquer organização que mantenha quadros de funcionários escalonados

hierarquicamente, em especial nas Forças Armadas onde a hierarquia é um dos

fatores preponderantes.

A idéia de prestigiar os melhores integra o cerne da eficiência enquanto dever

constitucional da Administração96 alçado ao status de princípio constitucional. A

importância do sistema é tamanha nas instituições fortemente hierarquizadas, como

as Forças Armadas, que seria possível avançar-se no sentido de utilizá-lo também

como uma ferramenta substitutiva das punições em algumas transgressões

96 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 18.

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disciplinares de menor gravidade ou potencial ofensivo à base institucional das

Forças Armadas (hierarquia e disciplina).

Em outra linha, as críticas ao sistema dizem respeito, na maioria dos casos,

ao grau de subjetividade das avaliações ou, em menor número, a ausência de

transparência do processo. Nos dias de hoje, esses argumentos parecem normais,

já que a relevância atribuída às garantias e direitos individuais mostra-se maior do

que as exigências mais prementes de uma organização administrativa voltada para o

interesse da coletividade.

É possível, inclusive, que o acesso indiscriminado ao Judiciário, com vistas à

impugnação do processo de avaliação, repercuta negativamente no

aperfeiçoamento do sistema de mérito, na medida em que inibe o processo de

avaliação. Esse é o entendimento do jurista espanhol RAMÓN PARADA, um

defensor da ascensão pelo sistema de avaliações que mostra suas preocupações

quanto à interferência do Judiciário no mérito das mesmas:

“Cierto que es actividad calificadora de los superiores ni es transparente ni es impugnable, lo que la hace constitucionalemente sospechosa; pero si lo fuera nos encontraríamos bien ante informes puramente positivos y laudatorios de los inferiores o ante una nueva fuente de litigiosidad, con el resultado de que las calificaciones, después de insoportables y lentíssimos pleitos contenciosos, seríam las de unos jueces, ajenos y desconocedores del mundo militar (y no más fiables, em mi opinión, sino menos que los mandos militares), los responsables últimos de calificar o evaluar a los miembros de las Fuerzas Armadas”. 97

Por certo, a seletividade e todas as demais cautelas quanto aos processos de

ascensão funcional têm a sua razão de ser: a missão institucional a ser cumprida é

das mais elevadas, exigindo-se de cada e de todos uma conduta moral e profissional

irrepreensíveis98. Do mesmo modo, o militar exerce, ao longo de sua carreira, cargos

e funções com crescentes graus de complexidade e responsabilidade, o que faz da

liderança um fator imprescindível à instituição. A autoridade e a responsabilidade

crescem com o grau hierárquico99.

Esses aspectos determinam a existência de um fluxo de carreira planejado,

obediente a critérios justificados, que incluem, como dito anteriormente, a higidez, a

capacitação profissional e os limites de idade, tudo isto influindo nas promoções aos

97 PARADA, Ramón. Prólogo à obra La profesión militar. p.27 98 EM, art.. 28. 99 EM, art. 14.

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postos e graduações subseqüentes. Sem esse fluxo, a renovação permanente,

possibilitada pela rotatividade nos postos e graduações, ficaria extremamente

prejudicada e a operacionalidade atingida.

Essas promoções são realizadas segundo um planejamento a longo prazo,

necessário para definir, com precisão considerável, as vagas existentes em cada

posto ou graduação e administrar o fluxo de carreira nos diferentes quadros de

Oficiais e de Praças. É oportuno salientar, aqui, que esse planejamento é o mais

criterioso possível, tendo em vista que os efetivos das Forças Armadas são fixados

ou modificados por lei de iniciativa privativa do Presidente da República100.

Os riscos profissionais também se constituem num fator diferenciador, pois o

militar com eles convive durante toda a sua carreira. Uma granada, um projetil ou

explosivo que detona antes do tempo devido, uma aeronave que cai ou um

marinheiro que é lançado ao mar revolto, são episódios bem mais comuns do que se

imagina. As perdas não ocorrem somente nas guerras ou situações especiais de

conflito menos graves, onde o emprego das Forças Armadas é requisitado.

Seja nos treinamentos, na sua vida diária a bordo de navios ou quartéis ou

mesmo em uma missão humanitária, a possibilidade iminente de um dano físico ou

da morte é um fato permanente no exercício funcional do militar. Por eles, o militar e

sua família não são compensados com qualquer seguro ou assistência especial.

O exercício da atividade militar, por natureza, demanda a convivência com os

fatores de risco e, muitas vezes, exige o comprometimento da própria vida.

A seu turno, a vida na caserna é assemelha-se a um sacerdócio. Durante

todo o período do serviço ativo, o militar não pode exercer qualquer outra atividade

profissional, o que o torna dependente de seus vencimentos, historicamente

reduzidos. Mesmo na inatividade, há dificuldade no seu aproveitamento pelo

mercado de trabalho, em virtude da sua formação incomum e devido aos longos e

rotineiros períodos de afastamento (viagens, manobras militares, etc.) e a

disponibilidade integral, nas 24 horas do dia, tornando deveras difícil a formação

profissional no meio civil.

Ao ser movimentado em qualquer época do ano, para qualquer região do

país, pode vir a residir, em alguns casos, em locais inóspitos e destituídos de infra-

estrutura de apoio à família. Isso mostra, também, uma face geralmente oculta: as

100

Constituição Fededral, art. 61, §1º, I.

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exigências da profissão não ficam restritas à pessoa do militar, mas afetam a vida

familiar, inclusive.

Com efeito, as movimentações ou transferências rotineiras dificultam o

estabelecimento de relações duradouras e permanentes do núcleo familiar na

localidade em que reside; o exercício de atividades profissionais pelo cônjuge do

militar é bem restrito, quando existente, o que torna mais embaraçosa a formação do

patrimônio familiar; a educação dos filhos é prejudicada com as freqüentes

mudanças de escola.

Por final, vale lembrar que após décadas de dedicação exclusiva, a

transferência para a reserva pode não ser o ponto final da carreira, pois a esta

espécie de inatividade não é imune à mobilização e à reconvocação.

De fato, os militares ingressam na inatividade quando são transferidos para a

reserva remunerada ou são reformados. Nos termos do art. 3º, §1º do EM, na

Reserva, permanecem vinculados à respectiva Força Armada, sujeitando-se à

prestação do serviço ativo por força de convocação ou mobilização; ao contrário,

uma vez reformados, por idade-limite101 ou incapacidade física102, estão dispensados

de qualquer obrigação com o serviço militar, por não mais gozarem do vigor físico

necessário a uma eventual convocação. Em qualquer situação, Reserva ou

Reforma, permanecem sob a ação da esfera disciplinar, pois a disciplina e o respeito

à hierarquia devem ser mantidos em todas as circunstâncias da vida entre militares

da ativa, da reserva remunerada e reformados103.

3.5. OS PRINCÍPIOS DA HIERARQUIA E DA DISCIPLINA

A compreensão das especificidades da função militar e do fundamento de um

regime jurídico diferenciado, exige enfrentar a questão da dimensão a ser atribuída à

hierarquia e à disciplina: estariam elas no patamar dos princípios constitucionais?

Formulada a pergunta, nos vem à lembrança a advertência de SARMENTO:

[...] é interessante observar que a doutrina brasileira tem o hábito de rotular, como princípios, certas normas constitucionais que não

101 EM, art. 106, I. 102 Ibid. Art. 106, II 103 Id. Art. 14, §3º

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desfrutam desta qualidade. [...] Este uso equivocado — que pode ser em parte debitado à preocupação da doutrina em acentuar a importância de certas regras constitucionais — contribui para que se instale penosa confusão conceitual entre princípios e regras no direito brasileiro104.

Para o citado autor, a jurisprudência exerce um papel importante no intento de

revelar alguns princípios constitucionais implícitos, dando-lhes o lustro exigido pelas

necessidades de uma determinada comunidade:

[...] Sem embargo é também inquestionável que o intérprete não pode, ao seu bel-prazer, criar princípios do nada, máxime no plano constitucional, onde os princípios tornam-se vinculantes para o legislador eleito. O reconhecimento de um princípio implícito resulta de um trabalho de descoberta e não de pura invenção. Neste trabalho, tem importância vital a atuação da jurisprudência que, sensível às necessidades práticas postas pela comunidade, vai revelando princípios latentes no ordenamento e conferindo-lhes, com o passar do tempo, o necessário 'polimento', até que eles adquiram uma compostura mais precisa105.

No plano etimológico, a palavra hierarquia apareceu primeiro na religião, com

os sacerdotes maiores dando ordens para os sacerdotes menores e estes para os

crentes. A pirâmide religiosa ia até o hierarca, que era o sacerdote máximo106. Tendo

nascido na religião, na qual o vocábulo hierárchios significa "à maneira de grão-

sacerdote", passou para a linguagem do Exército107.

Hierarquia existe, nas mais variadas formas e situações, geralmente como

parte de sistemas sociais, formas de classificação ou qualquer outra área que se

pretende mostrar ordenada a partir de escalas de alguma forma cumulativas, em

todas as sociedades, desde as mais antigas.

Nos tempos atuais, basta-nos observar a realidade circunjacente para que

constatemos a presença da hierarquia a se disseminar na escola, na família, na

religião, no interior do próprio Estado e, como não poderia deixar de ser, nas Forças

Armadas. É a base sobre a qual são exteriorizados cotidianamente sinais de

respeito, o cerimonial, as honras, as continências, as ordens e os comandos; ações

executadas pelos membros das Forças, cada qual em uma posição no interior da

instituição.

Para BANDEIRA DE MELLO, a hierarquia pode ser definida como: 104 SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 51. 105 Id. Ibid. p. 53. 106 CRETELLA JÚNIOR, José. Dicionário de Direito Administrativo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p.277-278. 107 Id. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 2ª ed. vol.VI. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p.3401

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"o vínculo de autoridade que une órgãos e agentes, através de escalões sucessivos, numa relação de autoridade, de superior a inferior, de hierarca a subalterno. Os poderes do hierarca conferem-lhe, de forma continua e permanente: a) poder de comando; b)poder de fiscalização; c)poder de revisão, poder de punir." 108

Assentindo que a hierarquia é o vínculo de subordinação escalonada e

graduada de inferior a superior109, resta apurar qual é o seu propósito.

Na lição de SEABRA FAGUNDES, em sua clássica obra As Forças Armadas

na Constituição, a hierarquia tem por escopo:

“fazer atuar várias vontades no sentido da realização prática do que uma só (ou um número limitado delas, em órgãos coletivos), considerada 'superior, melhor, mais eficaz', conceba e determine. A vontade do superior condiciona, então, a do superior110.

Na outra face da mesma moeda, temos a disciplina, definida como o poder

que têm os superiores hierárquicos de impor condutas e dar ordens aos inferiores.

Correlativamente, significa o dever de obediência dos inferiores em relação aos

superiores 111.

A disciplina é essencial para o sucesso em qualquer organização, pois é

através dela que os homens conseguem canalizar suas energias em prol dos

objetivos que pretendem alcançar.

MAURO DIAS, em sua Tese à Livre Docência112, citando HELY, TROTABAS

e MARCELLO CAETANO, adverte que não se pode conceber a disciplina sem que

haja uma hierarquia, sendo esta a base da administração em qualquer regime

político ou organização social.

Quando na Administração civil ocorre uma infração disciplinar, estamos diante

de uma infração administrativa perfeitamente delimitada e tipificada. Se o infrator é

um militar, sua falta ofende a própria disciplina.

108 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 11ª ed.. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 97-8 109 SILVA, José Afonso da. Op.cit., 645. 110 FAGUNDES, M. Seabra. Op.cit., p.23. 111 SILVA, José Afonso da. Op.cit.. p. 645 112 DIAS, Francisco Mauro. Tese para Prova de Habilitação à Livre Docência na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: [s.n.], 1976.

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Na esfera militar, afirma COSTA, é a disciplina e não a liberdade a nota

suprema, predominante e necessária113. A disciplina é a vida e a força do Exército,

sem ela não há subordinação nem segurança: é indispensável a dedicação ou

abnegação do soldado114.

No saber de JOSÉ AFONSO DA SILVA115, a hierarquia é “o vinculo de

subordinação escalonada e graduada de inferior a superior” e a disciplina “é o poder

que tem os superiores hierárquicos de impor condutas e dar ordens aos inferiores.

Correlativamente, significa dever de obediência dos inferiores em relação aos

superiores”. O constitucionalista ainda adverte que:

"Não se confundem, como se vê hierarquia e disciplina, mas são termos correlatos, no sentido de que a disciplina pressupõe relação hierárquica. Somente se é obrigado a obedecer, juridicamente falando, a quem tem o poder hierárquico. ‘Onde há hierarquia, com superposição de vontades, há, correlativamente, uma relação de sujeição objetiva, que se traduz na disciplina, isto é, no rigoroso acatamento pelos elementos dos graus inferiores da pirâmide hierárquica, as ordens, normativas ou individuais, emanadas dos órgãos superiores.’ A disciplina é, assim, um corolário de toda organização hierárquica."

Sem sobra de dúvida, com relação às Forças Armadas, a disciplina é,

juntamente com a hierarquia, um dos princípios mais elevados a serem observados.

Não é uma virtude meramente enunciativa ou uma reminiscência romântica, senão

uma obrigação concreta que alcança a todos e a cada um dos militares.

Por serem instituições fortemente hierarquizadas e possuidoras de uma árdua

destinação constitucional, nas Forças Armadas o sistema disciplinar assume

importância capital, pois na condição de encarregadas da defesa do Estado e da

tranqüilidade de seus habitantes são chamadas a intervir em momentos críticos da

vida nacional, quando se impõe uma rigorosa subordinação à lei.

Nessa subordinação, adverte SEABRA FAGUNDES, repousará a certeza de

o uso das armas não será desvirtuado, quer positivamente pela negação dos destino

constitucional das corporações militares, quer negativamente pela ineficiência delas

em face de sua missão116.

O termo disciplina, a nosso ver, traduz um significado muito mais amplo do

que o que lhe é comumente atribuído. Não significa apenas seguir mecanicamente 113 COSTA, Alvaro Mayrink da. Crime militar. Rio de Janeiro: Rio, 1978. p.25. 114 BUENO, Jose Antonio Pimenta. Op.cit., p.95. 115 Op. Cit. p. 720. 116 FAGUNDES, M. Seabra. Op. cit., p.24.

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as regras preestabelecidas, mas também — e talvez seja este seu ponto máximo —

aceitá-las conscientemente como um fator fundamental na busca da superação das

tendências humanas de acomodação e desinteresse pela correção de atitudes

contrárias aos padrões concebidos. Esta atitude espontânea na busca do

aperfeiçoamento, inspirada na eficiência e não pelo receio de castigos — lembra-nos

ARRUDA —, é o que a doutrina militar brasileira chama de disciplina consciente117.

A disciplina militar representa uma realidade muito antiga entre os soldados,

consolidando-se como necessidade inquestionável para que o comandante pudesse

conduzir seus subordinados na defesa de algo que interessava a todos, isto é, a

sobrevivência de suas comunidades, de suas famílias e a manutenção de seu

patrimônio. A evidência daquelas ameaças e a necessidade de eficácia na ação

para afastá-las, gera os rigores da ordem e da obediência entre militares, sem que

isso signifique a simples redução de um militar às opções de servidão inquestionável

ou de submissão às sanções dos regulamentos disciplinares. Nas Forças Armadas,

é a consciência coletiva de obediência em nome da eficácia do aparelho de defesa

que prevalece, e não aquele quadro simplista

Com efeito, em muitos momentos de sua vida o ser humano depara-se com a

existência de regras, limitando ou impondo-lhe comportamentos, que por vezes não

traduzem sua vontade. É nestes momentos que se verifica a presença da disciplina,

regulando sua vida e, de certa forma, tolhendo sua liberdade. Porém lhe é facultado

optar por aceitar os regramentos disciplinares, por julgá-los coerentes e necessários,

assimilá-los por não se ver em condições de contrapô-los ou então refutá-los, o que

implicará em ficar à margem daquele contexto quando a disciplina dita

comportamentos.

O momento e a opção voluntária e consciente de que falamos anteriormente,

não foge à percepção do Judiciário, e um bom exemplo disso é apresentado no

julgamento do RHC nº 91.01.11620-7/DF, em 16.9.1991, pela 4ª Turma do Tribunal

Regional Federal da 1ª Região, relatado pela juíza ELIANA CALMON:

A febre de liberdade chancelada pela Constituição de 88 tem levado a sérias confusões sócio-jurídicas, outorgando os cidadãos ao Poder Judiciário, como última trincheira na defesa dos seus direitos, a palavra final sobre assuntos os mais diversos, inclusive aqueles sobre os quais não cabe ao juiz decidir [...] Atos políticos, atos 'interna corporis', atos disciplinares estão sendo questionados em

117 ARRUDA, João Rodrigues. A Ampla Defesa no Direito Disciplinar no Exército. O Alferes, Belo Horizonte, n.10, p. 22-23, jul./ago./set.. 1986.

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seu mérito. E os magistrados, também cidadãos, envolvidos no mesmo clima de liberdade, não se apercebem, muitas vezes, dos seus limites legais. [...] A sanção imposta ao paciente teve a sua origem no Regulamento Disciplinar da Marinha, observando-se que foi aplicado por quem tinha competência para fazê-lo, [...], dirigido a quem tem o dever de seguir o figurino próprio de sua categoria, mesmo estando na Reserva Remunerada, [...] Estes são os únicos aspectos passíveis de apreciação pelo Poder Judiciário, ao qual está vedado agora, como no passado, analisar o mérito da sanção disciplinar, como claro deixou expresso o legislador constitucional no artigo 142, §2, [...] voto para modificar a sentença, cassando o salvo conduto outorgado ao paciente.

Por si só o voto da Relatora já era bastante para demonstrar a peculiar

situação do regime disciplinar dos militares. Mas o Juiz OLINDO MENEZES foi mais

adiante, para retratar, com clarividência e de modo lapidar, o que vem a ser a opção

consciente pela carreira militar e as suas conseqüências naturais:

Na vida cada cidadão segue um caminho. Cada caminho seguido tem a sua própria feição. Se o cidadão resolve seguir a vida militar, deve estar ciente de que é uma vida cheia da limitações, cheia de imposições, que, no mundo civil, às vezes, são até absurdas, mas que, no mundo militar, justificam-se pelos princípios da hierarquia e disciplina, que informam a concepção de Forças Armadas, de serviço militar. Determinar a prisão de um militar porque questionou, em juízo, um direito à aquisição de um apartamento, à primeira vista parece um absurdo, já que isso, quanto aos civis, é o trivial. Mas o raciocínio não fica autorizado quando se consideram aquelas razões anteriores, a que me referi, informativas da vida militar. Acho que o Judiciário pode examinar uma punição dessas, mas para ver se ela aninha alguma ilegalidade. Não é vedado o exame. O exame se faz para ver se há ilegalidade. No caso, concordo com a Relatora, de que não há a ilegalidade, mas uma indisciplina militar, punida de acordo com o regulamento militar, aplicável a um militar. (grifo nosso)

Além desse, vários outros julgados fazem referência aos princípios da

hierarquia e da disciplina, ora confirmando a sua aplicação a um caso concreto, ora

afastando a aplicabilidade, porém sempre reconhecendo a sua existência e os

vínculos que eles produzem118.

Diante desse contexto jurisprudencial, requisitado por SARMENTO, temos

como pacífica a existência dos princípios da hierarquia e disciplina; e mais, são

vinculantes, pois pertencem ao patamar constitucional.

118 Neste sentido: HC nº 81.026-8/AM (STF, 2ª Turma, Relator Min. Néri da Silveira. 7.8.2001); AMS nº 94.01.36766-6/MA (TRF 1ª Região, 1ª Turma, Relator Juiz Aldir Passarinho Junior. 4.6.1996); AC nº 1999.01.00.007196-5/DF (TRF 1ª Região, 3ª Turma, Relator Juiz Osmar Tognolo. 10.11.1999); HC nº 2000.51. 512342-8 (TRF 2ª Região, Plenário. Ac.publicado D.J. 26.9.2000).

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Em suma, a hierarquia e a disciplina são conceitos estruturantes das Forças

Armadas, sendo prestigiados pela atual Carta Magna com verdadeiros princípios

constitucionais, não apenas por estarem inseridos no texto constitucional, mas pela

sua orientação de matriz axiológica reconhecida pela jurisprudência.

No plano infraconstitucional, como não poderia deixar de ser, o legislador

ordinário sempre esteve atento ao fundamental. O significado daquela opção pela

carreira militar aparece traduzido nas definições do EM, no art. 14, §§1º a 3º.

Ressalta-se que este diploma legal nada mais fez do que manter a tradição

estatutária militar119

Igualmente, por sua reconhecida importância, a hierarquia e a disciplina

militar, fazem jus a efetiva tutela em sede penal. Nessa sede, temos o Código Penal

Militar120 e o Código de Processo Penal Militar121. O Código Penal Militar, na

disciplina dos crimes militares em tempo de paz, dispôs, em trinta e três artigos,

sobre os “crimes contra a autoridade ou disciplina militar", os quais tipificam

condutas contrárias à autoridade (hierarquia) e à disciplina militar. Já o Código de

Processo Penal Militar, ao tratar da fiscalização e função especial atribuída ao

Ministério Público (art. 55), dispôs:

"Cabe ao Ministério Público fiscalizar o cumprimento da lei penal militar, tendo em atenção especial o resguardo das normas de hierarquia e disciplina, como base da organização das Forças Armadas."

Nesse mister, compete ao Parquet Militar tutelar a preservação da hierarquia

e disciplina, como ocorre na representação para a declaração de indignidade ou de

incompatibilidade para o oficialato, ou ainda, para a perda de posto e patente122.

Salta aos olhos que as Forças Armadas pautam suas atividades na lei e em

regulamentos, o que implica na imposição de extrema disciplina, haja vista a

necessidade da observância fiel aos diversos ditames normativos para se atingir os

fins a que a corporação se propõe. Tal imperativo deriva da própria estrutura

119 Veja-se os EM anteriores: Lei nº 5.774, de 23.12.71 (art.2º e 15); Decreto-lei nº 1.029, de 21.10.1969 (arts. 2º e 13); Decreto-lei nº9.698, de 2.9.1946 (art.15 e 16); Decreto-lei nº 3.864, de 24.11.1941 (art. 2º); Decreto-lei nº 3.084, de 1.3..1941 (art. 2º) 120 Decreto-Lei 1.001, de 21 de outubro de 1969 121 Decreto-Lei 1.002, de 21 de outubro de 1969 122 Lei Complementar nº 75/1993, art. 116, II.

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organizacional, que lhes exige imprimir interna corporis um ritmo dinâmico e

respeitoso entre os seus integrantes.

Em arremate, pede-se vênia para referendar as palavras de CORRÊA123, em

artigo que ressalta a importância da hierarquia e da disciplina para a integridade das

Forças Armadas, bem como os efeitos danosos que podem ser causados por uma

intervenção judicial inoportuna e indevida. O autor invoca o Parecer do Procurador

da República, MÁRIO P. ALBUQUERQUE, em caso concreto de invasão do

Judiciário em matérias que não detém pleno conhecimento:

Princípios como os da isonomia e da inafastabilidade do Judiciário — alerta o Representante do Ministério Público Federal — têm pouco peso quando se trata de aferir situações específicas à luz dos valores constitucionais da hierarquia e da disciplina. O quartel é tão refratário àqueles princípios, como deve ser uma família coesa que se jacta de ter à sua frente um chefe com suficiente e acatada autoridade. E seria tão desastroso para a missão institucional das Forças Armadas que as ordens de um oficial pudessem ser contraditadas nos tribunais comuns, como para a coesão da família, se a legitimidade do pátrio poder dependesse, para ser exercido, do plebiscito da prole.

E, na conclusão, clama-se por uma reflexão quanto aos efeitos nocivos em

um futuro previsível:

“Princípios democráticos são muito bons onde há relações sociais de coordenação, mas não em situações específicas, onde a subordinação e a obediência são exigidas daqueles que, por imperativo moral, jurídico ou religioso, as devem aos seus superiores, seja, aqueles, filhos, soldados ou monges. Se o Judiciário, por uma hipersensibilidade na aplicação dos aludidos princípios constitucionais, estimular ou der ensejo a feitos como os da espécie, pronto: os quartéis se superpovoaram de advogados e despachantes; uma continência exigida será tomada como afronta à dignidade do soldado e, como tal, contestada em nome da Constituição; uma mera advertência, por motivo de desalinho ou má conduta, dará lugar a pendengas judiciais intermináveis, e com elas, a inexorável derrocada da hierarquia e da disciplina.”

Assim sendo, não nos parece que caiba qualquer dúvida quanto ao problema

levantado ao início desta seção: hierarquia e disciplina são princípios

constitucionais.

123 CORREA, Sergio Feltrin. A integridade das Forças Armadas – hierarquia e disciplina e a utilização da via judicial. Justiça e Cidadania, set., 2002, p. 30-36.

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3.6. O REGIME JURÍDICO ESPECIAL

3.6.1 O Estatuto dos Militares

A Constituição Federal trata das Forças Armadas no Capítulo III do Título IV,

e dispõe, no art. 142, que tal complexo orgânico é constituído pela Marinha, pelo

Exército e pela Aeronáutica. São instituições nacionais permanentes e regulares,

organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do

Presidente da República, destinadas à defesa da Pátria, à garantia dos poderes

constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Em seu art. 3º, o EM relaciona os sujeitos submetidos à sua jurisdição:

Art. 3° Os membros das Forças Armadas, em razão de sua destinação constitucional, formam uma categoria especial de servidores da Pátria e são denominados militares. § 1° Os militares encontram-se em uma das seguintes situações: a) na ativa: I - os de carreira; II - os incorporados às Forças Armadas para prestação de serviço militar inicial, durante os prazos previstos na legislação que trata do serviço militar, ou durante as prorrogações daqueles prazos; III - os componentes da reserva das Forças Armadas quando convocados, reincluídos, designados ou mobilizados; IV - os alunos de órgão de formação de militares da ativa e da reserva; e V - em tempo de guerra, todo cidadão brasileiro mobilizado para o serviço ativo nas Forças Armadas. b) na inatividade: I - os da reserva remunerada, quando pertençam à reserva das Forças Armadas e percebam remuneração da União, porém sujeitos, ainda, à prestação de serviço na ativa, mediante convocação ou mobilização; e II - os reformados, quando, tendo passado por uma das situações anteriores estejam dispensados, definitivamente, da prestação de serviço na ativa, mas continuem a perceber remuneração da União. lll - os da reserva remunerada, e, excepcionalmente, os reformados, executado tarefa por tempo certo, segundo regulamentação para cada Força Armada.

A discriminação das pessoas alcançadas pelo EM é importante e deveria

receber maior atenção dos operadores do Direito, pois não são raras as confusões

que vinculam os integrantes da Reserva mobilizável (não remunerada) à situações

aplicáveis exclusivamente à inatividade remunerada (Reserva Remunerada e

Reforma), mormente envolvendo direitos. O inciso I do art. 8º arremata qualquer

dúvida.

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No art. 5º, cuida-se da imposição de dedicação exclusiva à carreira militar e

da devoção à destinação das Forças Armadas, comando que veda implicitamente o

exercício de qualquer outra atividade laboral e que deve justificar um tratamento

remuneratório diferenciado por parte do Estado.

Além disso, o dispositivo reforça o vínculo com a nacionalidade em

consonância com a tradição constitucional brasileira. Nas Forças Armadas, por

disposição expressa na Constituição Federal art. 12, § 3º, o cargo de Oficial é

privativo de brasileiro nato, exigência esta requerida apenas de alguns poucos

cargos de extrema importância para a condução da vida política da Nação, tais como

o de Presidente e Vice-Presidente da República, Presidente da Câmara dos

Deputados, Presidente do Senado Federal, Ministros do Supremo Tribunal Federal,

Ministro da Defesa e membros da carreira diplomática. Isso denota a importância e a

responsabilidade atribuídas àqueles que ocupam o posto de Oficial das Forças

Armadas.

Nos artigos 15, 16 e 17, toda a importância do princípio da hierarquia pode

ser visualizada. Neles são fixados os âmbitos de convivência militar, o lugar que

cada um ocupa na escala hierárquica e, até mesmo, uma série de regras que

definem a precedência (ou "antigüidade") entre militares, reforçando a idéia de que

"na caserna não existem dois iguais".

Art. 15. Círculos hierárquicos são âmbitos de convivência entre os militares da mesma categoria e têm a finalidade de desenvolver o espírito de camaradagem, em ambiente de estima e confiança, sem prejuízo do respeito mútuo. Art. 16. Os círculos hierárquicos e a escala hierárquica nas Forças Armadas, bem como a correspondência entre os postos e as graduações da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, são fixados nos parágrafos seguintes e no Quadro em anexo. § 1° Posto é o grau hierárquico do oficial, conferido por ato do Presidente da República ou do Ministro de Força Singular e confirmado em Carta Patente. [...] § 3º Graduação é o grau hierárquico da praça, conferido pela autoridade militar competente. Art. 17. A precedência entre militares da ativa do mesmo grau hierárquico, ou correspondente, é assegurada pela antigüidade no posto ou graduação, salvo nos casos de precedência funcional estabelecida em lei. (grifos nossos)

Aquelas bases fundamentais das Forças Armadas, concretizam-se no meio

militar como decorrência de um conjunto de vínculos racionais e morais que ligam o

militar à pátria e ao serviço.

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Tais deveres estão dispostos no art. 31, I a IV do EM e compreendem:

a dedicação e a fidelidade à Pátria, cuja honra, integridade e instituições

devem ser defendidas mesmo com o sacrifício da própria vida;

o culto aos Símbolos Nacionais;

a probidade e a lealdade em todas as circunstâncias; a disciplina e o respeito

à hierarquia;

o rigoroso cumprimento das obrigações e das ordens; e a obrigação de tratar

o subordinado dignamente e com urbanidade.

Nota-se, portanto, que os princípios da hierarquia e da disciplina no âmbito

militar, têm uma dimensão bem maior do que a circulante no meio civil. Ao particular

ou servidor civil basta o cumprimento regular dos seus misteres, enquanto do

servidor militar espera-se um plus. Assim, além do estrito cumprimento dos seus

deveres, há que o militar refletir uma adesão psicológica ao ideário militar ou uma

vocação para a vida castrense.

As patentes — conferidas pelo Chefe do Executivo — com prerrogativas,

direitos e deveres a elas inerentes, são asseguradas em plenitude aos oficiais da

ativa, da reserva ou reformados das Forças Armadas, sendo-lhes privativos os

títulos, postos e uniformes militares. Tais direitos e deveres são descritos com

relativa minúcia no plano estatutário (EM, art. 50)

No que concerne à perda do posto e da patente, a Constituição Federal

dispõe, no art. 142, § 3º, VII, que o Oficial das Forças Armadas só perderá o posto e

a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de

tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em

tempo de guerra.

3.6.2 Os regulamentos disciplinares

O vocábulo transgressão, do verbo transgredir, encerra a idéia de

desobediência, descumprimento, infração, violação. Disciplina é, por sua vez, a

observância de preceitos e normas que convém ao funcionamento regular de uma

organização.

Deduz-se, pois, que transgressão disciplinar é a desobediência de preceitos e

normas que convém ao funcionamento regular de uma organização.

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A expressão transgressão disciplinar, quando se acrescenta o adjetivo militar,

tem o seu conceito qualificado, pois a disciplina militar é uma disciplina qualificada

se tomada em relação à disciplina exigida dos servidores civis. Ela é detentora de

institutos próprios, estando os militares sujeitos a imposição de comportamentos

absolutamente afinados aos imperativos da autoridade, do serviço e dos deveres

militares, o que, em regra, não se exige do servidor público civil.

Para a preservação dos princípios da hierarquia e da disciplina, e até mesmo

para evitar excessos, fez-se necessário um ordenamento jurídico classificatório e

sistematizador, estabelecido para distinguir diferentes categorias de transgressões

disciplinares, que apresentam distintas conseqüências repressivas, além da

aplicação mais justa e mais adequada da norma, com o controle das autoridades

superiores. Essa matéria foi delineada no EM e, por delegação de competência,

especificada nos decretos que aprovam os regulamentos disciplinares das Forças

Armadas.

Mas são as simples transgressões disciplinares, e não as faltas mais graves,

que constituem o objeto desses regulamentos, o que se compadece com a tradição

do nosso Direito e com os princípios constantes das nossa Cartas Políticas, entre as

quais se inclui a atual Constituição Federal.

O Regulamento Disciplinar do Exército (RDE), aprovado Decreto nº 4.326, de

26 de agosto de 2002, que revogou o decreto nº 90.608, de 04 de dezembro de

1984 (antigo RDE).

O RDE, em seu art. 14, conceitua transgressão disciplinar como:

“Toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe.”

O Regulamento Disciplinar da Marinha (RDM), baixado pelo Decreto n.º 88.

545, de 26 de julho de 1983, chama a transgressão disciplinar de “Contravenção

Disciplinar”, definindo-a, no art 6º, como:

“Toda ação ou omissão contrária às obrigações ou deveres militares estatuídos nas leis, nos regulamentos, nas normas e nas disposições em vigor que fundamentam a organização militar, desde que não incidindo no que é capitulado pelo Código Penal Militar como crime.”

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O Regulamento Disciplinar da Aeronáutica (RDAer), aprovado pelo Decreto nº

76.322, de 22 de setembro de 1975, denomina no art. 8º transgressão disciplinar:

Toda ação ou omissão contrária ao dever militar, e como tal classificado nos termos do presente Regulamento. Distingue-se do crime militar que é ofensa mais grave a esse mesmo dever, segundo o preceituado na legislação penal militar.

Tais regulamentos relacionam o que consideram como transgressão

disciplinar, em número que se encontra nas cercanias dos 100 tipos. A distinção

entre transgressão/contravenção disciplinar militar e crime militar reside nas

espécies de penas aplicadas a cada categoria e na importância do bem jurídico que

se tutela, já que crime militar e transgressão disciplinar encerram violação do

ordenamento jurídico, ontologicamente falando.

Todavia, registramos algumas diferenças existentes entre os institutos: o

crime militar pressupõe a violação de uma norma legal e a transgressão disciplinar

militar pode constituir-se pela inobservância de disposição regulamentar ou de

ordem superior de caráter geral, sendo que à transgressão disciplinar só os militares

estão sujeitos, ao passo que aos crimes militares qualquer cidadão está sujeito.

O RDM e o RDAer ampliam o conceito de transgressão disciplinar e

consideram como tal todas as ações ou omissões, não especificadas na relação,

nem qualificadas como crime nas leis penais brasileiras, que afetam a honra

pessoal, o pundonor militar, o decoro da classe e outras prescrições estabelecidas

no Estatuto dos Militares, leis e regulamentos, bem como aquelas praticadas contra

normas e ordens de serviços, emanadas de autoridade competente, consoante o art.

10, parágrafo único, do RDAer; e art. 7º, parágrafo único, do RDM.

Vê-se, pois, que o conceito de transgressão disciplinar militar é bastante

amplo, como amplo também é o poder discricionário da autoridade militar que detém

o poder disciplinar. Tal amplitude conceitual que, via de conseqüência, criou a

categoria das transgressões disciplinares militares não especificadas, é questionada

na atualidade sob o argumento de que se trata de norma disciplinar genérica.

Nesse sentido RODRIGUES ROSA, para quem:

O processo administrativo, pós 88, passou a ter todas as garantias previstas para o processo judicial, conforme preceitua o artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal. Com base neste dispositivo, para que a ampla defesa e o contraditório com todos os recursos a ela

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inerentes possam ser exercidos é preciso que o acusado tenha conhecimento do ilícito que teria violado, e que já se encontre previsto em norma anterior de forma específica. E complementa, afirmando que a disciplina das transgressões disciplinares militares não especificadas é incompatível com o Estado de Direito, por desrespeitar um de seus pilares: o princípio da legalidade que se desdobra na taxatividade. Portanto, não há transgressão disciplinar sem tipo; o recurso a cláusulas gerais não permite ao acusado captar o que é proibido ou ordenado. 124

O sistema disciplinar construído pelos regulamentos também prevê o respeito

ao princípio do devido processo legal, permitindo ao militar tomar ciência do fato que

lhe é imputado, quem lhe imputa tal fato e a inafastável oportunidade de defender-se

e recorrer contra uma eventual punição. Tal sistema, entretanto, mantém uma

natureza sumária, apesar de formal, de modo a propiciar uma maior simplicidade no

processo de cominação 125, que em alguns casos é aplicável de plano.

124 ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Direito Administrativo Militar.Rio de janeiro: Lumen Juris, 2003. p.7-9 125 SEABRA, M. Seabra, Op. cit, p. 25.

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4. ACESSO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

4.1 À GUISA DE INTRODUÇÃO

O tema se abre com um esclarecimento terminológico acerca da possível

sinonímia existente entre as expressões “direitos fundamentais” e “direitos

humanos”. Há quem entenda que são expressões sinônimas, como TORRES126. Há

quem considere um equívoco usá-las indistintamente como sinônimos, como

NOGUEIRA127.

De um modo geral a expressão direitos humanos é utilizada no contexto da

filosofia do direito e no contexto do direito internacional, reservando-se a expressão

direitos fundamentais ao âmbito do direito constitucional128. Normalmente, tratamos

dos direitos fundamentais como os direitos humanos positivados (não quer dizer que

sejam os escritos explicitamente, mas os presentes na ordem jurídica). Já a

expressão direitos humanos tem um conteúdo mais filosófico-político, do que

propriamente jurídico. Então quando estamos falando em direitos fundamentais, em

regra estamos aludindo a direitos que tenham uma consagração no ordenamento

positivo.

No caso brasileiro, tendo em vista aquela cláusula de abertura do art. 5º, §2º

— pacificada pela Emenda Constitucional nº. 45/2004 — é possível falar que os

direitos humanos são direitos fundamentais, e desse modo o presente trabalho os

abordará.

De fato, muito embora a doutrina discorde sobre a amplitude e a

nomenclatura, ela é assente ao atribuir características aos direitos fundamentais, as

quais delineiam o seu regime jurídico e preenchem suas funções. Os direitos

fundamentais são caracterizados pela imprescritibilidade, inviolabilidade,

universalidade e pela efetividade. Os direitos fundamentais não se perdem pelo

126 TORRES, Ricardo Lobo. A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 258. 127 NOGUEIRA, Alberto. Direito Constitucional das Liberdades Públicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.7. 128 Quanto à expressão liberdades públicas, Alberto Nogueira indicia sua origem francesa, citando Jean Rivero, Jean Morange, Jacques Robert e Jean Duffar. Essa não seria uma expressão muito adequada para abarcar todos os direitos fundamentais, já que ela estaria ligada, de forma imediata, aos direitos de conteúdo individual liberal (liberdade de expressão, de religião), porém dificilmente seria utilizada para tratar do direito ao trabalho ou à educação. Cf. na obra Jurisdição das Liberdades Públicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 214-216.

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decurso de prazo, por serem permanentes e inalienáveis; não são transferíveis para

outra pessoa, gratuita ou onerosamente, além de não serem renunciáveis. Outra

característica dos direitos fundamentais é a inviolabilidade, do que resulta que

nenhuma autoridade pública e nem mesmo lei infraconstitucional podem

desrespeitar os direitos fundamentais de outrem, sob pena de responsabilização

civil, administrativa e criminal. A universalidade dos direitos fundamentais protege a

todos os indivíduos, independentemente de sua nacionalidade, sexo, raça, credo ou

convicção político-filosófica. A efetividade é a garantia da atuação do Poder Público

de maneira a garantir a efetivação dos direitos e garantias fundamentais, usando,

inclusive, mecanismos coercitivos quando necessário, mesmo porque esses direitos

não se satisfazem com o simples reconhecimento abstrato. As várias previsões

constitucionais não podem se chocar com os direitos fundamentais, não sendo

possível simplesmente escolher uma norma em detrimento das demais: por terem a

mesma hierarquia e em respeito ao princípio da unidade, devem ser interpretadas de

forma harmônica de modo a atingirem suas finalidade. Em suma, os direitos

fundamentais não devem ser interpretados isoladamente, mas sim de forma

conjunta, com a finalidade da sua plena realização.129

A Declaração Universal dos Direitos do Homem130 trouxe um componente

multiplicador dos direitos, pois o homem deixou de ser considerado abstrato,

passando a ser visto nas suas especificidades concretas como crianças, velhos e

hiposuficientes etc., possibilitando a todos a igualdade no tratamento e proteção.

Esses direitos encontram-se claramente definidos nos artigos 1º, 3º, 5º e 25º, onde

declaram os seres humanos livres e iguais em dignidade e direitos desde seu

nascimento, o direito à vida, à liberdade e à segurança, a proibição da tortura,

punição ou trabalho cruel, desumano ou degradante e o direito de todos a um

padrão adequado para a saúde e bem estar de si mesmo e de sua família, incluindo

alimentação, vestuário, habitação e assistência médica e aos serviços sociais

necessários, e o direito à proteção em caso de desemprego, doença, invalidez,

viuvez, velhice ou outra carência de sustento em circunstâncias fora de controle131.

129 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2002. p. 39-41. 130 Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948. 131 A Declaração de 1948 não era norma jurídica, ela não foi elaborada como tratado, mas assumiu a força de norma jurídica pelo costume. Após, em 1966, foram elaboradas duas normas: Convenção dos Direitos Civis e Políticos e Convenção dos Direitos Sociais e Econômicos, as quais perfaziam ius cogens do direito internacional.

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Na concepção de FERREIRA FILHO, esses direitos são preexistentes, porque

são oriundos de uma declaração, mas vai além ao afirmar que:

Esses direitos declarados são os que derivam da natureza humana, são naturais, portanto. Ora, vinculados à natureza, necessariamente são abstratos, são do Homem, e não apenas de franceses, de ingleses etc. São imprescritíveis, não se perdem com o passar do tempo, pois se prendem à natureza imutável do ser humano. São inalienáveis, pois ninguém pode abrir mão da própria natureza. São individuais, porque cada ser humano é ente perfeito e completo, mesmo se considerado isoladamente, independentemente da comunidade (não é um ser social que só se completa na vida em sociedade). Por essas mesmas razões, são eles universais – pertencem a todos os homens, em conseqüência estendem-se por todo o campo aberto ao ser humano, potencialmente o universo.132

A individualidade declarada de cada indivíduo na sociedade considera que a

mulher é diferente do homem, a criança do adulto, o adulto do velho, o sadio do

doente, o doente temporário do doente crônico, o doente mental dos outros doentes,

os fisicamente normais, dos deficientes e assim por diante e o reconhecimento do

direito de cada uma destas categorias vem avançando paulatinamente em todo o

planeta, notadamente no Brasil, com alguns progressos na área dos direitos sociais.

Exemplo disso é o Estatuto da Criança e do Adolescente133 e o Estatuto do Idoso134.

A proteção desses novos direitos requer uma intervenção ativa do Estado, cabendo

aos cidadãos pressionar o Estado para que ele atue.

O grande problema da sociedade atual reside na impossibilidade de se

garantir a todos os direitos preconizados em lei. Igualdade, liberdade e fraternidade

são a tônica da sociedade contemporânea, porém a falência do Estado e a sua

diminuição têm se constituído em grandes geradores de dificuldades na garantia dos

direitos dos cidadãos. Como afirma SARLET:

[...] se se está a falar/indagar acerca do papel/função da Justiça Constitucional (ou do Poder Judiciário) na realização/efetivação de direitos sociais fundamentais, é porque se está a admitir que, primeiro, há uma inefetividade da Constituição, e, segundo, em havendo inércia dos Poderes Públicos na realização/implementação de políticas públicas aptas à efetivação dos direitos sociais fundamentais assegurados pela Lei Maior, é possível (e necessária) a intervenção da justiça constitucional.. A toda evidência, tais questões implicam outras três, que se interpenetram: a) a necessidade de uma redefinição na relação entre os Poderes do Estado; b)

132 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo : Saraiva, 2002. 133 Lei nº. 8.242, de 1991. 134 Lei n°. 10.741, de 2003.

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um papel intervencionista da justiça constitucional e c) um certo grau de dirigismo constitucional135.

Assim, ainda que o objetivo seja garantir que todos os cidadãos,

independentemente de raça, gênero, cor, religião, nível cultural ou idade sejam

tratados igualitariamente e tenham sua liberdade garantida, na realidade esta

caminhada está apenas começando. O desrespeito contínuo aos direitos humanos

pelo Estado pode ser considerado como um dos principais fatos geradores da

descrença na sua efetividade, tornando-se indispensável a criação de mecanismos

eficazes que promovam e salvaguardem esses direitos na atualidade.

E é exatamente com essa preocupação que COMPARATO afirma136:

[...] poderia parecer contraditório falar em novos direitos, em alargamento de direitos, se direitos elementares, como o de não ser torturado, ainda não têm plena vigência. A oposição entre antigos e novos direitos é aparente. A consciência de novos direitos não se opõe à busca de realização plena de direitos já afirmados.

4.1.1 O problema da eficácia

“Em qualquer dia útil do acalorado verão brasileiro... no setor de certidões do

Ministério ou da Prefeitura tal, lá está o contribuinte usuário de serviços públicos,

idoso, em pé, há quarenta minutos, num salão com pouca ou nenhuma refrigeração,

perfilado nas cercanias do guichê de atendimento, convicto de que obterá sucesso

em sua jornada. A sua volta, nem água, nem banheiros, nem atenção; apenas

outras filas, outros "iguais", e uma senhora que tenta, em vão, obter informações do

plantonista da segurança. Bem a sua frente, por trás do guichê, o agente público,

cujo semblante reflete um desalento e desalinho diretamente proporcionais aos seus

vencimentos e ao seu humor.”

Quantos de nós já vivenciaram situação semelhante? Muitos, certamente.

Essa (des)estrutura, herdada da administração regaliana137, nutrida no

descaso de governantes e na apatia de governados, é coisa antiga, mas ainda se

135 SARLET, Ingo Wolfgang (Org.) et. al. Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de Direito Constitucional, Internacional e Comparado. Rio e Janeiro : Renovar, 2003. p. 169. 136 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2001. 137 Cf. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.17.

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faz presente, para infelicidade de todas as partes envolvidas — usuário, servidor e

Administração.

O cenário acima visualizado pode inspirar a idéia de que a efetividade dos

direitos fundamentais está correlacionada, de um lado, ao desenvolvimento da

crença do homem na sua dignidade, refletida na diversidade de leis voltadas à

preservação de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais e de outro, a

ideais de um outro modelo de convivência, a partir do momento em que estes

direitos são desrespeitados, tanto pela sociedade como pelo Estado. No panorama

atual, em que pese a existência dos melhores e mais modernos textos legais, ainda

é freqüente o desrespeito aos direitos fundamentais.

Todo esse complexo de leis que asseveram direitos fundamentais geram

verdadeiro conflito de valores universais, textos legais e práticas político-jurídicas

que já estariam desaparecidos, não fosse a participação de cidadãos com visão para

os problemas sociais que assolam o país. É indubitável que a reação comunitária

tem contribuído para a conquista e o respeito dos direitos fundamentais em diversos

países, notadamente no Brasil.

No final do século XX é que “a questão dos fundamentos dos direitos

humanos e do seu peculiar estatuto na ordem jurídica terminou impondo-se ao

jurista, ao juiz e ao legislador, em virtude da conscientização crescente da sociedade

civil no que se refere aos seus direitos fundamentais”138. Essa imposição, aliada à

ampla legislação nacional e internacional foi contributiva para uma interpretação

mais global dos direitos humanos, uma vez que deixavam de ser vistos apenas

como direitos pessoais, passando a expressar também direitos sociais, econômicos,

culturais e políticos, que se afirmaram no processo de liberalização e

democratização da maioria das sociedades e dos Estados contemporâneos, a

exemplo do Brasil, quando da promulgação da Constituição federal de 1988,

chamada de Constituição cidadã, em virtude de estar plenamente voltada ao amparo

e à preservação dos direitos humanos, assumidos como fundamentais.

A afirmação de direitos fundamentais é posta em cheque no plano da

jurisdição constitucional, em função do recurso aos dogmas religiosos, ainda comum

em boa parte do mundo, como caminho de organização social. Todo o prestígio do

138 BARRETO, Vicente. Ética e os direitos humanos: uma introdução. Revista de Ciências Sociais, Universidade gama Filho, Rio de Janeiro, 1997, Edição Especial, p. 242-252, dez-1997.

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direito, alcançado com maior vigor após a Segunda Guerra mundial e com o

processo de redemocratização do mundo subdesenvolvido, repentinamente é

colocado em risco, pois a pretensão de universalidade do modelo liberal de direitos

fundamentais gera oposição.

O problema dos fundamentos dos direitos fundamentais parece perder relevo

a partir do momento em que se chegou a um acordo entre os diversos países

signatários da Declaração Universal dos Direitos do Homem a respeito de quais

seriam esses direitos e quais as suas garantias mínimas. Como afirma BOBBIO:139

Com efeito, o problema que temos diante de nós é jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das declarações solenes, sejam continuamente violados... Com efeito, pode-se dizer que o problema do fundamento dos direitos humanos teve sua solução atual na Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948.

Ocorre que as convicções compartilhadas entre os países que assinaram a

Declaração nas Nações Unidas não foram praticadas com a relevância esperada, se

consideradas as freqüentes violações dos direitos humanos em vários países. A

argumentação seria em relação a quais mecanismos serem aplicados, objetivando a

eficácia desses direitos.

Na prática, o que se observa é que os direitos fundamentais voltados aos

hiposuficientes ou a determinados grupos sociais detentores de algumas

especificidades, muito embora reconhecidos, não são efetivados como deveriam,

tanto pelo Poder Público, quanto pela sociedade. Nesse aspecto, BOBBIO140 deixa

expresso que:

O campo dos direitos fundamentais tem estrada desconhecida, e, além do mais, numa estrada pela qual trafegam, na maioria dos casos, dois tipos de caminhantes, os que enxergam com clareza, mas têm os pés presos, e os que poderiam ter os pés livres, mas têm os olhos vendados. É necessário que esses direitos não fiquem à mercê das autoridades públicas.

Para se expressar de forma mais clara sobre o que ficou indicado pelo autor,

basta observar que os Estados vêm implementando uma política liberalizante de 139 Op. cit. p. 25. 140 Op. cit., p. 37.

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suas economias e, por conseqüência, negligenciam a prestação efetiva dos direitos

fundamentais, notadamente aqueles sob responsabilidade do Estado. Nesse passo,

o Executivo vem assumindo funções legislativas típicas, como bem notou

BARCELOS141:

A elaboração de leis cada vez mais gerais que, expressa ou implicitamente, delegam ao Executivo poder para disciplinar ou decidir aquilo que é deixado inconcluso pelo Legislativo e o uso mais intenso de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados nos atos normativos são dois exemplos típicos desse fenômeno. O Executivo — um dos intérpretes jurídicos — terá de buscar na ordem jurídica o sentido e o limite próprios para suas ações, cada vez mais amplas e menos submetidas a prescrições legais específicas.

Para que isso não ocorra, é fundamental que haja separação dos poderes e

que esta não redunde em submissão do legislador, dado o entendimento que este

não está obrigado a legislar, por força da discricionariedade legislativa, muito

embora se pautando apenas em deduções.

Aliás, sobre o tema, BANDEIRA DE MELLO142 nos ensina que a

discricionariedade:

[...] é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente.

Assim, a conclusão inafastável é a de que a discricionariedade é possível e

desejável, desde que observe os princípios constitucionais.

Efetivamente, o poder para produzir normas está expresso na Constituição,

porquanto no Estado de Direito o poder é limitado e o fato de se buscar no meio

jurídico os mecanismos de regulamentação do convívio comunitário como forma de

ordenar a vida social do indivíduo, partindo de conceitos dicotômicos entre norma e

fato, lícito e ilícito. O resultado será a subordinação da vontade e o exercício do

141 BARCELOS, Ana Paula. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A Nova Interpretação Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 118. 142 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle judicial. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 48.

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abuso do poder.143 A adoção de medidas para que os direitos fundamentais ganhem

sua força máxima é uma imposição constitucional, bastando observar que o § 1º do

artigo 5º da Constituição brasileira indica que “[...] as normas definidoras dos direitos

e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

A esse propósito, SARLET aponta que:

[... ]os direitos fundamentais, em razão de multifuncionalidade, podem ser classificados basicamente em dois grandes grupos, nomeadamente os direitos de defesa (que incluem os direitos de liberdade, igualdade, as garantias, bem como parte dos direitos sociais – no caso, as liberdades sociais – e políticas) e os direitos a prestações (integrados pelos direitos a prestações em sentido amplo, tais como os direitos à proteção e à participação na organização e procedimento, assim como pelos direitos a prestações em sentido estrito, representados pelos direitos sociais de natureza prestacional).144

Em que pese a multifuncionalidade dos direitos fundamentais lembrada por

SARLET, há os que defendem a impossibilidade de abrandamento e redução na

aplicação das normas constitucionais. Analisando esse aspecto, em bela exposição

DOMINGOS afirma residir aqui um grande equívoco:

[...] falar em normas programáticas é um contra-senso e a necessidade de uma legislação auxiliar não retira dos direitos fundamentais sua plena aplicabilidade. Uma coisa é a norma despida de eficácia, outra é a necessidade de complemento, pois aquela em tempo e momento algum irá surtir efeitos no mundo jurídico, como regra, enquanto nesta existe um estado latente, ou mesmo, dentro de uma visão figurada, é um vulcão adormecido que a qualquer momento soltará suas lavas, ponto que se aplica aos direitos fundamentais, que ocorrida sua completude, seja pelo próprio legislador, seja pelo cidadão, alcançará aquele direito em seu nascedouro, fazendo-o vivo como se sempre ali estivesse insculpido. Fato que se evidencia e que não pode prosperar é não tomar a sério os direitos fundamentais, principalmente os do campo social e, em muitas das vezes, relegá-los a planos inferiores, até mesmo com o apoio do Poder Judiciário em clara repulsa a uma efetiva prestação jurisdicional. Esse ponto pode ser verificado nas decisões do Supremo Tribunal Federal ao se impor contenções aos direitos fundamentais, especificamente os sociais, ao não reconhecer a auto-aplicabilidade do Mandado de Injunção.145

143 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Abuso do Poder de Legislar: Controle judicial da legislação de urgência no Brasil e na Itália. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 65. 144 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 234. 145 DOMINGOS, Sérgio. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Brasília, ano 10, v. 19, jan.-jun. 2002, p. 191.

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O que pode vir a ocorrer é a ampliação do espaço de atuação do intérprete,

especialmente do intérprete constitucional, que leva ao desenvolvimento de técnicas

e princípios específicos de interpretação que extrapolam os combalidos métodos

clássicos da hermenêutica jurídica.

Ao discutir a eficácia dos direitos fundamentais, Sarlet afirma que cada um

deles “conta com um grau de eficácia”146. Essa afirmativa suscita discussões. Uma

delas gira em torno do fato de que, admitir graus de eficácia entre direitos

fundamentais seria o mesmo que hierarquizá-los, o que redundaria em

inconstitucionalidade, sem contar que se estaria admitindo, também, direitos

absolutos e a quebra do princípio da ponderação. Tal princípio, aliás, nada mais é do

que um raciocínio que vem sendo cada vez mais utilizado diante de situações nas

quais, parece ao intérprete, as fórmulas hermenêuticas tradicionais são insuficientes.

Por outro lado, sendo os direitos sociais fundamentais voltados ao equilíbrio

das desigualdades, não deveriam ser entendidos apenas no sentido de imposição

ao Estado, mas também como um meio de impedir que este venha a admitir

desigualdades, mesmo porque, agindo dessa maneira, estaria apenas convalidando

a discriminação social. Outro aspecto discutível relaciona-se à conjectura de que os

limites dos direitos fundamentais encontram-se na reserva do possível. Porém,

cumpre aqui observar que essa reserva não está relacionada tão-somente à

negação dos direitos sociais (muito embora seja a que mais se vislumbra na

realidade jurídica), mas também às propostas e condições orçamentárias do

Executivo147. Diante da afirmação de CANOTILHO que “[...] ao legislador compete,

dentro das reservas orçamentais, dos planos econômicos e financeiros, das

condições sociais e econômicas do país, garantir as prestações integradoras dos

direitos sociais, econômicos e culturais148”, está sendo reforçada a tese de que não é

possível suprimir os efeitos vinculantes dos direitos fundamentais.

146 Op. cit. p. 255. 147 Id.. 148 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra : Coimbra, 2006. p. 396.

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4.1.2 Verticalidade e horizontalidade da eficácia

Eficácia é a qualidade que possui a norma de produzir seus efeitos jurídicos

concretamente, considerando suas relações internormativas em relação à realidade

social, de forma que possa atingir a finalidade para a qual foi criada. Nem sempre é

fácil fazer valer o que foi escrito, demonstrando um latente descompasso da norma

constitucional com a realidade. Muito embora o assunto já tenha sido mencionado

em capítulo anterior, é importante a retomada da discussão em torno do que é

previsto na Constituição e do que é efetivamente cumprido, notadamente quando as

referências são os direitos sociais ou fundamentais. A respeito desses fatores que

podem acarretar a não efetivação das normas constitucionais SILVA149 escreve:

Primeiramente, poder-se-ia culpar o excesso de Constituição, compreendido pelo seu conteúdo material extremamente analítico, descendo a detalhes próprios da lei comum e que rigorosamente não são essenciais para assegurar os direitos fundamentais que aborda. Como conseqüência desta constatação, estar-se-ia diante da inviabilidade de alguns dos comandos constitucionais. Todavia, a problemática da efetivação não está diretamente correlacionada à sobrecarga normativo-constitucional, mas na qualidade das normas constitucionais existentes. O distanciamento do Texto Constitucional para com o mundo real precisa ser analisado através do estudo de quais os tipos de normas constitucionais vigentes, e, através desta verificação, encontrar-se-á fórmulas capazes de solucionar a ineficácia temporária das mesmas.

Na concepção de ROSS “um sistema de normas é vigente se for capaz de

servir como um esquema interpretativo de um conjunto correspondente de ações

sociais, de maneira que se torne compreensível para a sociedade esse conjunto de

ações como um todo coerente de significado e motivação” 150. Conclui o autor que

“tal capacidade do sistema se baseia no fato das normas jurídicas serem acatadas

porque são sentidas como socialmente obrigatórias151”.

A doutrina é bastante divergente quando se trata da classificação das normas

constitucionais e, quando o critério diferenciador é a eficácia e a aplicabilidade, essa

divergência é ainda maior, mesmo porque as normas constitucionais imediatamente

preceituadas e plenamente eficazes são aquelas que, desde a entrada em vigor da

Constituição, produzem ou têm a possibilidade de produzir todos os efeitos

149 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3.ed. São Paulo : Malheiros, 1999, p.45. 150 ROSS, Alf. Direito e justiça. Bauru: EDIPRO, 2000, p. 82. . 151 Id.

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essenciais relativos aos interesses, comportamentos e situações que o legislador,

direta e normativamente desejou regular. Já entre as normas constitucionais de

eficácia diferida ou contida estão aquelas em que o legislador regulou

suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, deixando margem à

atuação restritiva por parte da competência discricionária do Poder Público, nos

termos que estabelecer ou gerais nelas enunciados. As normas constitucionais de

eficácia limitada são as que não receberam do constituinte suficiente normatividade

para que pudessem ser aplicadas, quando se faz necessário que a produção

ordinária complete as matérias nelas traçadas152.

Dentre as normas, as que apresentam maior fragilidade em sua efetivação

são as de cunho principiológico, que servem de pretexto para a inobservância da

Constituição. A respeito da inexistência de alternativas que possam vir a suplantar o

obstáculo da inobservância do texto constitucional, tendo a sociedade de se obrigar

ao convívio com um conjunto de normas-diretrizes ou normas-princípios, nunca

aptas à produção de efeitos, CANOTILHO afirma que “o atual insucesso destas se

deve, não à sua existência como normas dentro do texto constitucional, mas em

virtude da forma como elas são visualizadas, ou seja, do errôneo entendimento de

que somente serão aplicadas após regulamentação (não aceitando a

obrigatoriedade e vinculação imediata)” 153. Cumpre observar que a colocação de

todas as normas constitucionais pelo autor no mesmo patamar, é fator contributivo

para a diminuição do problema da eficácia.

Andrade entende que a eficácia dos direitos fundamentais reside no fato de

não se confundir dimensões objetiva e subjetiva com as suas eficácias horizontal e

vertical, considerando-se que a dimensão objetiva é contraposta à dimensão

subjetiva, tendo por finalidade explicar que as normas de direitos fundamentais, além

de poderem ser referidas a um direito subjetivo, também constituem decisões

valorativas de ordem objetiva. Destarte, “é correto falar nas dimensões objetiva e

subjetiva dos direitos fundamentais, quando consideradas as relações entre o Poder

152 SILVA, José Afonso da. op. cit. 153 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1997, p.592.

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Público e os particulares (eficácia vertical) ou as relações entre particulares (eficácia

horizontal)”154.

Aludir às eficácias vertical e horizontal é discernir entre a eficácia dos direitos

fundamentais sobre o Poder Público e sobre as relações entre particulares. Se, por

um lado existe eficácia vertical na vinculação do legislador e do juiz, há eficácia

horizontal ou mesmo privada nas relações entre particulares, muito embora esta

possa também vir a ser vertical, desde que se manifeste desigualdade entre estes

dois, influenciado pelo poder econômico social.

Para SARLET “o problema que se coloca diante da eficácia horizontal é o de

que nas relações entre particulares há dois (ou mais) titulares de direitos

fundamentais, e por isso nelas é impossível afirmar uma vinculação semelhante

àquela que incide sobre o Poder Público” 155. A questão da eficácia horizontal sobre

os direitos fundamentais é amplamente discutida. Destaca CANOTILHO que:

Quando se pensa em eficácia mediata em relação aos particulares, afirma-se que a força jurídica dos preceitos constitucionais somente se afirmaria por meio dos princípios e normas de direito privado. Isso ocorreria através de normas de direito privado, ainda que editadas em razão do dever de proteção do Estado156.

Os teóricos da eficácia imediata são concordantes que os direitos

fundamentais são aplicáveis diretamente em relação aos particulares. Além de

normas de valor, teriam importância como direitos subjetivos contra entidades

privadas portadoras de poderes sociais ou mesmo contra indivíduos que tenham

posição de supremacia em relação a outros particulares. Outros vão mais além,

admitindo a incidência imediata dos direitos fundamentais em relação a pessoas

comuns.

Como ensina SARMENTO: “A questão concernente à extensão dos direitos

fundamentais sobre as relações privadas apresenta profundas conexões com a

forma pela qual é encarado o Estado, a sociedade e os direitos humanos”157. A

conexão Estado, sociedade e direitos humanos não podem ser analisados

154 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais (na Constituição Portuguesa de 1976). Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2000. p. 273-274. 155 SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988. Revista de Direito do Consumidor, v. 30. p. 155. 156Op. cit. p. 593. 157 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p.17

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isoladamente, uma vez que envolvem visões globais vigentes em cada época,

tornando-se conveniente seu exame à luz dos paradigmas do Direito (liberal, social e

pós-social), pois abrem perspectivas de interpretações nas quais é possível aferir os

princípios do Estado de direito ao contexto da sociedade como um todo158.

4.1.3 Os efeitos trazidos pelo Neoconstitucionalismo

BARCELOS comenta que “a expressão neoconstitucionalismo tem sido

utilizada pela doutrina para designar o estado do constitucionalismo

contemporâneo”159. O prefixo néos, muito embora indique algo novo, moderno, não

quer significar que se esteja diante de um fenômeno totalmente diverso daquilo que

foi o constitucionalismo de outrora. Não chega a ser incorreto referir-se ao

neoconstitucionalismo como um novo momento no direito constitucional, se

considerado alguns elementos que justifiquem a sensação doutrinária de que algo

de novo está ocorrendo.

O neoconstitucionalismo não fortalece novas teorias arraigadas

profundamente em movimentos doutrinários. Apenas trata-se de um momento

teórico, em que jurisconsultos buscam superar modelos jurídicos enraizados nos

fundamentos constitucionais positivistas e formalistas, na busca de soluções mais

oportunas para suprir questões constitucionais interpretadas como insuficientes para

garantir direitos, residindo ai o entendimento da razão de nem sempre haver um só

direcionamento entre os modelos do pensamento neoconstitucionalista160.

SARLET afirma que “[...] havendo (ou não) menção expressa no âmbito do

direito positivo a um direito... de há muito, pelo menos no âmbito do pensamento

constitucional (mas também – e, de certo modo - especialmente no contexto do que

se tem designado de neoconstitucionalismo) contemporâneo, se enraizou a idéia de

um autêntico Estado de Direito” 161.

158 Id. 159 BARCELOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle das Políticas Públicas. Revista de Direito Administrativo nº 240. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 83-103. 160 SCHIER, Paulo Ricardo. Novos desafios da filtragem Constitucional no momento do Neoconstitucionalismo. Revista Eletrônica de Direito do Estado. nº. 4, out.-nov. 2005, Salvador. Disponível em: < http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-4-OUTUBRO-2005-PAULO%20SCHIER.pdf >. Acesso em: 14 jan. 2008. 161 SARLET, Ingo Wolfgang. Proibição de Retrocesso, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Sociais: manifestação de um constitucionalismo dirigente possível. Disponível em: <http://www.tex.pro.br/wwwroot/01de2006/proibicao_ingo_wlfgang_sarlett.pdf>. Acesso em: 15 jan. 2008.

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O neoconstitucionalismo teve seu marco histórico na Europa continental após

o advento da Segunda Guerra Mundial, influenciado pelo constitucionalismo Alemão

e Italiano, tendo se estendido até a segunda metade do século XX. Esse processo

de reconstitucionalização da Europa teria sido útil para redefinir a influência exercida

pelo direito constitucional sobre as instituições contemporâneas. Essa influência do

constitucionalismo também teria sido a protagonista da Constituição federal de 1988

e da redemocratização do Brasil. É exatamente essa aproximação de idéias

constitucionalistas e democráticas que formam os ingredientes necessários à

produção de uma nova forma de organização política do Estado (democrático de

direito, constitucional de direito, constitucional democrático).162

A Constituição alemã (Lei Fundamental de Bonn) é tida como uma das

principais referências ao desenvolvimento do neoconstitucionalismo, notadamente a

partir da criação do Tribunal Constitucional Federal alemão, em 1951, quando houve

maior fomento à produção, tanto teórica, quanto jurisprudencial, que acabou vindo a

ser responsável pela ascensão do direito constitucional nas tradições romana e

alemã. A promulgação da Constituição italiana em 1947, seguida da instalação da

Corte Constitucional, em 1956 também não deixa de ser importante referência ao

surgimento do neoconstitucionalismo. Outra contribuição digna de citação para o

desenvolvimento do novo constitucionalismo está ligada ao processo de

redemocratização de Portugal e Espanha, em 1976 e 1978, respectivamente, pelo

fato de terem associado valores e volumes ao debate sobre o neoconstitucionalismo.

Se, de um lado o marco histórico do neoconstitucionalismo foi na Europa continental

no período do pós-guerra, seu marco filosófico é o pós-positivismo, caracterizado

pela confluência do jusnaturalismo e do positivismo que, mesmo opostos, algumas

vezes se complementam notavelmente e de forma simplista. A quadra atual é

assinalada pela superação ou talvez sublimação dos modelos puros por um conjunto

difuso e abrangente de idéias, agrupadas sob o rótulo genérico de pós-

positivismo163. Manifestando-se a esse respeito CALSAMIGLIA afirma que:164

162 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. Boletim de Direito Administrativo. São Paulo: NDJ, v. 23, n. 1, p. 20-49, jan. 2007. 163 id. 164 CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. DOXA- Publicaciones Periódicas, nº. 21, 1998. p.209-220. Disponível em:<http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/23582844322570740087891/cuaderno21/volI/Doxa21_12.pdf >. Acesso em: 15 jan.2008.

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Em certo sentido a teoria artificial atual poderia ser denominada pospositivista na realidade, porque muitos dos ensinos do positivismo foram aceitos e hoje, em certo sentido, todos somos positivistas. (...) Eu denominarei pospositivistas às teorias contemporâneas que puseram o acento nos problemas da indeterminação do direito e as relações entre o direito, as moralidades e as políticas.

A partir do século XVI, com o desenvolvimento do jusnaturalismo moderno e o

fracasso do positivismo, houve uma aproximação da lei da razão e sua

transformação na filosofia natural do Direito, cujas reflexões, fundadas na crença dos

princípios de justiça universalmente válidos, fomentou as revoluções liberais, que

resultaram nas Constituições escritas e nas codificações. No final do século XIX o

direito natural foi colocado à margem, em virtude da ascensão do positivismo

jurídico, que equiparou o Direito à lei, afastando-o da filosofia e discussões como

legitimidade e justiça, dominando o pensamento jurídico que, inspirado por uma

teoria de justiça já não pode comportar voluntarismos ou personalismos,

principalmente os judiciais.

BARCELOS165 ordena as características específicas do

neoconstitucionalismo em grupos que congregam elementos metodológico-formais e

elementos materiais, afirmando que:

Do ponto de vista metodológico-formal o constitucionalismo atual opera sobre a premissa da normatividade da Constituição, ou seja, o reconhecimento de que as disposições constitucionais são normas jurídicas, dotadas, assim como as demais, de imperatividade, da superioridade da Constituição sobre o restante da ordem jurídica, da Centralidade da Carta nos sistemas jurídicos e por força do fato de que os demais ramos do Direito devem ser compreendidos e interpretados a partir do que dispõe a Constituição; do ponto de vista material o neoconstitucionalismo é caracterizado pela incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais, sobretudo no que diz respeito à promoção da dignidade humana e dos direitos fundamentais e pela expansão de conflitos específicos e gerais entre as opções normativas e filosóficas existentes dentro do próprio sistema constitucional.

Os elementos metodológico-formais e materiais são os sucessores do

processo transformador da Constituição (antes não mais que um conjunto de normas

reguladoras essencialmente políticas e sem qualquer ordenamento) em uma norma

jurídica supera, com todos os efeitos almejados para tal legislação, concretizados

através da elaboração de técnicas jurídicas que tornem possível a utilização

165 Id..

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cotidiana da aplicação do direito. É ai que reside a particularidade do

neoconstitucionalismo, uma vez que, consolidadas as características específicas da

esfera teórica, ele vive a passagem para a concretude em que são inseridas

discussões sobre a eficácia jurídica dos princípios constitucionais, as formas de

controle das possíveis omissões inconstitucionais e estudos variados, voltados à

busca pela compreensão e interpretação das demais leis ordinárias, tendo como

princípio a Constituição, como ocorre com o direito civil, penal e processual.

Uma reação mais ampla dos iluministas aos vários regimes políticos

totalitários do século XX (nazismo na Alemanha e fascismo na Itália), cujo objetivo

principal era a opressão e a violação dos direitos humanos (holocausto na

Alemanha) é a justificativa mais plausível para a introdução de elementos normativos

vinculados de forma direta à dignidade humana e aos direitos fundamentais, ou seja,

opções políticas gerais e específicas.

No campo das opções gerais o neoconstitucionalismo contempla a redução

das igualdades sociais, que na Constituição federal de 1988 encontram-se

estampados no artigo 3º, III, onde se declaram os objetivos fundamentais da

erradicação da pobreza e da marginalização e da redução das desigualdades

sociais e regionais. Relativamente às opções específicas, estas são direcionadas na

Constituição federal de 1988 à prestação da saúde, da educação e da segurança,

conforme se vê nos artigos 5º, 23, V e 205, respectivamente: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: [...] II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência; [...] V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência; [...] Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

O apogeu do neoconstitucionalismo na Europa se deu na segunda metade do

século XX, enquanto que no Brasil caracterizou-se somente com o advento da

Constituição federal de 1988, florescido, como já afirmado anteriormente, do

ambiente filosófico pós-positivista, cuja principal mudança em seu modelo foi o

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reconhecimento da força normativa da Constituição, com sua expansão jurisdicional

e novas interpretações geradas pelo aumento da demanda de justiça por parte da

sociedade e a ascensão institucional do Poder Judiciário, que provocaram, no país,

uma intensa interferência judicial, no sentido de assegurar e manter direitos políticos

e sociais.

4.2 ACESSIBILIDADE E RESTRIÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO

EXERCÍCIO DA FUNÇÃO MILITAR

A Revolução Francesa desencadeou um processo inédito de redução das

desigualdades entre indivíduos e grupos sociais. Na tríade revolucionária famosa —

igualdade, liberdade e fraternidade —, preleciona COMPARATO, a primeira

representou o ponto central do movimento revolucionário, a segunda limitava-se

praticamente à supressão das peias sociais ligadas à existência de estamentos ou

corporações de ofícios, e a última era uma virtude cívica resultante da abolição de

todos os privilégios 166.

Polemizando o espírito revolucionário francês, mas reconhecendo a

importância da herança deixada pelo movimento, escreve BOBBIO:

A Revolução Francesa foi exaltada e execrada, julgada ora como uma obra divina, ora como uma obra diabólica. Foi justificada ou não justificada de diferentes modos: justificada porque, apesar da violência que a acompanhou, teria transformado profundamente a sociedade européia; não justificada porque um fim, mesmo bom, não santifica todos os meios, ou pior ainda, porque o próprio fim não era bom, ou finalmente, porque o fim teria sido bom, mas não foi alcançado. Mas, qualquer que seja o juízo sobre aqueles eventos, a Declaração dos Direitos continua a ser um marco fundamental. 167

A partir daquele movimento revolucionário, que pela primeira vez materializou

os ideais liberais em uma Constituição168, o constitucionalismo do século XIX passou

então a perseguir dois principais objetivos: concretizar proteção jurídica ao respeito

dos direitos das pessoas, inerentes a condição humana; e, fixar os princípios

essenciais da forma política da Nação. 166 Op. cit,. p. 130. 167 Op. cit. p. 128. 168 Trata-se, aqui, da Constituição Francesa de 1791. (COMPARATO, op.cit., p. 146)

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Todavia, o modelo puramente individualista dos direitos fundamentais, próprio

do liberalismo, mostrou-se insuficiente diante dos novos reclamos sociais oriundos

da Revolução Industrial. Com efeito, durante o século XIX, têm curso na Europa

diversos movimentos operários, que pressionam por uma evolução da legislação

trabalhista e por uma maior participação do Estado no campo assistencial.

Com esses antecedentes, a primeira Constituição que por influência do

socialismo reconhece, junto aos direitos puramente individuais, outros de caráter

social, é a Constituição Mexicana de 1917. Da Europa do período entre guerras,

partem os ventos da Constituição de Weimar de 1919, que só aportam e se

estabelecem no Brasil com relativo atraso, ao final da chamada República Velha.

A Constituição brasileira de 1934, influenciada por Weimar e pelo

corporativismo, é o marco histórico do novo ideário social, dedicando um título à

Ordem Econômica e Social, criando a Justiça do Trabalho e o salário-mínimo, numa

fórmula de compromisso entre capital e trabalho. 169

A atual Constituição, precedida de períodos autoritários e evolutivos, mantém

a harmonia com aquelas correntes democráticas, regulando em seu Título II os

direitos e garantias fundamentais e distinguindo entre os direitos e deveres

individuais e coletivos (Capítulo I) e os direitos sociais (Capítulo II).

Por sua vez, no que se refere à situação constitucional das Forças Armadas,

é o Capítulo II, do Título V que contempla concretamente o regime aplicável a seus

membros enquanto integrantes da função militar.

As peculiaridades do regime jurídico dos militares são conseqüência de sua

própria finalidade, da missão constitucional que devem cumprir por força do art. 142

da Constituição de 1988, para a qual a preservação dos princípios da hierarquia e da

disciplina obedece ao máximo rigor.

Essa circunstância sugere que os homens e mulheres que integram as Forças

Armadas estão submetidos a determinadas restrições no que concerne ao exercício

de alguns direitos fundamentais.

A isto, devemos acrescentar o peculiar dever de neutralidade da

Administração, o qual, nas Forças Armadas, não é apenas exigível em seu conjunto,

169 BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1990. p.18.

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senão a cada um dos seus membros. Esse dever distingue a neutralidade política

dos funcionários civis no exercício de seus cargos e na sua vida privada.

O dever de neutralidade como uma parte integrante do regime jurídico dos

militares produz certas limitações bem evidentes à participação na atividade política

e, portanto, ao exercício de certos direitos e liberdades que são normalmente

usufruídos pelos funcionários civis e pelos demais cidadãos. A partir desse ponto de

vista, é também o dever de neutralidade que justifica exigir-se dos militares que se

abstenham de participar na atividade político-partidária (ou mesmo vedar a

alistabilidade aos conscritos, grupo não-profissional de militares, durante a prestação

do serviço militar obrigatório), vedar-se o direito de afiliação em organizações

politizadas, como os partidos e sindicatos, restringir-se o direito de crítica e de greve

e, com eles, a liberdade de expressão e o direito de coletivo de reivindicar.

Para o exercício das liberdades públicas, o funcionário civil é um cidadão

como os demais. Em serviço, ele deve respeitar uma estrita neutralidade, porém fora

dele dispõe de uma absoluta liberdade, podendo militar em um partido político,

candidatar-se a cargos eletivos ou públicos independentemente de autorização,

escrever artigos em periódicos ou queixar-se da própria Administração.

Entretanto, em relação aos militares, prevalece a noção de que sempre estão

em ato de serviço e, assim sendo, por força de um regime de dedicação exclusiva,

observariam algumas restrições mesmo na vida privada. Esse entendimento,

historicamente consolidado, dá o tom do art. 28 do Estatuto dos Militares:

Art. 28. O sentimento do dever, o pundonor militar e o decoro da classe impõem, a cada um dos integrantes das Forças Armadas, conduta moral e profissional irrepreensíveis, com a observância dos seguintes preceitos de ética militar: [...] XIII - proceder de maneira ilibada na vida pública e na particular; XVI - conduzir-se, mesmo fora do serviço ou quando já na inatividade, de modo que não sejam prejudicados os princípios da disciplina, do respeito e do decoro militar; [...] XVIII - abster-se, na inatividade, do uso das designações hierárquicas: a) em atividades político-partidárias; b) em atividades comerciais; c) em atividades industriais; d) para discutir ou provocar discussões pela imprensa a respeito de assuntos políticos ou militares, excetuando-se os de natureza exclusivamente técnica, se devidamente autorizado; e e) no exercício de cargo ou função de natureza civil, mesmo que seja da Administração Pública; e

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XIX - zelar pelo bom nome das Forças Armadas e de cada um de seus integrantes, obedecendo e fazendo obedecer aos preceitos da ética militar. (grifo nosso)

Assim, podemos considerar que os princípios da hierarquia e da disciplina e o

dever de neutralidade fundamentam as restrições aos direitos dos militares. Por eles,

tem sentido a existência de um regime penal e processual penal próprio, que está

integrado pelos Códigos Penal e de Processo Penal Militar, uma Justiça

Especializada Militar, reconhecida pela Constituição Federal (arts. 122 a 124 e 125,

§§ 3º e 4º), assim como um regime disciplinar específico, os Regulamentos

Disciplinares, com os quais é possível a imposição de sanções administrativas

privativas da liberdade, as quais são vedadas à Administração civil.

Outras particularidades referentes ao exercício dos direitos fundamentais,

sejam individuais ou coletivos, ou seja, considerando como seu titular os militares

individualmente ou em grupo, e inclusive com relação a outros grupos sociais, estão

igualmente reconhecidas pela Constituição, em seu artigo 142:

1) descabimento do habeas corpus em relação a punições disciplinares (§ 2º);

2) vedação à sindicalização e ao direito de greve (§ 3º, IV);

3) proibição de filiação partidária ao militar ativo (§ 3º, V);

4) restrições a vários direitos sociais previstos no art. 7º, tais como, seguro-

desemprego, fundo de garantia do tempo de serviço, salário-mínimo, irredutibilidade

do salário, remuneração pelo trabalho noturno e extraordinário, jornada de trabalho

não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, repouso semanal,

aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, adicional de remuneração para

atividades penosas, insalubres ou perigosas, seguro contra acidentes do trabalho,

etc. (§ 3º, VIII)

4.3. OS RESUMIDOS DIREITOS SOCIAIS DOS MILITARES

A atuação do marxismo no início do século XX excluía as massas do

processo político, uma vez que os direitos e liberdades consagrados pelos tratados

internacionais e constitucionais não passavam de engodo, uma vez não ser

proporcionado às pessoas os meios e condições para que pudessem exercer esses

direitos fundamentais, declarados ainda no século XVIII e que seriam, para a maioria

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do povo, mera formalidade, considerando que o baixo nível econômico e social não

proporcionava condições de usufruto por parte da comunidade.

A reação das massas contra o processo foi a força motriz para a formulação

da teoria de que os direitos humanos não seriam restritos tão-somente às liberdades

públicas, mas a um rol de direitos de conteúdo econômico e social, os quais

gerariam melhoria geral de qualidade de vida, destacando-se, entre estes, a adoção

do sufrágio universal, um verdadeiro marco para impelir políticos e governantes a

voltar mais atenção às reivindicações das massas excluídas do processo político170.

LEAL171 reafirma que “a relação entre os direitos sociais e fundamentais surgiu em

virtude das reações norteadas pelos discursos marxistas, fatores que influenciaram

várias constituições, as quais passaram a incluir no seu rol de direitos fundamentais

os direitos sociais e econômicos”.

Entre as Constituições referenciadas como sendo as precursoras da

constitucionalização dos direitos sociais figuram a mexicana (1917) e a alemã

(1919). Já no caso brasileiro, essa tendência inovadora veio a manifestar-se

somente vinte anos depois, com a promulgação da Constituição de 1934, em cujo

texto foi inscrito um capítulo dedicado à ordem econômica e social. Entretanto, a

maior relevância aos direitos sociais no Brasil foi manifestada na Constituição federal

de 1988, considerando-se que, além da manutenção do capítulo alusivo à ordem

econômica e social, o constituinte insculpiu os direitos sociais no título atinente aos

direitos fundamentais.

Se, por um lado, qualificar direitos sociais como direitos já é uma tarefa tida como bastante complexa, condicioná-los como direitos fundamentais seria muito mais árduo, tendo em conta que estes são essenciais aos seres humanos, permitindo-lhes o pleno desenvolvimento individual e coletivo. O problema consiste no fato de que não é bastante apenas considerar direitos sociais como fundamentais, sem, contudo, existirem meios de garanti-lo. É mais fácil tutelar contratos celebrados entre particulares e mesmo direitos estabelecidos em leis ordinárias do que um direito humano fundamental assegurado constitucionalmente.

O neoliberalismo, enquanto núcleo da matriz ideológica da globalização da

economia172 contribuiu consideravelmente para debilitar a economia do Estado,

170 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994. 171 LEAL. Roger Stiefelmann. 2001. Direitos sociais e a vulgarização da noção de direitos fundamentais. Disponível em: < http://www6.ufrgs.br/ppgd/doutrina/leal2.htm >. Acesso em 13 jan. 2008. 172 NUNES, António José Avelãs. Neoliberalismo e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

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gerando a diminuição da capacidade econômica e o aumento da exclusão social. A

diminuição da capacidade do poder público em assegurar a efetividade na fruição

dos direitos fundamentais, além de exercer o domínio econômico sobre os excluídos,

gera o que estudiosos chamam de fascismo societal, em que até a noção de

cidadania como direito a ter direitos acaba gravemente ameaçada, principalmente

nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. SARLET173 sintetiza que:

A dignidade da pessoa humana, na condição de valor-fonte (e princípio normativo) que atrai o conteúdo dos direitos fundamentais exige e pressupõe o reconhecimento e a proteção dos direitos de todas as dimensões. Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á negando a própria dignidade. Integrar direitos sociais e fundamentais implica em considerar sua universalidade e o argumento que não inclui os direitos sociais na categoria dos direitos fundamentais refere-se à sua universalidade, muito embora práticas políticas e legislativas a contestem, separando direitos sociais, civis e políticos.

A Constituição brasileira de 1988 procurou tratar os direitos fundamentais

como direitos de todas as dimensões, bastando, destarte, uma análise ao excessivo

aumento da quantidade destes, que se encontram insculpidos no texto

constitucional, que admite direitos e garantias fundamentais tacitamente decorrentes

do sistema e dos princípios por ele adotados, bem como aqueles decorrentes de

tratados internacionais em que o Brasil seja parte.

O processo de propagação dos novos direitos induz ao questionamento se

todos eles são efetivamente direitos fundamentais. Elevar à mesma categoria de

direitos fundamentais a liberdade de expressão174, o direito de proteção em face da

automação175 e o direito ao lazer176, seria vulgarizar o sentido de direitos

fundamentais ao ponto de se estabelecer distinções entre direitos menos ou mais

fundamentais, muito embora a existência de correntes que afirmam ser direitos

173 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 87. 174 Art. 5º [...]IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. 175 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...]XXVII - proteção em face da automação, na forma da lei; 176 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

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fundamentais apenas “aqueles reconhecidos pela Constituição como tal”177,

reduzindo sua noção ao formalismo178.

Essa vulgarização da noção de direitos fundamentais pode ser advinda do

surgimento da caracterização dos direitos sociais como fundamentais, fato

conducente ao questionamento se essa desvalorização é gerada pelos novos

direitos propostos ou sua criação não passa de reflexo da débil concepção dos

direitos sociais como direitos fundamentais.

No que concerne aos integrantes da função militar, os chamados direitos

sociais previstos entre os artigos 6º e 11, da Constituição Federal e aplicáveis à

grande massa de trabalhadores brasileiros, sofrem graves restrições relativamente

aos membros das Forças Armadas.

Ao falar nos direitos sociais, não poderíamos deixar de ressaltar duas grandes

proibições: a de sindicalização e a de deflagrar movimentos grevistas. Essas

vedações constam expressamente no inciso V, do art. 142 da Constituição Federal.

A atividade sindical ou reivindicatória se contrapõe à disciplina nas Forças

Armadas. Por sua vez, o direito de greve é absolutamente incompatível com a

função militar, voltada para a defesa do Estado.

Assim sendo, a Constituição Federal vigente, no art. 142, §3º, inciso VIII

relacionou taxativamente os direitos sociais assegurados aos militares.

São aplicáveis os seguintes direitos sociais, previstos no art. 7º, da

Constituição Federal:

a) décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor

da aposentadoria;

b) salário-família pago em razão de cada dependente do militar;

c) gozo de férias anuais remuneradas com um terço a mais que o salário

normal. Ressalta-se que em casos de interesse da segurança nacional, de

manutenção da ordem, de extrema necessidade do serviço, de transferência para a

inatividade, ou para cumprimento de punição decorrente de contravenção ou de

transgressão disciplinar de natureza grave e em caso de baixa a hospital, os

militares terão interrompido ou deixarão de gozar na época prevista o período de

férias a que tiverem direito, nos termos do §3º do art. 63, do Estatuto dos Militares;

177 MARTÍN-RETORTILLO, 1988, apud LEAL, Roger Stielfmann, op. cit. 178 Id., p.99.

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d) licença à gestante, com duração de 120 dias;

e) licença-paternidade de 5 dias; e

f) assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 6

anos de idade em creches e pré-escola.

Repisa-se, o rol é taxativo, não admitindo interpretação extensiva.

4.4. O DIREITO À IGUALDADE

O artigo 3º, inciso IV, e o caput do artigo 5º, da Constituição Federal, proíbem

todo o tratamento que possa ser considerado discriminatório. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) IV — promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

Primeiramente, é preciso compreender o direito de igualdade inserto em um

contexto institucional rigidamente hierarquizado, como são as Forças Armadas.

Lembremos o que já foi dito: não existem dois iguais, havendo sempre comandante

e comandado, superior e subordinado, Oficiais e Praças, "mais antigo" e "mais

moderno". Isto é hierarquia, que aparece na distribuição de tarefas, na filosofia de

emprego de cada posto ou graduação, nas obrigações administrativas ou operativas

e nos círculos hierárquicos que definem os âmbitos de convivência de cada um

(Círculo de Oficiais-Generais, de Oficiais-Superiores, de Capitães, de Tenentes, de

Sargentos, etc).

A ordem hierárquica militar define, a todo momento, a situação relativa entre

militares, no que diz respeito ao poder de mando, as responsabilidades

conseqüentes do uso deste poder e o dever de obediência. Enquanto a hierarquia

comumente conhecida funciona como forma ou método de organização (ordenação

vertical dos órgãos administrativos escalonados "de cima para baixo" em níveis ou

categorias), a hierarquia militar estaria composta dos graus que existem desde a

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base até o vértice superior da pirâmide, com responsabilidades proporcionais à sua

posição relativa na escala.

Por outro lado, existe uma face mais interessante do direito à igualdade: a

igualdade entre os sexos.

Um dos aspectos que têm dado lugar a uma profunda mudança na

mentalidade e na organização militares, diz respeito à incorporação da mulher às

Forças Armadas.

No Brasil, a incorporação e o aproveitamento da mulher foram efetivados em

poucos anos179, mas de forma paulatina, pois a própria organização militar não

possuía, à época, infraestrutura para atender a militares do sexo feminino. Questões

básicas como alojamentos, vestiários, banheiros, uniformes e até os próprios

regulamentos militares demandavam adequações para dar suporte ao ingresso e à

permanência da mulher no meio militar.

Assim, em 7 de julho de 1980, era criado o Corpo Auxiliar Feminino da

Reserva da Marinha, com atuação na área técnica e administrativa.

Empreendimento pioneiro nas Forças Armadas brasileiras, o ingresso da mulher na

carreira militar-naval abriu novas perspectivas profissionais para esse segmento.

Em 1º de janeiro de 1998 foi efetivada a integração das militares femininas

aos Corpos e Quadros da Marinha, decorrente da reestruturação feita à luz da Lei nº

9519, de 26 de novembro de 1997. As mulheres podem, agora, ingressar no Corpo

de Engenheiros da Marinha, Corpo de Intendentes da Marinha, Quadros de

Médicos, de Cirurgiões-Dentistas, de Apoio à Saúde e Técnico.

A mudança, entre outras inovações, permite, à mulher, igualdade de

condições aos homens no acesso à promoções e cursos. O pioneiro Corpo Auxiliar

Feminino foi extinto; a mulher não faz mais parte de um grupo isolado na Marinha,

ficando, assim, mais integrada, mais participante, inclusive, das decisões de alto

nível da Marinha do Brasil, já que, agora, pode ascender a postos de até Vice-

Almirante.

179 O marco histórico da incorporação da mulher às Forças Armadas é creditado à Lei nº 6.807, de 7.7.1980, que de forma inovadora criou o Corpo Auxiliar Feminino da Marinha, composto de Oficiais e Praças, aprovadas em processo seletivo, para exercício primordial em funções administrativas (não-combatentes). Aeronáutica e Exército seguiram na mesma esteira, com a criação do Quadro Feminino de Oficiais e Praças e o Quadro Complementar de Oficiais, respectivamente.

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Hoje, há mulheres que embarcam para cumprir determinadas comissões em

navios hidrográficos e oceanográficos e até mesmo em navios de guerra. Outras

ainda, fazem parte de tripulações de helicópteros.

Da mesma forma que na Marinha, as mulheres, hoje, ingressam

voluntariamente na carreira do Exército ou como "militares temporárias". O Exército

foi a última das Forças a abrir suas portas às militares femininas, fato que antes de

refletir qualquer preconceito, parece indicar uma grande preocupação em preparar a

Força para recepcionar adequadamente o sexo feminino e adaptar a sua pesada

estrutura no País às novas necessidades.

O histórico do ingresso da mulher no Exército começa no ano de 1992, com a

matrícula da primeira turma de 49 mulheres do Quadro Complementar de Oficiais,

com candidatas à carreira militar oriundas do meio universitário. A partir de 1996, foi

instituído o serviço militar voluntário para profissionais de nível superior e técnico. De

1992 ao momento atual, o efetivo feminino no Exército evoluiu para milhares de

militares, inclusive com acesso aos postos do Generalato.

Por sua vez, a Aeronáutica também franqueou suas portas ao sexo feminino,

e após um período de avaliações de desempenho, a mulher hoje pode ingressar na

Academia de Força Aérea, no Corpo de Aviadores e de Intendência, em absoluta

igualdade de condições e tratamento em relação aos militares do sexo masculino,

inclusive acessando ao posto de Brigadeiro.

Por final, vale ressaltar que a incorporação das mulheres nas Forças Armadas

do Brasil se dá na forma de voluntariado, uma vez que estão isentas da prestação

do serviço militar obrigatório nos termos do art. 142, § 2º da Constituição Federal.

Das voluntárias, espera-se que atinjam, num futuro próximo, o círculo de Oficiais-

Generais.

4.5 O DIREITO À VIDA E À INTEGRIDADE FÍSICA

Para uma ordem constitucional antropocêntrica, que tem o ser humano como

centro de suas preocupações, a vida deve ser protegida de forma muito reforçada,

por ser um pressuposto para o gozo dos outros direitos.

A proteção da vida não implica apenas no deve do Estado de não retirar a

vida, ela vai além, implica na obrigação do Estado de proteger a vida humana das

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ameaças e das agressões oriundas de terceiros e, eventualmente, até de Estados

estrangeiros. Envolve ainda o dever de assegurar as condições mínimas para tornar

a vida possível.

Esse aspecto positivo do direito à vida pode influir em muitas questões

práticas, levando ao questionamento de algumas leis, como, por exemplo, a

chamada Lei do Abate180, que permite que a Força Aérea venha a abater aviões em

determinadas circunstâncias. No entanto, o mínimo que se exige é que se deve

tomar uma série de cuidados181, ou seja, se não há um perigo imediato representado

pelo avião, permitir, que sem o devido processo legal seja eliminada uma vida que é

uma conseqüência lógica do abate.

Essa linha introdutória serve para afirmar que o direito à vida é, antes de tudo,

um pressuposto para o exercício de todos os demais direitos, porque sem vida

humana não existe titular de direitos, como se deduz dos art. 1º e 2º do novo Código

Civil.

Este direito engloba, de certo modo, o direito à integridade física e moral, a

vedação à tortura e ao tratamento desumano ou degradante, conforme se

depreende dos incisos III, XLIII e XLIX do art. 5º da Constituição Federal, a seguir

transcritos.

III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.

Dentre todos os aspectos jurídicos do direito à vida, dois são de interesse

para este estudo: a proteção da vida e da integridade física, por um lado; por outro,

a obrigação de expor a própria vida ou a integridade física.

O primeiro destes aspectos enquadra-se plenamente na obrigação que

assume o próprio Estado e que supõe a vinculação de qualquer entidade pública, e

180 Lei nº 9.614/1998, que alterou o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565/1986). 181 Antes da destruição da aeronave invasora, a lei prevê a tomada de medidas de averiguação (reconhecimento à distância, confirmação do registro da aeronave, interrogação na freqüência prevista para a área e em freqüência de emergência e a realização de sinais visuais), medidas de intervenção (determinação de mudança de rota e do pouso obrigatório) e as medidas de persuasão (tiros de advertência).

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não apenas uma organização militar, à idéia da menor lesão para quem quer que

esteja submetido a um regime disciplinar.

O tema ganha especial interesse quando tratamos do meio militar,

precisamente porque a disciplina militar e o fato de ser militar, independentemente

da origem voluntária ou obrigatória de incorporação às Forças Armadas, pode

implicar um desgaste na integridade física ou mesmo a morte. A este aspecto

passivo, ou seja, a obrigação de mera vigilância para que os efeitos sobre a vida ou

integridade física sejam os menores possíveis, soma-se também um aspecto ativo,

de absoluta proibição ao Estado de infligir castigos que lesionem a integridade física

daqueles que estão submetidos à prestação do serviço militar, seja voluntário ou

obrigatório.

Nesse sentido, a interdição dos castigos corporais, no passado praticados em

âmbito militar, é absoluta, sendo punida como crime pelo CPM, inclusive.

Art. 213. Expor a perigo a vida ou saúde, em lugar sujeito à administração militar ou no exercício de função militar, de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para o fim de educação, instrução, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalhos excessivos ou inadequados, quer abusando de meios de correção ou disciplina.

O outro aspecto refere-se ao dever de defender a pátria, ou seja, uma

obrigação juridicamente exigível de expor a própria vida ou a integridade física.

Defesa e risco são dois conceitos que estão indissoluvelmente unidos e assim

devemos entendê-los a partir de uma perspectiva constitucional, uma vez que se

encontram constitucionalizadas as Forças Armadas e a sua missão nos termos do

art. 142 da Carta Magna.

A obrigação de defesa tem caráter geral e afeta, em conseqüência, a todos os

nacionais e não somente aqueles que servem ao Brasil com as armas. O

Constituinte de 1988 remeteu ao legislador ordinário o dever de estabelecer as

obrigações militares dos brasileiros, nos termos do art. 142, inciso X e do caput do

art. 143.

Amparadas no fenômeno da recepção, temos a Lei do Serviço Militar182, que

estabelece a sua obrigatoriedade aos brasileiros, e o Estatuto dos Militares, aplicável

182 Lei nº 4.375/1964.

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tanto aos militares incorporados para a prestação do serviço militar (não-

profissionais), quanto aos militares de carreira.

Nesse último diploma, encontramos a exigência do sacrifício da própria vida

no exercício das obrigações legalmente impostas para a defesa do Brasil.

Art. 31. Os deveres militares emanam de um conjunto de vínculos racionais, bem como morais, que ligam o militar à Pátria e ao seu serviço, e compreendem, essencialmente: I - a dedicação e a fidelidade à Pátria, cuja honra, integridade e instituições devem ser defendidas mesmo com o sacrifício da própria vida; (grifo nosso)

Essa não é apenas uma obrigação moral, mas toma a forma de uma

verdadeira obrigação jurídica exigível. Para ressaltar a relevância dessa obrigação

na legislação castrense podemos mencionar o compromisso realizado pelos recrutas

perante a bandeira brasileira desfraldada, nos termos do art. 174, inciso V, do

Decreto nº 2.243, de 3 de junho de 1997:

"Incorporando-me à Marinha do Brasil (ou ao Exército Brasileiro ou à Força Aérea Brasileira) prometo cumprir rigorosamente as ordens das autoridades a que estiver subordinado, respeitar os superiores hierárquicos, tratar com afeição os irmãos de armas, e com bondade os subordinados e dedicar-me inteiramente ao serviço da pátria, cuja honra, integridade e instituições defenderei com o sacrifício da própria vida. " (grifo nosso)

Esta obrigação, assumida por aqueles que juram a bandeira, não é

meramente retórica ou metafórica, não é uma figura literária, porque sua

exigibilidade se estabelece expressamente na legislação disciplinar e penal militar,

nas quais se castiga como delito ou falta disciplinar o fato de fugir de um perigo por

temor a um dano físico, assim como a cobardia, estabelecendo as correspondentes

sanções e fazendo desta obrigação dispor a integridade física ou a própria vida um

verdadeiro dever juridicamente exigível.

Assim, segundo diversos dispositivos do CPM, é crime de cobardia "subtrair-

se ou tentar subtrair-se o militar, por temor, em presença do inimigo, ao cumprimento

do dever militar" (art. 363), de fuga em presença do inimigo (art. 365), de rendição

"render-se o comandante, sem ter esgotado os recursos extremos de ação militar"

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(art. 372), de recusa de obediência ou oposição em presença de inimigo (art. 387),

de abandono de posto (art. 390) e de deserção (art. 391).

4.6 A LIBERDADE DE PENSAMENTO, RELIGIOSA, DE CULTO E A ESCUSA DE

CONSCIÊNCIA.

No que diz respeito à liberdade religiosa nas Forças Armadas, podemos

afirmar que ela é plena, pois não há qualquer restrição à admissão de adeptos de

qualquer religião ou mesmo daqueles que não professem religião. Católicos e

Protestantes de quaisquer vertentes, Judeus, Espíritas ou ateus, tanto faz. Afinal, o

Estado é laico183 e as Forças Armadas também são.

Vale mencionar, que existe um Serviço de Assistência Religiosa, criado por

lei184 e mantido pelas Forças Armadas, com quadros de Oficiais-capelães

distribuídos pelas três Forças. Esse Serviço é orientado por um Ordinariado Militar,

juridicamente assimilado às dioceses do direito canônico, instalado em função de um

acordo histórico entre o Brasil e a Santa Sé Apostólica. O Ordinário Militar, ou

Arcebispo Militar, não é militar, porém os Oficiais-Capelães o são, contando cada

uma das Forças com um Capelão-Chefe, normalmente do último posto da carreira.

Em que pese ao acordo, não há discriminação quanto ao ingresso e ao

acesso à carreira. Na Marinha, por exemplo, o processo seletivo para admissão de

capelães respeita, na distribuição do número de vagas, a proporcionalidade entre as

Religiões aferida em censo religioso realizado em antecipação ao processo seletivo.

A seu turno, no aspecto omissivo da liberdade religiosa, é interessante

ressaltar que nenhum militar é obrigado a praticar atos de culto ou a receber

assistência religiosa contrária a suas convicções pessoais. E assim deve ser

entendida a liberdade religiosa, como um direito subjetivo de caráter fundamental,

que se concretiza no reconhecimento de um âmbito de liberdade e de uma esfera de

agir do indivíduo, ou seja, deve ser reconhecido ao militar o direito de atuar nesse

campo com plena imunidade de coação por parte do Estado.

Quanto à liberdade de culto, as restrições impostas são as mesmas cabíveis

a qualquer cidadão. A Constituição Federal não tolera o exercício de cultos religiosos 183 Constituição Federal, art. 19, I. 184 Lei nº 6.923, de 29 de junho de 1981.

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contrários à ordem, tranqüilidade e sossego públicos, bem como os incompatíveis

com os bons costumes. Evidentemente, uma Instituição militar não pode fugir a essa

regra.

Quanto à escusa de consciência, é forçoso reconhecer sua vinculação

estreita com a função militar. A liberdade de consciência é inerente a qualquer

indivíduo, militar ou não, porém não há lógica em admitir aos que fizeram uma opção

consciente pela carreira das armas a possibilidade de escusar-se do cumprimento

de determinados deveres militares por motivos de crença ou convicção de qualquer

ordem.

Aliás, a objeção de consciência militar é um direito que, em regra, não é

plenamente conhecido pelos operadores jurídicos no Brasil, seja quanto à legislação

pertinente ou quanto a escassa doutrina. Abordar o tema, nos leva a problematizar

até onde é possível e administrável a desobrigação jurídica dentro do Estado de

Direito, provocada pelo exercício das liberdades públicas, assente nos direitos

fundamentais da Constituição Federal, mas não se pode concebê-la como aplicável

aqueles que já integram as fileiras militares. Por razões óbvias, estes já declinaram

do direito.

É fato que a liberdade de consciência constitui o núcleo de partida para a

fundamentação da objeção de consciência. A questão de consciência, sob o ponto

de vista jurídico, significa a soma de motivos alegados por alguém, a fim de

desonerar-se da obrigação que lhe é imposta, ou evitar a responsabilidade do ato

jurídico, que lhe é atribuída.

Porém, não basta apenas a questão ética. O objetor deve invocar suas

convicções filosóficas ou políticas como imperativo de consciência. Mas, o que seria

a tal alegação de consciência? Parece-nos muito difícil aferi-la, pois o objetor de

consciência, geralmente, invoca razões morais e religiosas. A obrigação jurídica não

implica absolutamente a atribuição de um valor moral à todas as leis, caso contrário,

a objeção de consciência pode verter para a desobediência civil.

A Constituição Federal atual mantém a tradição histórica do serviço militar

inicial ou obrigatório, que alcança todos os brasileiros, natos e naturalizados (art.

143), mas como regra de exceção possibilitou a prestação militar alternativa,

mediante simples alegação de objeção de consciência, permanecendo, contudo,

obrigatório o alistamento militar dos jovens. O Brasil constitucionalizou a objeção de

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consciência como direito fundamental, em duas perspectivas: primeiro, enquanto

escusa genérica de consciência no art. 5°, VIII, e, segundo, enquanto escusa

restritiva ao serviço militar no art. 143, § 1°, da Constituição Federal,

respectivamente, in verbis:

Art. 5". Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...], nos termos seguintes: [...] VIII - ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei. .................... Art. 143. 0 serviço militar é obrigatório nos termos da lei. § 1° Às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativos de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar".

A regulamentação infraconstitucional está expressa na Lei nº 8.239, de 04 de

outubro de 1991, que dispõe sobre a prestação de Serviço Alternativo ao Serviço

Militar Obrigatório. Tal diploma conceitua o serviço alternativo como exercício de

atividades de caráter administrativo, assistencial, filantrópico ou mesmo produtivo,

em substituição às de caráter essencialmente militar, compreendendo um período de

dezoito meses. O serviço alternativo, independentemente do tipo do seu exercício,

tem natureza jurídica militar; por esta razão subordina-se à legislação militar

pertinente.

Nos termos da citada lei, e de seu regulamento185, o serviço militar alternativo

deve ser requerido à autoridade militar que detém a jurisdição regional sobre a

execução do serviço militar (Região Militar, Distrito Naval ou Comando Aéreo

Regional), ou seja, depende exclusivamente da manifestação de vontade do

interessado, a qual deverá se fazer acompanhar da respectiva declaração de

imperativo de consciência, para que seja possível atribuir vaga ao exercício de

determinada profissão ou área de serviço.

A seleção será realizada segundo os aspectos físicos, culturais, psicológicos

e moral dos convocados. Terão prioridade na matrícula do Serviço Alternativo, os

185 Portaria nº 2.681, de 28 de julho de 1992, do extinto Estado-Maior das Forças Armadas. Disponível no site http://www.defesa.gov.br/Disemi/disemi.htm.

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voluntários, os refratários186, os que se encontram em débito com o Serviço Militar

Obrigatório ou Alternativo e os brasileiros naturalizados, desde que educados no

Brasil. Serão dispensados da seleção para o Serviço Alternativo os residentes há

mais de um ano em Município Não Tributário187, ou em zona rural de Município

somente tributário de Formação de Reservas, os excedentes, os operários e, os

arrimos de família.

O serviço alternativo poderá ser recusado pelo optante convocado. O objetor,

neste caso, se recusa à prestação alternativa ou não o completa por motivo que deu

causa; novamente deverá peticionar à autoridade militar competente e terá, como

pena a suspensão dos direitos políticos, punição amparada no art. 15, IV, da

Constituição Federal.

O convocado ou optante que se recusa ao serviço alternativo terá de volta o

seu certificado de alistamento militar, com a devida anotação, válido por dois anos. A

qualquer momento pode o interessado rever sua manifestação, porém, ao término

daquele prazo, a autoridade militar o encaminhará ao Juiz Eleitoral competente para

processar e julgar a suspensão dos direitos políticos.

A suspensão dos direitos políticos se dará por sentença judicial eleitoral e

importa na perda temporária de dois anos da cidadania política. Deixará de ser

eleitor, ou tornar-se-á inalistável, ficando privado de todos os direitos fundados na

qualidade de eleitor. Tal privação despoja a pessoa dos atributos de cidadão,

atingindo o status activae civitatis.

O restabelecimento do serviço militar se dará após dois anos da suspensão

dos direitos políticos do inadimplente que poderá, a qualquer tempo, regularizar sua

situação, mediante cumprimento das obrigações devidas (art. 4º, §§ 1°e 2°, da Lei

8.239/91), onde receberá o certificado de recusa de prestação do Serviço

Alternativo.

Assim, a objeção de consciência não se apresenta contra as normas sociais,

mas tão-somente contra determinada obrigação jurídica. Dentre os ângulos de visão,

a controvérsia sobre a justificação da objeção da consciência reflete com certeza

uma determinação de limites diferentes do direito do Estado e da sociedade. Quem 186 O art. 3º do regulamento da Lei nº 4.375, de 1964 (Lei do Serviço Militar), aprovado pelo Decreto nº 57.654, de 20 de janeiro de 1966, define refratário como: "brasileiro que não se apresentar para a seleção de sua classe na época determinada ou que, tendo-o feito, ausentar-se sem a haver completado". 187 Município Não Tributário, nos termos do regulamento anteriormente anotado, é aquele "considerado pelo Plano Geral de Convocação Anual como não contribuinte à convocação para o serviço militar inicial" (art. 3º)

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admite uma flexibilidade parcial da obrigação jurídica, imediatamente incorpora a

objeção de consciência ao sistema jurídico como instrumento de solução de conflitos

sociais.

Todavia, a escusa de uma obrigação jurídica a todos imposta não poderia

passar em branco sob pena de propiciar um tratamento desigual entre brasileiros.

Por isso, a própria Constituição Federal impôs os ônus para aqueles que alegarem

imperativo de consciência: a assunção de novas obrigações concretizadas pela

atribuição de uma alternativa ao serviço militar ou às atividades de caráter

essencialmente militar (art. 143, § 1º).

4.7 O DIREITO DE REUNIÃO E DE ASSOCIAÇÃO

Por sua relevância, volta-se a um tema já introduzido por ocasião da

apreciação das restrições de filiação partidária e de sindicalização.

O direito de reunião é uma conseqüência da natureza social do homem, é a

expressão dos direitos com uma dimensão coletiva, dentre os quais podemos

mencionar as liberdades de reunião, de associação e de manifestação. O inciso XVI

do art. 5º da Carta Magna reconhece o direito de reunião pacífica e sem armas.

Doutrinariamente, podemos diferenciar a reunião de outros agrupamentos

humanos, sejam temporários (meras aglomerações, procissões religiosas,

espetáculos, manifestações) ou permanentes, como as associações. Juridicamente,

a diferença mais interessante está nos conceitos de reunião e manifestação, cujos

limites não estão perfeitamente definidos no nosso ordenamento, os quais não

estabelecem nenhuma especificidade entre ambos os conceitos, reunião e

manifestação. Podemos, enfim, considerar que são duas facetas de um mesmo

fenômeno, cuja diferença está em que a reunião é estática, enquanto a

manifestação é dinâmica.

Reuniões entre círculos de Oficiais e Praças, como normalmente ocorrem em

clubes militares, são plenamente lícitas e desejáveis, uma vez que propiciam uma

maior integração entre militares e respectivas famílias. No entanto, quando a face

estática cede lugar à manifestação coletiva reivindicatória, confronta-se a disciplina

militar.

Neste ponto, cabe observar que, a partir da promulgação da atual

Constituição Federal, têm surgido muitas associações de militares, normalmente

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graduados, que são constituídas sob uma roupagem social, assistencial ou

recreativa, mas que na verdade operam em regime reivindicatório.

Não se nega que existência de uma associação como pessoa jurídica

depende somente do ato voluntário de seus membros e não do reconhecimento do

Estado, que não pode interferir arbitrariamente no exercício desse direito. Todavia, o

direito de associação consagrado nos incisos XVII a XXI do art. 5º, da Constituição

Federal, não pode afrontar as proibições previstas no próprio texto constitucional.

Esse seria o caso das associações identificadas com um perfil sindical ou político-

partidário. A ilicitude aqui decorre da expressa vedação constitucional prevista nos

incisos IV e V do art. 142.

Em tais situações, parece-nos que o Ministério Público deve exercer um papel

relevante. Primeiramente, compreendendo o alcance e significado da disciplina

militar nos termos já expostos, para, em um segundo momento, exercer o seu

indelegável mister de fiscal da lei, promovendo as ações para a dissolução da

associação junto ao Judiciário.

4.8 PRIVAÇÃO E RESTRIÇÃO DA LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO.

A liberdade de locomoção é um princípio essencial no moderno Estado de

Direito, o que significa dizer que o Estado deve respeitá-lo e observar

escrupulosamente as normas estabelecidas sobre sua possível restrição.

Por sua vez, a peculiar disciplina militar é uma circunstância impõe aos

homens e mulheres que se integram às Forças Armadas determinadas restrições

quanto ao exercício de alguns direitos fundamentais e, concretamente, no que diz

respeito à liberdade individual.

Por isso, tem sentido a existência de um regime penal próprio, além do

comum, e de um regime disciplinar específico, com o qual é possível a imposição de

sanções disciplinares privativas de liberdade, que são proibidas na Administração

civil. Estas peculiaridades, que distinguem nitidamente o regime disciplinar militar do

civil, são determinadas pelo valor preeminente que se outorga à disciplina.

Seria viável pensar nas sanções, de caráter penal ou administrativo, como

parte de um único ius puniendi do Estado. Não obstante, há uma diferença

substancial entre o âmbito penal e o disciplinar administrativo, pois neste último as

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sanções nunca podem prever a privação ou restrição de liberdade. Pode-se discutir,

inclusive, se neste aspecto o Direito disciplinar militar seria um verdadeiro Direito

Administrativo ou um ramo híbrido com o Direito Penal, já que poderia estar mais

próximo do segundo do que do primeiro.

Não é propósito deste trabalho adentrar na controvérsia, mas somos forçados

a reconhecer que alguns aspectos do Direito disciplinar militar guardam proximidade

relevante com a natureza do Direito Penal.

Talvez por isso a norma inscrita no art. 142, § 2º, da Constituição Federal,

vede o habeas corpus nas transgressões disciplinares, no que parece apresentar

uma boa compreensão da importância que os princípios da hierarquia e da disciplina

têm para as instituições militares. Ali, claramente, se proíbe discutir o mérito do ato

disciplinar, o que não impede a apreciação outros elementos vinculados do ato

punitivo expedido pela autoridade militar.

A esse respeito, CARREIRA ALVIM, em feito já mencionado188, constata o

perigo de abrir precedentes à apreciação do mérito das punições disciplinares pelo

Judiciário, as quais passariam a ser administradas pelos juízes, que não vivenciam

as rotinas militares e não podem avaliar as circunstâncias que tornam exigível a

repressão imediata.

Todavia, como assevera BARCELLOS189, o dogma da insindicabilidade do

chamado “mérito administrativo” perdeu sua força nos dias atuais:

Com efeito, nas últimas décadas, e cada vez com maior intensidade, o Judiciário passou a ingressar no exame do que tradicionalmente se identifica como ‘mérito administrativo’ para aferir sua compatibilidade com determinados princípios constitucionais, como os da razoabilidade, da eficiência, da moralidade e da economicidade.

Essa evolução também é ressaltada por BINENBOJN190, quando trata da

“tradição autoritária” do direito administrativo brasileiro, para após ressalvar que a

luta contra arbitrariedades e imunidades do poder não se pode deixar converter em

uma indesejável “judicialização” da atividade administrativa. Tal proceder poderia

gerar uma dualidade de procedimentos (administrativos e judiciais), que, além de

188 Apud Sergio Feltrin Corrêa. Op. cit. p. 33. 189 BARCELOS, Ana Paula. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. Op. cit. p. 52. 190 BINENBOJN, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 214.

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contrário à noção de eficiência e especialização funcional, poderia comprometer a

integridade do sistema de separação dos poderes do Estado.

Assim, o perigo da dualidade de procedimentos, motivada pela interferência

judicial em todas as punições disciplinares aplicadas pelos comandantes militares

aos seus subordinados, funciona como um fator inibidor da apreciação do mérito do

ato punitivo.

4.9 O DIREITO DE PETIÇÃO E DE ACESSO À INFORMAÇÃO

O exercício do direito de petição pelos membros das Forças Armadas assume

algumas peculiaridades voltadas para a preservação da disciplina e observância de

alguns preceitos éticos.

O militar pode peticionar, representar, queixar-se e interpor recursos, desde

que o faça individualmente, uma vez que são vedadas quaisquer manifestações

coletivas (art. 45, do EM). Ressalva-se, também, os preceitos da ética militar, que

impõem uma exposição verdadeira dos fatos (art. 28, I), uma linguagem discreta ou

moderada (art. 28, IX) e a abstenção de tratar de matéria sigilosa fora do âmbito

apropriado (art, 28, X)

Outro aspecto interessante diz respeito ao §3º do art. 51 do EM:

Art. 51. O militar que se julgar prejudicado ou ofendido por qualquer ato administrativo ou disciplinar de superior hierárquico poderá recorrer ou interpor pedido de reconsideração, queixa ou representação, segundo regulamentação específica de cada Força Armada. § 3º O militar só poderá recorrer ao Judiciário após esgotados todos os recursos administrativos e deverá participar esta iniciativa, antecipadamente, à autoridade à qual estiver subordinado. (grifo nosso)

Para recorrer ao Judiciário, o EM impõe ao militar o dever de esgotar a via

administrativa e a participar suas intenções ao seu Comandante, antecipadamente.

A prévia participação ao Comandante parece lícita e exigível, pois em nada obstrui o

acesso ao Judiciário. Todavia, em que pese ao fato de existir posicionamento

contrário191, a prévia exaustão da via recursal administrativa para ingresso em juízo,

191 RHC nº 1997.01.00.033848-7/AM – Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

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afronta o art. 5º, XXXV da Constituição Federal, em especial se considerarmos que

as dimensões continentais do nosso País e a vascularização das Forças Armadas

podem motivar o retardamento de situações litigiosas que exijam pronta solução.

5. UMA RELEITURA PÓS-POSITIVISTA DE ALGUNS “HARD CASES”

O positivismo jurídico sustenta basicamente que o objeto da ciência do direito

é o direito posto, enquanto conjunto de normas, ditadas por autoridades humanas,

apto à resolução dos conflitos. Se tais normas se mostrarem ambígüas ou lacunosas

em relação a um caso concreto, a própria teoria positivista detém os métodos

suficientes para revelar o sentido do direito.

A teoria pura do direito de KELSEN192 surge e se mantém, por muito tempo,

como pilar de sustentação de grande parte dos ordenamentos jurídicos, num modelo

sistematizador alheio às questões que extrapolam o saber jurídico e os inflexíveis

limites das normas jurídicas positivadas.

Na essência da interpretação kelseniana193, o intento de fixar o sentido das

normas que serão aplicadas a um caso concreto, leva o órgão jurídico194 que o

aprecia a realizar uma operação mental em cascata, considerando todos os

escalões da norma jurídica, desde os superiores até os inferiores. Nessa operação,

a vinculação "piramidal" existente entre tais escalões não pode ser esquecida, pois

os primeiros regulam a produção e aplicação dos últimos.

No processo interpretativo pode ocorrer, entretanto, o que Kelsen chamava de

indeterminações não-intencionais195, resultantes, por exemplo, da ambigüidade dos

sentidos contidos em uma mesma norma ou, até mesmo, pelo conflito total ou

parcial com o sentido extraído de outra norma aplicável ao mesmo caso. Tais

situações de indeterminação e incerteza decorreriam de uma espécie de

"brainstorming", onde o intérprete seria levado a visualizar várias hipóteses de

incidência da norma e, naturalmente, várias soluções. 192 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. De João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 6ª ed., 1984. 193 Id. p.463-464. 194 A expressão pode ser entendida como sendo aplicável a órgãos judiciais ou administrativos incumbidos da solução de um problema jurídico. 195 Id. p. 465-466.

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Nessas circunstâncias, do que se depreende de KELSEN, o passo mais

importante do intérprete, no sentido de obter a sentença de um caso, seria o de

verificar se todas aquelas soluções por ele vislumbradas se conformavam a

determinados limites, limites ditados por uma moldura virtual do texto normativo.

Seria adequado adotar qualquer das sentenças (ou normas individuais) produzidas

nesta moldura, pois todas estariam observando as várias possibilidades de

significação do direito posto; ao revés, seria inútil buscar aquela decisão que

expressasse o único significado ou a única resposta correta196.

Com o surgimento de novos questionamentos jurídicos, e novas exigências

geradas pelas transformações sociais e políticas, porém, tornava-se imperioso

repensar os modelos de ordenamento jurídico existentes, agregando-lhes valores de

ordem moral e política antes rejeitados por KELSEN197.

Isso é o que nos ensina PERELMAN198: Enquanto a prática jurídica não estava muito distante dos costumes, dos hábitos e das instituições sociais e culturais do meio regido por dados sistema de direito, a concepção positivista do direito podia expressar de modo satisfatório a realidade do fenômeno jurídico. Mas, com o advento do Estado criminoso que foi o Estado nacional-socialista, pareceu impossível, mesmo a positivistas declarados, tais como Gustav Radbruch, continuar a defender a tese de que a ´Lei é lei", e que o juiz deve, em qualquer caso, conformar-se a ela. Uma lei injusta, dirá Radbruch, não pertence ao direito

A perda do prestígio do positivismo kelseniano, rígido, purista e fundado em

um direito virtual, incapaz de compor interesses, dá início ao que CAMARGO

denominou "virada para o pós-positivismo"199

Em sua tese de doutorado, a pesquisadora é percuciente ao notar a razão

do ocaso do modelo kelseniano:

Kelsen cinge-se à idéia do resgate da objetividade e da segurança no campo do direito, propondo a construção de uma teoria que excluísse quaisquer elementos de natureza metafísico-valorativa. (...) No entanto, as correntes que vêem a aplicação do direito como atividade criadora insurgem-se em opor severas críticas ao positivismo kelseniano, apontando para a falibilidade do modelo lógico-dedutivo.200

196 KELSEN, op. cit., p. 466-467. 197 Idem, ibidem, p.469-470. 198 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. Trad. de Virgínia Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 94-95. 199 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, Cap. 3. 200 Id. p.140.

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E não é com menor percuciência que são por ela apontados os novos rumos

da filosofia jurídica:

O pós-positivismo, como movimento de reação ao modelo kelseniano de negação de valores, abre-se a duas vertentes. Uma delas, que segue a linha de Dworkin e Alexy, busca recuperar a força normativa dos princípios de direito, com todo seu potencial valorativo. A outra procura, nos fundamentos que sustentam as decisões judiciais, sua força lógico-legitimante, como faz Chaïm Perelman, por exemplo.

O Direito, a partir da segunda metade do século XX, já não cabia mais no

positivismo jurídico. Passadas as duas grandes guerras mundiais, revoluções e

regimes totalitários, houve a necessidade de buscar transcender os limites

formalistas do positivismo jurídico e considerar tanto aspectos da realidade como

revisitar os aspectos axiomáticos da construção do direito.

O Direito deveria ser compreendido a partir de sua função na sociedade, a

partir de princípios e regras que trouxessem, mais uma vez, as discussões sobre

valores supra-positivos, como fundamento da unidade do sistema jurídico. O

constitucionalismo moderno e a teoria dos direitos fundamentais são reflexos dessa

virada teórica no estudo do direito.

Tal tese vai de encontro ao mais importante postulado do positivismo, na

medida em que rejeita o conceito de direito como uma moldura ou um conjunto que

só admite as normas positivadas como aptas à solução de controvérsias. Nessa

moldura positivista, que é usada por uma comunidade com o propósito de identificar

e exercer coerção sobre comportamentos reprováveis, prescinde-se de tudo aquilo

que não seja norma reconhecida ou válida.

DWORKIN, por exemplo, demonstra as conseqüências danosas trazidas ao

direito pelo positivismo ao negar o ingresso dos princípios em sua moldura. Para

isso, chama à discussão um conhecido princípio — "ninguém pode beneficiar-se de

seu próprio delito" — aplicado por um tribunal de Nova Iorque, em 1889, no difícil

caso Riggs vs. Palmer201, onde um neto, herdeiro testamentário de seu avô, após tê-

lo assassinado, foi impedido de receber sua herança, ainda que a lei assegurasse

aquele direito. O caso nos leva a pensar como seria a sentença se ela tivesse que

ser tomada por um positivista — Kelsen, por exemplo ? Reconheceria ele o direito 201 DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Espanha: Ariel, 1984, p. 73.

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de herança ou decidiria contra a lei? Amparado em qual ou quais componentes da

sua moldura ele decidiria contra a lei?

Por sua vez, a diferenciação entre princípios e normas, propiciaria o seguinte

quadro202:

princípios não são exceções, tal como as normas podem ser umas às

outras;

princípios não firmam as condições de sua aplicação, como as normas

(aplicáveis à maneira de tudo ou nada203);

os princípios estão sujeitos a um cálculo de sua importância quando

um colide com o outro, e as normas, ao revés, resolvem seus conflitos por critérios

hierárquicos, de especialidade ou similares.

Do que se extrai, apesar de possuírem características distintas bem

evidentes, os princípios e as normas possuem um traço comum importantíssimo: são

tão obrigatórios ou vinculantes quanto as normas.

Nesse diapasão, segundo o autor, se o conceito de direito se esgotasse num

conjunto de normas, qualquer lacuna ou incompletude poderia levar à

discricionariedade do julgador (ou decisor) em determinadas circunstâncias, como,

por exemplo, em casos difíceis ("hard cases")204.

Essas perspectivas, associadas à sua concepção da função judicial, levam o

autor a criar um juiz imaginário, batizado como Hércules205, uma figura sobre-

humana, com tal habilidade, erudição, paciência e perspicácia que seria capaz de

reconhecer a importância dos princípios como fonte supridora das lacunas ou

ambigüidades das normas incidentes sobre um "hard case", de modo a encontrar,

não uma, duas ou várias, mas a única resposta correta206. Um juiz capaz de julgar

favoravelmente à justiça, de maneira razoável e imparcial. Um juiz que, diante de um

202 DWORKIN, Op. cit.p. 77-78 203 Cf. Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000, p.253. 204 Pablo E. Navarro, por exemplo, nos dá o seu entendimento sobre o tema, coligindo o pensamento de vários autores. Segundo o professor da Universidad Pompeu Fabra, um caso pode ser considerado difícil se, "dada la ambigüedad de una formulación normativa, la vaguedad de sus conceptos, la inconsistencia o insuficiencia de las normas jurídicas, no hay consenso entre los juristas acerca de la resouesta correcta al caso y se necesita, para su solución, sopesar argumentos de principio". Cf. Sistema jurídico, casos difíciles y conocimiento del derecho. Artigo publicado na Revista Doxa — Cuadernos de Filosofia del Derecho, nº 14, 1993, p. 252-253 205 Idem, p. 177. 206 Albert Calsamiglia, ob.cit. p. 14.

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hard case, deve balancear os princípios, atribuindo-lhes o devido peso e

importância.

5.1 O SISTEMA DE QUOTAS RELIGIOSAS NO ACESSO À FUNÇÃO DE

CAPELÃO MILITAR

Como já dito, o serviço religioso militar obedece ao disposto na Lei nº

6.923/1981207, a qual assegura que o acesso ao primeiro posto do Oficialato do

Quando de Capelães Militares obedeça a uma proporcionalidade entre as diversas

religiões professadas na respectiva Força. A forma encontrada para discriminar a

representatividade das religiões entre os seus integrantes foi a de realizar

periodicamente um censo religioso, do qual resultariam os percentuais a serem

aplicados às vagas abertas em processos seletivos.

Assim procedeu a Marinha e em 2005 foram abertas duas vagas, sendo uma

para sacerdote da religião Católica Apostólica Romana e outra destinada a Pastor

da Igreja Evangélica Assembléia de Deus208, que representavam respectiva e

aproximadamente 60% e 10% do total de fiéis respondentes ao censo.

No curso do processo seletivo, na etapa de verificação documental, foi

eliminado um candidato Pastor da Igreja Presbiteriana, o qual, inconformado,

impetrou mandado de segurança209, sob a alegação de que fora aprovado nas

provas objetivas e que não poderia ter sido eliminado do certame por não ser da

Igreja Assembléia de Deus.

Por sentença, o Juízo Federal competente denegou a segurança, após

ponderar a direito à prestação religiosa nas entidades militares e o princípio da

isonomia, que fundamenta a acessibilidade aos cargos públicos, declarando a

validade da norma legal e editalícia que prestigia o princípio da proporcionalidade,

nos seguintes termos: Consoante estabelece a atual Carta Política, em seu artigo 37, inciso II, o acesso aos cargos públicos se dá por meio de concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvados os casos de cargos em

207 Art. 10 da citada Lei. 208 Ressalta-se que o grupo religioso “Protestante ou Evangélico” apresenta diversas ramificações, submetidas a autoridades eclesiásticas diferentes, tais como Batistas, Metodistas, Luteranos, Assembléia de Deus, Presbíteros, etc, do que resultou a necessidade de estratifica-los para melhor aferir a representatividade de cada ramo. 209 Processo nº 2005.51.01.004229-1 – 3ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro.

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comissão. (...) Nesta linha de raciocínio, o concurso público é regido por diversos princípios, dentre eles, o da legalidade, da publicidade, da moralidade, da eficiência, da razoabilidade, sendo o edital verdadeira “lei” entre as partes que participam do certame. (...) Neste sentido, é imprescindível o preenchimento de todos os requisitos trazidos no edital pelo candidato que almeja um cargo público. (...) Segundo esclareceu a autoridade impetrada, a abertura de certame com a proporção de vagas entre as diversas religiões professadas é baseada em censo religioso naval, efetivado a cada cinco anos, no qual se levanta a representatividade da cada religião na respectiva Força Armada. Aduz que no último censo realizado destacaram-se os percentuais de adeptos dos seguintes credos: 63,6 %, da Igreja Católica; 9,7%, da Assembléia de Deus; 5,4%, da Batista; 1,0%, da Presbiteriana; 0,3, da Congregacional, entre outros. Tal regra editalícia encontra previsão no artigo 10, da Lei nº 6.923/81 (...) O dispositivo legal está em conformidade com a atual Carta Política que estabelece em seu artigo 5º, inciso VII, o direito à prestação religiosa nas entidades civis e militares nos termos da lei. Ademais, impende ressaltar que o princípio da isonomia, constante na Constituição da República significa tratar desigualmente os desiguais. Vale dizer, dar o mesmo tratamento aqueles que estão, rigorosamente, na mesma situação. Não é o caso dos presentes autos, o Impetrante não preencheu requisito básico do certame, isto é, sua formação é de Pastor da Igreja Presbiteriana, de forma que não há como afastar a regra constante no edital, sob pena de criar situação de privilégio do Impetrante em detrimento dede todos os demais candidatos.

5.2 A ACESSIBILIDADE À FUNÇÃO MILITAR POR FIEL IMPEDIDO DE EXERCER

“ATIVIDADES SECULARES” NO MOMENTO DA REALIZAÇÃO DO CONCURSO

A demanda210 versou sobre candidato do concurso público para o Quadro de

Capelães Navais, o qual alegou impedimento de realizar a prova escrita de

Português, com início previsto para as nove horas de um sábado, por ser fiel da

Igreja Adventista do 7º Dia. Tal Igreja impede seus fiéis de realizar quaisquer

“atividades seculares” entre o pôr-do-sol da Sexta-Feira e o pôr-do-sol do Sábado.

Na decisão que deferiu o pedido de antecipação da tutela, o magistrado

identificou que a regra editalícia que previa a realização da prova no dia do sábado

restringiu – ainda que indiretamente – o direito do autor de participar do certame, em

razão de sua crença religiosa, conflitando com o disposto no art. 5º, VII da

Constituição Federal 211, além de estabelecer uma mitigação não autorizada ao

210 Processo nº 2004.50.01.005522-9 – 8ª Vara Federal da Seção Judiciária do Espírito Santo. 211 Art. 5º, VIII – “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa fixada em lei”.

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princípio da acessibilidade aos cargos públicos, previsto no art. 37, I da Constituição

Federal, uma vez que o candidato preenchia os requisitos exigidos pelo certame.

Todavia, teve o cuidado de preservar a lisura do processo seletivo, além de

não onerar a Administração Pública, nem os candidatos, com um forçado adiamento

da prova para todos os concorrentes. Em sua decisão, o magistrado autorizou a

realização da prova em momento diferente, porém determinou que o candidato fosse

mantido incomunicável e impedido de estudar ou revisar a matéria da prova a ser

realizada, a fim de que não pudesse se beneficiar do adiamento. Eis, em síntese, a

decisão: Em vista das razões expendidas, aparentemente está configurada a plausabilidade do direito afirmado na petição inicial. O periculum in mora é intenso, na medida em que a prova será realizada no dia de amanhã. Entretanto, observo que os demais participantes do concurso não devem ser prejudicados com a mudança de horário operada pela concessão da presente liminar. Por essa razão, para que a Organização do Concurso Público zele pela lisura do certame (...) deverá ser observado, por parte da Comissão Organizadora, o mecanismo da incomunicabilidade do candidato durante o tempo dos exames e o período que vai do término destes até o início de sua prova, a ocorrer às 17:33 horas de amanhã – dia 12 de junho de 2004. A incomunicabilidade deve englobar a impossibilidade do autor utilizar esse lapso temporal para estudar/revisar a matéria a ser ventilada na prova do concurso, sob pena de caracterização de vantagem indevida em favor do requerente frente aos demais candidatos. (...) este deverá ficar incomunicável e devidamente acompanhado de Fiscal o tempo todo, em lugar para tanto reservado.

5.3 O ACESSO À FUNÇÃO MILITAR POR PESSOAS PORTADORAS DA

SÍNDROME DA IMUNODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA (SIDA).

O Estatuto dos Militares prevê as situações que levam o militar à inatividade

remunerada212. A inatividade remunerada compreende dois grupos de militares: o

primeiro, ocupa a reserva remunerada mobilizável e o outro integra a chamada

reforma, também remunerada, porém não mobilizável213.

Assim, a transferência para a reserva remunerada mantém o militar em

condições de mobilização, já a reforma retira do militar esta condição, por não mais

gozar de higidez necessária a uma eventual convocação.

212 Art. 96 e art. 104. 213 Art. 3º.

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De fato, a reforma se dá quando o militar atinge, em cada posto ou

graduação214, determinada idade-limite215 estabelecida no Estatuto dos Militares ou

torna-se incapaz para o exercício da função militar, em decorrência de acidente,

ferimento ou doença especificada na lei216. A reforma por incapacidade física nada

mais é do que um amparo do Estado àqueles que dedicaram suas vidas unicamente

às atividades militares e que, em razão das peculiaridades profissionais inerentes à

vida na caserna, têm dificultada sua absorção pelo mercado de trabalho na vida civil.

Dentre as doenças incapacitantes amparadas pelo Estado encontra-se a

SIDA, por força do disposto na Lei nº 7.670/88. Na regulamentação da citada lei, o

então Ministro de Estado Chefe do Estado Maior da Forças Armadas aprovou a

Portaria n 02142/FA-43, de 3 de junho de 1997, que previa que os portadores do

vírus, classificados nas categorias A1 e A2 (assintomáticos) fossem considerados

incapazes temporariamente e mantidos em licença para tratamento de saúde por até

três anos. Caso não manifestassem os sintomas da doença, seriam reformados ao

final desse período.

Em julho de 2000, o Ministério Público Federal questionou o procedimento

adotado pela Marinha, no tocante aos portadores assintomáticos, por meio de Ação

Pública217. Entendia o Ministério Público Federal que o fato de ser portador

assintomático do vírus não reduzia a capacidade laborativa do militar. A pretensão

tinha como suporte uma dissertação de Mestrado218, de pesquisadora da Fundação

Osvaldo Cruz, que teve amplo acesso aos arquivos médicos da Marinha.

A conclusão da dissertação — e do MPF — emergiu no sentido de que a

reforma do assintomático atentaria contra a dignidade da pessoa humana. Na

argumentação, a demanda tratou da possibilidade do portador do vírus HIV positivo

(assintomático) poder continuar no exercício da atividade militar, sendo trazida

também a lume a discussão sobre a proibição de submeter os candidatos de

processos seletivos a exames específicos para verificação da presença da doença

ou do vírus HIV.

214 Posto é o grau hierárquico do Oficial, conferido por ato do Presidente da República e confirmado em Carta-Patente. Graduação é o grau hierárquico da Praça. Cf. o art 16 da Lei nº 6.880/80 (Estatuto dos Militares) 215 Cf. Estatuto dos Militares, art. 106. 216 Idem, art 108. 217 Processo nº 2000.51.01.017478-1 218 “AIDS na Marinha: vivendo o fim de uma carreira”. Autora: Ângela Fernandes Soares do Couto Esher.

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O MPF pretendia, então, que as Forças Armadas não procedessem à reforma

e o licenciamento compulsório dos portadores assintomáticos do vírus, bem como

que não realizassem testes compulsórios em relação aos servidores militares e

candidatos. O MPF requereu também que fossem reintegrados aos quadros da ativa

os servidores militares reformados como portadores assintomáticos que

manifestassem vontade nesse sentido.

Nesse diapasão, a Lei nº 7.670/88 garantia a reforma do militar portador da

SIDA, sendo omissa quanto ao portador assintomático do vírus do HIV. Portanto,

numa primeira aproximação contextualizada ao occasio legis, a reforma seria

imposição legal ao portador da doença. Quanto ao portador assintomático do vírus,

as Forças Armadas aplicavam a regra estabelecida pelo Estatuto dos Militares (art.

82, II e 106, III), que impunha ao militar portador da SIDA a condição de “incapaz

temporário para o serviço ativo, sendo mantido em licença para tratamento da

saúde. Ao final de prazo determinado, seria ele reformado.

No início de 2001 foi proferida sentença pela 24ª Vara Federal, determinando

que as Forças Armadas:

não mantivessem, em licença os portadores assintomáticos219;

mantivessem no serviço ativo os portadores assintomáticos,

preservando-lhes o direito de progredir na carreira, à vista dos requisitos

estabelecidos para cada Corpo/Quadro;

não procedessem à realização periódica de exames para detecção do

HIV;e

reintegrassem ao serviço ativo todos os portadores assintomáticos do

HIV, com as promoções que teriam direito caso houvessem permanecido na

ativa.

Na avaliação pura e simples do Juízo de 1º grau, o princípio da dignidade

humana exerceu grande peso, juntamente com o direito ao livre exercício laboral

insculpido no art. 5º, XIII. Foi igualmente preservado o direito de opção ao militares

que já se encontravam reformados e que não desejavam retornar ao serviço ativo.

Todavia, a sentença impunha um ônus aos cofres públicos, na medida em

que proibia a realização de exames periódicos para a detecção do vírus, inclusive na

admissão, daí porque o Tribunal regional Federal da 2ª Região deu parcial

219 Portadores do vírus HIV que ainda não manifestaram a doença.

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provimento ao recurso da União para permitir a realização obrigatória e periódica do

exame de detecção do vírus HIV, substituindo a sentença nesse ponto. Esclareceu,

porém, que tais militares deveriam ser lotados em funções que não representassem

perigo à sua condição de saúde, não sendo reformados enquanto fossem

considerados assintomáticos. Essa reserva de funções visava propiciar as condições

satisfatórias à manutenção da qualidade de vida do indivíduo e impedir que o

dinamismo da atividade militar pudesse afetar a capacidade imunológica do

infectado, eis que, dependendo de sua qualificação, estaria o militar exposto a

situações que poderiam minar sua resistência orgânica (ex. marchas,

acampamentos, manobras, chuvas, etc), expondo-o a infecções oportunistas.

Entretanto, alguns outros aspectos passaram in albis, como, por exemplo, o

caso dos militares temporários ou prestadores do serviço militar obrigatório. Quanto

a tais militares (portadores assintomáticos), fazendo uso do argumento adotado pelo

Ministério Público, não teriam eles reduzida a sua capacidade laborativa, não

havendo óbice, portanto, para que fossem desligados da Força após a conclusão do

seu tempo de serviço a que estivessem obrigados.

De fato, a lei garante a reforma ao portador da SIDA, porém não há previsão

legal que garanta a estabilidade do militar temporário portador assintomático do

vírus. Caso o decisum viesse a receber uma interpretação extensiva, de modo a

absorver os militares temporários, seria criada uma situação contrária ao princípio da

isonomia com relação aos demais militares portadores de outras doenças infecto-

contagiosas, que ainda hoje são consideradas “infamantes” e que são, por si só,

objeto de odiosas discriminações por parte da humanidade, como é o exemplo da

hanseníase.

É certo que se trata de tema sensível, exigindo uma boa dose de humanismo,

porém não se pode olvidar que a extensão da determinação judicial pode gerar uma

sobrecarga administrativa capaz de comprometer o exercício das funções precípuas

das Forças Armadas, haja vista a imobilização de recursos humanos direta ou

indiretamente ligados ao problema.

Outro ponto que parece oportuno ressaltar, relaciona-se com o fato de que o

afastamento da caserna mediante licença médica ou reforma objetivava, também,

afastar o estigma que ainda pesa contra os portadores do vírus, o que do ponto de

vista psicológico, pode atingir a auto-estima do militar, repercutindo de forma

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negativa no seu tratamento e na sua qualidade de vida. Aqui, observa-se que a

proteção à intimidade não foi ponderada.

Por final, vale mencionar que a questão também envolve aspecto financeiro,

uma vez que a reforma do militar portador assintomático da SIDA lhe traria

imediatamente o benefício dos proventos calculados sobre o grau hierárquico

superior. Em que pese ao fato da questão ter sido desprezada na Ação Civil Pública,

o detalhe não passou despercebido pelo Superior Tribunal de Justiça, que tem

reiteradamente assegurado o direito à reforma do militar assintomático. Nos termos

da decisão vigente, o militar não pode ser reformado, o que cerceia o seu direito ao

benefício em sua remuneração. De fato, os portadores assintomáticos do vírus HIV

têm obtido o direito à efetiva reforma em grau hierárquico superior, sendo irrelevante

questionar se o militar é apenas portador do vírus HIV ou se já desenvolveu a

doença. Para o citado Tribunal, não cabe interpretação extensiva da Lei nº 7.670/88,

a qual não distinguiu o soropositivo assintomático do soropositivo sintomático.

Vejam-se os seguintes arestos:

1. O militar portador do vírus HIV, independentemente do grau de desenvolvimento da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (AIDS/SIDA), tem direito à concessão da reforma ex officio por incapacidade definitiva, com remuneração calculada com base no soldo correspondente ao grau hierárquico imediato ao que possuir na ativa. 2. Recurso especial conhecido e improvido.220 ......... (...) IV - É incapaz definitivamente para o serviço ativo das Forças Armadas, para efeitos de reforma ex officio (art. 106, II, da Lei nº 6.880/80), o militar que é portador de síndrome definida no art. 1º, inciso I, alínea "c", da Lei nº 7.670/88. Precedente. V – A reforma ex officio de militar, baseada nos arts. 106, II, 108, V, e 109, da Lei nº 6.880/80 e art. 1º, inciso I, alínea "c", da Lei nº 7.670/88, não comporta discussão acerca do desenvolvimento da doença, mesmo que o portador seja assintomático, pois tal distinção não foi delineada pelo legislador. Precedente. VI – Caracterizada a impossibilidade total e permanentemente para qualquer trabalho, o militar reformado ex offício com base no art. 110, § 1º, da Lei nº 6.880/80, tem direito à remuneração calculada com base no soldo correspondente ao grau hierárquico imediato ao que o autor possuía na ativa.221

220 Recurso Especial nº 799.966-RS (STJ). Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima. No mesmo sentido, Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 670.744-RJ, do mesmo Relator. 221 Recurso Especial nº 714.339-RS (STJ). Relator Ministro Félix Fischer.

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5.4 O ACESSO AO JUDICIÁRIO CONDICIONADO AO ESGOTAMENTO DAS VIAS

ADMINISTRATIVAS

Neste hard case, o centro da polêmica reside no comando normativo previsto

no art. 51, §3º do Estatuto dos Militares222, o qual determina que “o militar só poderá

recorrer ao Judiciário após esgotados todos os recursos administrativos e deverá

participar esta iniciativa, antecipadamente, à autoridade à qual estiver subordinado”

Exsurge aqui a questão da incompatibilidade entre o dispositivo em comento

e o princípio da inafastabilidade da jurisdição, declarado no art. 5º, XXXV da

Constituição Federal, segundo o qual "a lei não excluirá da apreciação do Poder

Judiciário lesão ou ameaça a direito". Para a doutrina, nela inserida o magistério de

STRECK223, o caso se resolve pelo reconhecimento da ocorrência do fenômeno da

recepção, sendo forçoso verificar se o fundamento de validade da lei antiga

permanece ativo na vigência da nova Constituição.

No âmbito interno da Administração Militar, a questão foi analisada pela

Consultoria Jurídica da Marinha224. Em sua conclusão, à época, aquele órgão

consultivo considerou que a possibilidade de exigir a exaustão dos recursos

administrativos para ingresso em juízo contra a Administração foi abolida na atual

Constituição, salvo na hipótese relativa à Justiça Desportiva, porém ressalvou a

validade da parte final do dispositivo estatutário, nos seguintes termos:

Há um dever imposto por lei ao militar que recorre ao Judiciário — o de participação prévia à autoridade à qual estiver subordinada. Esta obrigação não impede o exercício do direito assegurado pela Constituição de ingresso ao Judiciário para apreciação de lesão ou ameaça de direito — art. 5º, XXXV. O não acatamento desta obrigação importa em desobediência à norma legal específica — segunda parte do §3º do art. 51 do Estatuto dos Militares — como à norma geral do dever de disciplina e do rigoroso cumprimento das obrigações e das ordens — incisos IV e V do art. 31 do mesmo Estatuto — constituindo-se, ainda, no desapreço ao dever de lealdade em todas as circunstâncias — inciso III do citado art. 31 — e afronta aos princípios da hierarquia e da disciplina como previsto no ‘caput’ do art. 142 da

222 Veja-se, a esse respeito, a Seção 4.9 deste trabalho. 223 STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma Nova Crítica do Direito.Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.699. 224 Parecer nº 32/2000.

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Constituição Federal. Assim, a penalidade que vier a ser imposta pela Administração Naval pelo descumprimento da obrigação específica de participação prévia do ingresso no Judiciário é juridicamente legítima e como tal deve ser sustentada e defendida.

O citado Parecer foi aprovado pelo Comandante da Marinha, tornando-se

normativo em âmbito interno.

Todavia, em 2002, talvez por constatar que esse não era o entendimento das

demais Forças, o Ministério Público Federal ajuizou uma Ação Civil Pública225 para

que as Forças Armadas não punissem disciplinarmente seus integrantes que

recorressem ao Judiciário contra atos dos próprios Comandos Militares antes de

serem esgotados todos os recursos administrativos cabíveis e sem a participação ao

Comando.

O julgador proferiu decisão que deferia liminar para determinar que a União

Federal se abstivesse de aplicar sanções disciplinares, de qualquer natureza,

motivada pelo ingresso em juízo sem antes esgotar as vias administrativas ou sem a

comunicação prévia ao superior hierárquico, até o julgamento definitivo do feito. A

decisão salientou que “as restrições atinentes ao esgotamento da via administrativa

e a prévia comunicação ao superior hierárquico, previstas no § 3º do art. 51 do

Estatuto dos Militares restringem, por via indireta, o acesso ao Poder Judiciário”.

A União Federal recorreu ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região, com

pedido de suspensão da liminar concedida, que foi acolhido por aquele Tribunal. Nas

suas alegações, a União Federal sustentou a tese de que a decisão impugnada

poderia implicar em lesão à ordem e à segurança pública, na medida em que o

cumprimento da liminar resultaria na dissolução da ordem e do serviço militar.

O Relator do recurso consignou que a princípio concordava com a assertiva

do juízo a quo , na medida em que há certa restrição ao pleno exercício do direito

constitucional previsto no art. 5º, XXXV, mas que restava claro também que a norma

legal atacada não excluía a apreciação judicial.

Prosseguindo na sua argumentação, o Relator ressaltou que era preciso

considerar que a carreira e a atividade militar possuem as suas peculiaridades

devidamente firmadas nos princípios da disciplina e da hierarquia, com respaldo

constitucional226. Além disso, evidenciou o tratamento diferenciado que se dá nas

225 Processo nº 2002.02.01.0064445-3 - 18ª Vara Federal/RJ 226 Art. 5º, LXI e art. 142, § 2º, X da Constituição Federal/1988.

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disposições constitucionais às Forças Armadas. Em especial, citou a subtração do

texto constitucional do direito à utilização do habeas corpus, nos casos de punições

disciplinares militares e de se admitir a prisão por transgressão disciplinar,

independentemente de flagrante ou mandado judicial227. Concluiu seu entendimento

no sentido de que não se poderia desprezar a possibilidade de que o imediato

cumprimento da liminar resultaria em constrangimento ou instabilidade no meio

castrense, pois a matéria — por sua natureza especial — merecia um

aprofundamento, o que não recomendava, portanto, por liminar, a mudança da

sistemática disciplinar que se repete há anos, inclusive após a Constituição de 1988.

Note-se que na apreciação do feito, o órgão jurisdicional ad quem ponderou o

princípio da inafastabilidade da jurisdição com os princípios da hierarquia e da

disciplina, trazendo em favor destes a especificidade da função militar e a ressalva

constante da parte final do art. 5º, LXI, além prestigiar a ordem e a segurança

pública como bens jurídicos a serem preservados.

227 Art. 5º, inciso LXI, 1ª parte, Constituição Fededral de 1988.

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6. CONCLUSÃO

No curso deste trabalho tivemos a oportunidade de travar contato com um

tema muito pouco difundido na doutrina pátria, talvez por razões que adormecem no

passado.

De fato, o acesso à justiça e o estudo dos direitos fundamentais

disponibilizados aos militares ainda não receberam o devido interesse por parte dos

operadores do Direito, como se o chamado "movimento universal de acesso à

justiça" não adentrasse aos portões dos quartéis. Essa lacuna acaba por restringir a

difusão das práticas inerentes à cidadania no seio dessa classe profissional e o

conseqüente e salutar (re)conhecimento dos direitos fundamentais aplicáveis aos

militares.

Tal cenário não é em nada benéfico ao desenvolvimento do tema e ao

amadurecimento do trato das questões polêmicas que envolvem o dia-a-dia das

instituições militares e do seu pessoal, dando azo à ocorrência de excessos, no mais

das vezes levados pura e simplesmente à decisão do Judiciário.

Assim, quando falamos em “excessos”, reconhecemos que a noção de

acesso à justiça ficou reduzida a sinônimo de acesso ao Judiciário, algo bem

distante da idéia de acesso à ordem jurídica justa e sintonizada com a elevada

missão atribuída às Forças Armadas e à sua componente subjetiva. E nesse ponto,

buscamos estudar a imprescindível interação entre o regime jurídico militar com as

normas e princípios constitucionais fundantes de um Estado Democrático de Direito.

Todavia, para se ter uma melhor compreensão dessa interação, não se pode

deixar ao largo o entendimento sobre o que vem a ser a função militar, suas

especificidades e o modelo constitucional de Forças Armadas adotado pelo Brasil.

Esse trajeto intelectivo é necessário para que se possa viabilizar o adequado

exercício da cidadania por parte dos militares, sem nunca pôr em causa a

especificidade da Instituição, o que seria irrazoável e, quiçá, leviano.

Nesse particular, podemos afirmar que a vinculação da missão constitucional

das Forças Armadas à sobrevivência do Estado é algo que qualquer pessoa, com

relativo esclarecimento, pode reconhecer, em especial se o perfil do Brasil puder ser

visualizado com maior nitidez: País continental, dotado de imensos recursos e

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riquezas ainda inexploradas, em que quase 190 milhões de pessoas vivem em cerca

de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, com grandes vazios demográficos e

fronteiras nem sempre confiáveis. Uma estatura estratégica tal, que faz com que os

objetivos da defesa nacional subsistam, mesmo que a noção de soberania nos dias

atuais seja flexibilizada (ou violada) pelo fenômeno da Globalização ou não se

percebam ameaças próximas.

Todavia, nem sempre as características relevantes e diferenciadoras da

função militar mostram-se tão nítidas; ao revés, são normalmente negligenciadas em

meio a uma torrente de comparações com as práticas vigentes nos setores civis. E

da mesma forma pela qual não se pode conceber um sistema de defesa do Estado

sem contar com a existência de uma estrutura militar eficiente, voltada para sua

destinação especial, não se pode exigir-lhe a eficiência sem prestigiar sua natureza

especial.

Como abordado no trabalho, as instituições militares compõem uma

Administração especial, inserida em um contexto de deveres e responsabilidades

que não pode ser comparado com o que é normalmente aceito e praticado no

serviço público civil, uma vez que aquelas são regidas por princípios especialmente

matizados na caserna (hierarquia e disciplina), os quais, como entendemos,

constituem o núcleo duro da própria organização militar.

Hierarquia e disciplina, enfim, devem ser sempre levadas em consideração

na interpretação dos conflitos e na integração do direito regulador da função militar,

sob pena de estarmos minando os elementos essenciais de instituições militares

constitucionalmente garantidas. Na análise do caso concreto, a prevalência ou não

desses princípios dependerá em muito da percuciência do intérprete e aplicador do

Direito.

A seu turno, se o presente impõe exigências de acomodação do emprego das

Forças Armadas às novas pautas culturais "globalizadas" — que forçam os modelos

de organização militar — ou a alguns comportamentos até agora desconhecidos do

meio castrense, tais como as missões humanitárias e sociais, não se pode olvidar

que o fim das Forças Armadas continua sendo a defesa do Estado a que pertencem.

Em nossa percepção, a imagem do militar metade monge e metade soldado não

deve ceder lugar para a de um voluntário social, similar a um membro de uma ONG

armada.

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Destarte, ainda que se argumente por uma mutação nas doutrinas militares

no mundo e na sociedade brasileira, que imponham esforços de adaptação da

organização militar, as Forças Armadas não podem nem devem alienar o que as

caracteriza como instituição, em termos de defesa de valores e no seu culto, sob

pena de uma perigosa aproximação de uma moldura inapta à proteção do Estado.

Por outro lado, no anverso da moeda temos o militar, antes de tudo um

cidadão com direitos e deveres. E aqui não se pode deixar de ressaltar que o acesso

à justiça, dentro de uma perspectiva mais ampla, deve também ser visto como

instrumento político e transformador; e mais, como uma nova forma de conceber o

jurídico, enxergando-o a partir de uma perspectiva cidadã, sem transformar deveres

em meras faculdades.

E é essa noção de fiel cumprimento do dever que faz a componente subjetiva

da função militar ser diferente dos grupos que hipertrofiam os direitos e atrofiam os

deveres. O dever de lutar em defesa do país, a sujeição aos riscos inerentes ao

cumprimento das missões militares, em tempo de paz ou de guerra, a subordinação

à hierarquia militar e a um regime disciplinar próprio, a permanente disponibilidade

para o serviço militar, ainda que com o sacrifício dos interesses pessoais, tudo

resumido no cumprimento do compromisso público assumido ao ingressar na

carreira das armas, constituem um rol de especificidades que devem ser levados em

consideração, tanto pelos próprios militares, como pelos que se propõem a estudar a

função militar.

Valores como honra, dever, lealdade, autoridade, disciplina, hierarquia,

dignidade e reconhecimento do primado do interesse nacional, mantêm-se imutáveis

na caracterização da função militar. Se por um lado podemos argumentar por ajustes

da sua expressão ao novo quadro de direitos dos cidadãos, por outro, devemos

reconhecer que Forças Armadas profissionalizadas exigem uma cidadania mais

consciente e têm como suporte homens e mulheres que, voluntariamente ou por

exigências do superior interesse nacional, nelas se incorporam.

A formação militar, quer pela disciplina rigorosa, quer pelos deveres que são

impostos, cria no indivíduo uma personalidade própria que distingue o serviço militar

do serviço público civil, não só pelas atitudes, mas também pelo conteúdo da

disciplina consciente. Daí porque seu regime jurídico goza de características

especialíssimas.

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Voltadas para a defesa do Estado, as Forças Armadas devem exigir dos seus

membros uma rigorosa disciplina material e intelectual, comportamento uniforme,

orientados pelo comando, e conceitos próprios, sobretudo naquilo que concorre para

a formação do militar. Exemplos não faltam sobre o comportamento que se espera

do militar: a covardia, muitas vezes desculpável nos civis, é imperdoável no militar; a

bravura, facultativa no meio civil, é essencial no militar; a desobediência, a teimosia

que representa, muitas vezes, uma personalidade marcante no civil — olhada, em

alguns casos, até com simpatia —, constitui crime militar.

Assim sendo, aqueles homens e mulheres, ao aceitarem a função militar,

sujeitam-se a princípios e regras institucionais, de organização e de comando, de

formação e de disciplina e, também, a códigos de ética intrinsecamente ligados à

sua disponibilidade para enfrentarem situações de risco, até ao extremo sacrifício.

Estes, juntamente com outros fatores derivados, outorgam um peculiar vínculo de

índole vocacional — ou institucional — dos militares com as Forças Armadas.

Vínculo que, mesmo tomado como metajurídico, não pode ser ignorado pelo Direito,

dele derivando restrições do exercício de alguns direitos e liberdades pelo pessoal

militar. Por tudo o que foi dito, e em respeito à natureza constitucional da função

militar, importa defender a necessidade de rever alguns conceitos e entendimentos

que tendem a equiparar o serviço militar ao serviço público civil.

Neste propósito, espera-se, também, que o presente estudo possa trazer

alguma contribuição, não com a pretensão de esgotar o tema, mas, tão-somente,

favorecer a discussão de idéias e propostas que enfatizem o acesso à justiça na

rotina das instituições castrenses, como uma forma de agregar normas e princípios

constitucionais com os preceitos e práticas militares.

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