O ACESSO À JUSTIÇA POR MEIO DO NÚCLEO DE PRÁTICA...

173
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS E APLICADAS GISELE CRISTINA DE OLIVEIRA O ACESSO À JUSTIÇA POR MEIO DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA E A SOLUÇÃO DOS CONFLITOS FAMILIARES PONTA GROSSA 2011

Transcript of O ACESSO À JUSTIÇA POR MEIO DO NÚCLEO DE PRÁTICA...

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA

PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

MESTRADO EM CINCIAS SOCIAIS E APLICADAS

GISELE CRISTINA DE OLIVEIRA

O ACESSO JUSTIA POR MEIO DO NCLEO DE PRTICA JURDICA DA

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA E A SOLUO DOS

CONFLITOS FAMILIARES

PONTA GROSSA 2011

GISELE CRISTINA DE OLIVEIRA

O ACESSO JUSTIA POR MEIO DO NCLEO DE PRTICA JURDICA DA

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA E A SOLUO DOS

CONFLITOS FAMILIARES

Dissertao apresentada para obteno do ttulo de Mestre na Universidade Estadual de Ponta Grossa, Programa de Mestrado em Cincias Sociais Aplicadas. rea de Concentrao: Cidadania e Polticas Pblicas. Linha de Pesquisa: Estado, Direito e Polticas Pblicas. Orientadora:Prof Dr Renata Ovenhausen Albernaz Co-orientadora:Prof Dr Jussara Ayres Bourguignon

PONTA GROSSA

2011

Ficha Catalogrfica Elaborada pela Seo de Tratamento da Informao BICEN/UEPG

Oliveira, Gisele Cristina de

O48a O acesso justia por meio do Ncleo de Prtica Jurdica da

Universidade Estadual de Ponta Grossa e a soluo dos conflitos

familiares / Gisele Cristina de Oliveira. Ponta Grossa, 2011.

171f.

Dissertao ( Mestrado em Cincias Sociais Aplicadas . rea de

Concentrao : Cidadania e Polticas Pblicas. Linha de Pesquisa : Estado,

Direito e Polticas Pblicas ), Universidade Estadual de Ponta Grossa.

Orientadora: Prof. Dr. Renata Ovenhausen Albernaz Co-orientadora : Prof Dr Jussara Ayres Bourguignon

1. Vulnerveis economicamente. 2. Acesso justia. 3. Ncleos de Prtica

Jurdica. 4. Conflitos familiares. I. Albernaz, Renata Ovenhausen. II.

Bourguignon, Jussara Ayres. III.T.

CDD: 340.1

Aos meus pais: Edmundo (in memorian) e Sofia, exemplos de vida e de superao.

AGRADECIMENTOS

Agradeo a Deus, pela vida e pela minha famlia.

minha me Sofia e aos meus irmos: Eliane, Elicia, Mrcio e Sibele, pelo

apoio incondicional durante a realizao deste trabalho.

Prof Dr Renata Ovenhausen Albernaz, orientadora desta pesquisa, pelos

ensinamentos, pela amizade, confiana e compreenso demonstradas em cada

orientao, a qual, mesmo distante, sempre esteve presente nos momentos

necessrios.

Prof Dr Jussara Ayres Bourguignon, co-orientadora desta pesquisa, pela

amizade, ensinamentos e ateno dispensados no desenvolvimento desta

dissertao.

Aos coordenadores do Ncleo de Prtica Jurdica e do Departamento de Direito

Processual Civil da Universidade Estadual de Ponta Grossa: Prof Gracia Maria

Vasso Yezazk e Prof Ms. Jos Jairo Baluta, pela possibilidade de realizao da

presente pesquisa.

A Luana Mrcia de Oliveira Billerbeck e Maria Cristina Rauch Baranoski, pela

amizade, pelo apoio, pelas idias trocadas e pelos livros compartilhados.

Aos colegas/amigos professores, advogados e funcionrios do Ncleo de Prtica

Jurdica e do Curso de Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa, pelo

apoio e pela contribuio no desenvolvimento deste trabalho.

Aos demais amigos e amigas, sobrinhos e sobrinhas, cunhados e cunhadas, que

contriburam, direta e indiretamente, para a realizao desta dissertao.

Ns somos do tamanho dos nossos sonhos. (J.C.Bemvenutti)

RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo analisar a possibilidade de acesso justia pelos vulnerveis, economicamente, por meio do Ncleo de Prtica Jurdica da Universidade Estadual de Ponta Grossa (NPJ/UEPG) e a soluo dos conflitos familiares por esse rgo. O interesse pelo assunto foi despertado pela experincia prtica da autora como professora colaboradora de Prtica Forense Civil, atuante junto ao NPJ/UEPG, entre os anos de 2007 e 2010. A pesquisa tem carter quantitativo, sendo realizada por meio do seguinte procedimento metodolgico: sistematizao de referencial terico-metodolgico a partir das principais categorias analticas: vulnerabilidade econmica, acesso justia, assistncia jurdica integral e gratuita, ncleos de prtica jurdica e conflitos familiares. Por meio deste referencial, se pode visualizar o debate sobre o acesso justia no Brasil, em especial, pelos vulnerveis economicamente, identificando as possibilidades de acesso por esse grupo ao sistema de justia, em especial, por meio dos Ncleos de Prtica Jurdica dos cursos de Direito. Nesta sistematizao, foi de fundamental importncia a anlise da sobre a teoria do acesso justia, a partir das lies de Mauro Capelletti e Bryan Garth, como tambm, o estudo sobre as novas configuraes da famlia contempornea brasileira. Na sequncia deste processo, realizou-se a anlise da pesquisa documental efetivada com base nos Relatrios de Atividades Jurdicas do NPJ/UEPG e nas peties ajuizadas pelo NPJ/UEPG, no perodo compreendido entre os anos de 2007 e 2010. A sntese deste processo culminou na identificao de resultados positivos para a questo do acesso justia por meio do NPJ/UEPG pelos vulnerveis, economicamente, que buscam esse rgo para a resoluo dos seus conflitos familiares. Palavraschave: Vulnerveis economicamente. Acesso justia. Ncleos de Prtica Jurdica. Conflitos familiares.

ABSTRACT

The aim of this research is to analyse the possibility of access to justice by the economically vulnerable through the Public Defenders Office of State University Ponta Grossa and the its familiar conflicts solutions. The interest in this subject occured through the practice experience of the author as a collaborator professor of Civil Forensic Practice, acting in NPJ/UEPG between 2007 and 2010. The research has a quantitative characteristic, and it is performed through the following methodological procedure: referential systematization of methodological theoretical from the main analytics categories: economic vulnerability, access to justice, full legal assistance, Juridical Practice Center and familiar conflicts. Through this referential we can visualize the debate about the justice access in Brazil, in special for the economically vulnerable, identifying the access possibility for this group in relation to the Justice System, mainly by Juridical Practice Center of Law Courses. In this systematization was of fundamental importance the analyses about the access to Justice theory from Mauro Capelletti and Bryan Garth lessons and also the study about the new configurations of Brazilian contemporary family. In the sequence, it was made the documental research analyses based on Juridical Activities Report of NP/UEPG and in petitions under judgement by NPJ/UEPG between 2007 and 2010. The synthesis of this process resulted in positive results identification in relation to justice access through NPJ/UEPG for economically vulnerable who search this organ for familiar conflicts resolution.

Key-Words: Economically vulnerable. Justice Access. Juridical Practice Centers. Familiar Conflicts.

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 Formulrio de Pesquisa ................................................................. 107

QUADRO 2 Relao das Aes Ajuizadas pelo NPJ/UEPG ........................... 123

LISTA DE GRFICOS

GRFICO 1 Nmero de atendimentos e aes ajuizadas pelo NPJ/UEPG .. 115

GRFICO 2 Aes cveis e aes de famlia ajuizadas pelo NPJ/UEPG ..... 116

GRFICO 3 Fonte de rendimento dos usurios do NPJ/UEPG ..................... 118

GRFICO 4 Relao das atividades informais mais recorrentes no

NPJ/UEPG .................................................................................

119

GRFICO 5 Relao das atividades formais mais recorrentes ..................... 119

GRFICO 6 Bairro em que residem os clientes do NPJ/UEPG .................... 121

GRFICO 7 Relao entre as aes ajuizadas, de forma consensual, e

litigiosas pelo NPJ/UEPG ..........................................................

126

GRFICO 8 Estado civil dos clientes atendidos pelo NPJ/UEPG ................. 128

GRFICO 9 Valores das penses alimentcias nas aes do NPJ/UEPG .... 129

GRFICO 10 Responsabilidade pelo pagamento dos alimentos nas aes

ajuizadas pelo NPJ/UEPG .........................................................

132

GRFICO 11 Forma de pagamento das penses alimentcias fixadas nas

aes ajuizadas pelo NPJ/UEPG ...............................................

133

GRFICO 12 Forma de fixao da guarda dos filhos nas aes ajuizadas

pelo NPJ/UEPG ..........................................................................

135

GRFICO 13 Forma de regulamentao do direito de visitas nas aes

ajuizadas pelo NPJ/UEPG .........................................................

135

GRFICO 14 Nmero de filhos beneficirios nas aes judiciais ajuizadas

pelo NPJ/UEPG..........................................................................

137

LISTA DE SIGLAS

CC Cdigo Civil CPC Cdigo de Processo Civil IES Instituio de Ensino Superior IPARDES Instituto Paranaense de Desenvolvimento Social NPJs Ncleos de Prtica Jurdica NPJ/UEPG Ncleo de Prtica Jurdica da Universidade Estadual de Ponta

Grossa PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento UEPG Universidade Estadual de Ponta Grossa

SUMRIO

INTRODUO .................................................................................................... 14

CAPTULO 1 A VULNERABILIDADE ECONMICA COMO OBSTCULO

AO ACESSO JUSTIA ..........................................................

18

1.1 CONCEITOS DE VULNERABILIDADE, POBREZA E

EXCLUSO SOCIAL PARA O ACESSO JUSTIA ............

18

1.2 ACESSO JUSTIA: CONCEITOS E FUNDAMENTOS .......... 24

1.2.1 Concepes sobre o acesso justia ........................................ 24

1.2.2 O direito fundamental de acesso justia .................................. 27

1.2.3 Obstculos ao acesso justia ................................................. 36

1.2.3.1 Obstculos econmicos ao acesso justia .............................. 41

1.2.4 Mecanismos de acesso justia aos vulnerveis,

economicamente.........................................................................

43

1.2.4.1 Assistncia jurdica integral e gratuita ..................................... 44

1.2.4.1.1 Defensoria Pblica ...................................................................... 50

1.2.4.1.2 Ncleos de Prtica Jurdica dos cursos de Direito ..................... 53

1.2.4.2 Juizados Especiais .................................................................... 56

1.2.4.3 Justia comunitria .................................................................... 59

1.2.4.4 Justia itinerante ......................................................................... 63

1.3 POLTICAS PBLICAS DE ACESSO JUSTIA: UMA

ANLISE A PARTIR DA RESOLUO 125/10 DO

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIA .....................................

65

CAPTULO 2 CONFLITOS FAMILIARES: UMA ANLISE SOB A

PERSPECTIVA SCIO-JURDICA ............................................

71

2.1 CONCEITOS DE FAMLIA ....................................................... 71

2.1.1 Famlia matrimonial .................................................................... 76

2.1.2 Famlia informal ......................................................................... 77

2.1.3 Famlia homoafetiva ................................................................... 78

2.1.4 Famlia monoparental ................................................................ 79

2.1.5 Famlia parental e anaparental .................................................. 80

2.1.6 Famlia pluriparental .................................................................. 80

2.1.7 Famlia paralela ........................................................................ 81

2.1.8 Famlia eudomista ..................................................................... 81

2.2 EVOLUO DOS DIREITOS DA FAMLIA NO

ORDENAMENTO JURDICO BRASILEIRO ..............................

82

2.3 PRINCPIOS RELATIVOS AO DIREITO DE FAMLIA ............. 85

2.3.1 Princpio do respeito dignidade da pessoa humana ............... 86

2.3.2 Princpio da liberdade de constituir uma comunho de vida

familiar ........................................................................................

86

2.3.3 Princpio da igualdade jurdica dos cnjuges e dos

companheiros .............................................................................

87

2.3.4 Princpio da paternidade responsvel e planejamento familiar 88

2.3.5 Princpio da comunho plena de vida ......................................... 88

2.4 MEDIDAS JUDICIAIS DE RESOLUO DOS CONFLITOS

FAMILIARES MAIS RECORRENTES JUNTO AO NPJ/UEPG ..

89

2.4.1 Ao de Alimentos ...................................................................... 90

2.4.2 Ao de Alimentos Gravdicos .................................................... 93

2.4.3 Ao de Execuo de Alimentos ................................................ 94

2.4.4 Ao Revisional de Alimentos .................................................... 95

2.4.5 Ao de Exonerao de Alimentos ............................................. 95

2.4.6 Ao de Homologao de Acordo ............................................. 96

2.4.7 Ao de Separao Judicial Consensual e Litigiosa, Ao de

Converso da Separao Judicial em Divrcio e Ao de

Restabelecimento da Sociedade Conjugal ................................

96

2.4.8 Ao de Divrcio Consensual e Litigioso .................................... 98

2.4.9 Ao de Guarda e Responsabilidade e Ao de

Regulamentao do Direito de Visitas .......................................

99

2.4.10 Ao e Investigao e Ao de Averiguao de Paternidade ... 100

2.4.11 Ao Declaratria Negativa de Paternidade ............................... 101

2.4.12 Medida Cautelar de Busca e Apreenso de Menor .................... 102

2.4.13 Ao de Destituio do Poder Familiar ....................................... 103

2.4.14 Ao de Reconhecimento e Dissoluo de Unio Estvel ......... 104

CAPTULO 3 FUNO SOCIAL DO NCLEO DE PRTICA JURDICA DA

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA ................

106

3.1 NCLEO DE PRTICA JURDICA DA UNIVERSIDADE

ESTADUAL DE PONTA GROSSA .............................................

108

3.1.1 Critrios e natureza dos atendimentos prestados no

NPJ/UEPG ..................................................................................

109

3.1.2 Etapas dos atendimentos prestados junto ao NPJ/UEPG ......... 111

3.2 ACESSO JUSTIA POR MEIO DO NPJ/UEPG ................. 113

3.3 A RESOLUO DOS CONFLITOS FAMILIARES POR MEIO

DO NPJ/UEPG .........................................................................

122

3.3.1 Perfil das aes de famlia ajuizadas pelo NPJ/UEPG .............. 126

CONSIDERAES FINAIS ............................................................................... 139

REFERNCIAS ................................................................................................. 142

APNDICE A Distribuio geogrfica dos usurios do NPJ/UEPG ....... 150

ANEXO A Resoluo n 09/2004 do Conselho Nacional de Educao .... 152

ANEXO B Resoluo n 032/2001 Conselho de Ensino, Pesquisa e

Extenso da Universidade Estadual de Ponta Grossa .........

156

14

INTRODUO

A promulgao da Constituio Federal em outubro de 1988,

marcou o incio de um novo panorama poltico e social brasileiro. Diante desta

realidade, direitos so reconhecidos, entre eles o direito de acesso justia, o qual

passou a figurar no ordenamento jurdico brasileiro na qualidade de direito

fundamental e humano. No entanto, aps 23 anos de sua promulgao, este direito

ainda est longe de ser efetivado, nos moldes propostos, constitucionalmente,

principalmente pela camada pobre da populao.

Assim, situado no contexto social em que se encerram grandes

discusses sobre a ineficincia e falncia do Poder Judicirio, o problema do acesso

justia aflora como questo social vinculada igualdade e efetivao da

cidadania dos indivduos, principalmente daqueles que se encontram em situao de

vulnerabilidade social.

Neste plano, situa-se a presente pesquisa, a qual tem por objetivo a

anlise das contribuies prticas do Ncleo de Prtica Jurdica da Universidade

Estadual de Ponta Grossa (NPJ/UEPG), como mecanismo de acesso justia

atuante junto soluo dos conflitos familiares dos vulnerveis, economicamente,

deste municpio.

, portanto, na perspectiva de um espao onde o cidado possa

efetivar o seu direito constitucional de acesso justia que interessa compreender o

Ncleo de Prtica Jurdica da Universidade Estadual de Ponta Grossa como

mecanismo capaz de favorecer a concretizao da dignidade de seus usurios.

Trata-se, aqui, de levantar elementos para a compreenso do

trabalho desenvolvido junto ao NPJ/UEPG, voltada ao esclarecimento de questes

como: os ncleos de prtica jurdica, entre eles o NPJ/UEPG, podem ser includos

como novos meios de acesso justia pelos grupos vulnerveis economicamente?

Como tais ncleos cumprem esta funo de acesso justia em se tratando de

conflitos familiares?

Para desenvolver esta anlise, apresentou-se o debate atual sobre

pobreza, vulnerabilidade e excluso social; o desenvolvimento das teorias de acesso

justia; o estudo dos mecanismos de acesso justia colocados disposio dos

15

cidados vulnerveis, economicamente, e a anlise sob o enfoque scio-jurdico dos

conflitos familiares mais recorrentes junto ao NPJ/UEPG.

A pesquisa possui natureza exploratria, pesquisa esta que nas

palavras de Gil (1996, p.45), [...] tem por objetivo proporcionar maior familiaridade

com o problema, com vistas a torn-lo mais explcito ou a construir hipteses, tendo

como objetivo principal [...] o aprimoramento de ideias ou a descoberta de

intuies.

O mtodo utilizado foi o quantitativo. Sobre a pesquisa quantitativa nas

cincias sociais, Crvi (2009, p. 135) a define como

[...] uma das formas de representao de fenmenos significativos da sociedade, a partir de um conjunto de tcnicas que permite medir e contar os padres e relaes entre as caractersticas do objeto de pesquisa [...].

Nesta perspectiva, observa-se que a importncia da pesquisa social

quantitativa para a presente investigao residiu no fato de que a sua utilizao

permitiu [...] reduzir uma grande massa de informaes a alguns indicadores que

so capazes de representar as principais caractersticas do objeto analisado [...]

(CERVI: 2009, p. 135).

Para o desenvolvimento da dissertao foram empregadas tcnicas

de pesquisa bibliogrfica e pesquisa documental. A pesquisa bibliogrfica teve por

base a sistematizao do referencial terico a partir de alguns autores de referncia

sobre o tema, com as seguintes categorias analticas: vulnerabilidade econmica:

Demo (2003) e Lavinas (2002); acesso justia: Capelletti e Garth (1988); conflitos

familiares: Dias (2010) e ncleos de prtica jurdica: Silva (2006), sem prejuzo de

outras consultas a outros autores igualmente referenciais sobre o assunto em

discusso.

Por meio do referencial, se pode visualizar o debate sobre o acesso

justia, no atual contexto brasileiro, identificando os principais obstculos ao

exerccio deste direito, bem como, os mecanismos judiciais colocados disposio

do cidado vulnervel economicamente para resoluo dos seus conflitos jurdicos,

em especial, dos conflitos familiares, com destaque, neste contexto, para os ncleos

de prtica jurdica dos cursos de Direito.

Sobre pesquisa documental, esta foi realizada a partir dos

Relatrios Anuais de Atividades Jurdicas do NPJ/UEPG e junto das 1.188 (um mil,

16

cento e oitenta e oito) peties iniciais ajuizadas perante as Varas de Famlia da

Comarca de Ponta Grossa no perodo compreendido entre os anos de 2007 a 2010.

Foram coletados, tambm, dados junto ao Ofcio Distribuidor e Contador Judicial da

Comarca de Ponta Grossa e ao Cadastro nico da Prefeitura Municipal de Ponta

Grossa.

Realizada a coleta de dados, a anlise de contedo foi guiada por

meio da re-contextualizao dos dados coletados luz da pesquisa bibliogrfica e

documental realizada, por meio da criao de categorias de anlise que envolveu a

diferenciao e combinao dos dados obtidos e as reflexes que foram feitas sobre

essas informaes. Referida anlise seguiu o mtodo proposto por Bardin (1977

apud Trivios 1987, p.161), conforme: a) pr-anlise para organizar o material

coletado, b) descrio analtica, com a codificao, classificao e reorganizao do

contedo, e interpretao inferencial, que, no obstante ocorrer, desde o incio da

anlise, ter maior intensidade, neste terceiro momento.

O trabalho foi estruturado da seguinte forma:

Captulo 1: contm a sistematizao do debate contemporneo

sobre a vulnerabilidade econmica e a efetivao do direito de acesso justia,

discorre sobre os mecanismos de acesso justia disponibilizados aos vulnerveis,

economicamente, no Brasil, bem como analisa a questo da cidadania na

perspectiva do acesso justia.

Captulo 2: o presente captulo apresenta uma contextualizao da

famlia na atualidade e suas novas formas de constituio, sendo traado um perfil

simplificado sobre as demandas mais recorrentes utilizadas junto ao NPJ/UEPG

para resoluo dos conflitos familiares de seus usurios.

Captulo 3: captulo em que consta a sistematizao da pesquisa

realizada, por meio da anlise das categorias: acesso justia por meio do

NPJ/UEPG e resoluo dos conflitos familiares atravs do NPJ/UEPG, buscando-se

por intermdio dos resultados obtidos uma reflexo sobre a real contribuio do

NPJ/UEPG como meio de acesso justia aos vulnerveis, economicamente, do

municpio de Ponta Grossa, que buscam a soluo dos seus conflitos familiares.

Pretende-se, com a presente pesquisa, contribuir para o debate

contemporneo sobre o acesso justia no Brasil, principalmente, no que se refere

ao seu inacesso pelos vulnerveis, economicamente, apontando, para tanto, os

mecanismos de acesso disponibilizados a esses indivduos, quer por parte do

17

Estado, quer por parte da sociedade civil ou oriundos de parcerias entre estes dois

entes, em especial, os ncleos de prtica jurdica, os quais, para alm de sua funo

pedaggica, acabam por fazer as vezes do Estado na efetivao da to aclamada

assistncia jurdica integral e gratuita, prevista, constitucionalmente.

18

CAPTULO 1

A VULNERABILIDADE ECONMICA COMO OBSTCULO AO DIREITO DE ACESSO JUSTIA

O acesso justia pode ser encarado como requisito fundamental o mais bsico dos direitos humanos de um sistema jurdico moderno e igualitrio

que pretenda garantir, e no apenas proclamar direitos de todos.

(Capelletti e Garth)

Este captulo apresenta um debate contemporneo sobre a

vulnerabilidade econmica como fator de excluso social e a efetivao do direito de

acesso justia aos vulnerveis, economicamente. Por meio do dilogo entre estas

duas categorias, passar-se- anlise dos mecanismos de acesso justia

disponibilizados aos sujeitos vulnerveis, aportando consideraes sobre a

assistncia jurdica integral e gratuita, defensoria pblica, ncleos de prtica jurdica

dos cursos de direito, juizados especiais, justia comunitria e justia itinerante,

trazendo, ao final, uma discusso sobre polticas pblicas de acesso justia no

Brasil, a partir da Resoluo 125/10 do Conselho Nacional de Justia.

1.1 CONCEITOS DE VULNERABILIDADE, POBREZA E EXCLUSO SOCIAL PARA

O ACESSO JUSTIA

Quando falamos em pobreza, de imediato, associamos esta ao

conceito de vulnerabilidade e excluso social, como se fossem expresses

sinnimas. Ocorre que pobreza, excluso social e vulnerabilidade no possuem o

mesmo significado, muito embora sejam conceitos relacionais, consequentes e

recorrentes. Para entendermos melhor sobre esta diferenciao, passemos anlise

conceitual destes fenmenos.

Vrias so as concepes do fenmeno pobreza, as quais so

analisadas por diferentes perspectivas. A mais tradicional, segundo Ribeiro (2006,

p. 175), refere-se diferenciao entre pobreza absoluta e pobreza relativa, donde a

pobreza absoluta considerada pela autora como a que est vinculada [...] as

necessidades tidas como as mais fundamentais, relacionadas sobrevivncia

fsica, j a pobreza relativa [...] aborda aspectos fsicos e alimentares, passando a

19

incorporar outras necessidades humanas, tais como educao, condies sanitrias

e moradia.

No mesmo sentido, Lavinas (2002, p. 29), pondera que pobreza na

acepo mais imediata e generalizada, significa falta de renda ou pouca renda. Para

a autora, a pobreza, numa definio mais criteriosa, retrata

[...] um estado de carncia, de privao, que pode colocar em risco a prpria condio humana. Ser pobre ter, portanto, sua humanidade ameaada, seja pela no satisfao de necessidades bsicas (fisiolgicas e outras), seja pela incapacidade de mobilizar esforos e meios em prol da satisfao de tais necessidades.

Lavinas (2002, p. 52) entende que a pobreza, analisada sob a

perspectiva de ausncia de renda [...] est fortemente associada dinmica

macroeconmica e ao regime de proteo social existente, ele mesmo derivado dos

princpios de solidariedade e convenes eleitos por cada sociedade. Dentro desta

tica, a autora explica que o enfrentamento da pobreza deve ser prioridade nacional,

fortalecida pelas gestes locais. Defende que vencer a pobreza libertar cada

indivduo, independentemente do seu local de origem e do territrio que elegeu para

viver, de privaes que podem ameaar sua existncia ou comprometer sua

trajetria de vida. Aponta como soluo a redistribuio de meios, recursos e

renda a todos aqueles que se encontrarem abaixo de um patamar considerado

aqum do mnimo aceitvel, pontuando que a superao da pobreza no apenas

um compromisso do governo local, mas sim, um compromisso de toda a sociedade,

a partir da compreenso de que o enfrentamento da pobreza [...] ultrapassa a

competncia e possibilidades das instncias locais, os quais devem ser parceiros

do Estado nesta luta, uma vez que [...] no h como lutar contra a pobreza sem

uma estratgia nacional [...]. Dentro desta tica, a autora conclui que o

enfrentamento da pobreza deve ser prioridade nacional, fortalecida pelas gestes

locais.

Outrossim, Demo (2003, p. 199), ao tratar do fenmeno pobreza, o

faz aduzindo que este um conceito relativo no reduzido apenas a parmetros

fixos e lineares, em especial no que se refere a questes materiais.

Para o autor (2003, p. 37), o conceito de pobreza no deve ficar

restrito apenas privao material vinculada ao critrio da renda, entendida a partir

da como simples carncia material, uma vez que esta caracterstica apenas uma

20

face da pobreza, mas no a central. Para ele, [...] o que faz algum ser pobre no

propriamente a carncia material, mas, sobretudo, a injusta distribuio dela.

Dentro desta perspectiva, Demo (2003, p. 38) afirma que a pobreza,

[...] no se restringe carncia dada, natural, mas inclui aquela produzida, mantida, cultivada, por conta do confronto subjacente em torno do acesso a vantagens sociais, sempre escassas em sociedade. Ser pobre no apenas no ter, mas sobretudo ser impedido de ter e sobretudo de ser, o que desvela situao de excluso injusta.

Nesta ordem de ideias, Demo (2003, p.37-38) vincula o conceito de

pobreza a partir de uma anlise poltica, vinculada a questes intrnsecas do

capitalismo, criticando as polticas sociais compensatrias, as quais no resolvem o

problema, uma vez que apenas servem para amansar os pobres. Defende que a

funo do Estado atender ao bem comum, por intermdio de um controle

democrtico construdo a partir de polticas sociais emancipatrias, capazes de dar

ao pobre condies de resolver seus problemas e de escrever sua prpria histria.

Nestes termos, conclui que:

Enquanto o pobre no descobrir que pobreza uma injustia, no se faz sujeito de suas prprias oportunidades. Continua imaginando, na condio de objeto, que seus problemas so inerentes sua sorte e que, se soluo houver, h de vir dos outros (DEMO, 2003, p. 299).

Seguindo esta linha de raciocnio, o mesmo autor (2003, p. 36), ao

tratar da excluso social pontua que esta [...], sobretudo, no conseguir alar-se

condio de sujeito capaz de comandar seu destino. Nega-se no s o acesso

material, mas principalmente a autonomia emancipatria.

De fato, o conceito de excluso social mais amplo que o de

pobreza, pois a excluso social est relacionada ideia de inacesso e privao

social e de direitos. Segundo Martins (1997, p. 18), a ideia de excluso est

vinculada prpria ideia de privao de emprego, de meios de participao no

mercado de consumo, de bem-estar, de liberdade e de esperana; privaes estas

que so mais do que econmicas, pois h nelas certa dimenso social.

Nesta mesma perspectiva, Lavinas (2002, p. 37) esclarece que

enquanto a pobreza implica conceitos objetivos, como falta de renda, de moradia, de

capital humano, a excluso, implica considerar, tambm, os aspectos subjetivos,

caracterizados por [...] sentimentos de rejeio, perda de identidade, falncia dos

21

laos comunitrios e sociais, resultando numa retrao das redes de sociabilidade,

com a quebra dos mecanismos de solidariedade e reciprocidade. No entendimento

da autora, a excluso no se restringe ao estado de carncia, mas sim s

consequncias acarretadas por ele, quando

[...] insuficincia de renda e falta de recursos diversos somam-se desvantagens acumuladas de forma quase constante, processos de dessocializao ocasionados por rupturas, situaes de desvalorizao social advindas da perda do status social e da reduo drstica de oportunidades, e onde as chances de ressocializao tendem a ser decrescentes.

Percebe-se, ento, que na viso da autora (2010, p. 52) a excluso

significa a ruptura de vnculos sociais bsicos, no pelo empobrecimento do

indivduo, mas sim das relaes que o identificam na sociedade, caracterizado pela

perda de sua identidade e desenvolvimento de um sentimento de no-pertencimento

social, marcados pela percepo de segregao social, deteriorao urbana,

isolamento e reduo do espectro de oportunidades do indivduo.

No que se refere vulnerabilidade, Toms et al. (2007) esclarecem

que, de uma forma geral, h uma associao entre os conceitos de vulnerabilidade

pobreza e excluso social. Segundo os autores, [...] as vulnerabilidades sociais

so multidimensionais, multicausadas, processuais e reprodutivas no apenas na

vida dos indivduos e as famlias, mas tambm nos espaos em que elas vivem.

Para os autores, as vulnerabilidades so recorrentes em determinados grupos de

pessoas e de famlias, no apenas em virtude da falta de recursos e capacidades

individuais, [...] mas tambm porque elas se estendem a suas redes de amizade, de

vizinhana, s suas relaes profissionais e institucionais mais prximas

espacialmente.

Carneiro (2005 apud Tomas et al., 2007) leciona que o termo

vulnerabilidade pode ser analisado a partir de trs sentidos distintos, embora

complementares: no primeiro, a vulnerabilidade est relacionada ausncia de

renda ou escassez de renda das famlias ou indivduos, [...] dadas pela sua

insero precria ou no-insero no mercado de trabalho denotando neste sentido

a pobreza em termos monetrios; no segundo sentido, a vulnerabilidade passa a ser

entendida como escassez ou ausncia de renda, que redundaria na falta de acesso

ou o acesso precrio das famlias e/ou indivduos a servios e bens sociais bsicos

22

[...] em virtude da ausncia ou no efetividade das polticas pblicas em prover

esses bens e servios de forma equnime a todos os segmentos da populao, e

no terceiro sentido, a vulnerabilidade vem a ser analisada sob o ponto de vista da

pobreza como a falta de capacidade das famlias e dos indivduos. Dentro desta

perspectiva, a autora conceitua a pobreza como a privao de capacidades bsicas

para o indivduo operar no meio social, decorrente da falta de oportunidades deste

para alcanar nveis minimamente aceitveis de realizaes, o que, muitas vezes,

independe da renda que possui.

Frente a tais consideraes, analisando a vulnerabilidade quer

como pobreza, quer como fator de excluso social, tem-se que a mesma pode ser

considerada como o conjunto de situaes que podem levar diminuio do nvel de

bem-estar dos indivduos ou de uma comunidade, com consequente exposio

desses grupos a determinados fatores de riscos.

Neste contexto, necessria se mostra a existncia de polticas

pblicas sociais para o enfrentamento de tais vulnerabilidades, a fim de integrar o

indivduo sua comunidade e proteg-lo dos diferentes riscos a que est exposto

em uma dada sociedade.

Ante o exposto, operacionalizando os conceitos de pobreza,

excluso social e vulnerabilidade para o acesso justia, observa-se que a falta de

recursos materiais impede que os indivduos acessem justia, privando-os de

levarem ao Judicirio suas reivindicaes, excluindo-os do sistema legal de soluo

de controvrsias, fazendo nascer entre eles sentimento de no-pertencimento social

e isolamento, com consequente diminuio do nvel de bem-estar desses indivduos

e exposio a certos tipos de riscos ante a falta de possibilidades de enfrentamento

jurdico de seus problemas.

A propsito, em um pas como o Brasil, em que as desigualdades

econmicas so discrepantes e a pobreza assola parte expressiva da populao, o

acesso justia passa a ser um direito exercido por poucos.

Segundo dados obtidos junto ao Programa das Naes Unidas para

o Desenvolvimento (PNUD) divulgados em 2010, 8,5% da populao brasileira,

correspondente a 16,2 milhes de brasileiros, esto enquadrados no ndice de

pobreza multidimensional1 e 13,1% esto em risco de entrar nessa condio. De

1O ndice de Pobreza Multidimensional tem como objetivo fornecer um retrato mais amplo sobre as

pessoas que vivem com dificuldades. O IPM aponta privaes em educao, sade e padro de vida

23

acordo com o PNUD, 20,2% dos habitantes possuem pelo menos uma grave

privao em educao, 5,2% em sade e 2,8% em padro de vida. Ainda, de acordo

com os critrios internacionais de pobreza, entre os que vivem com menos de U$

1,25 por dia, encontram-se 5,2% da populao brasileira. No que se refere ao ndice

de Desenvolvimento Humano, o Brasil de 2009-2010 passou para 73, no quadro

mundial2.

No plano municipal, segundo o Instituto Paranaense de

Desenvolvimento Econmico Social (IPARDES), o Municpio de Ponta Grossa tem

uma populao de 311.611 habitantes, numa rea de 2.025.697 quilmetros

quadrados3. Dentre esses habitantes, 118.719 correspondem populao

economicamente ativa e 100.862 correspondem populao ocupada. O ndice de

Desenvolvimento Humano Municipal, segundo o PNUD do ano de 2000, de 0,820,

e a taxa de pobreza do Municpio de 18,55%, onde 59.349 pessoas e 15.075

famlias se encontram em situao de pobreza, ou seja, vivem com renda familiar

per capita4 de at salrio mnimo5.

A populao usuria da Poltica de Assistncia Social no Municpio

de Ponta Grossa de aproximadamente 18.000 pessoas. Dentre os programas

sociais desenvolvidos no Municpio, destaca-se que 8.197 famlias so beneficirias

do Programa Bolsa Famlia e 4.278 so beneficirias do Benefcio de Prestao

Continuada6.

Desta forma, percebe-se que grande parte da populao brasileira,

inclusive a municipal, encontra-se em condies de pobreza ou extrema pobreza,

dependendo de programas sociais do governo para sobreviver.

Diante de tais consideraes, tem-se que para uma populao

pobre, o acesso justia deixa de ser necessidade e passa a ser privilgio de

as mesmas dimenses do ndice de Desenvolvimento Humano (IDH) e pode ajudar a canalizar os recursos para o desenvolvimento de forma mais eficaz. Reunidos, esses itens proporcionam um retrato mais completo de pobreza do que simples indicadores de renda. Disponvel em < http://www.pnud.org.br/pobreza_desigualdade/reportagens/index.php?id01=3597&lay=pde>. Acesso em 22 julho de 2011. 2Disponvel em . Acesso em 22 de julho de 2011.

3Disponvel em http://www.ipardes.gov.br/perfil_municipal/MontaPerfil.php?Municipio=84000>. Acesso

em 22 de julho de 2011. 4 A Renda familiar per capita calculada dividindo-se o total da renda de todos os moradores de um

mesmo domiclio pelo nmero de moradores. Renda individual per capita a renda individual de cada morador ( Autora). 5Disponvel em . Acesso em 22 de julho de 2011.

6 Prefeitura Municipal de Ponta Grossa. Secretaria Municipal de Assistncia Social. Cadastro nico

Municipal. Ponta Grossa, 2010.

http://www.pnud.org.br/pobreza_desigualdade/reportagens/index.php?id01=3597&lay=pdehttp://www.pnud.org.br/http://www.ipardes.gov.br/perfil_municipal/MontaPerfil.php?Municipio=84000http://www.pnud.org.br/

24

poucos, situao esta que leva os indivduos a permanecerem na informalidade

jurdica ou at mesmo a desistirem de reivindicar seus direitos, ante as dificuldades

materiais de efetivao deste direito fundamental.

Sadek (2006, p.147), ao tratar da excluso social, no vis do

acesso justia, pondera que o [...] o acesso justia se constitui na porta de

entrada para a participao de bens e servios de uma sociedade. Neste sentido,

explica que no h incluso, se no houver condies efetivas de acesso justia,

pois quaisquer iniciativas de combater a excluso so inviveis, se no se levarem

em considerao os direitos individuais e coletivos. Para a autora, sem direito de

recorrer justia, todos os demais direitos so letras mortas, garantias idealizadas e

sem possibilidade de concretizao. Dentro desta tica, conclui que

No se pretende aqui diminuir a importncia de polticas que visem melhorar a distribuio de renda e escolaridade, por exemplo. O que este argumento sublima que, caso no se considere como prioritrio o acesso justia, todos os demais esforos correm o risco de no perdurarem e se desfazerem (SADEK, 2006, p. 147).

Dessa forma, pondera Ribeiro (2009, 472), que a discusso do

acesso justia deve centrar seu foco na necessidade de aumentar a proximidade

do Judicirio com os setores de baixa renda, com as massas desprovidas de

direitos. Dentro desta lgica, a mesma autora, citando Vianna (1997 apud Ribeiro,

2009, p. 42), esclarece que tal aproximao importa em reordenar o sistema judicial

a partir da instituio [...] de uma pedagogia tico-moral que viabilize o exerccio da

cidadania para setores da populao que at o presente momento se encontram

excludos do espao pblico.

1.2. ACESSO JUSTIA: CONCEITOS E FUNDAMENTOS

1.2.1 Concepes sobre o acesso justia

O direito de acesso Justia conceito de difcil elaborao. Por

muito tempo, ele foi considerado apenas como o direito de acesso ao Judicirio, o

acesso tutela jurisdicional invocada por meio do rgo judicirio e exercida pelo

juiz competente. Ocorre que o [...] acesso justia, tambm isto, (...), porm, no

, de forma alguma, somente isto [...] (CSAR, 2002, p. 49).

25

Para Csar (2002, p. 49), o acesso justia tambm deve ser

tratado como o acesso a uma ordem jurdica justa, no podendo ficar [...] reduzido

ao sinnimo de acesso ao Judicirio e suas instituies, mas sim a uma ordem de

valores e direitos fundamentais para o ser humano, no restritos ao ordenamento

jurdico processual [...].

Capelletti e Garth (1988, p. 08), ao definirem o acesso Justia,

fazem-no considerando, tambm, estes dois aspectos. Para os autores, primeiro, o

sistema deve ser igualmente acessvel a todos; segundo, ele deve produzir

resultados que sejam individual e socialmente justos.

Com relao ao primeiro aspecto, Gonalves e Brega Filho (2010,

p. 66), consideram que o acesso Justia corresponde ao simples acesso ao

Judicirio, ou seja, [...] a mera possibilidade de apresentao do pedido no Poder

Judicirio.

Para os mesmos autores (2010, p. 66), por este prisma no se

adota uma viso teleolgica dos resultados obtidos com o processo judicial, uma vez

que para este enfoque, [...] basta a existncia de um rgo estatal responsvel pela

prestao jurisdicional, e ainda, que haja previso legal dos meios e das formas que

possam ser utilizados para tir-lo da inrcia. Da que referido conceito vem sendo

desconstrudo pela doutrina clssica, a qual defende que o acesso justia vai alm

do acesso aos tribunais.

Por outro lado, de acordo com a concepo moderna de acesso

Justia, este visto como o acesso efetivo a uma ordem jurdica justa (WATANABE,

1988, p. 128 apud CESAR, p. 49), qual seja, o direito tutela jurisdicional prestada

pelo rgo competente mediante procedimento adequado e com resultados

proferidos em tempo hbil a garantir a entrega do bem da vida envolvido no

processo.

Nesta perspectiva, o acesso justia ultrapassa os limites do

acesso ao Judicirio e suas instituies e assume carga valorativa, no que se refere

ao andamento regular do processo e aos seus resultados na soluo dos conflitos

sociais, de forma justa. Trata-se, segundo Dinamarco (2003, p.115), [...] do processo

justo, ou processo quo, que composto pela efetividade de um mnimo de

garantias de meios e de resultados.

Segundo Csar (2005, 68-69), esta perspectiva est relacionada

doutrina instrumentalista do direito processual, segundo o qual

26

No Brasil, aspecto a ser considerado nas questes mais abrangentes de acesso justia, extrapolando os limites do mero acesso aos tribunais e atuando junto aos operadores e aplicadores jurdicos, diz respeito doutrina instrumentalista do direito processual, conceituada como a conscientizao de que a importncia do processo est em seus resultados, ou seja, a concepo de que os institutos devem estar voltados tutela jurisdicional do direito material em conflito, buscando mais justia e menos tecnicismo.

No mesmo sentido, para Dinamarco (1988 apud Csar, 2005, p.

69), [...] queles que litigam em juzo devem ser garantidos resultados justos e

efetivos, capazes de reverter situaes injustas e desfavorveis. Tal ideia a de

efetividade da tutela jurisdicional, coincidente com a de plenitude de justia.7

Neste prisma, o mesmo autor (2003, p.114) conclui que, s tem

acesso ordem jurdica justa quem recebe justia. Para tanto, o autor esclarece

que receber justia significa ser admitido em juzo, poder participar, contar com a

participao adequada do juiz e, ao fim, receber um provimento jurisdicional

consentneo com os valores da sociedade.

Por outro lado, Torres (2005, p. 39-40) pondera que necessrio

considerar, tambm, o conceito de acesso justia, dentro de uma perspectiva

menos formal, pela qual referido direito [...] visa atender o cidado em todas as

suas necessidades, com polticas pbicas voltadas para a comunidade onde vive e

possa beneficiar-se como pessoa, como gente integrada no organismo social,

considerando que nem todos os problemas do cidado e da sociedade so,

necessariamente, resolvidos pelo Judicirio, no cabendo mais a ideia de se ficar

[...] aguardando, simplesmente as pessoas chegaram s portas da Casa da Justia;

necessrio encontrar meios, com a prpria sociedade e seus cidados, para

soluo desses conflitos. Nesta perspectiva, entrariam os meios alternativos de

acesso justia como [...] centros de conciliao e mediao, numa continuidade

dos Juizados Informais de conciliao e arbitramento, com sustentao em

7 Para Dinamarco (2003, p.114), [...] a plenitude do acesso justia importa remover os males

resistentes universalizao da tutela jurisdicional e aperfeioar internamente o sistema, para que seja mais rpido e mais capaz de oferecer solues justas e efetivas. Neste vis, destacam-se as alteraes constitucionais trazidas pela a Emenda Constitucional n 45/04, a qual amplia as perspectivas do acesso justia como ordem jurdica justa, dentre elas: a) razovel durao do processo; b) proporcionalidade entre o nmero de juzes na unidade jurisdicional e a efetiva demanda judicial e a respectiva populao; c) funcionamento ininterrupto da atividade jurisdicional; d) distribuio imediata dos processos em todos os graus de jurisdio; e instituio do Conselho Nacional de Justia.

27

verdadeiras casas de cidadania, viabilizando o exerccio do direito por todos os

cidados.

Em outro plano, no se pode deixar de ressaltar, conforme o faz

Csar (2005, p. 21), o acesso justia, dentro de uma perspectiva mais ampla,

devendo ser visto, tambm, [...] como um instrumento poltico, como movimento

transformador; e mais, como uma nova forma de conceber o jurdico.

Neste contexto, o acesso justia passa a ser adotado como

mtodo de pensamento, ou conforme diz Watanabe (1988 apud Csar, 2005, p. 51)

como [...] pensar na ordem jurdica e nas respectivas instituies, pela perspectiva

do consumidor, ou seja, do destinatrio das normas jurdicas, que o povo [...].

Inobstante s conceituaes acima, novos aspectos esto sendo

considerados, ao se tratar do acesso efetivo justia, os quais vo alm do sistema

jurdico-processual, ante os novos problemas sociais enfrentados pelo cidado e a

luta pela efetivao dos direitos assegurados na Constituio Federal de 1988,

passando referido direito a adquirir novos contornos, sendo considerado, tambm,

como [...] um verdadeiro ideal de igualdade material na sociedade, bem como fator

de promoo da cidadania, aqui entendida como o direito a ter direitos [...]

(GONALVES e BREGA FILHO, 2010, p. 68).

1.2.2 O direito fundamental de acesso justia

Segundo Capelletti e Garth (1998, p. 09), nos estados liberais-

burgueses dos sculos dezoito e dezenove, o Estado no intervinha na soluo dos

conflitos individuais, pois, poca, o acesso justia era considerado um direito

natural, e como estes direitos eram anteriores ao Estado, os mesmos no

necessitavam de proteo estatal. Logo, o Estado, [...] permanecia passivo, com

relao a problemas tais como a aptido de uma pessoa para reconhecer seus

direitos e defend-los adequadamente, na prtica [...].

Continuam os autores, afirmando que a justia, nesse perodo, s

podia ser obtida por aqueles que tivessem condies econmicas de enfrentar seus

custos, sendo que aqueles que no pudessem faz-lo eram responsveis por sua

prpria sorte. Segundo os autores, o [...] acesso formal, mas no efetivo justia,

correspondia igualdade, apenas formal, mas no efetiva.

28

Gonalves e Brega Filho (2010, p. 66), neste sentido, esclarecem

que os problemas sociais gerados pelo socialismo e pela revoluo industrial

impulsionaram, nessa poca, modificaes dessa situao com o surgimento dos

direitos sociais oriundos da necessidade de reforma da sociedade, a fim de garantir

os direitos fundamentais para todos os cidados, passando o Estado [...] da

completa indiferena para uma posio de garantidor ativo de tais direitos. Dessa

maneira,

[...] a partir do instante em que as aes e relacionamentos assumiram carter coletivo, em detrimento do carter individual predominante, as sociedades modernas tiveram que deixar para trs a viso individualista dos direitos, e da prpria noo de acesso justia, para reconhecerem direitos e deveres sociais dos governos. Tornou-se imperativa, portanto, a viso de que a atuao positiva estatal necessria para assegurar a efetivao de todos os direitos sociais basilares. Passa-se a falar, nesse momento, num acesso efetivo justia.

No Brasil, foi na Constituio Federal de 1946, em seu artigo 141,

48, que surgiu, de forma expressa, a previso do acesso Justia como direito

fundamental, muito embora este j fosse previsto, de forma implcita, nas

constituies anteriores. Entretanto, referido direito ficou mitigado durante o regime

da ditadura militar, voltando a ser objeto de reivindicaes por meio das lutas sociais

embaladas pelas ideias democrticas que eclodiram no incio da dcada de oitenta,

aps o regime da ditadura militar.

Segundo Junqueira (1996, p. 01), diferentemente do que acontecia

nos demais pases, a questo do acesso justia emerge no momento em que a

preocupao social no era a expanso do welfare state e, tampouco, a

necessidade de se tornarem efetivos os novos direitos conquistados pelas minorias

na dcada de 60, mas sim a necessidade de [...] se expandirem para o conjunto da

populao direitos bsicos aos quais a maioria no tinha acesso em funo da

tradio liberal-individualista do ordenamento jurdico-brasileiro [...].

Continua referida autora asseverando que, diferentemente do que

ocorria em outros pases da Amrica do Sul, como Chile, Uruguai, Colmbia e

Mxico, no h registros de que o Brasil tenha participado do Florence Project9, no

8 Art. 141 CF de 1946. A Constituio assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes o pas

a inviolabilidade dos direitos concernentes vida, segurana, individual e propriedade, nos termos seguintes: (...)

4. A lei no poder excluir da apreciao do Poder Judicirio qualquer leso de direito individual. 9 O Projeto de Florena considerado o movimento introdutrio de acesso justia e que deu origem

29

tendo, desta forma, sequer acompanhado o processo proposto por Capelletti e

Garth, a partir das trs ondas de acesso justia.

Diferente do que vinha acontecendo nos pases centrais, no Brasil,

no se tratava de buscar novos procedimentos jurdicos e meios alternativos de

acesso justia ou de diminuir as presses resultantes de uma exploso de direitos

que ainda no havia acontecido, ao contrrio

[...] tratava-se fundamentalmente de analisar como os novos movimentos sociais e suas demandas por direitos coletivos e difusos, que ganham impulso com as primeiras greves do final dos anos 70, e com o incio da reorganizao da sociedade civil que acompanha o processo de abertura poltica, lidavam com um Poder Judicirio tradicionalmente estruturado para o processamento de direitos individuais (JUNQUEIRA, 1996, p. 03).

Conforme Junqueira (1996, p. 03), os trabalhos desenvolvidos na

poca tratavam muito mais da inacessibilidade justia para setores populares, do

que da abordagem explcita do tema de acesso justia, j que referida abordagem

se direcionava mais discusso de [...] procedimentos estatais e no estatais de

resoluo de conflitos. Mesmo assim, o termo acesso Justia emerge em toda esta

produo.

No entanto, afirma Csar (2005, p. 69) que foi a partir da

Constituio Federal de 1988, a qual proclamou direitos e garantias aos cidados,

[...] que a questo do acesso justia toma contornos transformadores [...], sendo

ela considerada como

[...] o retorno do Estado de Direito e sobretudo, com a Constituio de 5 de outubro de 1988, que se conferiu ao jurisdicionado as garantias de pleno acesso justia, como tambm outras garantias fundamentais devido processo legal, juiz natural, contraditrio e ampla defesa, publicidade dos atos judiciais, fundamentao obrigatria das decises que, apesar de previstas na Carta anterior, se caracterizam na vigente.

Neste contexto, o acesso justia passa a vigorar no plano

constitucional vigente na qualidade de direito humano e fundamental. Fundamental,

porque foi reconhecido e assegurado pela ordem constitucional interna e humano,

porque outorgado a todos os cidados por sua prpria condio humana (SARLET,

2005, p. 35-42). Segundo esta ltima premissa, importa ressaltar o reconhecimento

obra Acesso Justia de Mauro Capelletti e Bryant Garth. Referido projeto foi criado para estudar diversos assuntos, sob um enfoque multidisciplinar de acesso justia, tais como: repensar o conceito de acesso justia, analisar os obstculos que impedem materialmente o alcance do acesso justia, sugerir novas solues que importem a superao desses obstculos, dentre inmeras outras temticas (Gonalves e Brega Filho, 2010, p. 68).

30

do acesso justia no artigo 8 da Declarao Universal dos Direitos do Homem de

1948, que prev que Todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais

competentes remdio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que

lhe sejam reconhecidos pela constituio e pela lei.

Sobre os direitos humanos e fundamentais e suas divergncias

conceituais na doutrina clssica, Sarlet (2007, p. 35) afirma que as expresses

direitos humanos e direitos fundamentais, embora com significados diferentes so

comumente tidas como sinnimos, o que se torna aceitvel, se o uso indistinto dos

termos designar o mesmo conceito e contedo, considerando que [...] no h

dvidas de que os direitos fundamentais, de certa forma, so tambm sempre direito

humanos, no sentido de que seu titular ser sempre o ser humano, ainda que

representado por entes coletivos [...].

O mesmo autor explica que [...] comumente utilizados como sinnimos, a explicao corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distino de que o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expresso direitos humanos guardaria relao com os documentos de direito internacional, por referir-se quelas posies jurdicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculao com determinada ordem constitucional [...](SARLET, 2007, p. 35, 36).

Capelletti e Garth (1988, p. 12), tambm, ao tratarem do acesso

justia no plano dos direitos fundamentais, o elevam a categoria dos direitos

humanos, quando aduzem que [...] o acesso justia pode, portanto, ser encarado

como requisito fundamental o mais bsico dos direitos humanos de um sistema

jurdico moderno e igualitrio que pretenda garantir, e no apenas proclamar os

direitos de todos.

Inerente ao direito fundamental do acesso justia, figura o

princpio constitucional da dignidade da pessoa humana, no havendo como

dissoci-los, vez que este princpio se trata de [...] uma norma legitimadora de toda

ordem estatal e comunitria, demonstrando, em ltima anlise, que nossa

Constituio , acima de tudo, a constituio da pessoa humana por excelncia

(SARLET, 2007, p. 125). Continua Sarlet, pontuando que o exerccio do poder e a

ordem estatal somente sero legtimos se pautarem pelo respeito e proteo deste

31

princpio. Assim, [...] a dignidade constitui verdadeira condio da democracia, que

dela no pode livremente dispor.

O texto constitucional, segundo Sarlet (2007, p. 24-125), ao instituir

a dignidade da pessoa humana como princpio fundamental da Repblica Federativa

do Brasil, dispe que cabe ao Estado e a todos os rgos pblicos, um dever de

respeito e proteo para com o jurisdicionado, no sentido no s de impor um dever

de respeito, mas, tambm, de adotar condutas positivas tendentes a efetivar e

proteger a dignidade do indivduo, no sentido, especialmente, de edificar uma ordem

jurdica que corresponda s exigncias deste princpio. Na avaliao de Silva (2006,

p. 142),

No mbito do Estado Social de Direito, os direitos fundamentais sociais constituem exigncia inarredvel do exerccio das liberdades e garantias da igualdade de oportunidades, inerentes noo de democracia e a um Estado de Direito de contedo e no meramente formal, mas sim, guiado pelo valor da justia social. As noes de Estado de Direito, Constituio e Direitos Fundamentais, este sob o aspecto da concretizao do princpio da dignidade da pessoa humana, bem como dos valores da igualdade, liberdade e justia, constituem condio de existncia e medida da legitimidade de um autntico Estado Democrtico e Social de Direito.

Nesta ordem de ideias, no h receio em dizer que o Estado, ao

legitimar o acesso justia como direito fundamental, o faz em observncia ao

princpio fundamental da dignidade da pessoa, sendo que qualquer violao ou

omisso do Estado no sentido de mitigar referido acesso caracterizar violao a

este princpio.

O direito fundamental de acesso Justia est previsto no artigo 5,

da Constituio Federal de 198810. O texto constitucional, ao dispor sobre o acesso

justia, o faz, segundo Bueno (2007, p. 101), assegurando que a lei no excluir

da apreciao do Poder Judicirio leso ou ameaa a direito, no sentido de que [...]

qualquer forma de pretenso, isto , afirmao de direito pode ser levada ao Poder

Judicirio para soluo [...], mesmo que a resposta seja negativa. Entretanto,

observa Greco Filho (2007, p. 45) que dito artigo comporta, tambm, em seu bojo

10

Art. 5. CF. Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade, nos termos seguintes: ( ) XXXV - a lei no excluir da apreciao do Poder Judicirio leso ou ameaa a direito; ( ) XXXVII - no haver juzo ou tribunal de exceo; ( ) LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral so assegurados o contraditrio e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

32

outras garantias constitucionais do processo, [...] que o torna instrumento de justia

e de efetivao de direitos [...], indispensveis obteno de uma ordem jurdica

justa.

Dentre tais garantias, consideradas pilares sustentadores do direito

fundamental de acesso justia, esto a proibio do tribunal ou juzo de exceo, o

contraditrio, a ampla defesa e a assistncia judiciria gratuita, alm da prpria

garantia ao acesso isonmico ao Judicirio.

A proibio do tribunal ou juzo de exceo est prevista no inciso

XXXVII e significa que os fatos devem ser julgados por rgos judicirios

constitudos, previamente, pelo Estado e investidos de jurisdio, ou seja, de

competncia para julgar. Referido princpio est vinculado ao princpio, tambm

constitucional, do juiz natural, que, segundo Greco Filho (2008, p. 47), por fora do

princpio da isonomia, consoante o qual todos so iguais perante a lei, no deve ser

destacado para atender casos determinados, mas ter competncia para todos os

casos que ocorrerem nas mesmas condies na circunscrio de sua atuao.

Nesta linha de raciocnio, a proibio do tribunal de exceo est relacionada ao fato

de que a instituio do rgo judicirio julgador deve ser anterior ocorrncia do

fato a ser julgado, para que, quando este ocorra, seja possvel indicar o tribunal j

competente e institucionalizado que decidir a questo, e no ao contrrio.

O contraditrio e a ampla defesa esto previstos no inciso LV, do

artigo 5, da CF/88. O contraditrio diz respeito igualdade de tratamento entre as

partes litigantes em julgamento (princpio da isonomia); a paridade de armas entre

autor e ru dentro de um processo. Pelo contraditrio, nas palavras de Bueno (2007,

p. 108), o Estado-juiz [...] no pode decidir, sem que garanta previamente amplas e

reais possibilidades de participao daqueles que sentiro, de alguma forma, os

efeitos de sua deciso. Por sua vez, a ampla defesa pode ser compreendida como

a materializao do contraditrio, ou seja, o direito do acusado de se defender,

amplamente, em um processo, desde que tais meios sejam morais e legtimos. Para

Bueno (2007, p. 112), a garantia ampla a todo e qualquer acusado em sentido

amplo e a qualquer ru de ter [...] condies efetivas, isto , concretas de se

responder s imputaes que lhe so dirigidas antes que seus efeitos decorrentes

possam ser atingidos, ou melhor, o direito de [...] algum que seja acusado de

violar ou, quando menos, de ameaar violar normas jurdicas tem direito de se

defender amplamente.

33

A assistncia jurdica integral e gratuita aos que comprovarem

insuficincia de recursos est prevista no inciso LXXIV, do art. 5 da CF/8811. Sobre

este aspecto, tecendo apenas algumas consideraes preliminares, vez que ser

discutida, oportunamente, no transcorrer da presente dissertao, tem-se que, por

meio do referido dispositivo constitucional, percebe-se a preocupao do legislador

em propiciar garantias de acesso justia aos vulnerveis, economicamente, quais

sejam, aqueles que no tm condies de arcar quer com as despesas do processo,

quer com a contratao de advogado, proporcionando, assim, a esses

desfavorecidos condies concretas de acesso justia.

Gonalves e Brega Filho (2010, p. 68), ao tratarem do acesso

justia como direito fundamental, elevam-no categoria de direito fundamental

instrumental, pois este acesso [...] visa garantir a efetividade e fora normativa aos

demais direitos fundamentais e, de forma ampla, a todos os direitos substanciais.

Neste sentido, os mesmos autores (2010, p. 69) tratam do acesso

justia como direito fundamental concretizador da cidadania pelo qual o Estado atua

como instrumento da sociedade civil para a efetivao dos direitos fundamentais.

E o que seria cidadania, na perspectiva do acesso justia?

Ribeiro (2008, p. 470), ao tratar do acesso justia no contexto

democrtico, adverte que a questo do acesso justia tem como ponto de apoio

especialmente, o conceito de democracia e seus correlatos. Nesta esteira, esclarece

que a democracia no apenas forma de governo, mas, tambm, forma de

organizao da sociedade, com o objetivo de garantir e expandir direitos, que

envolve um conjunto de mudanas na sociedade e a adoo de valores e atitudes

em relao cidadania12. A mesma autora, afirma que o conceito de cidadania

correlato ao de democracia, e pressupe que os cidados possuem no apenas

direitos, mas, tambm, responsabilidades e deveres, para que a prpria democracia

possa se institucionalizar.

11

Art. 5 da C. F. (...) LXXIV O Estado prestar assistncia jurdica integral e gratuita aos que comprovem insuficincia de recursos. 12

Para Baranoski e Luiz (2008, p.25), [...] pela participao integral numa comunidade que a cidadania se estabelece como a relao entre seus pares, com efetiva e integral participao, que implica em direitos e deveres de uns para com outros, por isso, cidadania faz parte de um processo que envolve a participao de vrios segmentos sociais de uma sociedade como membros integrais desta. Marshall (1967, p.76), estabelece que [...] cidadania um status concedido queles membros integrais de uma comunidade. Para o autor (1967, p.62) a cidadania caracterizada pelo [...] modo de viver que brotasse de dentro para fora de cada indivduo e no como algo imposto a ele de fora [...], consistente numa [...] igualdade humana bsica de participao [...].

34

Seguindo esta linha de raciocnio, Ribeiro (2008, p. 470) pontua, de

forma precisa, que a cidadania pressupe que os indivduos sejam capazes,

[ ] (i) de conhecer os direitos de cidadania, inclusive, no que diz respeito s responsabilidades que eles implicam; (ii) identificar no aparelho estatal quais so as instituies responsveis pelo provimento de cada categoria de direitos; e (iii) exercer os seus deveres e direitos de forma legtima, de acordo com as regras postulada pela democracia.

Neste sentido, a autora (2008, p. 471) afirma que a questo do

acesso Justia liga-se prpria ideia de regras da cidadania civil, uma vez que,

para que os cidados possam exercer os seus direitos civis, torna-se indispensvel

a existncia de um rgo judicirio aberto s questes levadas ao seu

conhecimento.

Assim, na perspectiva do acesso justia, cidadania o acesso a

uma ordem jurdica justa, qual seja, o acesso efetivo ao rgo jurisdicional

competente com a obteno de uma tutela jurisdicional adequada, no que se refere

sua aplicabilidade, eficaz com relao efetividade dos seus resultados, e

tempestiva, no que se refere ao tempo em que foi deferida.

No entanto, em uma viso mais ampla, cidadania mais do que o

direito a ter direitos; , tambm, o direito ao exerccio dos direitos, o que se traduz

na obrigao do Estado de assegurar a todo cidado a realizao concreta dos

direitos assegurados em uma ordem constitucional, vez que no basta a positivao

de direitos pelo Estado, sendo necessrio que este proporcione meios efetivos ao

seu exerccio.

Nesses termos, Baranoski e Luiz (2008, p. 25) advertem que

O acesso aos direitos implica no reconhecimento do indivduo, em suas mltiplas facetas, sob a tica do princpio da igualdade, da justia social, da dignidade da pessoa humana, no como manifestao conceitual de um direito natural positivado, mas sim, como princpio fundamental inserido na vida e na praxis humana, ou seja, como materializao dos direitos conquistados.

Neste diapaso, importa destacar que, em nossa sociedade, as

desigualdades sociais so notrias, no somente as relacionadas questo financeira,

propriamente dita, oriunda, principalmente, da abertura poltica e minimizao do Estado

decorrentes do projeto neoliberal de governo adotado no final do sculo XX, mas, tambm,

as desigualdades afetas s questes gerais, como a falta de cultura e informao, fatores

estes que dificultam, quando no impedem, que os indivduos tenham acesso aos veculos

e/ou instrumentos capazes de dar efetividade aos seus direitos.

35

Diante de tal situao, o acesso aos direitos fundamentais bsicos

consagrados em nossa Constituio, em especial, o acesso justia, passa a ser

um direito exercido por poucos. Tal questo tem se destacado, como questo social,

caracterizando-se como um dos grandes problemas de nossa sociedade, qual seja,

a luta pela garantia dos mnimos sociais necessrios a todo cidado e efetivao

dos direitos assegurados na Constituio Federal de 1998.

Segundo Torres (2005, p. 30), [...] a Constituio Federal de 1988

afirmou uma gama de direitos, entretanto, h falta de mecanismos e de infra-

estrutura para o atendimento dos objetivos propostos no Estado Democrtico de

Direito existente.

Para Cruz (2008, p. 14), a minimizao do Estado Social em pases

subdesenvolvidos como o Brasil jamais se aproximou do modelo estadunidense ou

europeu, pois o Brasil [...] no conseguiu por fim violncia fsica, poltica e social

[...]. Segundo o autor, por aqui, os direitos sociais e coletivos nunca passaram de

promessas para uma parcela significativa da populao, cuja cidadania jamais se

concretizou.

Nesta lgica, assegura Torres (2005, p.32), necessrio que se

tenha conscincia de que ocorreu uma evoluo do modelo liberal para um Estado

Democrtico de Direito, em decorrncia da Constituio Federal de 1988, em que o

interesse individual substitudo pelo interesse coletivo, o que requer uma atuao

eficaz do governo para atender aos anseios dos cidados, estes que vo evoluindo,

normalmente, em uma democracia, pelo estmulo e pelas mais diversas formas de

participao no meio social.

Por certo, continua o mesmo autor (2005, p. 80-193), tendo a

democracia por base o respeito s leis, ao direito e ao poder constitudo, no h

como se falar em Estado Democrtico de Direito sem acesso a uma justia eficaz,

rpida e disponvel para todos, pois tal acesso um dos caminhos para a afirmao

da cidadania e para a busca da paz social.

Especificamente, no que se refere efetivao do direito de acesso

justia, Grinover (apud Torres, 1990, p.25) consigna que:

De nada adianta serem firmados direitos na Constituio Federal e na legislao infraconstitucional se, na prtica, o jurisdicionado precisa percorrer um calvrio de exigncias formais e aguardar por um tempo excessivo a deciso sobre o direito reclamado, que resultar em descrditos do Poder Judicirio. Esse poder age com a Constituio,

36

depende de seus juzes, tambm da classe jurdica, dos advogados e de todos os envolvidos na busca de Justia e na construo de uma sociedade melhor.

Marinoni (2007, p. 189) vai alm, na medida em que defende que a

falta de efetivao do direito de acesso justia corresponde prpria ausncia de

tal direito. Segundo o autor, para se [...] garantir a participao dos cidados na

sociedade, e desta forma a igualdade, imprescindvel que o exerccio da ao no

seja obstaculizado, at porque ter direitos e no poder tutel-los certamente o

mesmo do que no os ter.

1.2.3 Obstculos ao acesso Justia

na medida em que a questo do acesso justia deixa de ser

apenas um problema jurdico e passa a ser, tambm, um problema social, que muito

se discute, na doutrina, sobre sua efetivao.

Para Capelletti e Garth (1988, p. 15), embora o aceso efetivo

justia venha sendo reconhecido como direito fundamental bsico, [...] o conceito de

efetividade , por si s, algo vago, pois a efetividade perfeita poderia ser expressa

como a completa igualdade de armas, o que algo utpico, vez que as [...]

diferenas entre as partes no podem jamais ser erradicadas, concluindo que a

identificao dos obstculos ao acesso justia a primeira tarefa a ser cumprida

numa tentativa de erradicar tais diferenas.

Nesta perspectiva, Gonalves e Brega Filho (2010, p. 69), luz dos

ensinamentos de Capelletti e Garth, relacionam trs obstculos ao acesso Justia:

a) obstculos econmicos, b) obstculos relativos desigualdade material das

partes e, c) obstculos relativos aos entraves processuais.

Invertendo a ordem proposta pelos autores, faremos,

primeiramente, uma abordagem simplificada sobre os obstculos relativos

desigualdade material entre as partes e aqueles relativos aos entraves processuais,

os quais sero analisados a partir da teoria capellettiana, passando-se, na

sequncia, anlise do obstculo econmico, o qual ter abordagem mais

aprofundada, vez que o enfoque que mais interessa presente dissertao.

Feita tais consideraes, temos que, para Capelletti e Garth (1988,

p. 21), os obstculos relativos desigualdade material entre as partes, referem-se s

37

suas possibilidades: a vantagens e desvantagens estratgicas entre as partes

litigantes.

Gonalves e Brega Filho (2010, p. 70) acrescentam que referido

obstculo diz respeito desigualdade entre as partes envolvidas em um processo, o

que leva a um desequilbrio na relao jurdico-processual instaurada, repercutindo,

diretamente, no resultado do processo. Em outras palavras, [...] em razo deste

obstculo, quer-se dizer que nem sempre o melhor direito prevalece. Ele

analisado, pelos autores, sob trs aspectos: recursos financeiros, aptido para

reconhecer um direito e propor uma ao e sua defesa (capacidade jurdica pessoal)

e caractersticas entre litigantes eventuais e habituais.

No que se refere aos recursos financeiros, Capelletti e Garth (1988,

p. 21) observam que pessoas ou organizaes que possuam recursos financeiros

considerveis a serem utilizados tm vantagens bvias ao propor ou defender

demandas, pois elas podem pagar para litigar e tm condies de suportar as

delongas do litgio. Tambm, [...] uma das partes pode ser capaz de fazer gastos

maiores que as outras e, como resultado, apresentar argumentos de maneira mais

eficiente.

Sobre a capacidade jurdica pessoal, os autores (1998, p. 22)

consideram as [...] inmeras barreiras que precisam ser pessoalmente superadas,

antes que um direito possa ser efetivamente reivindicado atravs do aparelho

judicirio.

Dentre tais barreiras, est o desconhecimento por parte do cidado

dos seus direitos bsicos e dos instrumentos e caminhos a serem percorridos para a

reivindicao destes frente ao Judicirio, quando violados, isto em decorrncia,

segundo Capelleti e Garth (1998, p. 22) da desproporcionalidade [...] com recursos

financeiros e diferenas de educao, meio e status social [...] entre as partes em

litgio, o que causa um desequilbrio e dificulta o acesso justia pelos menos

privilegiados.

A causa do desconhecimento do Direito, segundo Mattos (2009, p.

192), decorre de inmeras situaes, entre elas [...] das deficincias do sistema

educacional ptrio, dos meios de comunicao e das instituies de assistncia

social, os quais deveriam ser mais atuantes no sentido de

disponibilizar/proporcionar populao noes de conhecimentos jurdicos bsicos,

visando a efetivao do acesso justia, de forma igualitria, a todos os

38

jurisdicionados.

Para Mattos (2009, p. 192)

[...] a falta de incentivos governamentais tem contribudo para o analfabetismo e para a baixa qualidade de ensino; os meios de comunicao tm reproduzido a supervalorizao da violncia e do jeitinho brasileiro como meio de resoluo dos conflitos, e as instituies de assistncia judicial so insuficientes e pouco atuantes.

Em outras palavras, segundo Sadek (2001 apud Mattos, 2009, p.

82), a populao brasileira ainda tem pouco conhecimento dos seus direitos e dos

mecanismos disponveis para reivindic-los. Neste contexto, destaca que, embora o

nvel educacional dos cidados brasileiros venha crescendo, com o passar dos

anos, ainda insuficiente para acabar com a impunidade, com violncia e, tambm,

com a falta de conhecimento e iniciativa de grande parcela da populao de

ingressar em juzo para resoluo dos seus conflitos.

No que diz respeito disposio psicolgica das pessoas para

recorrer aos processos judiciais, diz Csar (2002, p. 99) que esta disposio est

relacionada aos receios que o cidado tem de procurar a justia, seja por decepo

com relao a um processo anterior em que teve suas expectativas frustradas, seja

por medo de represlias, ou at mesmo por se sentir intimidado mediante alguma

manifestao de poder, expressada pelas estruturas do Judicirio e pelo status que

estas representam.

Sobre os litigantes eventuais e habituais, Capelletti e Garth (2010,

p. 70) fazem a distino entre aqueles baseados na frequncia de encontros com o

sistema judicial. Esta distino corresponde [...] em larga escala, que se verifica

entre indivduos que costumam ter contatos isolados e pouco frequentes com o

sistema judicial e entidades desenvolvidas, com experincia judicial mais extensa. A

este respeito, aqueles que possuem menos experincia em demandar em juzo

ficam em situao de desigualdade, quando litigam com os mais experientes, os

quais, pela vivncia prtica, conhecem todos os caminhos, percalos e artimanhas

de um processo.

Os mesmos autores (1988, p. 25) apontam que o litigante habitual

possui mais vantagens sobre os demais, em relao a aspectos como:

[...] a) maior experincia com o Direito; b) economia em escala, porque tem

39

mais casos; c) tem oportunidade de desenvolver relaes informais com os membros da instncia decisora; d) pode diluir riscos da demanda por maior nmero de casos; e) pode testar estratgias com determinados casos, de modo a garantir expectativa mais favorvel em relao a casos futuros.

Por outro lado, com relao aos entraves processuais, tem-se que

referidos obstculos esto relacionados s imperfeies do sistema processual que

obstam o pleno acesso justia, imperfeies estas caracterizadas por um processo

marcado com excesso de formalismo, o qual, por meio de procedimentos

demorados, grande nmero de recursos e meios abusivos utilizados pelas partes em

litgio, contribui para a prpria morosidade e faz com que o cidado fique descrente

na Justia, afastando-se do Judicirio.

Capelletti e Garth, ao discorrerem sobre este obstculo, fazem-no

trazendo baila os problemas especiais dos direitos difusos e as barreiras

especiais de acesso a estes direitos, na dcada de 1970, pois, neste perodo, [...]

era extremamente difcil o ajuizamento de uma ao que versasse sobre direitos

coletivos, principalmente em virtude de pontos nebulosos sobre vrios institutos que,

at ento, eram vistos somente sob o enfoque dos direitos individuais [...]

(GONALVES e BREGA FILHO, 2010, p. 70).

Como instrumentos para superao dos obstculos de acesso

justia, Capelletti e Garth (1988, p. 31) propem as denominadas ondas de acesso

justia. Nestes termos, esclarecem que o despertar do interesse sobre o acesso

efetivo justia, apontou para trs posies bsicas (ondas), as quais [...]

emergiram mais ou menos em sequncia cronolgica.

Nesta lgica, os autores apresentam como primeira onda, a

assistncia judiciria para os pobres, a qual ser tratada, especificamente, no item

1.2.4.1. Como segunda onda, propem a representao dos interesses difusos e

como terceira, o novo enfoque de acesso justia.

Com relao segunda onda, os autores (1988, p. 49) apontam

que ela busca a representao dos direitos difusos, coletivos e individuais

homogneos e direitos emergentes, os quais restavam desprotegidos ante a

inexistncia de procedimentos legais necessrios sua atuao, forando referida

onda uma reflexo [...] sobre noes tradicionais muito bsicas do processo civil e

sobre o papel dos tribunais.

Referida onda implica a ampliao da legitimao para agir,

40

havendo um nico representante para agir em benefcio e em nome da coletividade

que representa, com o objetivo de alcanar resultados iguais para ampla gama de

sujeitos lesados por intermdio de um nico procedimento judicial.

Em razo das ideias inovadoras desta onda, no contexto brasileiro,

instaura-se um novo sistema jurdico-processual para tratamento das aes

coletivas, com o objetivo de adaptar o ordenamento jurdico existente para a

proteo dos direitos difusos, coletivos e individuais homogneos que, at ento,

eram desprotegidos. Alm disso, segundo Gonalves e Brega Filho (2010, p. 72)

[...] tais reformas otimizaram a proteo jurisdicional ao menos favorecidos por meio de uma coletivizao de demandas (direitos individuais homogneos) que, sozinhas, jamais seriam levadas ao crivo do Poder Judicirio, notadamente em virtude das barreiras intrnsecas ao processo civil individual.

A terceira onda refere-se a uma concepo mais ampla de acesso

justia, denominada enfoque do acesso justia, enfoque este que se d no sentido

de buscar novas alternativas de resoluo de conflitos no restritas ao ordenamento

jurdico processual. Tal abertura para outras vias, no jurisdicionais de soluo de

conflitos, implica em uma reforma na advocacia, judicial e extrajudicial e ateno a

um [...] conjunto de instituies e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados

para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas

(CAPELLETTI e GARTH, 1988, p. 67-68). Nestes novos instrumentos, Csar (2002,

p. 65), destaca a [...] influncia da natureza do litgio na determinao dos

instrumentos que tornem efetiva a proteo aos direitos emergentes, adaptando o

processo ao litgio que se busca resolver.

Fruto desta nova concepo de soluo de litgios, construram-se

mecanismos destinados a facilitar a soluo dos conflitos como a arbitragem, a

mediao, conciliao, medidas estas que, segundo Csar (2002, p. 65), [...]

ultrapassam em muito a esfera de representao e interveno judicial na soluo

das disputas.

Conforme Torres (2005, p. 158), a conciliao e a mediao, so

meios eficazes e objetivam a transao entre as partes, porque a mediao

possibilita a aproximao entre estas e propicia que cheguem a um consenso, e a

conciliao conduz a uma conversao. Destaca, neste contexto, o cuidado com a

imparcialidade, tanto do conciliador como do mediador, no sentido de eliminar as

41

dificuldades, apresentando sadas e buscando um denominador comum, com

resultados satisfatrios e felizes para as partes envolvidas.

1.2.3.1 Obstculos econmicos ao acesso justia

Dentre os obstculos ao acesso justia, o mais expressivo e o

que mais afasta o jurisdicionado dos tribunais o econmico. O inacesso justia,

aqui, conforme j abordado, preliminarmente, est caracterizado pela insuficincia

de recursos financeiros pela parte interessada de arcar com os custos de um

processo, custos estes representados pelas despesas com honorrios advocatcios

em virtude da contratao de advogado, pelas custas judiciais necessrias ao

ajuizamento da ao, bem como pelas despesas devidas em virtude de gastos

eventuais surgidos no transcorrer de um processo e a possvel condenao em

honorrios da sucumbncia. Estas insuficincias fazem com que o cidado fique

privado de procurar os rgos judicirios para a soluo dos seus conflitos,

permanecendo, assim, na informalidade de suas relaes, ou, at mesmo, venha a

buscar outros meios de soluo de conflitos sem a participao do Estado.

Neste aspecto, o obstculo econmico ao acesso Justia tido

por Marshall (1967 apud Csar, 2002, p. 93), tambm, como elemento limitador da

cidadania, pelo qual os altos custos das aes judiciais eram tidos pelo autor como

um entrave consolidao dos direitos civis, direitos estes que se encontravam,

nesta circunstncia, em situao de inferioridade aos direitos polticos, pois [...] a

ao processual, ao contrrio do voto, muito cara. As custas do processo no so

altas, mas os honorrios de advogado e as taxas cobradas pelo escrivo podem

representar quantias significantes.

Nesta esteira, Capelletti e Garth (1988, p. 18), igualmente, apontam

o alto custo dos honorrios advocatcios como barreira ao acesso justia, quando

pontuam que [...] a mais importante despesa individual para os litigantes consiste,

naturalmente, nos honorrios advocatcios. Os mesmos autores continuam,

afirmando que qualquer tentativa realstica de enfrentar os problemas de acesso

deve comear por reconhecer esta situao: os advogados e seus servios so

muito caros.

A propsito, continuam os autores (1988, p. 17) alm dos

honorrios devidos com a contratao, outra circunstncia que limita,

42

semelhantemente, o acesso justia em seu aspecto econmico, refere-se

eventual condenao em honorrios da sucumbncia13, vez que, nestas situaes, o

jurisdicionado corre o risco de ter de arcar com os honorrios sucumbenciais, em

caso de insucesso na demanda. Em outras palavras, a penalidade para o vencido

aproximadamente duas vezes maior: ele pagar os custos de ambas as partes,

situao esta que contribui para que o jurisdicionado se afaste dos rgos judicirios

para resoluo de seus conflitos ou pode ter outras consequncias, como lev-lo a

aceitar um acordo judicial no satisfatrio para no ter de arcar com referida

despesa, a qual, nestes casos, dispensada.

A intempestividade das decises judiciais pode ser considerada,

similarmente, como outro aspecto econmico limitador do acesso justia, na

medida em que, segundo Csar (2002, p. 95), a eternizao das demandas acaba

por elevar, consideravelmente, as custas do processo, alm de desvalorizar o valor

a ser recebido. Alm do que, segundo Rodrigues e Brega Filho (2010, p. 69), a

demora no processo pode levar a parte a desistir da ao, ou, ainda, a aceitar

acordos com valores muito inferiores ao que teria direito de receber com o trmite

regular do processo. Na avaliao de Marinoni (2007, p. 191),

[...] a morosidade do processo atinge de modo muito mais acentuado os que tm menos recursos. A demora, tratando-se de litgios envolvendo patrimnio, certamente pode ser comprometida como um custo, e esse tanto mais rduo quanto mais dependente o autor e do valor patrimonial buscado em juzo. Quando o autor no depende economicamente do valor do litgio, ele obviamente no afetado como aquele que tem o seu projeto de vida, ou o seu desenvolvimento empresarial, vinculado obteno do bem ou do capital objeto do processo.

Ao discorrer sobre o assunto, Marinoni (2007, p. 193-194),

complementa que o autor da demanda, ante a demora do processo, pode se ver

obrigado a ceder, o que confere ao ru condies para a estruturao de estratgias

de protelao do processo, abusando do exerccio do seu