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Nucleossíntesedos

elementose astrofísica

nuclear

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VALDIR GUIMARÃESe MAHIR S. HUSSEINsão professores doInstituto de Física da USP.

“N VALDIR GUIMARÃES E MAHIR S. HUSSEIN

INTRODUÇÃO

ós somos feitos de poeira estelar.” Essa

foi uma frase dita por Carl Segan alguns

anos atrás em um dos episódios da série Cosmos. O que

essa frase quer dizer é que, com exceção de alguns poucos

elementos leves como hidrogênio, hélio e lítio, pratica-

mente todos os elementos presentes atualmente na Terra se

originaram nas estrelas. A matéria no universo de hoje, em

termos de abundância relativa, é 73% de hidrogênio, 25%

de hélio, 1% de oxigênio, e todos os outros elementos jun-

tos correspondem a apenas 1%. Por outro lado, no corpo

humano há 61% de oxigênio, 23% de carbono, 10% de

hidrogênio, 2,5% de nitrogênio, 1,4% de cálcio, 1,1% de

fósforo, e o restante, 0,9%, corresponde a outros elementos

inclusive o ouro (que não vem do dentista) numa propor-

ção de 0,000001%. Assim, com exceção do hidrogênio

(que se formou poucos minutos após o big-bang), o ser

humano é de fato feito de poeira estelar.

A formação dos elementos leves no universo primordi-

al e dos elementos mais pesados no meio intergalático e

nas estrelas ocorreu através de reações nucleares. Pode-

mos dizer que são as reações nucleares as responsáveis

pela produção de energia e síntese dos elementos nos vá-

rios entes astrofísicos. Assim sendo, as reações nucleares

têm um papel determinante na existência e evolução dos

entes astrofísicos, do pacato Sol às espetaculares explo-

sões de supernovas. O estudo das reações nucleares envol-

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vidas nos processos astrofísicos faz partedo que chamamos astrofísica nuclear e oprocesso de formação dos elementos é cha-mado de nucleossíntese. A astrofísica nu-clear é então a ciência que lida com o estu-do das reações nucleares que geram anucleossíntese dos elementos tanto no uni-verso primordial como no meio estelar. É,portanto, a astrofísica nuclear a responsá-vel por tentar trazer respostas às questõesmais básicas e importantes de nossa pró-pria existência e de nosso futuro: como sedeu a origem dos elementos que fez a vidana Terra possível? Como é gerada a ener-gia do Sol? Como o Sol, o sistema solar, asestrelas e nossa galáxia se formaram e comoeles evoluem? Qual é a densidade de maté-ria no universo? O universo vai um diacolapsar ou continuará a se expandir parasempre?

É claro que para responder a todas essasquestões sobre a origem e formação doselementos e das estrelas é necessário umesforço teórico para construir modelos decomo se deu a origem do universo e o sur-gimento dos primeiros elementos e comoocorre o processo de evolução das estrelas.Para criar modelos que sejam capazes deprever as observações dos eventos estelaresé preciso uma grande quantidade de infor-mações experimentais que servirão de pa-râmetros e testes para esses modelos. Mui-tas das informações e dados experimentaisnecessários para entendermos as questõesainda em aberto na astrofísica e dos dadosusados como parâmetros para os modelosde evolução das estrelas e do próprio uni-verso provêm de medidas realizadas emlaboratórios de física nuclear. Ainda nãodispomos de todos os dados experimentaisde que precisamos e a maioria das informa-ções necessárias para esses modelos é ba-seada em extrapolações ou modelos teóri-cos sem uma firme base experimental.Dados e medidas precisas de processosnucleares são também ingredientes impor-tantes para interpretarmos e decifrarmoscorretamente as observações dos eventosestelares feitas por observatórios terrestrescomo os grandes telescópios Keck e ESO(European Southern Observatory) ou ain-

da pelos observatórios espaciais como oHubble Space Telescope e o Chandra X-Ray Observatory. E ainda temos que inter-pretar corretamente as observações feitaspelos detectores subterrâneos de partículascósmicas como o Sudbury NeutrinoObservatory e o Super-Kamiokande.

É claro que, apesar de todo o esforço emtermos de observação espacial e terrestredos eventos estelares, das realizações dosexperimentos em laboratórios, e da elabo-ração das teorias e modelos, ainda existemmuitas questões intrigantes em aberto, dan-do margem a muita investigação e estudopara o futuro. Além disso, apesar de váriosdos processos que ocorrem nas estrelas jáserem conhecidos, muitos dos fenômenosque podem ser previstos a partir dos mode-los existentes sobre a evolução das estrelase nucleossíntese estão em conflito com asobservações astronômicas. De certa forma,esses conflitos não são surpresas, afinalmuitos dos parâmetros utilizados para pre-ver e explicar esses fenômenos ainda sãoincertos ou mesmo desconhecidos. Novosequipamentos estão sendo construídos edesenvolvidos e medidas novas e mais pre-cisas estão sendo realizadas, que permiti-rão que esses modelos se tornem mais ela-borados e que os aspectos da física nucleardos fenômenos de evolução estelar e for-mação dos elementos fiquem em uma basemais segura.

Nosso entendimento do que ocorre nasestrelas e do que ocorreu no universo pri-mordial tem aumentado bastante nos últi-mos 75 anos. Está bem claro agora que aenergia do Sol deve vir de reações nuclea-res. Nenhum outro processo, químico ougravitacional, poderia produzir a lumino-sidade que observamos do Sol nos seus 4,6bilhões de anos de existência. Uma dasevidências mais diretas de que ocorrem rea-ções nucleares nas estrelas é a observaçãodo elemento tecnécio (Z= 43) no espectroatômico de estrelas distantes. Esse elemen-to não existe na Terra. Todos os isótoposdesse elemento têm uma vida média menorque 4,5 milhões de anos, ou seja, não hámais nenhum traço desse elemento na Ter-ra (a Terra tem bem mais que alguns mi-

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lhões de anos e todos os átomos de tecnéciodevem ter desaparecido). A observaçãodesse elemento nas estrelas indica que eledeve estar sendo formado continuamenteatravés de reações nucleares ao longo dosbilhões de anos de existência do universo.

Sendo o Sol a estrela mais próxima daTerra e da qual depende a nossa própriaexistência, ele sempre foi objeto de espe-culação e curiosidade. A energia do nossoSol vem da conversão de átomos de hidro-gênio em hélio. Foi em 1930 que Bethe eVon Weizsacker propuseram qual deveriaser o cenário dessa conversão nos primei-ros estágios da evolução de uma estrela.Eles propuseram que essa conversão sedaria em ciclos chamados ciclo pp e cicloCNO. No ciclo pp, quatro núcleos de hi-drogênio (prótons) se convertem em umnúcleo de hélio (núcleo com dois prótons edois nêutrons, também conhecido comopartícula alfa). Essa conversão se dá emetapas formando um ciclo. Na primeiraetapa dois prótons se fundem formando umnúcleo de deutério liberando uma quanti-dade enorme de energia na forma de fótons,além de pósitrons e neutrinos. A seguir doisnúcleos de deutério se fundem formando onúcleo de hélio. De fato a evolução naturalde estrelas como o Sol é, em seu estágioinicial, transformar núcleos de hidrogênio(prótons) em hélio. Esse processo é bastan-te lento, principalmente pelo fato de que areação de fusão desses dois prótons para setransformar num núcleo de deutério ocorreatravés da ação da força fraca e de tune-lamento quântico entre essas partículas.Nesse processo a interação fraca é a res-ponsável por converter um dos prótons emum nêutron liberando um pósitron e umneutrino. A probabilidade de essa conver-são ocorrer é muito pequena fazendo comque o processo como um todo seja bastantelento. Levaria 10 bilhões de anos para quetodo o hidrogênio no Sol se transformasseeventualmente em hélio. Como produtodessa reação de fusão de dois prótons te-mos também os pósitrons e neutrinos. Sen-do os neutrinos partículas com carga neu-tra e muito rápidos eles atravessam toda aextensão do Sol quase sem nenhuma inte-

ração, chegando até a Terra como umachuva dessas partículas. Então, uma evi-dência importante de que seria esse o me-canismo envolvido na produção de energiado Sol seria a observação desses neutrinossolares na Terra. Desde os anos 60 físicosprocuram detectar esses neutrinos solares.Foi apenas na década de 90, graças à cons-trução de gigantescos detetores, como oSuper-Kamiokande, construído numa mon-tanha no Japão, que essas partículas pude-ram ser detectadas com sucesso. Atualmen-te há evidências suficientes de que seja esseo cenário que ocorre em estrelas como oSol, representando uma prova importante afavor do Modelo Solar Padrão. Em 1957Burbidge, Burbidge, Fowler e Hoyle, co-nhecido como grupo B2FH, escreveramum famoso artigo descrevendo como de-veria ser a produção dos elementos, ou seja,a nucleossíntese dos elementos nas estre-las, mas foi somente nos anos 70 que a idéiade como se deu a nucleossíntese primordi-al, após o big-bang, dos elementos maisleves foi elaborada. Já para produzir ele-mentos mais pesados é preciso que ocor-ram processos mais sofisticados e que en-volvam mais energia. Em outras palavras,para sintetizarmos elementos mais pesadoscomo carbono, nitrogênio e oxigênio, es-senciais à vida, é preciso que ocorram fe-nômenos explosivos tais como explosão denovas e supernovas.

NUCLEOSSÍNTESE

Vamos agora dar um passeio pelas idéiasde como os elementos se formaram no uni-verso desde seu início com o big-bang atésua participação na evolução das estrelas.Com isso, poderemos ter uma idéia de comoe quando a física nuclear acaba tendo umpapel determinante no entendimento donosso universo. Comecemos pelos núcleosmais leves, os núcleos de hidrogênio (1H),deutério (2H), hélio (3He e 4He), e ainda olítio (7Li). Esses núcleos foram forjadosbasicamente na era pré-galática da nucleos-síntese, ou seja, após os primeiros minutos

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do big-bang. Com a síntese desses núcleosleves, algumas reações nucleares puderamacontecer no meio gasoso interestelar, ealguns outros elementos em concentraçõesmuito pequenas puderam ser formadosantes mesmo da formação das galáxias. Noentanto, a grande parte dos elementos maispesados presentes nos dias de hoje aqui naTerra e em algumas outras estrelas maisnovas foi formada em processos estelaresde explosões de nova e supernova depoisque as galáxias já haviam sido formadas.Inicialmente as estrelas são formadas basi-camente de hidrogênio. Depois que as es-trelas queimam o hidrogênio acabam setornando estrelas bastante ricas em hélio.As estrelas que conseguem atingir a fase dequeima de hélio e que tenham MSol < M <8 x MSol acabam se tornando as principaisfontes de carbono, nitrogênio e oxigênio ealguns elementos um pouco mais pesados.Estrelas mais massivas (M > 8 x MSol) pro-duzem então os núcleos desde oxigênio atézinco, e algumas delas chegam a produziruma certa fração de elementos mais pesa-

dos que o ferro, como ouro, plutônio, urâ-nio etc. Estrelas na fase de pré-supernovatambém produzem elementos pesados, as-sim como estrelas que entram na fase dequeima explosiva do silício. O que quere-mos dizer é que existem vários processosdentro de uma estrela responsáveis pelaformação de elementos pesados, no entan-to, é através de uma explosão de nova esupernova que podemos formar elementosmais pesados que o ferro.

A FÍSICA NUCLEAR DO BIG-BANG EA ORIGEM DOS ELEMENTOS

Nós acreditamos que nosso universotenha sido formado há 15 bilhões de anospor uma explosão de uma densa bola defogo. Denominamos esse fenômeno debig-bang. Nos primeiros instantes após essaexplosão, quando a temperatura ainda eramuito alta, tínhamos uma matéria num es-

Mapa do universo do ponto de vista dos raios gama do núcleo 26-Alumínio.Devido ao fato de a meia-vida desse núcleo ser de alguns milhões de anos

e de as galáxias serem transparentes aos raios gama podemos verexatamente onde esse núcleo está sendo sintetizado nas galáxias.

Figura 1

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tado que ainda não é totalmente conhecido,um plasma de quarks e glúons. Após maisalguns segundos de existência o universocomeçou a se esfriar um pouco mais e amatéria tomou uma forma um pouco maisconhecida para nós, prótons, nêutrons eoutras partículas. A sopa quente de quarkse glúons se condensou numa sopa maisespessa e menos quente de partículas comoprótons e nêutrons e algumas outras partí-culas pesadas, que, juntas, correspondemao que chamamos de matéria hadrônica.Com o esfriamento gradual dessa sopa, osprótons e nêutrons começaram a se combi-nar formando elementos leves e, assim,dando início à era da física nuclear. É bempossível que a transição dessa sopa dequarks para sopa de matéria hadrônica nãotenha sido tão calma e é possível que pu-déssemos ter, naquele momento, uma certanão-homogeneidade entre o número deprótons e de nêutrons, ou ainda ter havidouma condensação de partículas estranhasformadas por um aglomerado muito gran-de de quarks. Essas relíquias desse univer-so primordial podem ser encontradas aindahoje no nosso universo e podem ser umapista interessante para sabermos exatamen-te o que ocorreu naquela época. Experi-mentos realizados recentemente no RHIC(Relativistic Heavy Ions Collider), um la-boratório gigantesco nos Estados Unidos,tentam simular o que ocorreu nesse big-bang. A primeira experiência com esse gi-gantesco acelerador foi realizada em 2002,e a análise dos dados dos experimentos queforam e podem ser realizados nesse labora-tório poderá elucidar o que pode ter acon-tecido durante essa fase de transição da sopade quarks para a sopa de matéria hadrônica.

Uma vez que o universo conseguiu for-mar bastantes prótons e nêutrons e começoue se esfriar um pouco mais, elementos maisleves começaram a se formar, elementoscomo o deutério (núcleo com um próton eum nêutron) e o hélio (núcleo com doisprótons e um ou dois nêutrons). A partirdesses elementos mais leves novas reaçõesnucleares de fusão e captura começaram aocorrer formando outros elementos, comolítio e berílio. Apenas bem mais tarde é que

esses elementos começaram a se juntar de-vido à força gravitacional formando peque-nos aglomerados que foram as sementes dasprimeiras estrelas e galáxias. Elementos maispesados como boro, carbono e oxigênio sãosintetizados nas estrelas. Para sintetizar ele-mentos bem mais pesados que esses preci-samos de um caldeirão ou um forno bemmais poderoso. Esses caldeirões ou fornoscorresponderiam às violentas explosõesestelares conhecidas como nova e supernova.Falaremos dessas explosões mais adiante.

A síntese de elementos leves como deu-tério e lítio é uma das chaves para se enten-der o universo primordial. É como se esseselementos fossem fósseis desse universoprimordial, e a abundância deles pode serconsiderada como pistas sobre as condi-ções desse universo primordial. Hidrogê-nio e hélio são os elementos mais abundan-tes no universo. Apesar de alguns núcleosde hélio terem sido também produzidos emestrelas mais antigas, a maior parte obser-vada nos dias de hoje foi produzida antesda formação das estrelas. O estudo da abun-dância desses elementos pode nos dar di-cas sobre a densidade de matéria do univer-so. Nós entramos numa época em que asmedidas astronômicas e astrofísicas estãocada vez mais precisas. Assim, chegamosa um ponto em que podemos também ela-borar modelos que possam prever mais pre-cisamente o que aconteceu nos primórdiosdo universo.

A nucleossíntese no big-bang envolveuma seqüência de reações nucleares comos núcleos leves. Precisamos ter informa-ções acuradas sobre as probabilidades e ta-xas em que essas reações ocorreram paraque possamos ter parâmetros precisos paranossos modelos de formação dos elemen-tos. Por exemplo, se queremos conhecer asíntese do deutério (d) precisamos ter umaboa idéia de como o deutério é formado apartir da fusão de um próton (p) e um nêu-tron (n), p+n produzindo d+ (raios gama),e de como o deutério é queimado, d+d pro-duzindo n+3He, ou ainda d+p +3He oud+d p+3H. Em outras palavras, para sa-bermos a abundância de um determinadoelemento precisamos conhecer o balanço

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entre a taxa de sua produção e a taxa de seuconsumo. Informações sobre essas reaçõessão obtidas através de medidas em laborató-rios incidindo um feixe de uma dessas par-tículas em alvos feitos da outra partícula.Modernos equipamentos permitem que pos-samos simular essas reações em laborató-rios e obter as probabilidades e taxas em queelas ocorrem. No entanto, para se usar asinformações obtidas de uma dada reaçãonuclear que tenha sido investigada num la-boratório no cálculo da nucleossíntese pri-mordial ou estelar é importante lembrar queos dois ambientes não são exatamente osmesmos. Enquanto os elementos encontra-dos no universo ou no centro da estrela sãoapenas núcleos (átomos ionizados), os al-vos desses mesmos elementos usados nolaboratório são átomos com um núcleo etodos os elétrons ainda presentes. Portanto,a medida da taxa de reação no laboratóriodeve ser corrigida pelo efeito dos elétronsque agem como blindagem eletrônica. O quenormalmente é feito é calcular com a me-lhor precisão possível uma correção na inte-ração elétrica devido a essa blindagem usan-do os conhecimentos que temos de físicaatômica. Até agora ainda não foi possívelatingir a precisão de que necessitamos, e oproblema continua atraindo a atenção defísicos nucleares e atômicos.

Várias das reações envolvidas nas es-trelas já foram medidas em diversos labo-ratórios espalhados pelo mundo, dando umaboa indicação de como ocorrem esses pro-cessos iniciais de formação dos elementos.No entanto, ainda existem várias questõesfundamentais ainda em aberto. Por exem-plo, é ainda uma questão em aberto se atransição de fase entre quark/glúon parahádrons gerou uma densidade uniforme dematéria (iguais números de prótons e denêutrons e de densidade) ou se houve picosde densidades gerando uma não-homoge-neidade do universo material. Essa não-ho-mogeneidade poderia criar regiões de con-centrações de núcleos ricos em prótons ouricos em nêutrons, que são núcleos comvida média curta mas que podem participarda formação de elementos estáveis. Comonão existem elementos estáveis na nature-

za com massa A= 5 e A= 8, núcleos comoberílio e boro, que têm massa maior do que5 e 8, respectivamente, não poderiam tersido formados num universo homogêneo.Apenas num universo não-homogêneopoderíamos formar os elementos e, a partirdesses, elementos mais pesados. Nessecenário, a reação mais importante para sal-tar dos elementos leves para os elementosmais pesados seria a reação 8Li( ,n)11B. Ouseja, núcleos de 8Li, que são núcleos instá-veis e vivem apenas alguns milissegundos,se fundindo com 4He dando 11B (11-boro)mais um nêutron. Portanto, ter informaçõesexperimentais sobre a probabilidade comque essa reação ocorre nas energias em queelas teriam ocorrido no universo primordi-al é de fundamental importância para ter-mos uma idéia se o universo era ou nãohomogêneo. Essa reação só pôde ser ex-perimentalmente investigada em labora-tórios com o advento dos feixes de núcleosradioativos de vidas médias curtas (feixescom núcleos que duram menos que milési-mos de segundos). Essa reação foi recente-mente investigada, mas uma experiênciamais precisa é ainda necessária. Váriasoutras reações que têm a participação denúcleos exóticos ocorrem no universo pri-mordial ou em estrelas supermassivas (es-trelas de população III com zero meta-licidade). Essas reações estão sendo recen-temente investigadas e várias ainda nãoforam e precisam ser medidas. Medidas dastaxas dessas reações são importantes paraque possamos formular teorias mais preci-sas sobre como se deu a fase de transiçãodo universo primordial.

A NUCLEOSSÍNTESE NO MEIOINTERGALÁTICO

Existe, em nosso universo, uma popu-lação de enigmáticos elétrons, neutrinos eoutras partículas que viajam em velocida-des altíssimas (relativísticas) no meio inter-galático. Essas partículas são conhecidascomo GCR (Galactic Cosmic Rays), ou seja,

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raios cósmicos galáticos. A própria origemdessas partículas ainda é obscura apesar dedécadas de pesquisas. O que sabemos des-ses raios cósmicos, através de medidas ob-tidas com as espaçonaves Ulysses e Mir, éque eles não vieram de supernovas ou defontes estelares do tipo do Sol. Novos equi-pamentos das estações espaciais, tais comoAccess (Advanced Cosmic-ray Compos-ition Experiment for Space Station) e Ecco(Extremely Heavy Cosmic-ray Composit-ion Observer), poderão nos dar mais infor-mações a respeito dessas enigmáticas par-tículas e suas reações exóticas.

Esses raios cósmicos também contribu-em para a formação de elementos, mas deuma forma diferente. Eles acabam sendoresponsáveis por reações de quebra ao in-vés de reações de captura ou fusão de doisnúcleos. Podemos tomar por base novamen-te o núcleo 11B. Dissemos anteriormenteque ele só poderia ser formado fora dasestrelas se o universo fosse não-homogê-neo e houvesse a presença de núcleos radio-ativos (exóticos) como o 8Li. No entanto,os neutrinos cósmicos podem se chocar comos núcleos de carbono que ficam na crostade uma estrela massiva quebrando o nú-cleo de 12C em 11B+p. Essas reações dequebra ou de espalação provocadas pelosneutrinos e elétrons relativísticos do meiointerestelar com os núcleos da crosta deestrelas acabam formando alguns elemen-tos como berílio e boro que acabam sendoejetados também para o meio interestelar.

Sabemos muito pouco sobre essas rea-ções e, do ponto de vista de laboratório,ainda precisamos obter informações decomo se dão essas reações de espalaçãoutilizando feixes de neutrinos e elétrons.

A NUCLEOSSÍNTESE DOSELEMENTOS NAS ESTRELAS

Para entendermos como os elementossão cozidos dentro do caldeirão estelar pre-cisamos entender algumas fases da evolu-ção de uma estrela. A evolução de uma es-

trela é caracterizada por fases bem deter-minadas. São períodos de calmaria separa-dos por períodos de grande agitação. A fasede calmaria é quando a estrela permanecequeimando em seu interior um certo nú-cleo gerando energia que compensa a forçade contração gravitacional. O tempo queela leva nessa fase depende de qual ele-mento ela está queimando e qual a quanti-dade de energia que ela está liberando. Aqui,quando dizemos queimando, significa queas estrelas estão sintetizando elementosmais pesados, já que a queima correspondea reações de fusão e captura. Quando umdado elemento é praticamente todo quei-mado no interior da estrela a energia libe-rada não é mais capaz de segurar a contra-ção gravitacional. Essa força gravitacionalé gerada pelos elementos mais pesados queforam formados. A estrela então se contraiaté que o calor liberado nessa contraçãogravitacional e a densidade alcançada se-jam suficientes para desencadear a novafase de queima dos elementos, que são ascinzas da fase anterior. O interessante é quemuitas vezes as estrelas ficam queimandodiferentes elementos em regiões de dife-rentes densidades na forma de camadascomo se fossem cascas de cebola. Cama-das mais densas de elementos mais pesa-dos ficam no interior e, conforme vamospara as camadas mais externas, temos aqueima de elementos mais leves.

Esses processos, apesar de não explosi-vos, podem ser bastante complexos. Atual-mente temos uma boa compreensão decomo eles se dão e já existem vários pro-gramas de computadores que simulam es-sas reações e podem prever a evolução deuma estrela a partir de alguns parâmetrosiniciais. Esses códigos computacionais cal-culam a queima e síntese dos elementosbaseados em cadeias de reações que ocor-rem dentro das estrelas. É preciso, portan-to, que forneçamos os parâmetros corres-pondentes às taxas de reações envolvidas eabundância inicial dos elementos. Alémdisso, algumas dessas reações envolvemnúcleos em estados excitados de energia(estados ressonantes) que podem favore-cer uma determinada reação de captura ou

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fusão. Essas taxas de reações e informa-ções sobre os estados excitados do núcleos(ressonâncias), ou seja, de sua estrutura,são obtidas de medidas realizadas em labo-ratórios de física nuclear. Obviamente ain-da não temos informações de todas as rea-ções envolvidas e nem da estrutura de to-

dos os núcleos envolvidos nos processosde síntese dos elementos. Nesse caso, re-corremos a modelos teóricos ou extrapo-lações de dados para energias de interesse.A conseqüência disso é que ainda não so-mos capazes de prever com detalhes váriosdos processos estelares, nem a abundância

Figura indicando as reações envolvidas no ciclo CNO e, embaixo, um gráficoindicando a competição entre os ciclos pp e CNO em função da temperatura.

A temperatura T6 corresponde a milhões (106) de graus Kelvin. As setasindicam a direção em que as reações ocorrem. Na figura (p, ) corresponde àreação de captura de prótons, (e+ ) corresponde ao decaimento beta e (p, )corresponde à captura de um próton com a liberação de uma partícula alfa(núcleo de hélio). A temperatura do Sol é da ordem de 15 milhões de graus

Kelvin e ambos os ciclos estão atuando na geração de energia.

Figura 2

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final dos elementos numa estrela. Por exem-plo, ainda não é possível explicar as recen-tes observações das abundâncias de 7Li,23Na e 27Al na atmosfera de gigantes ver-melhas, ou mesmo a abundância isotópicados elementos encontrados em meteoritos.Não conseguimos também antecipar comose dá a formação dos elementos em nebu-losas planetárias. Exatamente por esses mo-tivos a astrofísica nuclear ainda é um cam-po bastante ativo da física nuclear e váriasmedidas e informações ainda devem e po-dem ser obtidas dos vários laboratórios eaceleradores de partículas espalhados pelomundo.

Do ponto de vista de evolução de umaestrela, ela é formada inicialmente de nú-cleos de hidrogênio. Então, a primeira faseda evolução, a infância de uma estrela, équando ela ainda está queimando o hidro-gênio. Nosso Sol ainda está nessa fase epodemos dizer que ele ainda está em suainfância. A queima de quatro núcleos dehidrogênio para se formar um núcleo dehélio é dada por uma série de reações nu-cleares em ciclos, ciclos pp e ciclo CNO. Jácitamos algumas das reações do ciclo pp.No ciclo CNO, carbono, nitrogênio e oxi-gênio, que podem estar presentes no inte-rior de algumas estrelas, funcionam comocatalisadores para a queima de hidrogênio.Na Figura 2 mostramos um desenho esque-mático das reações envolvidas no cicloCNO. Quando praticamente todo o hidro-gênio é queimado, e isso pode demorar al-guns bilhões de anos, a estrela se contrai,aumentando a densidade e a temperatura edando ignição para a queima de hélio. Atransformação de núcleos de hélio em car-bono e oxigênio é dada em reações com-plexas chamadas captura tripla de alfas. Naetapa de queima dos núcleos de hélio aenergia nuclear liberada é bem maior quena fase anterior da queima de hidrogênio.A estrela então se expande tornando-se umagigante vermelha. As queimas subseqüen-tes do hélio para formar o carbono e o oxi-gênio fazem com que a estrela forme outrascamadas. Algumas estrelas, como o nossoSol, nessa fase, implodem no momento emque elementos mais pesados são sintetiza-

dos, tornando-se anãs brancas, muitas ve-zes praticamente inertes – esse seria a ve-lhice e o destino final de nosso Sol. Outrasestrelas mais pesadas que o Sol continuamo processo de síntese de elementos maispesados por processos de captura de prótons(rp-process) e nêutrons (s-process) até aprodução de núcleos de cálcio e ferro. Es-ses processos de captura são bastante com-plexos, os núcleos vão capturando prótonsou nêutrons e a um certo ponto acabam setornando núcleos ricos em prótons ou emnêutrons e, portanto, instáveis por decai-mento beta. Na nucleossíntese, esse pontoé chamado de ponto de gargalo, e é precisoque se espere um certo tempo para que oelemento instável decaia por beta para umnúcleo estável para dar continuidade aoprocesso de capturas. Há ainda uma gran-de necessidade de informações sobre ta-xas de reações de captura de prótons, nêu-trons ou até mesmo de captura de partícu-las alfa, medidas de massas dos váriosisótopos envolvidos, informações sobreestrutura nuclear e formas de decaimentopara que possamos descrevê-los correta-mente. Saber modelar e prever com preci-são esses processos é importante para quepossamos descrever as fases seguintes deevolução estelar.

NUCLEOSSÍNTESE EXPLOSIVA

Durante o estágio final de evolução deuma estrela massiva (com massa bem maiorque a do Sol), o interior dessa estrela é entãoformado basicamente de elementos commassa em torno do ferro (A= 56). Isso ocorreporque esses elementos são os mais liga-dos e compactos da tabela periódica. Exa-tamente por esse motivo os núcleos quasenão interagem mais espontaneamente e aenergia nuclear liberada é pequena. Assimsendo, novamente a força gravitacionalganha e o interior da estrela tem um colap-so, uma contração. Quando então a estrelaatinge uma densidade grande, devido a essacontração, ocorre uma explosão espetacu-lar chamada de supernova.

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As supernovas são, sem dúvida, os ob-jetos mais espetaculares e fascinantes nocosmos. O brilho gerado por sua explosãoé tão grande que ultrapassa por ordens demagnitude o brilho do Sol. Algumas vezesessa explosão pode ser vista até mesmo aolho nu durante o dia, não fosse pelo fato deserem raras. Existem basicamente dois ti-pos de supernovas: supernovas que ocor-rem devido à implosão de seu interior ricoem ferro, conforme acabamos de descre-ver, que são as de tipo Ib, Ic e tipo II, e asfamosas supernovas do tipo Ia, que se ori-ginam devido a uma troca de material entreduas estrelas (uma anã branca, estrela denêutrons e uma estrela massiva) de um sis-tema binário.

Estrelas de tamanho não muito maiorque o Sol evoluem para uma gigante ver-melha e terminam sua vida de forma sim-ples com a implosão da gigante vermelhapara uma anã branca quase inerte. O resul-tado final de uma explosão de supernova,

por outro lado, é a formação de uma estrelade nêutrons bastante densa ou de um bura-co negro. A síntese de elementos mais pe-sados que o ferro só é possível nessas ex-plosões de supernova e podemos dizer quetodos os elementos mais pesados que o ferroforam cozidos nesses fornos intensos. Éentão a supernova que processa a alquimiade transformar o ferro em ouro. Um dosgrandes esforços da astrofísica atual é exa-tamente tentar entender com boa precisãoos processos que ocorrem durante as ex-plosões de supernova.

Por incrível que possa parecer, mais dametade das estrelas observadas no céu sãosistemas binários envolvendo duas estre-las de tamanhos diferentes. Quando umadas estrelas evolui primeiro, transforman-do-se numa anã branca ou numa estrela denêutrons, sua força gravitacional começa asugar matéria de sua companheira menosevoluída. O hidrogênio sugado pode entãodesencadear uma explosão que chamamos

Desenho ilustrativo da acreção da matéria de uma estrela de nêutronsde sua companheira menos evoluída num sistema binário, antes da

explosão da supernova.

Figura 3

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de explosão de uma nova. É interessantenotar que as explosões do tipo nova sãobem mais freqüentes do que as supernovas.São observadas na Terra ou nas estações deobservações espaciais em torno de 100explosões de nova por ano, enquanto ape-nas algumas supernovas por década. Se aacreção da matéria por parte de uma dasestrelas num sistema binário for lenta, issopode gerar fenômenos tais como uma emis-

são enorme de raios-X. Se ainda esse siste-ma binário estiver girando, essa emissãode raio-X dará a impressão de que a estrelaestá pulsando. Chamamos a esse tipo deestrelas de pulsares. Se, no entanto, a acre-ção de matéria for muito rápida para a anãbranca ou estrela de nêutrons, isso podedesencadear a explosão de supernova dotipo Ia. As explosões de supernova do tipoIa são conhecidas, e já podemos determi-

Imagem do telescópio Hubble da supernova 1987a. Essa supernovaexplodiu em 1987 e é a supernova mais próxima desde o lançamento doHubble. A explosão dessa supernova lançou no meio intergalático uma

quantidade enorme de neutrinos e partículas leves. A origem do anel emvolta da supernova é ainda desconhecida.

Figura 4

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nar exatamente sua luminosidade. Conhe-cendo essa luminosidade podemos usar aexplosão da supernova do tipo Ia comovelas-padrão de luminosidade para saber adistância entre as galáxias, ou mesmo parasaber o quanto as galáxias se afastam umasdas outras determinando assim a taxa deexpansão do universo.

O desafio aqui, para a astrofísica, é en-tender os fenômenos envolvidos no colap-so da supernova e como se dá a síntese doselementos pesados nessa explosão. Esse co-lapso da supernova é um evento que gerauma quantidade extraordinária de energiagerando condições para os mais diversosmecanismos de reações nucleares e de sín-tese dos mais diversos elementos. A explo-são espalha esses elementos no meiointerestelar, onde eles podem ser incorpo-rados ou gerar novos sistemas estelares compossibilidades de formar bases para novossistemas solares eventualmente com pre-sença de vida. Além disso, o que é deixadopara trás, estrelas de nêutron ou buraconegro, contém elementos raros ou mesmonovas formas de matéria hadrônica. Assimsendo, a supernova é um grande laborató-rio para se investigar a nucleossíntese deelementos extremamente exóticos, estudarpropriedades dos neutrinos e outras partí-culas geradas e estudar formas nuclearesem ambientes de altíssima densidade e tem-peratura.

A ASTROFÍSICA NUCLEAR NOBRASIL

A física nuclear é a ciência que estudareações nucleares e estrutura dos núcleos.Essa ciência está bastante conectada àastrofísica. Para entendermos a geração deenergia nas estrelas, nucleossíntese doselementos, explosões estelares, estrelas denêutrons, buracos negros, interações comneutrinos, precisamos exatamente de infor-mações que podem ser obtidas da físicanuclear. Essas informações podem ser di-vididas em três categorias básicas: medi-

das de grandezas fundamentais (massas,vidas médias e raios dos núcleos), proprie-dades dos estados excitados dos núcleos(estados isoméricos, ressonâncias, densi-dades de níveis, taxa de decaimento) e as-pectos das reações nucleares (taxa de rea-ções, mecanismo de reações, interferênciaentre os mecanismos). Cada uma dessascategorias de informações tem um impactodireto no entendimento dos processosastrofísicos.

Essas informações para núcleos está-veis já são bastante conhecidas e foram abase da física nuclear das últimas décadas.No entanto, muitas informações importan-tes dos núcleos ricos em nêutrons ou emprótons, que estão longe do vale de estabi-lidade na tabela de nuclídeos, ainda sãodesconhecidas. Esses núcleos radioativossão conhecidos como núcleos exóticos porterem excesso de nêutrons ou de prótons eter formas exóticas de decaimento e arran-jo dos núcleons que os compõem. Essesnúcleos têm uma vida média curta e por-tanto não estão presentes na composiçãoda Terra. Tanto fenômenos explosivoscomo a explosão de nova e supernova quan-to o processo de evolução de estrelassupermassivas e no universo primordial(não-homogêneo) envolvem, inevitavel-mente, esses núcleos radioativos. Explo-sões de supernova e o processo de evolu-ção de estrelas supermassivas ocorrem numambiente de alta densidade e alta tempera-tura. Assim, as sucessivas reações de nu-cleossíntese nesses eventos envolvem nú-cleos que estão longe da linha de estabili-dade na tabela de nuclídeos. Esses núcleosradioativos acabam tendo uma influênciagrande e algumas vezes fundamental emmuitos fenômenos estelares. É interessan-te notar que enquanto há algo em torno de280 elementos estáveis na natureza (tabelaperiódica), devem existir mais de 3.000núcleos radioativos (veja tabela de nuclí-deos). Esses núcleos não são encontradosna Terra mas têm papel fundamental paraque possamos entender como foram pro-duzidos os 280 elementos estáveis e suasrespectivas abundâncias. Informações so-bre esses núcleos radioativos (núcleos exó-

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADELBERGER, Eric G. et al. “Solar Fusion Cross-sections”, in Review of Modern Physics. vol. 70, no 4, October, 1998.KAPPELER, F.; THIELEMANN, F. K.; WIESCHER, M. “Current Quest in Nucler Astrophysics and Experimental

Approaches”, in Annu. Rev. Nucl. Part. Sci. vol. 48, 1998, pp. 175-251.SMITH, Michael S. and REHM, K. Ernst. “Nuclear Astrophysics Measurements with Radioactive Beams”, in Annu. Rev.

Nucl. Part. Sci. vol. 51, 2001, pp. 91-130.

ticos) acabam sendo particularmente im-portantes para que possamos melhorar nos-so entendimento do que ocorre nos proces-sos que determinam a forma de nosso uni-verso. Foi apenas no final da década de 80 einício da década de 90 que esses núcleosexóticos começaram a ser investigados commais afinco e detalhes. A razão é que, a partirdessas últimas décadas, foram construídosaceleradores e equipamentos que podiamfabricar feixes desses elementos radioativos.O impacto da idéia de se usar feixes de nú-cleos radioativos para se medir em laborató-rio as reações envolvendo esses núcleos quenão estão presentes na Terra foi bem coloca-do por Willy Fowler em 1985:

“Nós estamos no meio de um daquelesexcitantes e estimulantes períodos que ocor-rem na ciência de tempos em tempos. Temagora se tornado claro que é preciso dadosexperimentais sobre as propriedades e in-teração desses núcleos radioativos neces-sários para a astrofísica. Métodos para pro-dução de feixes com esses núcleos radioa-tivos em quantidades suficientes têm sidopropostos e estão no estágio de se estimarcustos e performance…Vamos em frentecom isso!!”.

O entusiasmo de Fowler não foi em vão.Da década de 90 para cá vários laboratórioscomeçaram a produzir feixes com essesnúcleos exóticos. Aqui no Brasil o grupode pesquisadores do Instituto de Física daUniversidade de São Paulo, Alinka Lépine-Szily, Rubens Lichtenthaler e Valdir Gui-marães, que já vinham trabalhando ativa-mente na área de núcleos exóticos, estimu-lados também pela possibilidade de se usar

feixes radioativos de baixa energia no estu-do de fenômenos astrofísicos, decidiraminstalar o sistema Ribras (Radioactive IonBeam in Brasil). Esse projeto, inicialmentecoordenado pelo prof. Mahir S. Hussein,consiste de um duplo solenóide super-condutor, e tem como objetivo a produçãoe utilização de feixes radioativos de baixaenergia para investigar a estrutura de nú-cleos exóticos e medir taxa de reações en-volvendo esses núcleos. Esse sistema foirecentemente instalado no LaboratórioPelletron do Instituto de Física da USP ecolocado em operação no início deste anode 2004.

Neste artigo abordamos alguns fatosimportantes dessa fascinante ciência que éa astrofísica nuclear, e discutimos um pou-co os mecanismos a partir dos quais os ele-mentos na tabela periódica são produzidoscom as suas respectivas abundâncias. Tam-bém procuramos enfatizar o papel funda-mental que os núcleos radioativos ricos emnêutrons ou prótons têm nesses mecanis-mos. É importante salientar que o campoda astrofísica nuclear envolve uma sinergiaentre cosmologia, astrofísica pura, astro-nomia, física de partículas elementares,física nuclear, e física atômica raramenteencontrada. Portanto, podemos ousar dizerque o campo da astrofísica nuclear tem umcharme intelectual todo especial evidencia-do ao englobar conhecimentos fundamen-tais de áreas tão variadas da física moder-na. Para mais detalhes e informações maistécnicas sobre astrofísica nuclear e o futurodessa área convidamos o leitor a ler algunsartigos de revisão mais específicos listadosabaixo.