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3 -ARTIGO NÓS, O VERDADEIRO POVO ! Brayner, F.H.A. Lima, Conceição G.N. de & Santos, Rosineide M Nos anos oitenta, segundo informa o Professor Luis de la Mora (Cf; Recife: que história é essa? Fundação de Cultura Cidade do Recife. SEC. 1987), o Recife foi a capital brasileira com maior número de organizações de apoio aos "movimentos populares". Entre esses, o das chamadas "escolas comunitárias" foi daqueles que mobilizou, numa escala considerável, intelectuais, professores universitários e militantes que apostavam no vigor político, organizacional e propriamente pedagógico daquelas experiências iniciadas sob a tutela da Igreja e que vai conhecer uma rápida expansão nos bairros periféricos da cidade. A convicção de que era do interior da sociedade civil que deveria partir a iniciativa política estimulou ainda mais a emergência de organizações populares e, entre essas, o movimento das escolas comunitárias logrou alcançar um prestígio particular, pelo menos aqui em Recife. . Como parte de um projeto de pesquisa que procurava cartografar as imagens produzidas sobre as "classes populares" a partir do pensamento pedagógico brasileiro dos anos 80, selecionamos e analisamos alguns projetos educativos provenientes das chamadas escolas comunitárias e que receberam, no curso daqueles anos, apoio pedagógico e financeiro de Organizações Não-Governamentais sediadas em Pernambuco. Alguns critérios preliminares orientaram a escolha de tais organizações: a) o nível de articulação que possuíam junto às comunidades; b) a experiência acumulada e do reconhecido prestígio de que gozavam junto às comunidades populares e, finalmente, d) o fato de terem se Tóp. Educ., Recife, v. 15, n. 0 3, p. 75-87, 1997 75

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3 -ARTIGO

NÓS, O VERDADEIRO POVO !

Brayner, F.H.A. Lima, Conceição G.N. de & Santos, Rosineide M

Nos anos oitenta, segundo informa o Professor Luis de la Mora (Cf; Recife: que história é essa? Fundação de Cultura Cidade do Recife. SEC. 1987), o Recife foi a capital brasileira com maior número de organizações de apoio aos "movimentos populares". Entre esses, o das chamadas "escolas comunitárias" foi daqueles que mobilizou, numa escala considerável, intelectuais, professores universitários e militantes que apostavam no vigor político, organizacional e propriamente pedagógico daquelas experiências iniciadas sob a tutela da Igreja e que vai conhecer uma rápida expansão nos bairros periféricos da cidade. A convicção de que era do interior da sociedade civil que deveria partir a iniciativa política estimulou ainda mais a emergência de organizações populares e, entre essas, o movimento das escolas comunitárias logrou alcançar um prestígio particular, pelo menos aqui em Recife. .

Como parte de um projeto de pesquisa que procurava cartografar as imagens produzidas sobre as "classes populares" a partir do pensamento pedagógico brasileiro dos anos 80, selecionamos e analisamos alguns projetos educativos provenientes das chamadas escolas comunitárias e que receberam, no curso daqueles anos, apoio pedagógico e financeiro de Organizações Não-Governamentais sediadas em Pernambuco. Alguns critérios preliminares orientaram a escolha de tais organizações: a) o nível de articulação que possuíam junto às comunidades; b) a experiência acumulada e do reconhecido prestígio de que gozavam junto às comunidades populares e, finalmente, d) o fato de terem se

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destacado, naqueles anos, como agências freqüentemente solici­tadas a apoiar projetos de natureza propriamente educativas. Assim optamos pelas instituições "Centro Josué de Castro"(Recife) e "Centro Luís Freire" (Olinda).

Nos arquivos dessas instituições, consultamos os principais projetos de "educação popular" que obtiveram financiamento e cujas experiências foram alvo de um acompanhamento sistemático até a factura do relatório final e prestação de contas, a partir do qual selecionamos dezesseis projetos provenientes de diferentes "comunidades" de Recife e Olinda. Consultamos, ainda, as minutas dos relatórios finais dos dois principais Encontros de Escolas Comunitárias, realizados ei;n Salvador e Recife (87 e 88), onde estiveram reunidos representantes do Norte-Nordeste e que contaram com o apoio de inúmeras ONG's da região.

Nosso interesse residia, repito, em mapear as imagens produzidas sobre as "classes populares" a partir do discurso pedagógico dos anos 80, observando, em especial: a) o tipo de projeto pedagógico proveniente das "comunidades" e que encontra receptividades na~ agências de financiamento; b) o objetivo que tais projetos intentavam alcançar; c) a imagem produzida (ou reproduzida) sobre as classes populares pelos projetos em si e que encontraram adesão nas agências de apoio .

• • • Os projetos adquirem suas características em função dos

interesses sócio-econômico-profissionais dos demandantes. Uma parte importante deles refere-se a comunidades de pescadores que solicitam apoio técnico-pedagógico, visando: ao aperfeiçoamento profissional na pesca moderna, com vistas à obtenção de wna relação mais equilibrada entre investimento-produtividade­lucratividade; à formação deles para um melhor desempenho administrativo-gerencial da atividade; à criação de uma escola comunitária visando à introdução dessa comunidade no mundo da "leitura critica da sociedade" via processo de alfabetização, em que

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os termos desenvolvidos por Freire estão constantemente presentes.

De uma maneira geral, e quase sem grandes variações, os projetos apresentam uma forte sintaxe político-ideológica, em que se propõe, por exemplo, "a elaboração de um currículo centrado na valoração da classe trabalhadora", "na promoção da consciência crítica das crianças a partir de uma visão de classe", na concepção de alfabetização como "construção de uma cosnciência de classe para a transformação da realidade social" e outros leitmotiv que inspiraram o pensamento pedagógico brasileiro dos anos 80.

Na verdade, esses projetos não poderiam ter existência sem a constituição identitária da própria "escola p~pular", embora isso só apareça de forma explícita e caracterizada no II Encontro de Escolas Comunitárias, realizado em Olinda, em 1988. Ali, procura­se definir o que as experiências comunitárias têm em comum para se obter uma caracteriologia que lhes forneça uma identidade. Ou seja: que defina sua diferença em relação às experiências "estatais", "oficiais", "conservadoras", "tradicionais" e/ou "voltadas para os interesses dominantes", tal como aparece em numerosos documentos. Cinco são os critérios para definir tal identidade:

- tais escolas estão situadas em bairros conhecidos como "populares";

- têm em comum uma história e uma tradição de luta da população excluída de seus direitos de cidadania;

- as próprias escolas estão ligadas a essas tradições; - quem faz as escolas são as pessoas do bairro; - o conteúdo trabalhado nas escolas é a história desse povo.

São critérios heterogêneos que misturam situação geo­gráfica das escolas (veremos adiante que uma escola oficial situada em bairros populares não pode ser definida como "popular"), uma pretensa identidade de interesses em ·função de uma "história comum" e de habitarem o mesmo bairro com conteúdos

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pedagógicos que se adjetivam "populares" pelo fato, não muito convincente, de que repertoriam uma história de lutas.

A idéia de "luta" surge, assim, como núcleo semântico primordial em tomo do qual se estrutura uma identidade "comunitária". De maior interesse analítico (mas também "ideológico", no sentido banal de projeção do interesse particular para o geral) é a transposição do significante "comunitário" para "popular", construída a partir da escola e da educação. Quer dizer: o acionamento de um mecanismo de constituição de uma auto­imagem cuja gramática, obedecendo a nem sempre sutis artificios de construção de sentidos e significados, parte da "história" (das lutas) para forjar a imagem de classe de que precisam para territorializar socialmente uma prática educativa e distingui-la de outras - doravante e por definição "não-populares" - e para, finalmente, arquitetar uma virtual comunidade de interesses: "nós, o verdadeiro povo!". Como se trata do problema de constituição de uma identidade, o recurso primeiro é a história, logo vista como instância produtora de sentidos passados e que garantem o alicerce para ações comuns no futuro. Nenhuma ruptura, nenhum traço de fratura que eventualmente possa ter existido neste passado são suficientes (ou sequer lembrados) para retirar o caráter "comum", esteio e garantia da indissolubilidade comunitária. Produz-se, portanto, no mesmo movimento identitário, a lembrança e o esquecimento.

Escola não-popular

"Pretendia-se com a discussão, diz um documento, aprofa.ndar a relação entre Escolas Comunitárias e Cultura Popular. Existe alguma relação? Pelo que asistimos no vídeo, só parece que tem. As escolas são expresões da Cultura Popular porque tratam de uma história de luta do povo. História é Cultura.Falam de uma forma de ser; falam do espírito de luta, da

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capacidade de resistência de representantes de uma determinada classes social; essa diposição de luta, esse não-conformismo".

Peço ao leitor que nos acompenhe numa rapidíssima digressão.

Sabe-se que foi Herder (1744-1803), influenciador decisivo do movimento pré-romântico Sturm und Drang (uma manifesta reação contra o racionalismo da Alfklãrung), quem cunhou a expressão Cultura Popular (Kultur des Volks) em contraste com a Cultura Erudita (Kultur des Gelehrten); assim como foi ele quem difundiu uma expressão para significar o "caráter" ou o "gênio" nacional a partir das características populares: a expressão Volksgeist, para representar a exaltação de uma identidade coletiva a partir do "povo". Resultado da revolta dos intelectuais contra o racionalismo das Luzes e contra a arte clássica, normativa e burguesa, por um lado, e do avanço do movimento romântico e dos valores ligados à terra, por outro, o "povo" começa a se constituir, ou melhor, a ser constituído, como reserva cultural, depositário da memória coletiva, da vida social orgânica e solidária, pura e autêntica, que o capitalismo estava destruindo. Essa tentativa de encontrar na cultura do povo, no "gênio popular" um fundamento cultural capaz de virtualmente soldar . laços de pertencimento serviram, também, para impulsionar, num passado ainda recente, ideologias românticas de direita (o Nazismo, por exemplo), tanto quanto um ideário social conservador que ora vê na tradição e nas formas pré-modernas de sociabilidade a base de constituição do moderno, ora como os verdadeiros herdeiros de uma vertente cultural primordialmente erudita e posteriormente re-elaborada, mas contendo e mantendo o substrato necessário à formação de uma cultura nacional. Não é outra a raiz imaginária que produziu, na modernidade, um culto do popular e de sua produção simbólica.

Claro que não só de imaginação romântica viveu o povo e sua cultura. Bakhtin foi daqueles que rompeu com concepções que

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ora ali enxergavam uma perfeita contaminação pela ideologia burguesa, ora uma entidade imaculada. Richard Hoggart (La culture du pauvre) testou, em meio operário londrino, de onde ele mesmo era originário, as formas de recepção e re-elaboração, naquele ambiente, dos produtos da indústria cultural. Ginzburg, o historiador italiano, num trabalho inovador confirma a tese -da "circularidade" da cultura popular (Bakhtin) a partir das concepções cosmogônicas de um moleiro do Friuli no século XVI. Marilena Chauí, em Resistência e Conformismo, está longe d~ partilhar do sentimento romântico, entendendo a cultura popular como re-factura constante e criativa de motivos sociais, ora cedendo, ora resistindo às impressões culturais da sociedade inclusiva.

Mas, no caso que estamos examinando, não é a idéia de "cultura nacional" sustentada por laços de sangue ou solo, ou apenas fincada numa tradição oral imemorial que remontaria ao momento "fundante", que domina; mas outra, mais imediata, de cultura comunitária legitimada por uma "história de luta". A escola oficial aparece, então, como não-popular porque "foi feita para excluir a criança trabalhadora das suas salas" ; "a escola oficial está longe de ser a escola do povo, garante o mesmo documento, (. .. )em função da burocracia, dos planejamentos feitos sem a participação dos alunos, das decisões de cima para baixo" , enquanto que a escola comunitária, na ausência de argumentos mais firmes, é "popular" porque "reflete a luta da classe popular por seus direitos mais elementares" (Projeto de capacitação e sistematizacão da experiência de educação popular desenvolvida pela Escola Nova de Braília Teimosa) . E é em função dessa mesma luta, motor e núcleo identitário, que se pergunta: "que contribuição a escola comunitária tem dado na formação de militantes do meio popular?"

Em outro documento (Escola Comunitária da Vila dos Milagres, lbura) mostra-se a escola comunitária como ''prática alternativa, cujo objetivo não era simplesmente substituir a escola

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pública, mas possibilitar às crianças uma educação libertadora, instrumentalizando-a para expressar-se sobre a realidade e poder transformá-la" . Aqui reaparece toda uma mítica da educação popular dos anos 80: o politicismo pedagógico, em que a coisa educativa é anexada como epifenômeno da luta de classes e que só encontra sua legitimidade numa teleologia social e histórica, e em que se define, in limine, o papel e o tipo de consciência que se deve possuir no futuro. Em nome de uma pedagogia de tipo "libertador'', entrevê-se um fundo autoritário, excludente e basista ( que não passa de um elitismo de sinal trocado!). A "cultura burguesa", núcleo agregador dos programas escolares oficiais e a partir do que se arquiteta o que eles chamam de "saber formal e sistematizado", só é tratada uma única vez, no Encontro de Salvador (1987), centrando-se o essencial de seus programas num "resgate" da história comum e de suas lutas.

História, luta, comunidade, educação para a militância compõem os ingredientes de uma bula ideológica que, no fundo, segrega uma concepção excludente e unívoca do pensar pedagógico. Mas esses ingredientes têm a virtude de produzir identidades e imagens de si e do outro que garantem coesões grupais. Mais: essa produção imagística não funciona sem que ela se reflita numa espécie de circularidade especular.

Os projetos educativos investigados, todos circunscritos aos anos 80, possuem algo que lhes é de certa forma· peculiar: o território conceituai e o dicionário utilizados provêm de uma declarada fonte freireana. Sabemos que a chamada Igreja progressista esteve, desde o início, impulsionando a formação daquelas escolas e que Paulo Freire foi o grande inspirador dos programas pedagógicos adotados e empreendidos, o que significou o patrocínio de uma determinada concepção de "oprimido" e de "educação libertadora". Nessa relação intelectuais-massas, parece elaborar-se - é o que podemos provisoriamente extrair da leitura do material compilado - um campo representacional das classes populares que penetra e constitui a própria representação que essas classes farão de si mesmas. Essa identidade se consolida e

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se estabiliza ao ponto de que aquilo que, no início, é uma construção conceituai, portanto, uma proposição cuja validade está na sua permeabilidade à refutação, torna-se "real" para os "oprimidos", constituindo uma espécie de "regime de verdade", que fornece as fronteiras do admissível, do pronunciável, do qualificável. Esses "oprimidos", agora constituídos, ao solicitarem apoio institucional para seus programas educativos, ratificam essa imagem, promovem a um nível mais elevado e mais convicto sua identidade "popular" (e quanto "mais popular", mais nele reside o potencial liberatório!) e recebem de volta a corroboração dessa identidade pelas agências, que só apóiam tais projetos porque neles essa "ficha de identidade popular" foi comparada com o "texto original", a partir do que, e só a partir do que, eles se qualificam. Um efeito "especular", que reputamos de grande interesse para a pesquisa sobre a produção de imagens de objetos "pedago­gizáveis".

Se alongássemos um pouco mais essa trilha de reflexão, poderíamos nos perguntar em que medida os intelectuais, ao cumprirem sua função de propor à sociedade (ou às classes com as quais se sentem de uma forma ou de outra identificados) modelos de auto-interpretação (desse social ou dessas classes), não terminam por produzir um efeito de poder extremamente sutil, que consiste em produzir "realidades", a partir de uma lógica de tipo identitária que permite conceptualizar, nomear e controlar os objetos que "apareçam" no horizonte social?

Parece-me, em primeiro lugar, que nossa tradição intelectual não primou por enxergar no ."povo" elementos de uma qualificação positiva. Lembremos, muito brevemente, as "teorias" de um Oliveira Viana, descrente da nossa possibilidade civilizacional em função da presença negra em nossa cultura e composição social; mesmo o rompimento promovido por um Gilberto Freyre que tendia a sobrevalorizar a tradição, como condição de, "a seu modo"(!), ser moderno, não deixava de sustentar a excelência das formas de socialidade arcaicas. Ou então um Alberto Torres, que, embora se distanciando da cultura

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preconceituosa de sua época a respeito do povo, brada contra a incompetência de nossas elites na promoção de uma renovação nacional, depositando sua crença numa solução messiânica, portanto, distante do povo. Esse mesmo temor de que o povo constitui uma ameaça à ordem liberal, já que presa fácil das ideologias comunistas, justificaria, em um Francisco Campos, as formas autoritárias de poder. Mesma coisa encontraremos, anos depois, na Doutrina da Segurança Nacional propugnada pela Escola Superior de Guerra. Mas vamos encontrar também, à esquerda, um Carlos Estevam Martins, orgânico do CPC da UNE, reduzindo a chamada "cultura popular" a uma simples forma de alienação e conformismo. A própria vanguarda política, representada pelas correntes da luta armada, mostrava, de fato, um soberano desprezo pelas massas, eternamente necessitadas de tutela política e de condução pedagógica, repetindo, na forma mais eloqüente do pensamento autoritário, a frase célebre de um Antônio Carlos: "façamos a revolução antes que o povo a faça!". Ainda do lado do pensamento de pretensões liberatórias, podemos até enxergar num Paulo Freire o mesmo entendimento negativo: povo que hospeda seu opressor, consciência "ingênua", carente de "trânsitos" para formas mais elevadas de compreensão do tipo "crítica" ... são apenas alguns poucos, mas ilustrativos exemplos do desprestígio de que gozaram as "classes populares" entre nós.

Como incitação ao debate, apelaríamos para o· principal e polemicíssimo crítico cultural alemão contemporâneo, Hans Magnus Enzensberger, que, num ensaio de seu livro "Mediocridade e Loucura", faz o elogio do analfabetismo. Logo de início, o ensaista chama a atenção para o fato de que o "analfabeto nunca está presente quando a discussão gira em tomo dele", e louva-o em sua "astúcia e seu aguçado sentido auditivo", mas reconhece também a "estreiteza de seus horizontes, suas ilusões, teimosias e esquisitices". E defende a tese de que "foi o analfabeto que inventou a literatura. Suas formas elementares, do mito à canção de ninar, do conto de fadas ao canto, da oração à charada, são todas mais antigas que a escrita. Sem a transmissão oral, não

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existiria a poesia e, sem os analfabetos, não existiriam livros". Enzensberger localiza, corretamente, a origem do fenômeno da "vontade de alfabetizar" no Esclarecimento. Os iluministas acreditavam que a imaturidade do povo se devia não apenas à sua segregação política ou sila exploração econômica, mas também à sua ignorância. Quase num piscar de olhos, o conceito de Iluminismo foi substituído pelo de educação, a partir do que seria dificil contestar um Joseph Meyer, importante editor alemão do século XIX, que inventou o slogan "A educação liberta!", sendo que a democracia social elevou este slogan à categoria de exigência política: "cultura para todos", "saber é poder"! Como conseqüência, já em 1880, o índice de anafalbetismo na Alemanha tinha caído abaixo da marca de 1 %. Assim, diz o crítico, "os povos aprenderam a ler e a escrever não por vontade própria, mas porque se viram obrigados a tanto. A emancipação deles foi, simultaneamente, uma cassação de seus direitos". A partir de então, o ato de aprender passou a ser controlado pelo Estado e suas agências. O que estava em jogo, portanto, era um tipo completamente diferente do "progresso do espírito", a domes­ticação dos analfabetos, essa "classe inferior de pessoas", acabando com a imaginação e a teimosia deles. Que o triunfo da educação popular coincida com a expressão máxima do colonialismo não nos deve surpreender, uma vez que ambos os processos tratavam da mesma coisa: submeter à "irracionalidade", conformar o espontâneo aos limites da Razão e do pensamento analítico. Não é, portanto, simples coincidência histórica que iluminismo e terror, esclarecimento e perseguição tenham feito companhia um ao outro por períodos tão longos.

Cito a tese de Enzensberger não como subsídio à defesa do analfabetismo, mas para tentar suscitar uma espécie de "efeito de estranhamento", para que possamos entender que as coisas, refiro­me à relação entre educação, cidadania, democracia, transformação social, tais como sustentadas pelas experiências de escolas comunitárias, não são algo direta e inferível umas das outras.

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Aliás, Miguel Arroyo já mostrava, num livro organizado por Esther Buffa, que a relação entre política e educação era um mote originalmente liberal, não apenas conseqüência de um certo ideário humanista, mas sobretudo de um desejo fremente de higienizar as massas via educação. Higienização num sentido moral, mas também como medida pública de apelo à ordem da razão. Mas Arroyo mostra a contra-prova, recordando os mo­vimentos sociais no Brasil dos anos 80, conduzidos por atores sociais, tornados políticos, sem que a escola tivesse nenhum efeito decisivo nestas ações de penetração e conquista de visibilidade no interior do espaço público. E não só no Brasil: as grandes mobilizações públicas do XIX, as pungentes lutas sociais travadas na Europa na segunda metade daquele século, simplesmente não podem ser debitadas na conta da educação popular. Uma das grandes líderes femininas da Comuna de Paris (1871 ), Louise Michel - num tempo em que às mulheres estava reservada uma educação limitante e domesticizante - não tinha nenhuma formação escolar.

Claro que, na tese de Enzensberger, pode-se detectar um certo viés do romantismo alemão, ou mesmo um sentimento anti­iluminista bastante próximo às posições da dupla Adorno­Horkheimer, posições contra as quais temos reservas. Além do mais, poderíamos dizer que o lugar de onde fala o crítico, e os instrumentos que utiliza para formular suas objeções ao programa de cassação de direitos exercido pela alfabetização das massas, é aquele lugar permitido e franqueado através da passagem pela escola ou por instituições que desenvolvem o argumento analítico; posso dizer ainda que, até para compreender Enzensberger e suas críticas ao programa iluminista de domesticação, eu preciso ser ... domesticado! Ou seja: preciso do Iluminismo.

Todas essas teses, no entanto, nos mostram algo de interesante: que no subsolo de nossa vontade de educar habita um fantasma. Este fantasma chamado "povo", espécie de alter-ego das elites intelectuais, como diz Rubem Cézar Fernandes. Mostra também que não há programa educativo que não seja precedido de

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wna formulação imaginária (não quer dizer "imaginosa"), da invenção de seu objeto, atribuindo-lhe forma e substância. Ora, o caso que tentamos avaliar a partir das experiências de escolas comwtltárias, não é de forma algwna excepcional. Lá nos deparamos com wn Discurso que formula a consciência do outro em termos negativos (consciência ingênua ou o que valha), mas também virtualmente positivos ( wna vez re-educada, ela porta a possibilidade da redenção). Em todo caso, o intelectual-educador aparece como arquiteto das significações e oferece os elementos de constituição de subjetividades que permitirão a esse "outro" interpretar a si mesmo, enxergar-se, existir e mover-se no mundo. Resta saber, para interesse de nossa pesquisa, como esses temas e essas significações atribuídas são re-elaboradas, recepcionadas e devolvidas nwn intrincado jogo de negociações sociais de imagens.

De qualquer forma, essas projeções imagísticas ou repre­sentacionais realizadas por wna intelectualidade a que, com muita freqüência, se atribui o papel de educador social, representam ações poderosíssimas que assinalam a existência de wn mundo fraturado e em busca de identidades e reencontros. Mas não há como escapar, a não ser abdicando da tarefa humana de atribuir significado. Portanto, desistindo da condição hwnana.

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ARQUIVOS CONSULTADOS :

» CENTRO JOSUÉ DE CASTRO (RECIFE). » CENTRO LUIZ FREIRE (OLINDA).

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