Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

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Notas de Mecˆ anica Quˆ antica Carlos A. R. Herdeiro Departamento de F´ ısica Faculdade de Ciˆ encias da Universidade do Porto 2007-08 v4.0

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Notas deMecanica Quantica

Carlos A. R. Herdeiro

Departamento de Fısica

Faculdade de Ciencias da Universidade do Porto

2007-08

v4.0

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Agradecimentos

E um prazer agradecer a Professora Renata Arala Chaves, ao Professor Eduardo Lage e

ao Professor Joao Lopes dos Santos a oportunidade de leccionar as cadeiras de Mecanica

Quantica I e Mecanica Quantica II como Professor Auxiliar Convidado, durante os anos

lectivos 2003/2004 a 2006/2007, no Departamento de Fısica da Faculdade de Ciencias da

Universidade do Porto. Uma palavra muito especial a Professora Fatima Mota pelo apoio

sempre presente.

Junho de 2007

Carlos Herdeiro

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(Alguma) Cronologia relacionada com o Nascimento da Mecanica Quantica

1678 - Christian Huygens publica o seu livro Traite de la lumiere onde defendia a natureza

ondulatoria da luz;

1687 - Isaac Newton publica o seu tratado Philosophiae Naturalis Principia Mathematica

onde expoe as suas leis da mecanica (hoje dita mecanica classica);

1703 - Newton publica o seu livro sobre a luz Opticks, onde defende que a luz e um fluxo

de pequenos corpusculos;

1803 - Thomas Young anuncia numa ‘Bakerian Lecture’ intitulada Experiments and Cal-

culations Relative to Physical Optics a observacao da difraccao da luz, provando assim

que a luz tem propriedades ondulatorias e portanto validando a tese de Huygens e

invalidando a de Newton;

1873 - James Maxwell publica a sua obra A Treatise on Electricity and Magnetism onde

apresenta as suas equacoes do campo electromagnetico e mostra que a sua teoria

preve a existencia de ondas electromagneticas viajando ‘a velocidade da luz’;

1887 - Heinrich Hertz produz e detecta ondas electromagneticas, validando a teoria de

Maxwell; descobre tambem, acidentalmente, o efeito fotoelectrico;

1900 - Max Planck explica a radiacao de corpo negro usando a quantificacao de energia e

introduzindo uma nova constante h (hoje dita constante de Planck). A sua descoberta

foi apresentada num encontro da Sociedade Alema de Fısica, em 14 de Dezembro de

1900, a data de nascimento da Mecanica Quantica;

1905 - Albert Einstein sugera a quantificacao da radiacao para explicar algumas carac-

terısticas do efeito fotoelectrico descobertas em 1900 por Philip Lenard;

1911 - Ernest Rutherford propoe o modelo nuclear do atomo baseado nas experiencias de

scattering de partıculas α de Hans Geiger e Ernest Marsden;

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1913 - Niels Bohr propoe o seu modelo do atomo de hidrogenio num artigo intitulado

Sobre a constituicao de atomos e moleculas;

1916 - Robert Milikan verifica a equacao de Einstein relativa ao efeito fotoelectrico;

1923 - Arthur Compton explica o scattering de raios x por electroes como uma colisao

entre electroes e fotoes verificando experimentalmente as suas conclusoes;

1924 - Louis De Broglie propoe que o electrao tenha ondas electronicas associadas com

comprimento de onda h/p;

1925 - Erwin Schrodinger propoe a sua equacao de onda para descrever as ondas associ-

adas a materia;

1925 - Werner Heisenberg inventa a mecanica de matrizes para descrever fenomenos quanticos;

1925 - Wolfgang Pauli apresenta o seu princıpio de exclusao;

1927 - Heisenberg formula o princıpio da incerteza;

1927 - Clinton Davisson e Lester Germer e independentemente, George Thomson, obser-

vam difraccao devido a ondas electronicas;

1928 - Paul Dirac desenvolve a mecanica quantica relativista e preve a existencia de

positroes, descobertos em 1932 por Carl Anderson;

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“Quem nao se sentiu chocado com a teoria quantica

nao pode te-la compreendido.”

Niels Bohr

(1885-1962),

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Conteudo

I Problemas exactamente soluveis e quantificacao canonica de

sistemas classicos 1

1 Topicos de Mecanica Classica 2

1.1 Mecanica Newtoniana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2

1.2 Mecanica Lagrangeana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

1.2.1 Equacoes de Euler-Lagrange . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

1.2.2 Teorema de Noether . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1.3 Mecanica Hamiltoniana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

1.3.1 O Espaco de Fase e os Parentesis de Poisson . . . . . . . . . . . . . 16

1.3.2 A Equacao de Hamilton-Jacobi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

1.4 Sumario . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

2 O perıodo de Transicao 25

2.1 A luz: ondas versus corpusculos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26

2.1.1 Experiencias de Young (1801): ondas triunfam . . . . . . . . . . . . 28

2.1.2 A radiacao do corpo negro, Planck e o quantum (1900) . . . . . . . 33

2.1.3 O efeito fotoelectrico (Einstein 1905) . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

2.2 Materia: corpusculos versus ondas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40

2.2.1 O Espectro do atomo de Hidrogenio . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

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2.2.2 O modelo atomico de Bohr (1913) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

2.2.3 As ondas electronicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48

2.3 A dualidade onda/corpusculo e a interpretacao probabilıstica da Mecanica

Quantica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

2.3.1 Experiencia de Young com luz de baixa intensidade . . . . . . . . . 51

2.3.2 O princıpio da incerteza de Heisenberg . . . . . . . . . . . . . . . . 55

2.3.3 Experiencia com a polarizacao da luz . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

2.4 A aplicabilidade da Mecanica Quantica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

2.5 Sumario . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

3 A equacao de Schrodinger 63

3.1 Descricao Quantica de uma partıcula livre - Trem de Ondas . . . . . . . . 64

3.1.1 Sobreposicao discreta de ondas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

3.1.2 Sobreposicao contınua de ondas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

3.2 Partıcula em potenciais independentes do tempo . . . . . . . . . . . . . . . 71

3.2.1 Caracterısticas gerais num potencial em escada . . . . . . . . . . . 73

3.2.2 Salto de potencial (E > V0) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76

3.2.3 Salto de potencial (E < V0) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78

3.2.4 Barreira de potencial (E > V0) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

3.2.5 Barreira de potencial (E < V0) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83

3.2.6 Poco de potencial de profundidade finita (E < 0) . . . . . . . . . . 88

3.2.7 Poco de potencial de profundidade infinita . . . . . . . . . . . . . . 90

3.3 Evolucao de um trem de ondas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

3.3.1 Trem de ondas Gaussiano livre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92

3.3.2 Trem de ondas incidente num salto de potencial (E < V0) . . . . . . 93

3.4 Sumario . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

4 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica 97

4.1 Funcoes de onda e operadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

4.1.1 Estrutura de F e produto escalar em F . . . . . . . . . . . . . . . . 98

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4.1.2 Bases de F . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

4.1.3 Operadores Lineares a actuar em F . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103

4.2 A notacao de Dirac . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106

4.2.1 Produto escalar e espaco dual a E . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

4.2.2 Accao de operadores lineares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108

4.2.3 O operador adjunto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

4.2.4 A operacao adjunta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

4.2.5 Notacao de Dirac numa dada base . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

4.2.6 Valores proprios e vectores proprios de um operador . . . . . . . . . 113

4.2.7 Observaveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

4.3 Os postulados da Mecanica Quantica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

4.4 Quantificacao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119

4.4.1 Variaveis compatıveis, incompatıveis e C.C.O.C. . . . . . . . . . . . 119

4.4.2 Os operadores X e P . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

4.4.3 Regras de Quantificacao canonica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126

4.4.4 Comentarios sobre a evolucao de um sistema quantico . . . . . . . . 128

4.4.5 Evolucao do valor medio de uma variavel . . . . . . . . . . . . . . . 129

4.5 Mecanica Quantica Estatıstica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

4.5.1 O operador de densidade para um estado puro . . . . . . . . . . . . 133

4.5.2 O operador de densidade para uma mistura estatıstica de estados . 134

4.5.3 O operador de evolucao e a evolucao de um estado puro . . . . . . . 137

4.6 Sumario . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

5 Exemplos de Quantificacao Canonica 141

5.1 Oscilador Harmonico Quantico em Uma Dimensao . . . . . . . . . . . . . . 141

5.1.1 O espectro de energia do Oscilador Harmonico Quantico . . . . . . 142

5.1.2 As funcoes de onda para o oscilador harmonico . . . . . . . . . . . 146

5.1.3 Resolucao directa da equacao de Schrodinger . . . . . . . . . . . . . 149

5.1.4 Valor medio e desvio padrao de x e p . . . . . . . . . . . . . . . . . 153

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5.2 O Oscilador Harmonico Quantico em Duas Dimensoes . . . . . . . . . . . . 155

5.2.1 Quantoes lineares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155

5.2.2 Quantoes circulares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156

5.2.3 Funcoes de Onda para quantoes circulares . . . . . . . . . . . . . . 158

5.3 O problema de Landau . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160

5.4 Sumario . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165

6 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio 167

6.1 Operadores de momento angular orbital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167

6.2 Os Harmonicos Esfericos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

6.3 Partıcula numa forca central . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176

6.4 O atomo de hidrogenio (sem spin) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 180

6.5 O atomo de hidrogenio (sem spin) num campo magnetico . . . . . . . . . . 189

6.5.1 Deducao dos varios termos do Hamiltoniano . . . . . . . . . . . . . 189

6.5.2 Interpretacao dos varios termos do Hamiltoniano . . . . . . . . . . 191

6.5.3 Comparacao dos varios termos no Hamiltoniano . . . . . . . . . . . 195

6.5.4 Espectro de Energias aproximado: efeito Zeeman . . . . . . . . . . 196

6.6 Sumario . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202

7 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger 205

7.1 Alguns pocos de potencial exactamente soluveis . . . . . . . . . . . . . . . 206

7.1.1 Estados Ligados em Pocos infinitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207

7.1.2 Densidade de estados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215

7.1.3 Estados Ligados em Pocos finitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 216

7.2 Metodo algebrico para potenciais com forma invariante . . . . . . . . . . . 220

7.2.1 O superpotencial e potenciais parceiros . . . . . . . . . . . . . . . . 220

7.2.2 Hierarquia de Hamiltonianos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 226

7.2.3 Potenciais de forma invariante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 228

7.2.4 Potenciais de forma invariante relacionados por translacao . . . . . 229

7.3 Sumario . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235

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II Metodos de aproximacao e Spin 237

8 A aproximacao WKB 238

8.1 O metodo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239

8.2 Interpretacao da validade da aproximacao . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241

8.3 Formulas de ligacao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 242

8.4 Aplicacao ao calculo de estados ligados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 246

8.5 Aplicacao ao calculo do factor de transmissao . . . . . . . . . . . . . . . . 250

8.6 Sumario . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 252

9 Teoria Geral do Momento Angular e Spin 253

9.1 Representacoes da algebra do momento angular . . . . . . . . . . . . . . . 254

9.2 Emergencia Fısica do Spin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265

9.3 Postulados da teoria de Pauli . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 273

9.4 Descricao nao relativista de partıculas de spin 12

. . . . . . . . . . . . . . . 274

9.4.1 Juntando os graus de liberdade de spin aos orbitais . . . . . . . . . 276

9.5 Adicao de momento angular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283

9.5.1 Calculo dos vectores proprios comuns a J2 e a Jz . . . . . . . . . . 287

9.6 Sumario . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 291

10 Teoria da Difusao 293

10.1 Formalismo para descrever processos de difusao . . . . . . . . . . . . . . . 296

10.1.1 Definicao da seccao eficaz de difusao . . . . . . . . . . . . . . . . . 296

10.1.2 Estados estacionarios de difusao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 298

10.1.3 Relacao entre amplitude e seccao eficaz de difusao . . . . . . . . . . 300

10.2 Equacao integral de difusao e o metodo de Born . . . . . . . . . . . . . . . 302

10.2.1 Escolha da funcao de Green e de Φ0 . . . . . . . . . . . . . . . . . . 304

10.2.2 A aproximacao de Born . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 306

10.2.3 Interpretacao da aproximacao de Born . . . . . . . . . . . . . . . . 308

10.2.4 A aproximacao de Born para potenciais centrais . . . . . . . . . . . 309

10.3 Metodo das ondas parciais para a difusao por um potencial central . . . . . 316

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10.3.1 Ondas esfericas versus ondas planas para uma partıcula livre . . . . 317

10.3.2 Deducao da forma explıcita das ondas esfericas livres . . . . . . . . 319

10.3.3 Propriedades das ondas esfericas livres . . . . . . . . . . . . . . . . 323

10.3.4 Ondas parciais num potencial V (r) . . . . . . . . . . . . . . . . . . 328

10.4 Difusao Inelastica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 336

10.4.1 Seccoes eficazes de difusao elastica e de absorcao . . . . . . . . . . . 337

10.4.2 Seccao eficaz total e o teorema optico . . . . . . . . . . . . . . . . . 339

10.5 Sumario . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 340

11 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo 343

11.1 Teoria das perturbacoes estacionarias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 344

11.1.1 Perturbacao de um nıvel nao degenerado . . . . . . . . . . . . . . . 347

11.1.2 Perturbacao a um nıvel degenerado . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351

11.1.3 Perturbacoes X, X2 e X3 a um potencial harmonico . . . . . . . . 352

11.1.4 Estrutura fina do atomo de Hidrogenio . . . . . . . . . . . . . . . . 357

11.2 Teoria das Perturbacoes dependentes do tempo . . . . . . . . . . . . . . . 368

11.2.1 Formulacao do problema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 368

11.2.2 Solucao aproximada da equacao de Schrodinger . . . . . . . . . . . 369

11.2.3 Aplicacao a uma perturbacao sinusoidal ou constante . . . . . . . . 373

11.2.4 Probabilidade de transicao via operador de evolucao . . . . . . . . . 385

11.3 Sumario . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 395

12 Sistemas de partıculas identicas 397

12.1 Origem do Problema: a degenerescencia de troca . . . . . . . . . . . . . . 397

12.2 Operadores de permutacao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 400

12.2.1 Sistema de duas partıculas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 401

12.2.2 Sistema de tres partıculas e generalizacao para N partıculas . . . . 405

12.3 O postulado de simetrizacao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 410

12.3.1 Levantamento da degenerescencia de troca . . . . . . . . . . . . . . 411

12.3.2 Observaveis e evolucao temporal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 416

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12.4 Consequencias do postulado de simetrizacao . . . . . . . . . . . . . . . . . 417

12.4.1 Diferencas entre bosoes e fermioes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 417

12.4.2 Efeitos de interferencia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 420

12.4.3 Difusao de duas partıculas identicas com spin . . . . . . . . . . . . 424

12.5 Atomos com varios electroes - A tabela periodica . . . . . . . . . . . . . . 428

12.5.1 Nıveis de energia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 431

12.5.2 Configuracoes electronicas e princıpio da exclusao de Pauli . . . . . 432

12.6 Sumario . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 435

13 Introducao a Mecanica Quantica Relativista 437

13.1 A teoria de Klein-Gordon . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 437

13.2 Os problemas com a teoria de Klein-Gordon . . . . . . . . . . . . . . . . . 439

13.2.1 Energias negativas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 440

13.2.2 Probabilidades negativas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 441

13.2.3 Inexistencia de spin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 444

13.3 A teoria de Dirac . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 448

13.3.1 Os sucessos da equacao de Dirac . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 450

13.4 Sumario . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 452

III Topicos Avancados e Modernos 453

14 Formulacao de integrais de caminho da Mecanica Quantica 454

15 Mecanica Quantica Super-simetrica 455

16 Introducao a teoria da Informacao Quantica 457

IV Apendices 458

A Geometria da Transformada de Legendre 459

B Princıpio do tempo mınimo de Fermat 463

B.1 Reflexao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 463

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B.2 Refraccao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 465

C Analise de Fourier 467

C.1 Series de Fourier . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 467

C.1.1 Representacao em termos de ondas planas . . . . . . . . . . . . . . 469

C.1.2 O Espaco de Hilbert e a Igualdade de Bessel-Parseval . . . . . . . . 470

C.2 Integrais de Fourier e Transformadas de Fourier . . . . . . . . . . . . . . . 471

C.2.1 A formula de Parseval-Plancherel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 472

C.2.2 Quantidades estatısticas e a relacao de incerteza . . . . . . . . . . . 474

Page 17: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

Parte I

Problemas exactamente soluveis e quantificacao canonica de

sistemas classicos

Page 18: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

CAPITULO 1

Topicos de Mecanica Classica

1.1 Mecanica Newtoniana

O principal objectivo da mecanica classica e descrever e explicar o movimento de objectos

macroscopicos. Tal descricao e feita atraves do conceito de trajectoria, que em mecanica

nao relativista e um mapa

Tp(t) : R −→ R3

t −→ ~x(t), (1.1.1)

para cada ponto p do objecto em questao - figura 1.1. Em muitos problemas, a dinamica de

corpos rıgidos e reduzida, em primeira analise, a dinamica do centro de massa e portanto

a de uma partıcula pontual. Assim sendo, a descricao e explicacao do movimento de uma

partıcula pontual e o problema base da mecanica classica.

Em 1686-87, Isaac Newton (1642-1727) apresentou na sua principal obra Philosophiae

Naturalis Principia Mathematica as leis da Mecanica Newtoniana e em particular a sua

equacao do movimento (2a lei de Newton) que relaciona a forca com a variacao da quanti-

dade de movimento

~F =d~p

dt, ~p ≡ m~v ≡ m

d~x

dt. (1.1.2)

Page 19: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

1.1 Mecanica Newtoniana 3

Tp(t1)

Tp(t2)

x

y

z

Figura 1.1: A trajectoria e um mapa da linha real para R3.

Se a massa m e fixa,

~F = md2~x

dt2≡ m~x . (1.1.3)

Exemplo 1 : Oscilador Harmonico (ex: pequenas oscilacoes de um pendulo, mola,...)

Um oscilador harmonico e um sistema em que a forca e proporcional ao deslocamento

a partir de um ponto de equilıbrio e dirigida para o ponto de equilıbrio (Lei de Hooke).

Rotulando o ponto de equilıbrio como ~x = 0, temos

~F = −k~x . (1.1.4)

Consideremos o oscilador harmonico em uma dimensao, com uma massa m e uma constante

de oscilador k. Pela segunda lei

x+k

mx = 0 , (1.1.5)

que e uma equacao diferencial ordinaria de segunda ordem com solucao

x(t) = A cos

(√

k

mt+ φ0

)

, (1.1.6)

de onde se le a frequencia de oscilacao: ω =√

k/m. A e φ0 sao constantes de integracao

interpretadas como amplitude e fase inicial do movimento que fisicamente sao determinadas

pelas condicoes iniciais.

Exemplo 2 : Problema de Larmor O problema de Larmor e o problema de uma

partıcula de massa m e carga electrica q num campo magnetico constante que tomamos

como sendo ~B = Bez.

Page 20: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4 Topicos de Mecanica Classica

A forca que uma partıcula sente devido a interaccao com o campo electromagnetico e

dada pela forca de Lorentz

~F = q( ~E + ~v × ~B) . (1.1.7)

Aplicando ao nosso caso e usando a segunda lei de Newton obtemos a equacao do movi-

mento (~x = (x, y, z))

~x = ωc~x× ez⇔

x = ωcy

y = −ωcx

z = 0

d3x

dt3+ ω2

c x = 0

d3y

dt3+ ω2

c y = 0

z = 0

, (1.1.8)

onde definimos a frequencia ciclotronica e

ωc =qB

m. (1.1.9)

As equacoes de terceira ordem sao de segunda ordem nas velocidades e equivalentes a

osciladores harmonicos. Logo a solucao e

x = A cos (ωct+ φ0)

y = A cos(

ωct+ φ0

)

z = z0 + vzt

, (1.1.10)

onde A, A, φ, φ, z0, vz sao constantes de integracao. As equacoes de segunda ordem em

(1.1.8) relacionam as constantes de integracao

A = A , φ0 = φ0 +π

2. (1.1.11)

Como tal a solucao final e

x(t) = x0 +A

ωcsin (ωct+ φ0)

y(t) = y0 +A

ωc

cos (ωct+ φ0)

z = z0 + vzt

. (1.1.12)

Assim, x(t) e y(t) obedecem a

(x(t)− x0)2 + (y(t)− y0)

2 =

(

A

ωc

)2

, (1.1.13)

Page 21: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

1.2 Mecanica Lagrangeana 5

~B

x

y

z

Figura 1.2: Trajectorias no problema de Larmor. Apenas a trajectoria mais a direita temvz 6= 0.

e interpretamos as trajectorias projectadas no plano x-y como sendo circunferencias com

centro em (x0, y0) e raio Am/qB - figura 1.2. Lemos tambem que a frequencia das orbitas

e a frequencia ciclotronica.

Nota: Este movimento corresponde a dois osciladores harmonicos nas direccoes x e y

em oposicao de fase.

1.2 Mecanica Lagrangeana

Existem algumas forcas, ditas conservativas, que podem ser derivadas de um potencial,

atraves de:1

~F = −∇V ⇔ ∇× ~F = 0 . (1.2.1)

Dada uma forca, a ultima equacao pode ser utilizada como teste para ver se a forca e

conservativa. Por exemplo, para a forca do exemplo 1,

~F = −kx ⇔ V (x) =kx2

2. (1.2.2)

Ao desenharmos o potencial - figura 1.3 - ficamos com uma ideia da dinamica usando a

nossa intuicao gravitacional: a partıcula quer descer o potencial e ‘custa-lhe’ a subi-lo.

Como a energia total da partıcula e conservada

Etotal = Ecinetica + Epotencial =1

2mv2 +

1

2kx2 , (1.2.3)

1A implicacao da direita para a esquerda nao e sempre valida e depende de consideracoes topologicas,nomeadamente a co-homologia de de Rham da variedade. Para a generalidade das aplicacoes em Fısicaelementar, onde a topologia do espaco-tempo e trivial, pode-se considerar a equivalencia valida em geral.

Page 22: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6 Topicos de Mecanica Classica

x

E

V(x)

a−a

Figura 1.3: Potencial do oscilador harmonico; uma partıcula com energia E oscila entrepontos −a e a tais que V (−a) = V (a) = E.

q1(t)

q2(t)

qreal(t)

(qi, ti)

(qf , tf )

Figura 1.4: Tres percursos alternativos entre o ponto qi no instante ti e qf no instante tf . A

trajectoria real, qreal(t) e um extremo da accao S[q(t)]tfti . Se, por exemplo, for um mınimo,

S[qreal(t)]tfti < S[q1(t)]

tfti , S[q2(t)]

tfti .

uma partıcula com energia total E sobe ate uma altura do potencial dada por V = E, onde

a velocidade se anula; a velocidade e maxima em x = 0, onde toda a energia e cinetica.

Dado um qualquer potencial, correspondendo a uma forca, podemos de imediato deduzir

um conjunto particular de trajectorias fısicas, i.e. solucoes das equacoes do movimento:

sao as trajectorias constantes, correspondentes aos extremos do potencial. Os extremos

sao definidos por

∇V (x0) = 0 ⇔ ~F = 0 em x0 , (1.2.4)

o que significa que se a partıcula estiver inicialmente em repouso em x0 aı ficara. No caso

do oscilador harmonico a unica solucao deste tipo e quando a partıcula esta em repouso

na posicao de equilıbrio, que e trivial. Mas origina a seguinte pergunta:

‘Dado que estas trajectorias extremizam uma quantidade escalar (o potencial), havera

uma quantidade escalar mais geral extremizada por todas as trajectorias?’

Page 23: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

1.2 Mecanica Lagrangeana 7

Isto e consideremos um movimento com inıcio em ti na posicao qi e com fim em tf

na posicao qf , como na figura 1.4.2 Existe uma quantidade que a trajectoria verdadeira,

qreal(t), extremize comparativamente a todas as outras trajectorias, como q1(t) ou q2(t)? Se

tal quantidade existir nao e uma funcao, mas sim uma ‘maquina’ que transforma funcoes -

como a trajectoria - em numeros (note que uma funcao transforma numeros em numeros),

denominada funcional :

S[. . .]tfti : F −→ R

q(t) −→ S[q(t)]tfti

. (1.2.5)

F e o espaco de todas as funcoes de variavel real. Um dos princıpios mais importantes em

toda a fısica e o princıpio da accao mınima3 ou princıpio de Hamilton:

Num sistema fısico com Lagrangeano L(q, q, t), as trajectorias reais, qreal(t), sao as que

extremizam o funcional accao, definido como

S[q(t)]tfti =

∫ tf

ti

dtL(q, q, t) , (1.2.6)

onde o Lagrangeano se define como a diferenca entre a energia cinetica, T (q) e a energia

potencial, V (q, t)4

L(q, q, t) ≡ T (q)− V (q, t) . (1.2.7)

Para o princıpio de Hamilton fazer sentido tem que dar origem a um conjunto de

equacoes do movimento equivalentes as da mecanica Newtoniana. Essas equacoes chamam-

se Equacoes de Euler-Lagrange, que agora deduzimos.

1.2.1 Equacoes de Euler-Lagrange

Os extremos de uma funcao sao encontrados requerendo que a derivada da funcao seja

zero. Analogamente, os extremos de um funcional encontram-se requerendo que a variacao

do funcional se anule. Variar um funcional consiste em comparar o valor do funcional para

2E convencional utilizar a variavel ‘q’ para designar um sistema arbitrario de coordenadas, por issodenominadas coordenadas generalizadas.

3Embora esta designacao seja comum, as trajectorias reais nao sao sempre um mınimo da accao, massim um extremo.

4Curiosidade: A designacao de energia cinetica por T e da energia potencial por V tem origem naspalavras alemas tatkraft e verk, que significam, respectivamente ‘energia’ e ‘potencial’.

Page 24: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

8 Topicos de Mecanica Classica

funcoes ligeiramente distintas, mas mantendo fixos os pontos inicial e final da funcao, que

no nosso caso e a trajectoria. Denotando esta operacao de variacao por ‘δ’ obtemos

δS = S[q(t) + δq(t)]tfti − S[q(t)]

tfti =

∫ tf

ti

dt

[

∂L∂qδq +

∂L∂qδq

]

, (1.2.8)

e assumindo que a operacao de variacao comuta com diferenciacao,

δq = δdq

dt=

d

dtδq , (1.2.9)

de onde, integrando por partes

δS =

∫ tf

ti

dt

[

∂L∂q− d

dt

∂L∂q

]

δq +∂L∂qδq∣

tf

ti. (1.2.10)

O ultimo termo e zero, pois corresponde a variacao da trajectoria nos pontos inicial e final,

que assumimos ser zero. Como queremos garantir que δS = 0 para uma variacao arbitraria,

o integrando do termo restante tem de ser zero, isto e,

d

dt

∂L∂q− ∂L∂q

= 0 , (1.2.11)

para cada coordenada q. Estas sao as equacoes de Euler-Lagrange (Joseph Lagrange 1736-

1813, Leonhard Euler 1707-1783). Usando (1.2.7) estas equacoes escrevem-se

d

dt

∂L∂q

= −∂V∂q

⇔ d

dt

∂L∂~q

= ~F . (1.2.12)

Usamos ~q para denotar a possibilidade de haver varios graus de liberdade e correspondentes

coordenadas. Para uma partıcula pontual num potencial V (~q),

L =1

2m~q

2 − V (~q) , (1.2.13)

e (1.2.12) reduz-se a ~F = m~q, i.e. a segunda lei de Newton. Em geral define-se o momento

canonico conjugado a variavel ‘q’ como ‘p’

~p ≡ ∂L∂~q

. (1.2.14)

Deste modo, com toda a generalidade, (1.2.12) implica

~F =d

dt~p , (1.2.15)

Page 25: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

1.2 Mecanica Lagrangeana 9

mostrando que o formalismo Lagraneano reproduz o Newtoniano.

Exemplo 1, Versao b) : Tratamos agora o oscilador harmonico no formalismo La-

grangiano. De (1.2.2) vemos facilmente que o Lagrangeano e

L =1

2mx2 − 1

2kx2 , (1.2.16)

e as equacoes de Euler-Lagrange dao

x+k

mx = 0 , (1.2.17)

em concordancia com (1.1.5).

Exemplo 2, Versao b) : Para tratarmos a versao Lagrangeana do problema de Lar-

mor, comecemos por discutir se existe um potencial para a forca de Lorentz. Recordemos

as equacoes de Maxwell (no sistema internacional de unidades)

(i) ∇ · ~B = 0 (ii) ∇ · ~E =ρ

ǫ0

(iii) ∇× ~E = −∂~B

∂t(iv) c2∇× ~B =

~i

ǫ0+∂ ~E

∂t

. (1.2.18)

Uma condicao necessaria para existir o potencial de uma forca e (1.2.1). Calculemos pois

o rotacional de ~FLorentz

∇× ~FLorentz = q(∇× ~E +∇× (~v × ~B)) , (1.2.19)

ou, usando as equacoes de Maxwell e o facto que

∇× (~α× ~β) = (~β · ∇)~α− ~β(∇ · ~α)− (~α · ∇)~β + ~α(∇ · ~β) , (1.2.20)

obtemos (~v nao e um campo de velocidades; logo as suas derivadas desaparecem)

∇× ~FLorentz = q

(

−∂~B

∂t− (~v · ∇) ~B

)

= −qd~B

dt. (1.2.21)

Assim, em geral, a forca de Lorentz nao e derivavel de um potencial. So o e se o campo

magnetico sentido pela partıcula for constante.

Page 26: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10 Topicos de Mecanica Classica

Ainda assim, e possıvel definir um Lagrangeano cujas equacoes do movimento sao as

de uma partıcula actuada pela forca de Lorentz, mas que nao tem a forma (1.2.7). Para

vermos esse Lagrangeano recordemos os potenciais electromagneticos.

A equacao (i) permite-nos definir o potencial magnetico, ~A,

∇ · ~B = 0 ⇒ ~B = ∇× ~A , (1.2.22)

que usando na equacao de Maxwell-Faraday (iii) nos permite escrever esta como

∇× ( ~E +∂ ~A

∂t) = 0 ⇒ ~E = −∇φ− ∂ ~A

∂t, (1.2.23)

onde φ e o potencial electrostatico. As duas equacoes (1.2.22) e (1.2.23) definem os poten-

ciais electromagneticos (φ, ~A). Note-se que estes nao sao unicos. Isto e, para os mesmos

~E, ~B existe uma classe de equivalencia de diferentes escolhas para φ e ~A a que se chama

“equivalencia de gauge”.

Lema: O Lagrangeano

L =1

2m~x

2+ q~x · ~A(t, ~x)− qφ(t, ~x) , (1.2.24)

reproduz as equacoes do movimento de uma partıcula actuada pela forca de Lorentz.

Demonstracao: As equacoes de Euler-Lagrange para este Lagrangeano

∂L∂xi− d

dt

∂L∂xi

= 0 ⇒ q~x · ∂~A

∂xi− q ∂φ

∂xi− d

dt(mxi + qAi) = 0 . (1.2.25)

Note-se que a derivada em ordem ao tempo e total e que ~A depende do tempo tanto

explicitamente como atraves da dependencia em ~x. Assim a equacao fica

q

(

x1∂A1

∂xi+ x2∂A2

∂xi+ x3∂A3

∂xi− ∂φ

∂xi− ∂Ai

∂t− ∂Ai

∂xj

∂xj

∂t

)

= mxi . (1.2.26)

Usando (1.2.23) reescrevemos a equacao

q

[

v1

(

∂A1

∂xi− ∂Ai

∂x1

)

+ v2

(

∂A2

∂xi− ∂Ai

∂x2

)

+ v3

(

∂A3

∂xi− ∂Ai

∂x3

)

+ ( ~E)i

]

= mxi . (1.2.27)

Tomando como exemplo a componente i = 1 desta equacao, reescrevemo-la como

q[

v2(

∇× ~A)

3− v3

(

∇× ~A)

2+ ( ~E)1

]

= mx1 ⇔ q[

~E + ~v × ~B]

1= mx1 , (1.2.28)

Page 27: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

1.2 Mecanica Lagrangeana 11

e analogamente para as outras componentes, o que demonstra o Lema. (q.e.d.)

Voltemos entao ao problema de Larmor. Podemos escolher os seguintes potenciais

electromagneticos para o problema

~E = 0

~B = Bez

φ = 0

~A =B

2(−y, x, 0)

, (1.2.29)

originando o Lagrangeano

L(~x, ~x, t) =1

2m(x2 + y2 + z2) +

Bq

2(xy − yx) , (1.2.30)

e as equacoes de Euler-Lagrange

Bq

2y − d

dt

(

−Bq2y +mx

)

= 0

−Bq2x− d

dt

(

Bq

2x+my

)

= 0

− d

dt(mz) = 0

x =qB

my

y = −qBmx

z = 0

, (1.2.31)

que sao as mesmas equacoes obtidas no formalismo Newtoniano (1.1.8).

1.2.2 Teorema de Noether

Neste ultimo exemplo obtivemos uma equacao do movimento da forma

d

dt(mz) = 0 ⇒ pz ≡ mz = constante , (1.2.32)

o que significa existir uma quantidade conservada no movimento, pz. A existencia desta

quantidade conservada e consequencia directa de neste problema haver uma simetria na

direccao z e, como tal, de o Lagrangeano nao depender de z. A generalizacao deste re-

sultado e conhecida como Teorema de Noether, (Emmy Noether 1882-1935) um dos mais

importantes em mecanica Lagrangeana:

Teorema (Noether): Se o Lagrangeano de um sistema fısico L(~q, ~q, t) e invariante

pela accao de transformacoes do tipo

~q −→ ~q + δ~q , (1.2.33)

Page 28: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12 Topicos de Mecanica Classica

para algum δ~q, isto e, possui uma simetria na direccao definida por δ~q, entao existe uma

quantidade conservada no movimento desse sistema fısico associada com essa simetria.

Demonstracao: Escolher uma coordenada y tal que as suas linhas integrais sejam

tangentes a δ~q; a invariancia de L significa que L nao depende da coordenada y, ∂L/∂y = 0;

logo, a equacao do movimento de y e

d

dt

(

∂L∂y

)

= 0 ⇒ ∂L∂y≡ py = constante , (1.2.34)

o que significa que py e uma constante do movimento.

1.3 Mecanica Hamiltoniana

Tanto no formalismo Newtoniano como Lagrangeano, as equacoes do movimento sao equacoes

diferenciais de segunda ordem. Quer para implementacao numerica, quer para uso de

metodos analıticos e, em muitas circunstancias, mais conveniente resolver um conjunto de

2n equacoes diferenciais de primeira ordem do que um conjunto de n equacoes diferenciais

equivalentes de segunda ordem. Isto sugere a introducao de um formalismo em que as

equacoes do movimento sao de primeira ordem, que e o caso do formalismo Hamiltoniano

(William Hamilton 1805-1865). Este formalismo e tambem o caminho canonico para a

quantificacao de um sistema fısico.

No formalismo Lagrangeano, as variaveis independentes sao

(q, q, t), (1.3.1)

e o Lagrangeano e visto como uma funcao destas variaveis

L = L(q, q, t) . (1.3.2)

Anteriormente ja introduzimos uma nova variavel que em geral depende de q, que e o

momento canonico conjugado a q,

p ≡ ∂L∂q

. (1.3.3)

Page 29: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

1.3 Mecanica Hamiltoniana 13

E pois natural, para obter equacoes de primeira ordem, tomar como variaveis independentes

(q, p, t), (1.3.4)

e pensar no Lagrangeano como uma nova funcao em que as variaveis independentes sao

estas

L = L(q, q(q, p, t), t) . (1.3.5)

As equacoes de Euler-Lagrange

∂L∂q− d

dt

∂L∂q

= 0 ⇔ p =∂L∂q

, (1.3.6)

tem de ser expressas em termos da funcao L. Note-se que em geral

∂L∂q6= ∂L∂q

, (1.3.7)

pois estas sao derivadas parciais. De facto

∂qL(q, q(q, p, t), t) =

∂L∂q

+∂L∂q

∂qq(q, p, t) ⇔ ∂L

∂q=

∂qL(q, p, t)−p ∂

∂qq(q, p, t) . (1.3.8)

Usando (1.3.6) e notando que o lado direito da ultima equacao ja esta totalmente expresso

em termos de funcoes das novas variaveis (q, p, t), obtemos

p = − ∂

∂q

(

pq(q, p, t)− L(q, p, t))

. (1.3.9)

Por outro lado calculemos tambem

∂pL(q, p, t) =

∂qL(q, q, t)

∂q

∂p= p

∂pq(q, p, t) =

∂p(pq(q, p, t))− q(q, p, t) , (1.3.10)

ou

q =∂

∂p(pq(q, p, t)− L(q, p, t)) . (1.3.11)

Para simplificar a forma das equacoes (1.3.9) e (1.3.11), introduzimos o Hamiltoniano

definido como

H(q, p, t) ≡ pq(q, p, t)− L(q, q(q, p, t), t) , (1.3.12)

Page 30: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

14 Topicos de Mecanica Classica

em termos do qual, as equacoes (1.3.9) e (1.3.11) reescrevem-se como

q =∂H

∂p, p = −∂H

∂q, (1.3.13)

denominadas equacoes de Hamilton ou equacoes canonicas. Estas equacoes contem a

mesma informacao que as equacoes de Euler-Lagrange, mas em vez de uma (ou n para

n coordenadas) equacao de segunda ordem temos agora duas (2n) equacoes de primeira

ordem. Note-se que tudo o que fizemos para ir do formalismo Lagrangeano para o Hamil-

toniano foi uma mudanca de variaveis independentes

(q, q, t) −→ (q, p, t) , (1.3.14)

o que motivou a substituicao do Lagrangeano por uma outra funcao, o Hamiltoniano

L(q, q, t) −→ H(q, p, t) . (1.3.15)

Esta ultima transformacao, que aparece associada a uma mudanca de variaveis toma o

nome de transformada de Legendre, cuja interpretacao geometrica e dada no apendice A.

Calculemos agora o Hamiltoniano para cada um dos nossos dois exemplos.

Exemplo 1, Versao c): Dado que o Lagrangeano para o oscilador harmonico e (1.2.16)

temos

L =1

2mx2 − 1

2kx2 ⇒ p ≡ ∂L

∂x= mx , (1.3.16)

o que significa que o momento canonico conjugado a x e o momento dinamico usual, isto

e, a quantidade de movimento. Logo

H = px− L =p2

2m+

1

2kx2 = T + V , (1.3.17)

isto e, o Hamiltoniano e a energia cinetica mais a energia potencial, ou seja, a energia total

do sistema. Como exercıcio pode verificar que as equacoes de Hamilton deste Hamiltoniano

sao equivalentes a (1.1.5). Em geral, um Lagrangeano do tipo

L =1

2mx2 − V (x) ⇒ H =

p2

2m+ V (x) , (1.3.18)

Page 31: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

1.3 Mecanica Hamiltoniana 15

o que e ainda a energia total.

Exemplo 2, Versao c): Comecemos por deduzir o Hamiltoniano para uma partıcula a

interagir com um campo electromagnetico arbitrario, cujo Lagrangeano vimos ser (1.2.24)

L =1

2m~x

2+ q~x · ~A(t, ~x)− qφ(t, ~x) ⇒ ~p = m~x+ q ~A . (1.3.19)

Neste caso o momento canonico conjugado a ~x nao e o momento dinamico usual o que

mostra que estas duas quantidades nao tem de coincidir. O Hamiltoniano resultante e

H = ~p · ~x− L =(~p− q ~A)2

2m+ qφ . (1.3.20)

Notando que ~p− q ~A = m~x concluimos que o Hamiltoniano e ainda a energia cinetica mais

a energia potencial devido ao potencial φ. Esta e a energia total em jogo. O efeito do

potencial magnetico e levado em conta usando a regra de substituir no Hamiltoniano

~p −→ ~p− q ~A , (1.3.21)

a que se chama acoplamento minimal. Mas note-se que esta regra, corresponde a manter o

termo cinetico como sendo m~x2/2. Assim, numa situacao em que o potencial φ seja nulo

(ou constante) concluimos que a energia cinetica da partıcula tem de ser constante e como

tal tambem a norma da sua velocidade.5 Isso e exactamente o que acontece no problema

de Larmor para as trajectorias da figura 1.2.

Especializando (1.3.20) para os potenciais (1.2.29) obtemos o Hamiltoniano

H =1

2m

(

px +qBy

2

)2

+1

2m

(

py −qBx

2

)2

+p2

z

2m. (1.3.22)

Como exercıcio pode verificar que as equacoes de Hamilton deste Hamiltoniano sao equiv-

alentes a (1.1.8) - Folha de Problemas 8, exercıcio 1d).

5A menos de efeitos de irradiacao de ondas electromagneticas e correspondente perda de energia, con-forme o problema 2 da Folha de Problemas 1.

Page 32: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

16 Topicos de Mecanica Classica

1.3.1 O Espaco de Fase e os Parentesis de Poisson

O formalismo Hamiltoniano desenrola-se no espaco de fase, que e o espaco parameterizado

por (q, p), que sao as variaveis independentes neste formalismo. A simetria das equacoes

canonicas (1.3.13) sugere a introducao de coordenadas unificadas

ξi = (q, p) ⇔ ξ1 = q , ξ2 = p , (1.3.23)

de modo que as equacoes canonicas sao reescritas

ξi = ωij ∂H

∂ξj, (1.3.24)

onde ωij sao as componentes de uma matriz anti-simetrica (dita simpletica)

ωij =

0 1

−1 0

. (1.3.25)

Na equacao (1.3.24) usamos a chamada convencao de Einstein, que significa que quando

um ındice aparece repetido num produto, denota uma soma de termos correspondendo a

todos os valores possıveis desse ındice.6 Em (1.3.24) o ındice j aparece repetido no produto

do lado direito. Logo temos de somar sobre todos os valores possıveis de j, ou seja 1, 2.

Por exemplo, a componente i = 1 de (1.3.24) fica

ξ1 = ω11∂H

∂ξ1+ ω12∂H

∂ξ2⇔ q =

∂H

∂p, (1.3.26)

que e uma das equacoes canonicas.

Consideremos a evolucao de uma determinada variavel dinamica f = f(q, p, t). A sua

evolucao temporal e dada por

df

dt=∂f

∂t+∂f

∂qq +

∂f

∂pp =

∂f

∂t+∂f

∂q

∂H

∂p− ∂f

∂p

∂H

∂q, (1.3.27)

ou em termos das coordenadas unificadas

df

dt=∂f

∂t+ ωij ∂f

∂ξi

∂H

∂ξj⇔ df

dt=∂f

∂t+ f,H , (1.3.28)

6Rigorosamente, o ındice repetido tem que aparecer uma vez como covariante que corresponde a estarem baixo na variavel (ou em cima quando a variavel esta no denominador) e uma vez como contravariante

que corresponde a estar em cima na variavel (ou em baixo quando no denominador).

Page 33: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

1.3 Mecanica Hamiltoniana 17

onde introduzimos os Parentesis de Poisson, definidos como

A,B ≡ ωij ∂A

∂ξi

∂B

∂ξj=∂A

∂q

∂B

∂p− ∂B

∂q

∂A

∂p. (1.3.29)

Os parentesis de Poisson tem 3 importantes propriedades

i) Bi-linearidade

α1A1 + α2A2, B = α1A1, B+ α2A2, B , (1.3.30)

onde α1,2 sao constantes e uma expressao analoga pode ser escrita para o segundo

argumento nos parentesis.

ii) Anti-simetria

A,B = −B,A . (1.3.31)

iii) Identidade de Jacobi

A, B,C+ B, C,A+ C, A,B = 0 . (1.3.32)

Devido a estas propriedades, os parentesis de Poisson sao um exemplo de parentesis de

Lie e a algebra de funcoes no espaco de fase por eles originada e uma algebra de Lie,

que sera definida na seccao 9.1. Os parentesis de Poisson sao um objecto fundamental na

quantificacao canonica de um sistema fısico.

Apliquemos a equacao de evolucao (1.3.28):

• As coordenadas unificadas ξi

ξi = ξi, H . (1.3.33)

Estas sao exactamente as equacoes canonicas.

• Ao Hamiltoniano

H =∂H

∂t. (1.3.34)

O Hamiltoniano e uma quantidade conservada no movimento a menos que dependa

explicitamente do tempo. Como se pode mostrar directamente da definicao de Hamil-

toniano que∂H

∂t= −∂L

∂t, (1.3.35)

Page 34: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

18 Topicos de Mecanica Classica

isto reflecte a conservacao de energia para Lagrangianos independentes do tempo.

• A uma variavel dinamica g que nao tenha dependencia explıcita no tempo

g = g,H . (1.3.36)

Ou seja, g e uma constante do movimento se e so se comutar com o Hamiltoniano

em termos dos parentesis de Poisson.

1.3.2 A Equacao de Hamilton-Jacobi

Como vimos, a mudanca do formalismo Lagrangeano para o formalismo Hamiltoniano

corresponde a uma mudanca de variaveis independentes descrita por (1.3.14), tornando-se

depois natural mudar a funcao dinamica de Lagrangeano para Hamiltoniano. Dentro do

formalismo Hamiltoniano, podem-se fazer mudancas de variaveis independentes do tipo

(q, p, t) −→ (Q(q, p, t), P (q, p, t), t) , (1.3.37)

ou seja mudar de coordenadas no espaco de fase, requerendo que as equacoes canonicas

mantenham a sua forma. Isto e, que haja uma funcao K = K(Q,P, t) que desempenha o

papel de novo Hamiltoniano7 e que nas novas coordenadas se possam escrever equacoes do

movimento do tipo canonico

P = −∂K∂Q

, Q =∂K

∂P. (1.3.38)

Nem todas as transformacoes do tipo (1.3.37) permitem escrever equacoes do movimento

do tipo (1.3.38). Transformacoes que o permitem designam-se canonicas. Depois de uma

transformacao canonica ainda temos um Hamiltoniano, K = K(Q,P, t), ao qual podemos

associar um Lagrangiano, PQ −K e como tal deduzir as trajectorias fısicas entre t1 e t2

pelo princıpio variacional

δ

∫ t2

t1

[

PQ−K(Q,P, t)]

dt = 0 . (1.3.39)

7Para distinguir do Hamiltoniano original, e porque e convencional usar a letra K, designa-se por vezesesta funcao de ‘Kamiltoniano’.

Page 35: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

1.3 Mecanica Hamiltoniana 19

Mas nas coordenadas originais existe, obviamente, um princıpio semelhante

δ

∫ t2

t1

[pq −H(q, p, t)] dt = 0 . (1.3.40)

Uma condicao suficiente8 para a mudanca de coordenadas (1.3.37) de modo a que (1.3.39)

seja consistente com (1.3.40), e

pq −H = PQ−K +dF

dt, (1.3.41)

onde F e uma funcao no espaco de fase, denominada funcao geradora, que pode ser expressa

nas coordenadas velhas, novas ou numa combinacao de novas e velhas. Este ultimo caso,

quando possıvel, e particularmente util, pois F funciona como uma ponte de ligacao na

mudanca de coordenadas. Temos entao quatro hipoteses

a) F = F1(q, Q, t) b) F = F2(q, P, t) c) F = F3(p,Q, t) d) F = F4(p, P, t) .

(1.3.42)

Tomando a hipotese a), (1.3.41) fica

pq −H = PQ−K +∂F1

∂t+∂F1

∂qq +

∂F1

∂QQ , (1.3.43)

e como estamos a tomar q e Q como variaveis independentes obtemos que para esta equacao

ser obedecida

(i)∂F1

∂q= p , (ii)

∂F1

∂Q= −P , (iii) K = H +

∂F1

∂t. (1.3.44)

Dada uma funcao geradora, (i) da-nos p = p(q, Q, t), que se for possıvel inverter da Q =

Q(q, p, t). Entao, (ii) da P = P (q, Q(q, p, t), t) e (iii) da-nos o novo Hamiltoniano. Note-se

que os dois Hamiltonianos so diferem se F1 depender explicitamente do tempo.

Para fazer um raciocınio semelhante com a hipotese b) em (1.3.42), temos de tomar

F = F2(q, P, t)−QP . (1.3.45)

8Esta condicao nao e necessaria para que a transformacao seja canonica; existem transformacoescanonicas mais gerais.

Page 36: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

20 Topicos de Mecanica Classica

(q, p, t) −→ (Q,P, t)

p

q

(q(t),p(t))

P

(Q(t),P(t))=(const.,const.)

Q

Figura 1.5: O formalismo de Hamilton-Jacobi e definido por uma funcao geradora associadaa uma mudanca para coordenadas ‘co-moveis’ com a partıcula no espaco de fase.

Neste caso (1.3.43) e (1.3.44) sao substituidas por

pq −H = −QP −K +∂F2

∂t+∂F2

∂qq +

∂F2

∂PP , (1.3.46)

(i)∂F2

∂q= p , (ii)

∂F2

∂P= Q , (iii) K = H +

∂F2

∂t. (1.3.47)

respectivamente. Mais uma vez, (i) da-nos p = p(q, P, t), que se for possıvel inverter da

P = P (q, p, t). Entao, (ii) da Q = Q(q, P (q, p, t), t) e (iii) da-nos o novo Hamiltoniano.

Raciocınios semelhantes existem para c) e d) em (1.3.42), mas o caso b) e o mais util para

o formalismo de Hamilton-Jacobi que vamos agora deduzir.

Uma escolha muito particular de novas coordenadas no espaco de fase, Q e P , e um

sistema de coordenadas onde a partıcula esta parada - figura 1.5

Q = constante P = constante , (1.3.48)

e o novo Hamiltoniano e tambem uma constante, que podemos tomar como sendo zero.

As novas equacoes canonicas (1.3.38) sao trivialmente obedecidas e toda a dinamica fica

contida na transformacao de coordenadas, em particular na funcao geradora. Se escolher-

mos uma funcao geradora do tipo 2, toda a informacao sobre a dinamica fica contida nas

equacoes (1.3.47). Neste caso, constuma-se representar F2 pela letra S = S(q, P, t) que se

designa funcao principal de Hamilton ou funcao accao e que obedece a

∂S

∂q= p , (1.3.49)

Page 37: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

1.3 Mecanica Hamiltoniana 21

o que significa que o momento e o gradiente da funcao accao,

∂S

∂P= Q , (1.3.50)

cujo significado veremos em baixo e ainda

H

(

q, p =∂S

∂q, t

)

= −∂S∂t

, (1.3.51)

que e a equacao de Hamilton-Jacobi (H-J). Esta equacao foi primeiramente estudada por

Hamilton em optica e so depois usada por Karl Jacobi (1804-1851) em mecanica.

O formalismo de Hamilton-Jacobi pode ser interpretado da seguinte forma. Fisica-

mente, mudamos para coordenadas ‘co-moveis’ com a partıcula e portanto, ao descobrir

essa mudanca de coordenadas resolvemos, simultaneamente, o movimento da partıcula.

Em termos matematicos, estabelecemos a equivalencia entre resolver um sistema de 2n

equacoes diferenciais ordinarias de primeira ordem (para o caso de n graus de liberdade qi,

i = 1...n) e resolver uma equacao diferencial com n + 1 (correspondendo a qi, t) derivadas

parciais.

Uma solucao da equacao de H-J com n + 1 variaveis, tera n + 1 constantes de inte-

gracao. Mas uma dessas constantes sera irrelevante, pois na equacao de H-J so entram as

derivadas de S e como tal se S e solucao, S ′ = S + constante, tambem e solucao. Assim,

havera n constantes relevantes de integracao, que podemos identificar com as constantes

Pi. Daı concluimos que o significado de (1.3.50) e que a derivada da funcao accao em

ordem as constantes de integracao pode ser considerada constante, uma ferramenta muito

util quando usamos o metodo de Hamilton-Jacobi na pratica.

A razao pela qual se chama funcao accao a S(q, P, t) e a seguinte. Da accao definida

em (1.2.6), que e um funcional, constroi-se uma funcao que obedece a equacao de Hamiton-

Jacobi. De facto, a funcao accao

S = S(q, P, t) ⇒ dS

dt=∂S

∂qq +

∂S

∂t, (1.3.52)

pois P e constante, ou usando (1.3.49) e (1.3.51),

dS

dt= pq −H = L , ⇒ S(t) =

∫ t

t0

Ldt′ + constante , (1.3.53)

Page 38: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

22 Topicos de Mecanica Classica

que e uma funcao - dado que o limite superior do integral nao esta fixo - construida da

accao.

Hamiltonianos independentes do tempo

Se o Hamiltoniano nao depende explicitamente do tempo, o lado direito da equacao de

Hamilton-Jacobi tambem nao devera depender do tempo pelo que podemos tomar a funcao

accao como sendo

S = −Et+ h(q) , (1.3.54)

onde E tem a interpretacao de energia, pois e igual ao Hamiltoniano. Para um Hamiltoni-

ano do tipo

H =p2

2m+ V (q) , (1.3.55)

a equacao de Hamilton-Jacobi reduz-se a

(

∂h

∂q

)2

= 2m(E − V (q)) , (1.3.56)

de onde se extrai imediatamente uma assinatura caracterıstica da mecanica classica: esta

equacao so tem solucao real se E > V (q); logo o movimento e proibido onde a energia da

partıcula e menor que o potencial. Integrando e substituindo em (1.3.54) obtemos

S = −Et±∫

2m(E − V (q))dq . (1.3.57)

Para resolver o problema dinamico usamos o facto, anteriormente mencionado, que

as derivadas da funcao accao relativamente as constantes de integracao sao tambem con-

stantes. Assim,

∂S

∂E= const.

(1.3.57)⇒ t = ±√

m

2

dq√

E − V (q)+ constante . (1.3.58)

Substituindo pelo potencial do problema em questao obtem-se t = t(q), que invertendo

nos da q = q(t), e portanto a solucao do problema dinamico. Voltaremos a encontrar a

equacao de Hamilton-Jacobi, no limite classico da equacao de Schrodinger (seccao 8.4).

Page 39: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

1.4 Sumario 23

1.4 Sumario

Vimos os varios tipos de equacoes da mecanica classica:

• Newtonianas,

~F =d~p

dt; (1.4.1)

• Euler-Lagrange, para o Lagrangeano L = L(q, q, t),

d

dt

∂L∂q− ∂L∂q

= 0 ; (1.4.2)

• Hamiltonianas, para o Hamiltoniano H = H(q, p, t),

q =∂H

∂p, p = −∂H

∂q, (1.4.3)

ou, de um modo mais geral, a evolucao de uma variavel dinamica f = f(q, p, t) e

dada pordf

dt=∂f

∂t+ f,H ; (1.4.4)

• Hamilton-Jacobi, para uma funcao accao S = S(q, P, t),

∂S

∂P= Q , H

(

q, p =∂S

∂q, t

)

= −∂S∂t

. (1.4.5)

Dadas condicoes iniciais, qualquer um destes conjuntos de equacoes determina exacta-

mente a trajectoria da partıcula tal e qual a podemos medir num instante posterior. Este

determinismo e o paradigma da mecanica classica.

Page 40: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro
Page 41: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

CAPITULO 2

O perıodo de Transicao

Historicamente podemos atribuir uma data de nascimento a Mecanica Quantica. No dia

14 de Dezembro de 1900, Max Planck (1858-1947), apresentou uma solucao inovadora para

explicar as caracterısticas observadas da radiacao do corpo negro. O modelo de Planck

continha a genese das ideias quanticas bem como introduzia aquela que viria a ser chamada

constante de Planck, a constante fundamental da Mecanica Quantica. No entanto, somente

26 anos depois a Mecanica Quantica emergiria na sua forma final. No perıodo intermedio,

entre 1900 e 1926 viveu-se um perıodo de transicao em que, para explicar certos resultados

experimentais, se introduziu na fısica os conceitos de

i) Quantificacao de grandezas fısicas;

ii) Dualidade onda-partıcula;

iii) Interpretacao probabilıstica de fenomenos.

Para muitos dos fısicos envolvidos neste processo, estas ideias nao seriam mais do que

conceitos temporarios, que a devida altura deveriam ser substituidos por ideias mais con-

vencionais. Em particular, o ponto iii) aparecia como altamente indesejavel para a maioria

da comunidade cientıfica, sendo a reluctancia desta espelhada na famosa frase de Einstein

Page 42: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

26 O perıodo de Transicao

θ2

θ1θi

y

x

MEIO 1

MEIO 2

Figura 2.1: Um raio de luz proveniente do meio 1, incidente na superfıcie y = 0 com angulode incidencia θi tem uma componente reflectida, angulo de reflexao θ1 e uma componenterefractada, emergente no meio 2 na direccao definida por θ2.

‘Deus nao joga aos dados...’ . No entanto e no ponto ii) que se encontra quer a origem do

ponto i) e do ponto iii) quer a essencia da mecanica quantica. Vamos discutir algumas das

experiencias que motivaram a introducao destas ideias e terminamos este capıtulo com o

quadro conceptual que delas emergiu.

2.1 A luz: ondas versus corpusculos

Para alem do conceito de partıcula discutido anteriormente (i.e. pequenas “bolas de bil-

har”), tambem o conceito de onda nos e familiar. As ondas circulares que se propagam

num lago calmo onde cai uma pedra ou as ondas numa corda de guitarra a vibrar sao dois

exemplos familiares.

Entre o seculo XVII e o seculo XIX, duas correntes antagonicas disputavam qual a

natureza da luz. Newton (e os seus seguidores), naturalmente inspirado pelo sucesso da sua

mecanica de partıculas, defendia que a luz e um fluxo de pequenos corpusculos. Christian

Huyghens (1629-1695) concebeu a ideia de a luz ser uma onda, a propagar-se atraves de

um suporte invisıvel baptizado de eter.

A discussao centrava-se nos seguintes fenomenos fısicos:

• Reflexao; como a verificada num espelho ou numa superfıcie de agua. Obviamente

Page 43: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.1 A luz: ondas versus corpusculos 27

este fenomeno era observado para a luz. Era explicado pela teoria corpuscular por

conservacao da quantidade de movimento que previa (ver figura 2.1)

θi = θ1 (lei da reflexao) , (2.1.1)

mas podia tambem ser quantitativamente explicado pela teoria ondulatoria pelo

princıpio de Huygens, ou, em optica geometrica pelo princıpio do tempo mınimo

de Fermat - apendice B;

• Refraccao; ou seja, uma mudanca (normalmente) brusca na direccao de propagacao da

luz, em geral devido a mudanca de meio, um fenomeno tambem observado para a

luz. Se a luz fosse feita de pequenos corpusculos poder-se-ia invocar conservacao de

momento para explicar a refraccao do seguinte modo: consideremos que o meio 1

esta a um potencial V1 e o meio 2 a um potencial V2, no ‘setup’ da figura 2.1. Na

transicao de meio por uma partıcula existe uma forca que nela actua que tem apenas

componente Fy. Logo px e conservada ou seja

sin θi

sin θ2=v2

v1(‘Lei da refraccao corpuscular′) . (2.1.2)

Por outro lado, se a luz fosse uma onda, o princıpio de Huygens (ou o princıpio do

tempo mınimo de Fermat - apendice B) implica

sin θi

sin θ2=v1

v2

(lei de Snell) . (2.1.3)

Mas devido a dificuldade em medir a velocidade de luz num meio, esta diferenca nao

foi suficiente para decidir qual a verdadeira natureza da luz ate ao seculo XIX. (Note

que Jean Bernard Leon Foucault (1819-1868) fez as primeiras medicoes da velocidade

da luz em meados do sec. XIX.)

• Difraccao; Fenomeno ondulatorio; capacidade de ondas rodearem obstaculos - como a

agua do mar rodeia uma rocha - e por isso nao produzirem ‘sombras’ bem definidas -

figura 2.2. Pelo contrario, corpusculos nao sao difractados - figura 2.3; se a luz fosse

corpuscular deixaria uma sombra bem definida. Mas todos sabemos que a luz de

Page 44: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

28 O perıodo de Transicao

ECRA

obstaculo

sombra mal definida

Frentes de onda em t=0 Frentes de onda em t>0

Figura 2.2: Ondas sofrem difraccao, isto e, rodeiam o obstaculo. As duas frentes deonda - uma proveniente de cada um dos lados do obstaculo - interferem. A sua fase numdeterminado ponto depende da distancia que cada uma teve de viajar para chegar a esseponto; por exemplo, no meio a interferencia e construtiva. Este e o padrao de difraccao doobstaculo, que estraga a sombra. Na figura nao esta representada a onda reflectida.

uma lanterna ou do sol deixa sombras bem definidas; este argumento levou a que a

teoria corpuscular fosse dominante durante todo o seculo XVIII.

Embora com diferencas quantitativas, tanto a perspectiva ondulatoria como corpuscu-

lar da luz explicam os fenomenos de reflexao e refraccao, enquanto que apenas a teoria

ondulatoria explica o fenomeno de difraccao (ou de interferencia em geral). Em optica, os

primeiros dois costumam ser tratados por optica geometrica,1 onde se lida com raios de luz

e nao frentes de onda, que por sua vez sao essenciais para a optica fısica que lida com os

fenomenos puramente ondulatorios.

2.1.1 Experiencias de Young (1801): ondas triunfam

Quando temos uma situacao em que ondas encontram um obstaculo existem duas escalas

relevantes: λ=comprimento de onda, e l=largura do obstaculo. Thomas Young (1773-1829)

observou que as ondas na agua so tinham uma difraccao apreciavel e como tal “sombras”

mal definidas imediatamente atras do obstaculo se

l . λ . (2.1.4)

1A optica geometrica e uma aproximacao quase corpuscular da optica que e valida quando l ≫ λ, nanotacao da proxima seccao.

Page 45: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.1 A luz: ondas versus corpusculos 29

obstaculo

sombra bem definida

corpusculos em t=0 t>0

ECRA

Figura 2.3: Corpusculos nao sofrem difraccao; assim, foi argumentado que se a luz fossecorpuscular as sombras deveriam ser bem definidas.

ECRA

obstaculo

Frentes de onda em t=0 Frentes de onda em t>0

sombra bem definida

Figura 2.4: Ondas sofrem uma difraccao negligenciavel se o obstaculo e grande relativa-mente ao comprimento de onda. Note-se que mais uma vez nao representamos a ondareflectida.

Se l ≫ λ ha uma zona atras do obstaculo onde a sombra esta bem definida, tal como

na teoria corpuscular, isto e, a difraccao e negligenciavel - figura 2.4. Assim, a nossa ex-

periencia diaria de sombras bem definidas seria consistente com uma teoria ondulatoria da

luz se os objectos cujas sombras vemos tivessem largura muito maior do que o comprimento

de onda da luz.

Podemos tambem considerar a experiencia contraria, isto e, consideremos uma onda

plana com comprimento de onda λ que em vez de encontrar um obstaculo passa por uma

fenda de tamanho l. Se l ≃ λ a difraccao da onda e grande, pelo que a fenda se comporta

como uma fonte de ondas circulares.

Para testar a verdadeira natureza da luz contraste-se a experiencia na figura 2.5 com a

Page 46: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

30 O perıodo de Transicao

Figura 2.5: Experiencia de Young com ondas (extraıdo das Feynman lectures on Physics -Vol 3 ).

experiencia na figura 2.6.

Experiencia de Young com ondas

Como explicado anteriormente, as duas fendas na parede (a) da figura 2.5, funcionam

(quase) como fontes de ondas circulares, ou mais rigorosamente, semi-circulares. Existe

um detector que mede a altura instantanea da agua num ponto x - coordenada paralela ao

detector - medindo

A1(x)ei(ωt+φ1(x)) ≡ h1(x)e

iωt , se apenas a fenda 1 estiver aberta

A2(x)ei(ωt+φ2(x)) ≡ h2(x)e

iωt , se apenas a fenda 2 estiver aberta, (2.1.5)

onde Ai sao as amplitudes e φi sao fases, cuja informacao se condensa nas amplitudes com-

plexas hi(x). O detector pode ainda calcular a intensidade das ondas, que por analogia com

as ondas electromagneticas (para as quais corresponde a energia que passa pelo detector

por unidade de tempo e de area perpendicular a direccao de propagacao), e o quadrado do

Page 47: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.1 A luz: ondas versus corpusculos 31

modulo da amplitude, obtendo

I1 = |h1(x)|2 , se apenas a fenda 1 estiver aberta

I2 = |h2(x)|2 , se apenas a fenda 2 estiver aberta, (2.1.6)

que sao dados pelos padroes em (c) na figura.

Consideremos agora que as duas fendas estao abertas. As ondas ‘emitidas’ a partir das

duas fendas tem a mesma fase no mesmo instante de tempo, pois provem de uma mesma

onda antes da parede. Neste caso, a altura da agua no detector e a intensidade das ondas

sao dados respectivamente por

(h1(x) + h2(x))eiωt , I1+2 = |h1(x) + h2(x)|2 . (2.1.7)

Dependendo da coordenada x, as ondas poderao estar em fase ou nao. Por exemplo,

exactamente no meio do detector (correspondente a igual distancia das duas fendas), as

ondas vao estar em fase pois demoram o mesmo tempo a chegar la. Em geral

I1+2 = |h1(x) + h2(x)|2 = |h1(x)|2 + |h2(x)|2 + 2|h1(x)||h2(x)| cos δ(x) , (2.1.8)

onde δ e o angulo entre eiφ1(x) e eiφ2(x). Este fenomeno de interferencia explica o padrao

(c) na figura 2.5.

Uma ‘experiencia de Young’ com corpusculos

Imaginemos uma pistola que atira balas aleatoriamente como na figura 2.6. A variavel

x pode ser vista como uma variavel aleatoria, correspondendo a posicao de chegada das

balas. O detector obtem as seguintes funcoes de distribuicao de probabilidades:

P1(x) , se apenas a fenda 1 estiver aberta

P2(x) , se apenas a fenda 2 estiver aberta

P1+2(x) = P1(x) + P2(x) , se as duas fendas estiverem abertas

. (2.1.9)

Em particular, nao ha interferencia entre corpusculos. Note-se a diferenca fundamental

entre corpusculos e ondas, expressa em (2.1.9) versus (2.1.6) e (2.1.8). A probabilidade

para corpusculos e a soma das probabilidades individuais. A intensidade das ondas - que no

Page 48: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

32 O perıodo de Transicao

Figura 2.6: Experiencia de Young com ‘balas’ (extraıdo das Feynman lectures on Physics- Vol 3 ).

final do capıtulo faremos corresponder a uma probabilidade - nao e a soma das intensidades

individuais; de facto resulta da soma das amplitudes individuais.

Fazendo este tipo de experiencia com luz, com duas fendas muito finas (e pequena

distancia entre elas), Young observou um padrao de interferencia semelhante ao da figura

2.5 (c), e concluiu que a luz era uma onda. Esta perspectiva foi reforcada pela teoria de

Maxwell que tem solucoes ondulatorias para o campo electromagnetico - ondas electro-

magneticas, descobertas posteriormente - em 1887 - por Hertz, das quais a luz visıvel e um

exemplo. Mais ainda, (2.1.3) foi derivado da teoria de Maxwell e medida em experiencias

com radiacao electromagnetica (e nao (2.1.2)). Assim, no final do seculo XIX a comunidade

cientıfica concordava que a luz (e toda a radiacao electromagnetica) seria um fenomeno

ondulatorio.

Page 49: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.1 A luz: ondas versus corpusculos 33

Figura 2.7: Distribuicao espectral da radiacao de um corpo negro; formula classica deRayleigh-Jeans versus resultados experimentais (extraıdo de Eisberg & Resnick, ‘QuantumPhysics’ ).

2.1.2 A radiacao do corpo negro, Planck e o quantum (1900)

Consideremos um corpo que absorve toda a radiacao electromagnetica nele incidente, isto

e, um absorsor perfeito. Como, em particular, ele absorve o espectro visıvel, este e um

corpo negro.

Se um corpo negro esta em equilıbrio termico a temperatura T , ele tera de emitir tanta

energia por unidade de tempo quanto aquela que recebe - o corpo negro e tambem um emis-

sor perfeito. Mas ao contrario da energia recebida, que pode ser arbitrariamente distribuida

pelas diversas frequencias no espectro electromagnetico, verifica-se experimentalmente que

a energia emitida tem um distribuicao espectral ρT (ν)dν, muito bem definida, que so de-

pende da temperatura do corpo negro. A curva experimental ρT (ν)dν tem a forma de uma

‘montanha assimetrica’ - figura 2.7.

A descricao teorica deste fenomeno em fısica classica, envolvia calcular o numero de

ondas estacionarias numa cavidade (3-dimensional) com frequencia no intervalo dν, multi-

plicando o resultado pela energia media de uma onda, dada pelo teorema da equiparticao

Page 50: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

34 O perıodo de Transicao

de energia como sendo KBT , onde KB e a constante de Boltzmann, cujo valor numerico e

KB = 1.38× 10−23Joule/K . (2.1.10)

Deste modo, obtem-se a formula de Rayleigh-Jeans

ρT (ν)dν =8πν2

c3KBTdν . (2.1.11)

Comparando esta lei com a curva experimental - figura 2.7 - verifica-se um desacordo

absoluto para frequencias elevadas, dado que a previsao teorica diverge, que foi baptizado

como catastrofe do ultra-violeta.

Em 1900, Planck mostrou os seguintes dois factos:

• 1) A curva experimental era bem reproduzida pela formula empırica

ρT (ν) =8πν2

c3hν

ehν/KBT − 1, (2.1.12)

hoje chamada Lei de Planck. Nesta formula foi introduzida a constante h, chamada -

constante de Planck com dimensoes de Energia×Tempo (as mesmas da Accao introduzida

em (1.2.6)) e com o valor numerico (actual)

h = 6.626× 10−34Joule× Segundo , (2.1.13)

que foi inicialmente determinada ajustando a lei de Planck a curva experimental da radiacao

do corpo negro. A constante de Planck tornar-se-a a constante fundamental da mecanica

quantica. Para frequencias pequenas, a exponencial na Lei de Planck pode ser aproximada

pelos dois primeiros termos da sua serie de Taylor

ν ≪ KBT

h⇒ ρT (ν) ≃ 8πν2

c3hν

1 + hν/KBT − 1=

8πν2

c3KBT , (2.1.14)

e portanto recuperamos a formula de Rayleigh-Jeans, que de facto dava bons resultados

para frequencias pequenas. Mas para frequencias elevadas, a formula de Planck

ν ≫ KBT

h⇒ ρT (ν) ≃ 8πν2

c3hν

ehν/KBT

ν→∞−→ 0 , (2.1.15)

evitando a catastrofe do ultra-violeta.

Page 51: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.1 A luz: ondas versus corpusculos 35

c)

a)

b)

d)

e)

Figura 2.8: a) Distribuicao de Boltzmann; b) Energia media na teoria classica - indepen-dente da frequencia da radiacao - corresponde a area debaixo da curva; c),d),e) Energiamedia na teoria de Planck. Em cada caso, o integral e substituıdo por uma soma de Rie-mann, sendo a frequencia da radiacao o tamanho da base dos rectangulos. Para frequenciaspequenas, a soma de Riemann e praticamente igual ao integral - c). A medida que aumen-tamos a frequencia, a soma de Riemann diminui tendendo asimptoticamente para zero. Nanotacao da figura k = KB e E = 〈E〉 (extraıdo de Eisberg & Resnick, ‘Quantum Physics’ ).

Page 52: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

36 O perıodo de Transicao

• 2) Comparando (2.1.11) com (2.1.12), a diferenca esta no valor da energia media de

uma onda, que classicamente era calculada pela ‘lei de equiparticao da energia’. Esta lei e

deduzida da distribuicao de Boltzmann, que e uma funcao de distribuicao de probabilidade

(portanto ja normalizada) para encontrar um oscilador harmonico com energia E a uma

temperatura T

P(E) =e−E/KBT

KBT. (2.1.16)

Uma onda estacionaria nao e mais do que um oscilador harmonico. A energia media destas

ondas e (conforme (C.40))

〈E〉 =

∫ ∞

0

EP(E)dE = −Ee−E/KBT |∞0 +

∫ ∞

0

e−E/KBTdE = KBT . (2.1.17)

Planck observou que para reproduzir o comportamento experimental a energia media teria

de ter os seguintes comportamentos assimptoticos

〈E〉 ν→0−→ KBT , 〈E〉 ν→∞−→ 0 . (2.1.18)

Isto e, tem de haver um ‘cut-off’ na energia media para frequencias elevadas, de modo a

impedir a catastrofe do ultra-violeta. A grande contribuicao de Planck foi perceber que

isto se podia conseguir discretizando a energia que o corpo negro emite

E = nhν . (2.1.19)

A energia e quantificada, sendo o quantao de energia - a quantidade mınima emitida de cada

vez - hν. Em vez de (2.1.16) temos agora uma distribuicao discreta para a probabilidade

de encontrar uma onda com frequencia ν no n-esimo estado de energia, En,

Pn = P(En = nhν) =e−nhν/KBT

KBT, n = 0, 1, 2, 3, ... (2.1.20)

Esta distribuicao de probabilidade nao esta normalizada. Assim sendo, a energia media e

〈E〉 =

∑∞n=0EnPn∑∞

n=0Pn

=

∑∞n=0 nhνe

−nhν/KBT

∑∞n=0 e

−nhν/KBT= −KBTν

d

dνln

( ∞∑

n=0

e−nhν/KBT

)

, (2.1.21)

mas o ultimo somatorio e apenas uma soma geometrica; logo

〈E〉 = −KBTνd

dνln

(

1

1− e−hν/KBT

)

=hν

ehν/KBT − 1, (2.1.22)

Page 53: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.1 A luz: ondas versus corpusculos 37

Figura 2.9: Esquerda: Aparato experimental do efeito fotoelectrico; Direita: Variacao daintensidade de corrente com o potencial entre catodo e anodo para duas intensidades deluz diferentes (Extraıdo de Tipler, ‘Physics’ ).

que e exactamente o necessario para obter a lei de Planck. Assim, a radiacao do corpo

negro e explicada se a energia de um oscilador harmonico, e como tal a energia da radiacao

emitida pelo corpo negro, estiver quantificada. Mas estar quantificada e dizer que vem

em pedacos, o que se assemelha mais a uma descricao corpuscular do que ondulatoria da

radiacao.

2.1.3 O efeito fotoelectrico (Einstein 1905)

O efeito fotoelectrico foi descoberto por Hertz em 1887 e estudado por Lenard em 1900.

Consiste na ejeccao de electroes de um material onde incide luz (ou, mais geralmente,

radiacao electromagnetica). Um aparato experimental possıvel esta representado na figura

2.9, que pode ser descrito do seguinte modo:

• Luz incide no catodo C, ejectando electroes;

• Se algum electrao atinge o anodo A, gera-se uma corrente electrica no circuito externo;

Page 54: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

38 O perıodo de Transicao

• O numero de electroes que atinge o anodo pode ser aumentado ou diminuido introduzindo

uma diferenca de potencial entre A e C,

V = VA − VC , (2.1.23)

• Se V > 0, significa que o potencial aumenta (para uma carga positiva; para uma carga

negativa efectivamente diminui) e mais electroes chegam ao anodo;

• Quando V e suficientemente grande, isto e

V > V1 , (2.1.24)

para um certo V1, todos os electroes ejectados atingem o anodo e aumentando ainda

mais V a corrente nao se altera - figura 2.9. Esta corrente limite e designada corrente

de saturacao;

• Lenard observou que a corrente maxima e proporcional a intensidade da luz. Tal facto

era esperado com base na teoria classica: duplicando a intensidade da luz, duplicamos

a energia incidente por unidade de tempo e de area e como tal duplicamos o numero

de electroes ejectados e como tal a corrente;

• Se pelo contrario V e negativo, menos electroes chegam ao anodo (do que se nao houvesse

potencial), pois sao repelidos;

• Se V e suficientemente negativo,

V < V0 , (2.1.25)

para um dado V0, nenhum electrao chega ao anodo. Chama-se a V0 o potencial de

paragem, que esta relacionado com a energia cinetica maxima dos electroes emitidos

por

|eV0| =(

1

2mv2

)

max

, (2.1.26)

onde e,m sao a carga e massa do electrao;

Page 55: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.1 A luz: ondas versus corpusculos 39

Figura 2.10: Experiencia de Millikan (1916), obtendo a recta prevista por Einstein para avariacao do potencial de paragem entre catodo e anodo com a frequencia da luz (Extraıdode Tipler, ‘Physics).

• V0 nao depende da intensidade luminosa para luz da mesma frequencia, o que nao esta de

acordo com a teoria classica. Pela teoria classica, aumentando a intensidade luminosa,

deveria aumentar a energia cinetica maxima dos electroes e como tal variar V0.

Esta contradicao entre teoria classica e experiencia levou Einstein, em 1905, a propor

que a energia na luz esta distribuıda em pequenos pacotes, posteriormente baptizados de

fotoes, com energia dada pela formula de Planck,

E = hν . (2.1.27)

Variando a intensidade da luz mas nao a sua frequencia, varia o numero de fotoes, mas

nao a energia de cada um deles. Como cada electrao ejectado se-lo-ia por choque com um

fotao, isto explicava porque V0 nao dependia da intensidade luminosa. Se assim fosse,

(

1

2mv2

)

max

= |eV0| = hν − φ , (2.1.28)

Page 56: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

40 O perıodo de Transicao

em que φ e a chamada funcao de trabalho, que e a energia necessaria para extrair um

electrao do metal. Daqui se deduz que

|V0| =h

|e|ν −φ

|e| . (2.1.29)

As experiencias de Robert Millikan (1868-1952) em 1914, 1916 mostraram esta relacao

linear - figura 2.10 - sendo o declive consistente com os valores para a constante de Planck

medidos atraves da radiacao do corpo negro.

Uma outra caracterıstica do efeito fotoelectrico que nao pode ser explicada pela teoria

classica e a ausencia de intervalo de tempo entre a incidencia de radiacao e a ejeccao de

electroes. A intensidade da radiacao e a potencia por unidade de area que chega ao catodo.

Podemos diminuir a intensidade de modo a que fossem preciso horas para obter energia

suficiente para superar a funcao de trabalho e ejectar um electrao. Mas experimentalmente

nao se detecta, essencialmente, nenhum intervalo de tempo. Nem este depende da inten-

sidade. A luz da teoria fotonica isto e facilmente explicavel. Diminuindo a intensidade

diminuem os fotoes que chegam por unidade de tempo, mas cada fotao e suficiente para

ejectar um electrao.

A teoria corpuscular da radiacao teve ainda outras vitorias, da qual destacamos o efeito

Compton (demonstrado em 1923), que lida com a difusao de radiacao por electroes. Assim,

mais de um seculo depois das experiencias de Young, era novamente necessario invocar a

teoria corpuscular para descrever o comportamento da luz, sendo que o comportamento

ondulatorio continuava a ser fundamental para explicar os fenomenos de difraccao e inter-

ferencia que vimos anteriormente. Este estado de coisas levou Einstein a escrever, em 1924

“Existem hoje duas teorias sobre a luz, as duas indispensaveis... e sem qualquer ligacao

logica entre si.”. Antes de vermos como lida a mecanica quantica com este aparente para-

doxo, mudemos a discussao da radiacao para a materia.

2.2 Materia: corpusculos versus ondas

Por volta de 1910 sabia-se que o atomo, embora neutro, continha electroes. O efeito

fotoelectrico, por exemplo, demonstrava-o. Mas devido a sua neutralidade, tinha tambem

Page 57: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.2 Materia: corpusculos versus ondas 41

de conter cargas positivas, pelo que se questionava qual a distribuicao no atomo de cargas

negativas e positivas.

J. J. Thomson (1856-1940) propusera o seu modelo do ‘pudim de passas ’, em que os

electroes se apresentavam como as passas num pudim que, por sua vez, representava a

distribuicao de carga positiva. O conjunto teria um raio da ordem de 10−10 m,2 isto e, 1

Angstrom. Se o atomo estivesse no mınimo da sua energia, os electroes estariam parados

em posicoes de equilıbrio; se o atomo estivesse excitado - por exemplo aquecido -, os

electroes oscilariam em torno dessas posicoes de equilıbrio, emitindo no processo radiacao

electromagnetica. Explicava-se assim qualitativamente - mas nao quantitativamente - os

espectros atomicos.

As experiencias de Ernest Rutherford (1871-1937) em 1911 mostraram que o modelo

de Thompson era inadequado. Rutherford fez incidir numa fina folha metalica um feixe

colimado de partıculas α, isto e, atomos de helio duplamente ionizados. O objectivo era

medir o angulo de desvio dessas partıculas α (dito o angulo de difusao) relativamente a

direccao inicial, devido a interaccao com os atomos na folha metalica. Como este desvio

resulta de uma interaccao electromagnetica poder-se-ia estimar a partir da sua medicao

o potencial a que as partıculas α estavam sujeitas. A surpresa foi encontrar eventos em

que as partıculas α eram desviadas de angulos muito elevados, ate perto de 180o, isto

e, algumas partıculas α voltavam para tras! Nas palavras de Rutherford: ”Era como se

disparassemos uma bala de canhao contra um lenco de papel e a bala voltasse para tras.”.

A conclusao e que essas (poucas) partıculas α que eram muito deflectidas encontravam

um forte potencial repulsivo, o que implica uma forte concentracao de carga positiva num

pequeno espaco. Esta era a contradicao com o modelo de Thomson, em que a carga

positiva se encontrava dispersa em todo o raio atomico - cerca de 10−10 m -, enquanto que

pelas estimativas de Rutherford o potencial repulsivo observado necessitaria que essa carga

estivesse concentrada num raio de 10−14 m.3

2Este numero pode ser estimado considerando a densidade de uma substancia pura, o seu peso atomicoe o numero de Avogadro.

3Mais rigorosamente, era possıvel num modelo como o de Thomson explicar a existencia de deflexoesperto dos 180o atraves de uma soma de pequenas deflexoes. Contudo, a probabilidade de isso acontecer

Page 58: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

42 O perıodo de Transicao

Assim Rutherford sugeriu que a carga positiva de um atomo e como tal a grande maioria

da massa, dado que se sabia que a razao da massa do electrao para a massa do atomo era

muito pequena, estavam concentradas numa pequena zona central chamada nucleo. Deste

modelo, Rutherford deduziu uma expressao para a seccao eficaz diferencial de difusao que

de facto explicava quantitativamente os seus resultados experimentais, validando o modelo

(ver capıtulo 10). Mas deixava em aberto a questao do que fariam os electroes neste

modelo atomico. Se os electroes estivessem inicialmente parados, cairiam rapidamente

para o nucleo, neutralizando-o e eliminando o forte potencial repulsivo necessario para

explicar as experiencias de Rutherford. Era pois necessario estabilizar os electroes longe

do nucleo. Um modelo simples era o analogo do sistema solar. Os electroes encontrar-

se-iam em orbitas circulares ou elıpticas em volta do nucleo (ver Folhas de Problemas).

So que isto implicaria que os electroes tivessem movimentos acelerados. De acordo com

o electromagnetismo classico uma carga acelerada emite radiacao, perdendo gradualmente

energia, o que implicaria que os electroes tivessem orbitas em espiral caindo rapidamente

no nucleo. O tempo que demoraria esse processo pode ser estimado do seguinte modo.

Veremos na proxima seccao que a energia total de uma orbita classica circular de raio r e

dada por (2.2.10). Assumindo que o raio da orbita pode variar com o tempo num processo

‘quase-estatico’4 obtemosdE

dt=

1

8πǫ0

Ze2

r2r . (2.2.1)

Por outro lado, pela formula de Larmor dada no problema 2c) da folha de Problemas 1,

usando para a aceleracao a formula da aceleracao centrıpeta

dE

dt= − e2

6πǫ0c3v4

r2

(2.2.9)= − e2

6πǫ0c3

(

Ze2

4πǫ0mr2

)2

. (2.2.2)

Igualando estas duas expressoes para a derivada temporal da energia obtemos (para Z = 1)

3r2r = −4α2~2

cm2⇒ r3 = −4

c

(

α~

m

)2

(t− t0) . (2.2.3)

neste modelo implicava uma variacao do numero de acontecimentos com a espessura da folha metalica quenao era verificada experimentalmente.

4Esta hipotese podera nao ser muito boa, mas a estimativa do tempo de queda e representativa da fısicado processo.

Page 59: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.2 Materia: corpusculos versus ondas 43

Figura 2.11: Experiencia para medir um espectro atomico (extraıdo de Eisberg & Resnick,‘Quantum Physics’ ).

Introduzimos a constante de estrutura fina

α ≡ e2

4πǫ0~c. (2.2.4)

Como esperado, o raio diminui com o tempo. Para uma orbita de 10−10 m, pode-se estimar

o tempo de queda em cerca de 10−10 segundos! O atomo nao seria estavel e para alem

disso esta radiacao - que teria um espectro contınuo - emitida na queda era diferente da

radiacao atomica observada que tem um espectro discreto que agora discutimos.

2.2.1 O Espectro do atomo de Hidrogenio

Um espectro atomico pode ser medido com um ‘setup’ experimental do tipo da figura 2.11.

Ha essencialmente dois tipos de espectros:

• No espectro de emissao, a fonte de luz na esquerda da figura 2.11, corresponde ao

gas (monoatomico) cujo espectro se quer medir, no qual se faz descargas electricas. As

descargas electricas excitam os atomos que, ao voltarem para o seu estado de energia

mınima, emitem radiacao. Esta e encaminhada atraves de uma fenda para um prisma, que

dispersa a radiacao nos diversos comprimentos de onda, que sao impressos numa chapa

Page 60: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

44 O perıodo de Transicao

Figura 2.12: Fotografia do espectro de emissao do hidrogenio (cima) - serie de Balmer;comprimentos de onda correspondentes (baixo) (extraıdo de Eisberg & Resnick, ‘QuantumPhysics’ ).

fotografica. Para o hidrogenio obtem-se, na regiao do visıvel, uma fotografia do tipo da

imagem de cima na figura 2.12. Estas linhas sao (parte do) espectro de emissao do atomo

de Hidrogenio.

• No espectro de absorcao, a fonte de luz emite um espectro contınuo que incide num

contentor de vidro onde se encontra o gas a estudar. Este ira absorver alguns comprimentos

de onda particulares. Os restantes seguem para a fenda e daı para o prisma e chapa

fotografica. Assim, na fotografia de um espectro de absorcao teremos algumas riscas onde

falta radiacao, ao contrario do espectro de emissao que corresponde a algumas riscas onde

radiacao foi emitida.

Olhando para a figura 2.12 ha uma regularidade obvia nas riscas do espectro de emissao

do hidrogenio. Em 1885, Johann Balmer (1825-1898) mostrou que a seguinte formula

reproduzia correctamente os comprimentos de onda, λ, das riscas observadas:

1

λ= RH

(

1

22− 1

n2

)

, n = 3, 4, 5, ... (2.2.5)

onde RH e a chamada constante de Rydberg, cujo valor numerico (actual) e

RH = 10967757.6± 1.2 m−1 . (2.2.6)

Page 61: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.2 Materia: corpusculos versus ondas 45

A serie de comprimentos de onda descritos pela formula de Balmer chama-se serie de

Balmer. Para o hidrogenio existe uma infinidade de series de comprimentos de onda, cada

um descrito por uma formula semelhante a (2.2.5) - as primeiras cinco encontram-se escritas

na tabela seguinte.

Nome da serie Zona de Comprimentos de onda 1/λ Valores de n

Lyman Ultravioleta1

λ= RH

(

1

12− 1

n2

)

n = 2, 3, 4, . . .

Balmer Ultravioleta proximo e visıvel1

λ= RH

(

1

22− 1

n2

)

n = 3, 4, 5, . . .

Paschen Infravermelho1

λ= RH

(

1

32− 1

n2

)

n = 4, 5, 6 . . .

Brackett Infravermelho1

λ= RH

(

1

42− 1

n2

)

n = 5, 6, 7 . . .

Pfund Infravermelho1

λ= RH

(

1

52− 1

n2

)

n = 6, 7, 8, . . .

Era pois necessario um modelo atomico capaz de explicar estas riscas que fosse ao

mesmo tempo consistente com as observacoes de Rutherford.

2.2.2 O modelo atomico de Bohr (1913)

Um tal modelo foi proposto por Niels Bohr (1885-1962), baseado na observacao que, em

mecanica classica, o movimento de uma carga num campo de Coulomb tinha como possıveis

solucoes para orbitas fechadas, elipses e circunferencias. Por simplicidade Bohr escolheu

as ultimas e postulou que:

i) Um electrao num atomo move-se em orbitas circulares em torno do nucleo, sob a in-

fluencia do campo de Coulomb do nucleo, de acordo com as leis da mecanica classica;

ii) Ao contrario das leis da mecanica classica, apesar de acelerado, o electrao nao irradia

energia, mantendo a sua energia E constante;

iii) Ao contrario das leis da mecanica classica, as unicas orbitas possıveis para o movi-

mento do electrao sao aquelas cujo momento angular orbital, L, e um multiplo inteiro

Page 62: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

46 O perıodo de Transicao

de h/2π

L = n~⇔ mvr = n~ , ~ ≡ h/2π ; (2.2.7)

iv) Radiacao electromagnetica e emitida sempre que um electrao, inicialmente em movi-

mento numa orbita de energia total Ei muda descontinuamente - impossıvel em

mecanica classica - o seu movimento para uma orbita de energia total Ef . A ra-

diacao emitida tem frequencia

ν =Ei − Ef

h. (2.2.8)

Bohr notou que estes postulados conduziam a uma explicacao quantitativa do atomo

de hidrogenio. Mas generalizemos o argumento para um atomo com numero atomico Z.

O raio de uma orbita circular em mecanica classica e determinado pela igualdade da forca

centrıpeta (Coulomb neste caso) com a forca centrıfuga

1

4πǫ0

Ze2

r2= m

v2

r, (2.2.9)

onde ‘e’ e a carga do electrao (em modulo). A energia total de uma orbita circular no

problema de Coulomb e dada por

E =1

2mv2 − 1

4πǫ0

Ze2

r

(2.2.9)= − 1

8πǫ0

Ze2

r. (2.2.10)

Estes sao os ingredientes necessarios. Usando o terceiro postulado de Bohr em (2.2.9)

obtemos

r =4πǫ0mZe2

n2~

2 , (2.2.11)

o que introduzido em (2.2.10) da

E = −(

Ze2

4πǫ0

)2m

2n2~2. (2.2.12)

A quantificacao do momento angular das orbitas permitidas implica a quantificacao da

energia dessas orbitas. Assim, o quarto postulado de Bohr diz-nos que a radiacao emitida

quando o electrao salta de uma orbita com momento angular ni~ para uma orbita com

momento angular nf~

ν =

(

Ze2

4πǫ0

)2m

4π~3

(

1

n2f

− 1

n2i

)

,c=νλ⇒ 1

λ=

(

Ze2

4πǫ0

)2m

4π~3c

(

1

n2f

− 1

n2i

)

. (2.2.13)

Page 63: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.2 Materia: corpusculos versus ondas 47

Figura 2.13: ‘Saltos’ correspondendo as varias series do atomo de hidrogenio (extraıdo deEisberg & Resnick, ‘Quantum Physics’ ).

Esta formula reproduz a formula para as varias series do atomo de hidrogenio, se identifi-

carmos5

R∞ = RH , onde R∞ ≡(

Ze2

4πǫ0

)2m

4π~3c. (2.2.14)

O modelo de Bohr da a seguinte interpretacao ao atomo de hidrogenio. Chamemos a

cada valor possıvel de n um estado do electrao. Existe um nıvel de energia mınimo,

chamado estado fundamental, correspondente a n = 1. Todos os outros estados em que o

electrao se pode encontrar sao excitados. Cada serie do atomo de hidrogenio corresponde

a todos os saltos possıveis do electrao para um dado estado. Quando o estado final e o

fundamental (n = 1)/primeiro excitado (n = 2)/segundo excitado (n = 3) essa e a serie de

Lyman/Balmer/Paschen - figura 2.13.

5Rigorosamente, RH = Mm+M R∞, pois o centro de massa do movimento nao e exactamente no nucleo -

que tem massa M . Mas mesmo para o hidrogenio, M/m ≃ 1836, o que torna a aproximacao de consideraro nucleo como o centro de massa boa. Contudo, como a espectroscopia e uma ciencia muito exacta podem-se medir os desvios desta aproximacao. Mas considerando RH = M

m+M R∞ verifica-se concordancia com osdados experimentais ate 3 partes em 100.000, que resulta da estrutura fina.

Page 64: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

48 O perıodo de Transicao

2.2.3 As ondas electronicas

Qual o significado e porque funciona a quantificacao do momento angular proposta por

Bohr? Em 1924, Louis de Broglie (1892-1987) propos na sua tese de doutoramento que tal

como a luz tinha comportamentos corpusculares e ondulatorias, talvez tambem a materia

tivesse ambos os comportamentos. Em particular isto deveria ser verdade para os electroes.

Se assim fosse, poderiamos associar tanto a radiacao como a materia quantidades ondu-

latorias - como frequencia (ν) e comprimento de onda (λ) - e quantidades algo mais ‘cor-

pusculares’ - como energia (E) e quantidade de movimento (~p). De Broglie propos que

estas quantidades estariam relacionadas pelas equacoes

E = hν , |~p| = h

λ. (2.2.15)

A primeira e a relacao de Planck usada tambem por Einstein para explicar o efeito fo-

toelectrico. A segunda e consequencia da primeira para a radiacao, dado que para o campo

electromagnetico, E = c|~p|, e, c = νλ; de Broglie propos uma tal relacao para atribuir um

comprimento de onda a uma partıcula de materia. Se assim fosse, o terceiro postulado de

Bohr (2.2.7) ficaria

mvr = nh

2π⇔ 2πr = n

h

|~p| ⇔ 2πr

n= λ . (2.2.16)

Recordemos que o objectivo de Bohr era explicar a estabilidade e os nıveis de energia do

hidrogenio. A ultima relacao diz-nos que a quantificacao do momento angular requerida

por Bohr e equivalente, se aceitarmos a proposta de de Broglie, a condicao de existencia de

ondas estacionarias! Quando uma onda esta encerrada num intervalo fechado de dimensao

L, os estados estacionarios so existem para comprimentos de onda que sejam um divisor de

L. Outros comprimentos de onda nao tem a periodicidade correcta. Esta observacao dava

um significado fısico claro ao postulado de Bohr, se aceitassemos a hipotese de de Broglie.

Em 1926-27 a ideia de de Broglie foi confirmada pela experiencia, atraves da deteccao

de padroes de difraccao de feixes de electroes em experiencias feitas por Clinton Davis-

son (1881-1958) e Lester Germer (1896-1971) nos EUA e G.P. Thomson (1892-1975)

Page 65: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.3 A dualidade onda/corpusculo e a interpretacao probabilıstica da MecanicaQuantica 49

na Escocia.6 Desde essas experiencias ja se mostrou que objectos tao variados como

feixes moleculares de hidrogenio, feixes atomicos de helio ou neutroes tambem apresen-

tam padroes de difraccao. Assim verifica-se a hipotese de de Broglie: Todos os objectos

materiais, que normalmente consideramos partıculas ou aglomerados de partıculas tem

tambem comportamento ondulatorio. A razao porque, por exemplo, uma bola de fute-

bol com a massa de 1 Kg e deslocando-se a velocidade de 10 m/s nao aparenta qualquer

caracterıstica ondulatoria e porque o seu comprimento de onda de de Broglie e

λ =h

mv=

6.6× 10−34

1× 10= 6.6× 10−35 m , (2.2.17)

que e extremamente pequeno; a bola tera uma difraccao completamente irrelevante em

qualquer fenomeno do nosso quotidiano. Pelo contrario, um electrao com energia cinetica

de 100 eV, ou seja, 1.6 × 10−17J (que pode ainda ser considerado nao relativista) tem

comprimento de onda de de Broglie e

λ =h√

2mEc

=6.6× 10−34

√2× 9.1× 10−31 × 100× 1.6× 10−19

= 1.2× 10−10 m , (2.2.18)

que e da ordem do diametro atomico, sendo por isso o electrao difractado por uma rede de

atomos - figura 2.14.

Notemos que introduzindo a frequencia angular ω = 2πν e o vector de onda ~k cujo

modulo e 2π/λ, escrevemos as relacoes de Einstein-de Broglie (2.2.15)

E = ~ω , ~p = ~~k . (2.2.19)

2.3 A dualidade onda/corpusculo e a interpretacao

probabilıstica da Mecanica Quantica

Se tanto a materia como a radiacao tem tanto propriedades corpusculares como ondu-

latorias ha duas questoes imediatas

6Existe alguma ironia no facto de J.J. Thomson ter ganho o premio Nobel em 1906 pela sua descobertado electrao em 1897, que caracterizou como uma partıcula, e o seu filho G.P.Thomson ter ganho o premioNobel em 1937 pela descoberta da difraccao do electrao em 1927. Assim, Thomson, o pai, ganhou o Nobelpor ter mostrado que o electrao e uma partıcula e Thomson, o filho, ganhou o Nobel por ter mostrado queo electrao e uma onda...’

Page 66: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

50 O perıodo de Transicao

Figura 2.14: Cima: Aparato experimental para a experiencia de Debye-Scherrer para ob-servar a difracao de raios X (baixo esquerda - usa cristais de oxido de zirconio) ou elecroes(baixo direita - usa cristais de ouro). (extraıdo de Eisberg & Resnick, ‘Quantum Physics’ ).

Page 67: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.3 A dualidade onda/corpusculo e a interpretacao probabilıstica da MecanicaQuantica 51

• As propriedades ondulatorias do fotao sao descritas pelas equacoes de Maxwell. Que

equacao descreve as propriedades ondulatorias do electrao?

• Que relacao existe entre estes dois tipos de propriedades?

Historicamente estas perguntas so foram clarificadas com

i) O trabalho de Erwin Schrodinger (1887-1961) que em 1925 postulou uma equacao de

onda para descrever as ondas associadas a uma partıcula de materia, como por ex-

emplo um electrao. As solucoes da sua equacao denominam-se funcoes de onda,

Ψ(x);

ii) O trabalho de Max Born (1882-1970) que, em 1926, sugeriu que a interpretacao a dar

as funcoes de onda de Schrodinger seria de amplitude de probabilidade para encontrar

a partıcula num determinado ponto x e cujo modulo ao quadrado Ψ(x)Ψ(x)∗ seria

uma densidade de probabilidade;7

Estudemos duas experiencias que ilustram esta interpretacao probabilıstica. A primeira

lida com a funcao de onda no espaco de posicoes. Mas a maioria das partıculas tem outros

graus de liberdade que nao apenas a sua posicao ou momento. O spin dos electroes (ver

capıtulo 9) e a polarizacao dos fotoes sao dois exemplos. Assim, a funcao de onda completa

de uma partıcula devera conter informacao acerca desses outros graus de liberdade. No

segundo exemplo ilustramos a parte da ‘funcao de onda’ respeitante a polarizacao de fotoes.

2.3.1 Experiencia de Young com luz de baixa intensidade

Consideremos de novo a experiencia de Young com um setup experimental semelhante ao

da figura 2.5 e com luz monocromatica, frequencia ν. A experiencia original de Young

mostrou que a luz8 apresenta um padrao de interferencia e portanto conclui-se que ela

tem propriedades ondulatorias. Por outro lado, do efeito fotoelectrico sabemos que a

7Ψ(x) sera em geral complexo e ‘∗′ designa o complexo conjugado. Assim a densidade de probabilidadee garantidamente positiva e normalizando esta funcao termos uma funcao de distribuicao de probabilidadeno sentido de (C.39)

8Por luz pode-se entender a partir de agora radiacao electromagnetica.

Page 68: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

52 O perıodo de Transicao

intensidade da fonte e um indicador do numero de fotoes emitidos por unidade de tempo,

todos eles tendo a mesma energia hν. Imaginemos que diminuimos a intensidade ao ponto

de ser emitido apenas um fotao de cada vez. No alvo colocamos ao longo da direccao x um

grande numero de pequenos fotomultiplicadores, de modo a identificar com grande precisao

a coordenada x em que o fotao incide no alvo. Observamos o seguinte

i) Os fotodetectores detectam impactos localizados do fotao, isto e, um fotodetector da

sinal de cada vez, de acordo com a descricao corpuscular;

ii) Para pequenos numeros de fotoes, os impactos dos fotoes parecem ter uma distribuicao

aleatoria - figura 2.15 - esquerda;

iii) Para grandes numeros de fotoes, comecamos a recuperar o perfil de interferencia que

vemos na experiencia original de Young - figura 2.15 - direita.

Assim, as propriedades corpusculares sao confirmadas no que toca a deteccao individual

de fotoes - a luz vem em pacotes. E as propriedades ondulatorias sao verificadas no que

toca a deteccao de um padrao de interferencia quando muitos fotoes ja incidiram no alvo.

A localizacao do impacto de cada fotao parece ser aleatoria. Mas reconhecemos que esta-

tisticamente os fotoes distribuem-se de acordo com o padrao de interferencia. Ou seja

• A intensidade da onda descreve a densidade de probabilidades para a localizacao do

impacto.

Mas se o fotao tem um comportamento corpuscular, entao cada fotao passa ou pela

fenda 1 ou ou pela fenda 2 da figura 2.5, correcto? Mas se assim for, bloquearmos uma

das fendas deveria apenas parar cerca de metade dos fotoes continuando os outros a ex-

ibir o padrao de interferencia. Mas nos sabemos da experiencia de Young original que

nao e assim; bloqueando uma das fendas nao ha padrao de interferencia! Mas entao, do

ponto de vista de um fotao individual, ele intefere com que? Nao pode ser com os outros,

na medida em que nos fizemos a experiencia de modo que um fotao passasse de cada vez.

Logo

Page 69: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.3 A dualidade onda/corpusculo e a interpretacao probabilıstica da MecanicaQuantica 53

Figura 2.15: Experiencia de Young com fotoes. Esquerda: alguns impactos individuaisparecem aleatoriamente distribuidos; Direita: Estatisticamente comecamos a ver o padraode interferencia a formar-se.

• Cada fotao individual tem de inteferir consigo mesmo e so interfere se as duas fendas

estiverem abertas!

Notemos que se fizessemos uma experiencia de Young com electroes com um setup

tal que o tamanho das fendas seja da ordem do comprimento de onda de de Broglie dos

electroes de modo a que estes sejam apreciavelmente difractados, observarıamos:

- Os electroes apresentam um padrao de difracao semelhante ao da figura 2.5;

- Se enviassemos electroes individualmente, o fenomeno da figura 2.15 repetir-se-ia;

Isto e, tudo o que descrevemos para fotoes podia ser repetido ‘ipsis verbis’ para os electroes.

Tentemos, com a experiencia de electroes responder a seguinte questao: ‘Sera que con-

seguimos ver porque fenda passa o electrao, sem alterar o padrao de difraccao observado?’

O setup experimental e o seu resultado estao representados na figura 2.16. Existe uma

fonte luminosa imediatamente a seguir as fendas de modo a que se note uma variacao

da intensidade recebida por essa fonte devido a passagem do electrao. Se por exemplo o

electrao passar pela fenda 2, observamos uma variacao na luminosidade no ponto A. Assim

Page 70: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

54 O perıodo de Transicao

Figura 2.16: Experiencia de Young com electroes onde tentamos ver a fenda pelo qual oelectrao passa. Se o fizermos, necessariamente perdemos o perfil de interferencia (extraıdodas Feynman lectures in Physics - Vol 3 ).

podemos determinar porque lado passou o electrao. Se o fizermos, o padrao de difraccao

desaparece! Temos de concluir que

• Vermos o sistema quantico, implica interagir com ele de um modo que o altera.

• Nao conseguimos ver o comportamento ondulatorio e corpuscular de um sistema si-

multaneamente.

A interpretacao canonica em Mecanica Quantica (dita interpretacao de Copenhaga)

destas estranhas conclusoes e a seguinte:

i) Enquanto nao e medido, o fotao/electrao nao existe como entidade localizada, como

corpusculo, mas encontra-se antes diluıdo por todo o espaco com uma amplitude de

probabilidade que e dada pela funcao de onda;

ii) Apenas quando se efectua uma medicao se da o colapso da funcao de onda, apos o qual

detectamos o fotao/electrao como corpusculo localizado e cuja localizacao apenas

pode ser prevista probabilisticamente com a funcao de distribuicao de probabilidade

sendo o quadrado do modulo da funcao de onda (normalizada).

Page 71: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.3 A dualidade onda/corpusculo e a interpretacao probabilıstica da MecanicaQuantica 55

De acordo com esta interpretacao, as caracterısticas ondulatorias do fotao/electrao

resultam da sua amplitude de probabilidade se comportar como uma onda. Quando

interferimos de algum modo com esta onda, de modo a poder detectar onde se encon-

tra a partıcula a ela associada, mudamo-la, de modo a nao podermos mais ver os as-

pectos ondulatorios. Assim aspectos ondulatorios e corpusculares sao complementares -

princıpio da complementaridade. Note-se que classicamente estes aspectos eram vistos

como incompatıveis.

2.3.2 O princıpio da incerteza de Heisenberg

Existe uma expressao matematica para a incapacidade de, num sistema fısico, vermos

simultaneamente as propriedades ondulatorias e corpusculares de um electrao ou de um

fotao ou de qualquer outro objecto.

• Por partıcula (pontual) entendemos algo que tem uma posicao bem definida x;

• Por onda, entendemos um objecto que tem um comprimento de onda, λ, bem definido.

Note-se que quando sobrepomos ondas com diferentes comprimentos de onda (proximos)

e amplitudes semelhantes os padroes de interferencia comecam a ficar mal definidos.

Assim, deve haver uma expressao matematica que nos diga que a precisao com que con-

hecemos x e λ nao pode ser, simultaneamente, arbitrariamente pequena. Uma expressao

quantitativa pode ser deduzida da seguinte maneira. Consideremos uma partıcula descrita,

num determinado instante, por uma funcao de onda Ψ(x). A funcao de onda determina

uma funcao de distribuicao de probabilidade P(x), dada por

P(x) =Ψ(x)Ψ(x)∗

‖Ψ‖2 , onde ‖Ψ‖2 =

dxΨ(x)Ψ(x)∗ . (2.3.1)

Quanto menor for o desvio padrao de x, ∆x, sendo x tratado como uma variavel aleatoria

relativamente a densidade de probabilidade P(x), mais parecida fica a partıcula com uma

partıcula classica. Por outro lado, podemos exprimir a funcao de onda como uma com-

binacao linear de ondas planas monocromaticas, usando um integral de Fourier

Ψ(x) =1√2π

∫ +∞

−∞Ψ(k)eikxdk , (2.3.2)

Page 72: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

56 O perıodo de Transicao

onde a transformada de Fourier e

Ψ(k) ≡ 1√2π

∫ +∞

−∞Ψ(x)e−ikxdx . (2.3.3)

Podemos encarar Ψ como sendo a funcao de onda no espaco de Fourier, cujo quadrado

do modulo nos da uma densidade de probabilidade para a distribuicao do vector de onda

k = 2π/λ. A nossa partıcula sera tanto mais parecida com uma onda quanto menor

for o desvio padrao da variavel aleatoria k, ∆k, calculada relativamente a densidade de

probabilidade

P (k) =Ψ(k)Ψ(k)∗

‖Ψ‖2, onde ‖Ψ‖2 =

dkΨ(k)Ψ(k)∗ . (2.3.4)

Mas e uma propriedade das transformadas de Fourier que (em uma dimensao)

∆x∆k ≥ 1

2, (2.3.5)

ou, usando a relacao de de Broglie p = h/λ = ~k,

∆x∆p ≥ ~

2. (2.3.6)

Esta e a relacao de incerteza de Heisenberg. O coeficiente do ~ nesta equacao e n/2 quando

usamos transformadas de Fourier para funcoes em n dimensoes. Por isso exprime-se em

geral o princıpio da incerteza como

∆x∆p & ~ . (2.3.7)

Note-se que as grandes implicacoes fısicas estao contidas na passagem de (2.3.5) para

(2.3.6). A primeira destas expressoes refere-se apenas a uma relacao entre a dispersao

de uma funcao espacial e a dispersao dos comprimentos de onda das funcoes sinusoidais

que a descrevem no espaco de Fourier. E quando usamos a relacao de de Broglie, que

transformamos esta expressao em termos de quantidades puramente corpusculares, x e p.

Obtemos entao uma limitacao ao conhecimento de duas variaveis que associamos a uma

partıcula pontual e que em termos classicos podem ser conhecidas simultaneamente com

precisao arbitraria.

Page 73: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.3 A dualidade onda/corpusculo e a interpretacao probabilıstica da MecanicaQuantica 57

Esta incerteza esta intrinsecamente relacionada com o facto de que, no mundo mi-

croscopico, quando tentarmos ver o sistema, isto e, medir qualquer coisa, necessariamente

alteramos o sistema em questao. Essa alteracao tem um resultado imprevisıvel, numa

perspectiva determinista, como se ve pelos impactos localizados dos fotoes na figura 2.15.

O princıpio da incerteza de Heisenberg inspirou, desde que foi apresentado, algumas

das mais interessantes discussoes sobre o conhecimento humano, quer numa perspectiva

filosofica quer numa perspectiva cientıfica. O ponto de vista aqui apresentado e que se

trata de uma expressao matematica do princıpio da complementaridade.

2.3.3 Experiencia com a polarizacao da luz

Consideramos uma experiencia com uma onda electromagnetica plana e monocromatica -

frequencia ω - a propagar-se na direccao Oz da figura 2.17. Supomos que o campo electrico

esta polarizado linearmente na direccao definida por ep e como tal pode ser representado

por

~E(~r, t) = E0epei(kz−ωt) , (2.3.8)

onde E0 e uma constante e como tal a intensidade da luz (energia que passa por z =

constante por unidade de area e tempo) e

I =ǫ0c

2|E0|2 . (2.3.9)

Coloquemos um polarizador A que transmite a luz polarizada paralelamente a Ox e absorve

a luz polarizada paralelamente a Oy. Depois de passar pelo polarizador, a onda encontra-se

polarizada linearmente na direccao Ox e como tal o campo electrico e descrito por

~E ′(~r, t) = E ′0exe

i(kz−ωt) , (2.3.10)

e a intensidade da luz e dada pela lei de Malus

I ′ = I cos2 θ . (2.3.11)

Esta lei descreve o comportamento classico da radiacao ao passar por um polarizador. Mas

o que acontece se diminuirmos a intensidade suficientemente de modo a enviar um fotao

de cada vez?

Page 74: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

58 O perıodo de Transicao

Figura 2.17: Setup experimental para experiencia com a polarizacao de fotoes (extraıdo deCohen et al., ‘Quantum Mechanics’ ).

i) Nao e possıvel haver ‘meio’ fotao. Logo o fotao passa ou nao passa pelo polarizador;

ii) Se colocarmos um fotodetector atras do polarizador veremos que o fotao passa ou e

absorvido aleatoriamente; para grandes numeros de fotoes enviados, N , detectare-

mos atras do polarizador N cos2 θ fotoes, que seria o que esperarıamos pela formula

classica (2.3.11);

Fixemos as seguintes ideias deste exemplo

• Numa medicao de um sistema quantico ha determinados resultados priveligiados, de-

nominados resultados ou valores proprios. Neste caso os resultados proprios sao: a)

o fotao passa; b) o fotao nao passa; o espectro de resultados possıveis e, portanto,

discreto; isto contrasta com a situacao classica, onde o valor da intensidade depois

do polarizador varia continuamente entre I e 0, dependendo de θ;

• Descrevemos a polarizacao do fotao por um vector de polarizacao ep. A cada valor

proprio corresponde um estado proprio para o fotao

Para o valor proprio

‘passa′

‘nao passa′esta associado o estado proprio

ep = ex

ep = ey

.

Page 75: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.4 A aplicabilidade da Mecanica Quantica 59

Se o fotao se encontra num dado estado proprio, entao o resultado de uma medicao

da sua polarizacao e, com probabilidade igual a um, o valor proprio associado a esse

estado proprio.

• Para descrevermos o facto de o fotao passar, ou nao, aleatoriamente, dizemos que antes

da medicao, o fotao encontra-se numa sobreposicao de estados de polarizacao; isto e

a ‘funcao de onda’ de polarizacao

ep = cos θex + sin θey . (2.3.12)

O quadrado do modulo do coeficiente de um dado estado proprio descreve a prob-

abilidade de obter numa medicao o valor proprio associado a esse estado proprio.

Aplicando esta regra temos uma probabilidade de cos2 θ (sin2 θ) para o fotao passar

(nao passar). Note-se que a soma da probabilidade de todos os estados tem de ser

igual a um, caso contrario e necessario normalizar a funcao de onda de polarizacao. A

esta regra de decomposicao em estados proprios chama-se princıpio de decomposicao

espectral. Note-se que esta decomposicao depende do ‘setup’ experimental. Neste

caso, o angulo θ e o angulo com a direccao do polarizador.

• Quando ‘vemos’ se o fotao passa ou nao, interagimos com ele de modo que a sua funcao

de onda colapsa para um estado proprio. A partir desse momento o fotao encontra-se

nesse estado proprio. Por exemplo, se sabemos que ele passou pelo primeiro polar-

izador - porque interagimos com ele - entao passara por outros polarizadores iguais ao

primeiro que ponhamos no seu caminho. Mais uma vez vemos que interagir com um

sistema quantico, mesmo que com o objectivo ‘inocente’ de o ver, implica altera-lo

de uma maneira fundamental.

2.4 A aplicabilidade da Mecanica Quantica

Na teoria da relatividade existe uma constante fundamental que e a velocidade da luz, c.

A existencia desta constante da-nos um criterio simples para saber se temos de tratar o

sistema usando o formalismo relativista - matematicamente mais pesado - ou se podemos

Page 76: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

60 O perıodo de Transicao

usar a aproximacao nao relativista - matematicamente mais simples. Esse criterio e que as

velocidades tıpicas do sistema em questao, vt, sejam muito menores que a velocidade da

luz

vt ≪ c . (2.4.1)

Neste capıtulo vimos que quer na radiacao do corpo negro, quer no efeito fotoelectrico, quer

no atomo de Bohr, quer nas relacoes de de Broglie, quer no princıpio da incerteza, ha um

factor comum: a constante de Planck. Tal como a velocidade da luz no caso da relatividade,

a constante de Planck fornece um criterio simples para a necessidade de aplicar ou nao o

formalismo da mecanica quantica em detrimento do classico. O criterio e o seguinte: Se

as accoes tıpicas do sistema, St, forem muito maiores que h,

St ≫ h , (2.4.2)

podemos tratar o sistema na aproximacao classica; caso haja accoes da ordem da constante

de Planck temos de usar o formalismo da mecanica quantica. Isto nao significa que temos

de calcular a accao do sistema como definido no capıtulo 1. Basta-nos calcular variaveis

dinamicas tıpicas do sistema com as dimensoes de uma accao. Exemplos:

• Oscilador harmonico: uma accao tıpica e a energia total, dada pelo Hamiltoniano, a

dividir pela frequencia, ω. Para um oscilador com amplitude A e massa m obtemos

St =1

2ωmA2 . (2.4.3)

Para uma mola com ω = 10s−1, m = 1g, A = 0.1m, St = 5 × 10−5J · s ≫ h,

logo podemos esquecer efeitos quanticos e tratar o sistema classicamente. Mas se

pensarmos nas oscilacoes de um electrao, m ≃ 10−31kg numa escala atomica A ≃10−10m que emite no ultravioleta ω ≃ 1017s−1, obtemos St ≃ 10−34J · s ≃ h. Logo o

problema tem de ser tratado quanticamente, que e basicamente o caso da radiacao do

corpo negro. Veremos no capıtulo 5 o tratamento quantico do oscilador harmonico.

• Problema de Larmor: uma accao tıpica sera mais uma vez a energia total dada pelo

Hamiltoniano a dividir pela frequencia ciclotronica ωc. Obtemos

St =1

2ωcmr

2 , (2.4.4)

Page 77: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

2.5 Sumario 61

para uma orbita de raio r. Portanto consideracoes semelhantes ao caso anterior

podem ser feitas. Em particular, um electrao no regime atomico tem de ser tratado

quanticamente, dando origem a versao quantica do problema de Larmor, chamado

problema de Landau, que veremos no capıtulo 5.

• Problema de Kepler/Coulomb: consideremos as orbitas circulares; mais uma vez, uma

accao tıpica e a energia da orbita sobre a frequencia, que na notacao do problema 1

da folha de problemas 1 e

St =1

2

√αmr . (2.4.5)

Para o problema de Kepler, α = GmM e considerando o sistema Terra-Sol temos

α ≃ 1043N ·m2, m ≃ 1024kg, r ≃ 1011m. Claramente St ≫ h e nao necessitamos de

mecanica quantica. Para o problema atomico de Coulomb temos α = e2/(4πǫ0) ≃10−28N · m2, pelo que, usando os valores anteriores para massa do electrao e raio

atomico temos St ≃ 10−34 e portanto concluimos que o problema atomico cai no

forum da mecanica quantica; sera tratado no capıtulo 6.

• Um fotao: a accao tıpica de um fotao pode ser estimada como a energia a dividir

pela frequencia, que, pela formula de Planck e h. Logo um fotao e, por definicao,

uma entidade quantica. Posto de outra maneira, o campo electromagnetico para

intensidades suficientemente baixas tem de ser tratado quanticamente.

2.5 Sumario

Vimos que a luz (e a radiacao electromagnetica em geral) encarada por Newton como um

fluxo de corpusculos e por Huygens como uma onda, passou a ser vista como uma onda

depois das experiencias de Young e como uma partıcula depois das explicacoes da radiacao

do corpo negro por Planck, e principalmente, do efeito fotoelectrico por Einstein. Vimos

que a quantificacao do atomo feita por Bohr era naturalmente interpretada em termos de

estados estacionarios do electrao se associassemos ao electrao propriedades ondulatoridas,

mais tarde descobertas experimentalmente nas experiencias de Davisson e Germer e ainda

Page 78: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

62 O perıodo de Transicao

Thomson. Assim, tanto a materia como a radiacao tem propriedades ondulatorias e cor-

pusculares. As propriedades ondulatorias estao associadas as funcoes de onda que de-

screvem a amplitude de probabilidade para encontrar a partıcula no espaco. Tentando

‘ver’ a trajectoria da partıcula causamos o colapso da funcao de onda e o desaparecimento

posterior de propriedades ondulatorias. Esta complementaridade mutuamente exclusiva

entre propriedades corpusculares e ondulatorias esta expressa no princıpio da incerteza de

Heisenberg.

A descricao probabilıstica esta no amago da mecanica quantica. Assim, embora este-

jamos a descrever partıculas devemos abdicar do conceito de trajectoria em prol de algo

mais lato: o estado em que a partıcula se encontra. Esta situacao representa um contraste

marcado em relacao ao paradigma classico da fısica. Portanto, em mecanica quantica

TRAJECTORIA ESTADO

Page 79: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

CAPITULO 3

A equacao de Schrodinger

Se as partıculas como o electrao tem uma funcao de onda associada, Ψ(x), temos que

escrever uma equacao que descreve o comportamento e evolucao de tal funcao de onda.

Obviamente, uma tal equacao nao pode ser deduzida com base nas equacoes da mecanica

classica discutidas no capıtulo 1. Mas do capıtulo 2 sabemos algumas propriedades que

esta equacao deve ter:

• Deve ser consistente com as relacoes de Einstein e de Broglie (2.2.19)

E = ~ω , ~p = ~~k ; (3.0.1)

• Deve ser consistente com a expressao (nao relativista) para a energia total, E, de uma

partıcula de massa m, momento ~p, num potencial V (~x, t),

E =~p2

2m+ V (~x, t) ; (3.0.2)

• Para admitir fenomenos de interferencia deve ser linear, isto e admitir que a sobreposicao

de duas solucoes seja ainda uma solucao, pois e essa sobreposicao que da origem a

fenomenos de interferencia, como na seccao 2.1.1 para ondas na agua;

• Quando o potencial for zero, tanto a energia como o momento da partıcula devem ser

constantes - a partıcula e livre. Traduzindo nas quantidades ondulatorias tanto

Page 80: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

64 A equacao de Schrodinger

a frequencia como o vector de onda devem ser constantes. Mas isto e o que se

passa para uma onda plana monocromatica. Assim, assumimos que uma onda plana

monocromatica, que e representada por

Ψ(~x, t) = ei(~k·~x−ωt) , (3.0.3)

e solucao da equacao de onda procurada.

Usando (3.0.1) em (3.0.2) obtemos, na ausencia de potencial,

~ω =~2

2m~k2 . (3.0.4)

Esta relacao de dispersao e a obtida se actuarmos em (3.0.3) com uma derivada temporal

e duas espaciais, isto e

i~∂Ψ(~x, t)

∂t= − ~2

2m∆Ψ(~x, t) , (3.0.5)

onde ∆ representa o Laplaciano. Esta e chamada a equacao de Schrodinger para uma

partıcula livre. Adicionando o termo do potencial, que tem de ser multiplicado pela funcao

de onda devido a linearidade da equacao

i~∂Ψ(~x, t)

∂t=

[

− ~2

2m∆ + V (~x, t)

]

Ψ(~x, t) , (3.0.6)

obtemos a equacao de Schrodinger, sugerida em 1925 pelo fısico austrıaco Erwin Schrodinger.

Esta discussao nao pretende ser uma derivacao da equacao de Schrodinger. Apenas uma

motivacao. A equacao de Schrodinger nao e derivada, mas sim postulada. A sua validacao

provem da concordancia com os resultados experimentais.

3.1 Descricao Quantica de uma partıcula livre - Trem

de Ondas

Qual a funcao de onda adequada para descrever uma partıcula que nao esteja actuada

por nenhum potencial, i.e. uma partıcula livre? A solucao mais simples da equacao de

Schrodinger e a onda plana monocromatica (3.0.3), por construcao. Contudo, segundo o

Page 81: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

3.1 Descricao Quantica de uma partıcula livre - Trem de Ondas 65

postulado de Born para a interpretacao da funcao de onda, a funcao de distribuicao de

probabilidade associada a Ψ(~x, t) e

P(~x, t) =Ψ(~x, t)Ψ(~x, t)∗

‖Ψ(t)‖2 , (3.1.1)

onde a norma ‖Ψ(t)‖, que e - a priori - funcao do tempo1, e calculada como

‖Ψ(t)‖2 =

d3~xΨ(~x, t)Ψ(~x, t)∗ . (3.1.2)

Entao se tomarmos para a funcao de onda (3.0.3)

‖Ψ(t)‖2 =

d3~xei(~k·~x−ωt)e−i(~k·~x−ωt) =∞ , (3.1.3)

ou seja, a norma diverge. Diz-se que a funcao de onda nao e normalizavel. Este resultado

nao e inesperado. Uma onda plana monocromatica tem um vector de onda bem definido e

como tal um comprimento de onda bem definido. Logo, o desvio padrao para a distribuicao

de vectores de onda e zero e pela relacao de de Broglie ∆pi = 0, para todos os i. Pelo

princıpio da incerteza, ∆xi = ∞. Isto significa que a partıcula tem igual probabilidade

de estar em todos os pontos. Mas uma tal distribuicao de probabilidade constante sobre

toda a recta real e necessariamente nao normalizavel. Assim, esperamos que uma funcao

de onda fisicamente razoavel de origem a uma densidade de probabilidade que nao seja

totalmente delocalizada.

Existe uma segunda razao pela qual uma onda plana monocromatica nao e uma ‘boa’

funcao de onda para uma partıcula. Consideremos as expressoes relativistas de energia e

momento de uma partıcula

E =mc2

1− v2/c2, ~p =

m~v√

1− v2/c2, (3.1.4)

onde m e a massa em repouso da partıcula e v a sua velocidade relativamente a um dado

referencial inercial. Deduzimos que

~p =E

c2~v . (3.1.5)

1Veremos que na evolucao de um sistema fısico a norma e conserada, pelo que se a funcao de onda estivernormalizada assim permanecera. Esta propriedade decorre da unitariedade do operador de evolucao.

Page 82: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

66 A equacao de Schrodinger

Uma onda monocromatica e definida pela frequencia angular ω e pelo vector de onda, com

norma |~k|. A velocidade a que se propaga uma dada fase, isto e um maximo ou um mınimo

da onda - dita velocidade de fase - e dada por ~k ·~x−ωt = constante; portanto a velocidade

de fase tem norma

vfase =ω

|~k|(3.0.1)=

E

|~p|(3.1.5)=

c2

|~v| , (3.1.6)

que nao so e diferente da velocidade da partıcula como e maior - para uma partıcula com

massa, para a qual |~v| < c - do que a velocidade da luz no vazio! Como tal concluimos

que uma onda monocromatica nao e uma descricao aceitavel da funcao de onda de uma

partıcula.

Ambas as dificuldades anteriores sao ultrapassadas se usarmos uma sobreposicao de

ondas monocromaticas de varias frequencias para descrever a nossa partıcula, isto e, um

pacote ou trem de ondas. As razoes sao as seguintes: 1) Ao adicionarmos ondas de varias

frequencias, estas interferem destrutivamente e construtivamente de um modo que pode

localizar mais a funcao de onda, tornando-a normalizavel; 2) A velocidade do pacote de

ondas nao e a media das velocidades de fase de cada uma das ondas que formam o pacote;

e antes a velocidade de propagacao do maximo da amplitude, dita velocidade de grupo. A

propagacao deste maximo resulta de fenomenos de interferencia, podendo a sua velocidade

ser identificada com a da partıcula classica associada a onda.

Devido a linearidade da equacao de Schrodinger uma tal sobreposicao e necessariamente

ainda uma solucao desta equacao. Comecamos com o caso simples de uma sobreposicao

discreta, para depois irmos para o caso de uma sobreposicao contınua, que e o caso de

interesse fısico.

3.1.1 Sobreposicao discreta de ondas

Consideramos, no instante t = 0, uma sobreposicao discreta de ondas, isto e, algo do tipo

Ψ(~x, 0) =n∑

j=1

Ajei(~kj ·~x) , (3.1.7)

correspondendo a uma sobreposicao de n ondas planas, com amplitudes Aj e vectores de

onda ~kj. Por simplicidade vamos trabalhar em uma dimensao e especializemos a nossa

Page 83: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

3.1 Descricao Quantica de uma partıcula livre - Trem de Ondas 67

Figura 3.1: Tres ondas monocromaticas e a sua sobreposicao. Na figura de baixo, a linha atracejado corresponde ao modulo da funcao de onda (Extraıdo de Cohen et al, ‘QuantumMechanics ’).

analise para o seguinte caso:

n = 3 , kj =

(

k0 −∆k

2, k0, k0 +

∆k

2

)

, Aj =g(k0)√

(

1

2, 1,

1

2

)

. (3.1.8)

Com esta escolha (3.1.7) fica

Ψ(x, 0) =g(k0)√

2πeik0x

(

1 + cos

(

x∆k

2

))

. (3.1.9)

Na figura 3.1 representamos as varias ondas monocromaticas e a sua sobreposicao. Este

exemplo mostra o efeito, ora destrutivo ora construtivo, da interferencia das varias ondas.

Notando que

|Ψ(x, 0)| =√

Ψ(x, 0)Ψ(x, 0)∗ =g(k0)√

(

1 + cos

(

x∆k

2

))

, (3.1.10)

este exemplo mostra tambem como o modulo da funcao de onda (e como tal a densidade

de probabilidade) que e representado pela linha tracejada na figura 3.1 - que corresponde

a funcao (1 + cos(x∆k/2) - ficou mais localizada do que no caso de uma so onda. Esta e

que e a imagem a reter do pacote de ondas.

Page 84: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

68 A equacao de Schrodinger

Note-se que neste caso ainda nao resolvemos o problema da nao normalizacao da funcao

de onda. De facto, qualquer sobreposicao discreta de ondas monocromaticas da origem a

uma funcao periodica. No caso que temos em mao, isso significa que na figura 3.1 ha

infinitas repeticoes quer para a esquerda quer para a direita da figura de baixo. Para

termos uma funcao de onda normalizavel temos necessariamente de ter uma sobreposicao

contınua de ondas monocromaticas (se as ondas estiverem definidas sobre todo o R).

Com este exemplo podemos ilustrar o princıpio de incerteza. Suponhamos que

P(x) ∝(

1 + cos

(

x∆k

2

))2

, para x ∈ 2

∆k[−π, π] , (3.1.11)

e P(x) = 0 fora deste intervalo. Consideramos apenas uma dimensao. Uma medida para o

‘espalhamento’ dos valores de x, ∆x, e o tamanho do intervalo onde se distribui a densidade

de probabilidade; logo

∆x∆k ≃ 4π , (3.1.12)

de onde conluimos que aumentando ∆k se diminui ∆x, conforme esperado pelo princıpio

da incerteza.

Com este exemplo podemos ver como a sobreposicao modifica a velocidade de propagacao.

Tomamos agora para t > 0

Ψ(~x, t) =

n∑

j=1

Ajei(~kj ·~x−tωj) , (3.1.13)

e especializamos para (3.1.8) juntamente com

ωj =

(

ω0 −∆ω

2, ω0, ω0 +

∆ω

2

)

. (3.1.14)

Neste caso obtemos,

Ψ(x, t) =g(k0)√

2πei(k0x−tω0)

(

1 + cos

(

x∆k

2− ∆w

2t

))

, (3.1.15)

e

|Ψ(x, t)| = g(k0)√2π

(

1 + cos

(

x∆k

2− ∆w

2t

))

. (3.1.16)

Page 85: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

3.1 Descricao Quantica de uma partıcula livre - Trem de Ondas 69

A velocidade de grupo e por definicao a velocidade com que o maximo do modulo da funcao

de onda esta a avancar, que e

vgrupo =∆ω

∆k, (3.1.17)

que nao coincide com nenhuma das velocidades de fase

vfase =

(

2ω0 −∆ω

2k0 −∆k,ω0

k0,2ω0 + ∆ω

2k0 + ∆k

)

, (3.1.18)

nem com a sua media. Veremos a seguir que esta velocidade de grupo coincide com a

velocidade ‘classica’ da partıcula.

3.1.2 Sobreposicao contınua de ondas

Consideramos agora uma funcao de onda dada pela sobreposicao contınua de ondas na

forma

Ψ(x, 0) =1√2π

∫ +∞

0

g(k)ei(kx+φ(k))dk , (3.1.19)

onde g(k) e a amplitude (real) do modo de Fourier com comprimento de onda λ = 2π/k e

φ(k) e uma fase que depende do modo de Fourier. Tomamos a amplitude como sendo nao

nula apenas em[

k0 −∆k

2, k0 +

∆k

2

]

, (3.1.20)

intervalo no qual a fase φ(k) varia suavemente. Sendo o intervalo suficientemente pequeno,

aproximamos

φ(k) = φ(k0) +

(

dk

)

k0

(k − k0) ≡ φ0 − φ′0(k − k0) . (3.1.21)

Deste modo, para este caso particular, expressamos (3.1.19) como

Ψ(x, 0) =1√2πei(φ0+k0x)

∫ k0+∆k/2

k0−∆k/2

g(k)ei(k−k0)(x−φ′0)dk ≡ A(x, 0)ei(φ0+k0x) . (3.1.22)

Assim, expressamos a nossa sobreposicao contınua de ondas como uma onda plana com

amplitude variavel. Esta forma da funcao e util para estudar a variacao de |Ψ(x, 0)| com

x:

Page 86: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

70 A equacao de Schrodinger

• Para (x− φ′0) >> 1/(k − k0), a funcao

ei(k−k0)(x−φ′0) , (3.1.23)

oscila muito rapidamente quando variamos k no intervalo permitido. Assim, o integral

em (3.1.22) e aproximadamente a media da funcao (3.1.23), que e zero;

• Para x ≃ φ′0, a funcao (3.1.23) praticamente nao oscila, dando o integral uma forte

contribuicao e sendo a amplitude A(x, 0) dominante neste ponto.

Concluimos assim duas coisas:

i) O centro do pacote de ondas, isto e, o maximo da amplitude e em

xcentro = φ′0 ≡ −

(

dk

)

k0

; (3.1.24)

ii) A norma da funcao de onda

‖Ψ(0)‖2 =

∫ +∞

−∞Ψ(x, 0)Ψ(x, 0)∗dx =

∫ +∞

−∞A(x, 0)A(x, 0)∗dx , (3.1.25)

e agora finita, pois a amplitude e nula para (x−φ′0) >> 1/(k−k0) e nunca e infinita.2

Agora mostramos que a velocidade de grupo deste pacote de ondas coincide com a ve-

locidade classica da partıcula que lhe podemos associar. Para isso consideramos a nossa

funcao de onda (3.1.19) para t > 0

Ψ(x, t) =1√2π

∫ +∞

0

g(k)ei(kx+φ(k)−w(k)t)dk , (3.1.26)

onde a frequencia ω(k) e uma funcao suave do modo de Fourier, para a qual utilizamos

uma aproximacao semelhante aquela usada para a fase

ω(k) = ω(k0) +

(

dk

)

k0

(k − k0) ≡ ω0 + ω′0(k − k0) . (3.1.27)

2Nota tecnica: para o integral (3.1.25) convergir e necessario que A(x, 0)A(x, 0)∗ decaia mais rapida-mente que 1/x. Analisando (3.1.22), podemos concluir que A(x, 0) decai como 1/x, pelo que A(x, 0)A(x, 0)∗

decai de facto mais rapidamente do que 1/x.

Page 87: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

3.2 Partıcula em potenciais independentes do tempo 71

Usando esta expressao e (3.1.21), escrevemos (3.1.26) como

Ψ(x, t) =1√2πei(φ0+k0x−ω0t)

∫ k0+∆k/2

k0−∆k/2

g(k)ei(k−k0)(x−φ′0−ω′

0t)dk ≡ A(x, t)ei(φ0+k0x−ω0t) .

(3.1.28)

Pela mesma argumentacao usada anteriormente concluimos que o centro do pacote de

ondas se encontra agora em

xcentro = φ′0 + ω′

0t , (3.1.29)

pelo que se desloca com velocidade

vgrupo = ω′0 ≡

(

dk

)

k0

. (3.1.30)

Pelas relacoes de Einstein-de Broglie, (3.0.1), isto implica que3

vgrupo =

(

dE

dp

)

p0

=p0

m= v0 . (3.1.31)

A filosofia e agora a seguinte. Ao expressarmos a sobreposicao contınua de ondas na forma

(3.1.28) pensamos nela como uma onda plana monocromatica com amplitude variavel, a

qual podemos associar uma velocidade de duas maneiras distintas: i) A sua frequencia,

ω0, e vector de onda, k0, definem pelas relacoes de de Broglie uma energia e um momento,

que por sua vez definem a velocidade da partıcula: v0 = dE/dp, para p = p0 = ~k0; ii) A

velocidade de propagacao do maximo da amplitude, que e dado pela velocidade de grupo

(3.1.31), que coincide com a anterior.

3.2 Partıcula em potenciais independentes do tempo

Se o potencial onde a partıcula se encontra e independente do tempo, a equacao de

Schrodinger (3.0.6) escreve-se

i~∂Ψ(~x, t)

∂t=

[

− ~2

2m∆ + V (~x)

]

Ψ(~x, t) . (3.2.1)

3Na penultima e ultima igualdades da equacao (3.1.31) usamos a expressao nao relativista da energia;se usassemos as expressoes relativistas (3.1.4) o resultado final seria o mesmo.

Page 88: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

72 A equacao de Schrodinger

Podemos tentar encontrar solucoes desta equacao separando variaveis, isto e tomando como

ansatz

Ψ(~x, t) = Φ(~x)χ(t) . (3.2.2)

Colocando no lado esquerdo a dependencia temporal e do lado direito a dependencia es-

pacial, a equacao de Schrodinger reescreve-se

i~

χ(t)

∂χ(t)

∂t=

1

Φ(~x)

[

− ~2

2m∆ + V (~x)

]

Φ(~x) . (3.2.3)

O lado direito so depende de ~x e o esquerdo so depende de t. Logo, para ter solucoes

desta equacao cada lado tem de ser igual a uma constante. Dado que os varios termos tem

dimensao de ‘energia’, interpretamos a constante, denotada E, como energia e obtemos:

1) Do lado esquerdo

i~dχ(t)

dt= Eχ(t) ⇒ χ(t) = e−iEt/~ = e−iωt , (3.2.4)

onde usamos (3.0.1). Assim a dependencia temporal esta bem definida;

2) Do lado direito,[

− ~2

2m∆ + V (~x)

]

Φ(~x) = EΦ(~x) . (3.2.5)

A esta equacao chamamos equacao de Schrodinger independente do tempo. Entende-se

que as suas solucoes representam a parte espacial da funcao de onda; a funcao de onda

total e

Ψ(~x, t) = Φ(~x)e−iωt . (3.2.6)

Solucoes deste tipo da equacao de Schrodinger, sao baptizadas de estados estacionarios.

Representam estados com energia bem definida, E = ~ω.

Podemos reescrever a equacao de Schrodinger independente do tempo como

HΦ(~x) = EΦ(~x) , (3.2.7)

onde definimos o operador diferencial linear H, chamado operador Hamiltoniano,

H ≡ − ~2

2m∆ + V (~x) . (3.2.8)

Page 89: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

3.2 Partıcula em potenciais independentes do tempo 73

Deste ponto de vista, resolver a equacao de Schrodinger independente do tempo e resolver

um problema de valores proprios e funcoes proprias, isto e, as energias sao valores proprios

e as funcoes Φ(~x) sao funcoes proprias do operador Hamiltoniano. Podemos descrever

tambem a equacao (3.2.4) nesta linguagem: a dependencia temporal da funcao de onda

para estados estacionarios, e−iEt/~, e uma funcao propria do operador diferencial linear T ,

denominado operador de translacoes temporais

T ≡ i~∂

∂t, (3.2.9)

com valor proprio E. Assim, a funcao de onda (3.2.6) e um produto de funcoes proprias

dos operadores H e T .4 Note-se que devido a linearidade da equacao de Schrodinger,

manifesta no facto dos operadores H e T serem lineares, qualquer combinacao linear de

estados proprios e ainda uma solucao da equacao de Schrodinger. No capıtulo 4 iremos

sistematizar o formalismo de operadores, funcoes proprias e vectores proprios em mecanica

quantica.

Vamos agora estudar os estados estacionarios para alguns potenciais concretos, em uma

dimensao. O nosso objectivo e contrastar o comportamento de uma partıcula quantica,

descrita pela equacao de Schrodinger, com o de uma partıcula classica, sendo a diferenca

fundamental a seguinte: a partıcula quantica propaga-se como uma onda. Os potenciais

escolhidos sao matematicamente simples de tratar pois sao constantes por pedacos: po-

tenciais em escada. Isto implica certas descontinuidades. Mas note-se que estas descon-

tinuidades nao sao fısicas; devemos pensar nos exemplos a seguir como aproximacoes de

potenciais contınuos que variam rapidamente.

3.2.1 Caracterısticas gerais num potencial em escada

Por potencial em escada entende-se um potencial que e constante por pedacos. As figuras

3.3, 3.7 e 3.11 sao exemplos de potenciais em escada. Em cada uma das regioes, a equacao

4Note que, em geral, a equacao de Schrodinger se pode escrever TΨ(t, ~x) = H(t)Ψ(t, ~x). Para os estadosestacionarios os valores proprios destes dois operadores coincidem.

Page 90: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

74 A equacao de Schrodinger

de Schrodinger independente do tempo (3.2.5) fica uma equacao do tipo

d2Φ(x)

dx2+

2m

~2(E − V )Φ(x) = 0 , (3.2.10)

para um V constante. Analisemos os varios tipos de solucoes:

i) Se E > V esta e uma equacao do tipo da do oscilador harmonico (1.1.5), cuja solucao

escrevemos agora como

Φ(x) = Aeikx + A′e−ikx , (3.2.11)

(que e equivalente a escrever Φ(x) = A cos(kx+ φ0)) onde definimos

k =

2m(E − V )

~, (3.2.12)

e as constantes A,A′ sao numeros complexos, pois a funcao de onda e complexa.

Estas solucoes correspondem a uma funcao de onda ‘ondulatoria’.

ii) Se E < V esta e uma equacao do tipo da do oscilador harmonico mas com ‘frequencias

imaginarias’. Isto significa que em vez de exponenciais imaginarias temos como

solucoes exponenciais reais

Φ(x) = Bekx +B′e−kx , (3.2.13)

onde B,B′ sao constantes complexas e

k =

2m(V − E)

~. (3.2.14)

Estas solucoes correspondem a funcoes de onda que crescem ou decrescem exponen-

cialmente.

iii) Se E = V a solucao e

Φ(x) = C + C ′x , (3.2.15)

que e uma funcao de onda linear, onde C,C ′ sao constantes complexas. Este caso e

muito particular e nao sera usado na nossa analise.

Page 91: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

3.2 Partıcula em potenciais independentes do tempo 75

V0

V(x)

x0

Figura 3.2: Potencial real aproximado por um potencial em escada.

O que ira acontecer a funcao de onda nos pontos de descontinuidade do potencial? Para es-

clarecer este ponto recordamos que os verdadeiros potenciais fısicos nao serao descontınuos;

variarao rapidamente mas serao contınuos. Assim, por exemplo, o potencial da figura 3.3

e uma aproximacao ao potencial da figura 3.2. O primeiro e mais facil de tratar matem-

aticamente, mas o segundo sera o potencial realista.

Deste modo podemos pensar num potencial em escada, V (x), que e descontınuo no

ponto x0, como limite de potenciais contınuos no intervalo [x0 − ǫ, x0 + ǫ], Vǫ(x), que

coincidem com V (x) fora deste intervalo. Para cada Vǫ(x), existe uma funcao de onda

Φǫ(x), que obedece ad2Φǫ(x)

dx2+

2m

~2(E − Vǫ)Φǫ(x) = 0 . (3.2.16)

Integrando esta equacao diferencial entre x0 − η e x0 + η, obtemos

dΦǫ

dx(x0 + η)− dΦǫ

dx(x0 − η) =

2m

~2

∫ x0+η

x0−η

[Vǫ(x)−E]Φǫ(x)dx . (3.2.17)

Para as funcoes Φǫ(x) e o seu limite quando ǫ→ 0 serem boas funcoes de onda, nao podem

divergir em nenhum ponto; caso contrario, a densidade de probabilidade associada a esse

ponto seria infinita. Entao tomamos estas funcoes de onda como finitas. Logo o integrando

em (3.2.17) e finito, inclusive no limite ǫ→ 0. Tirando seguidamente o limite η → 0, con-

cluimos que dΦ(x)/dx e contınua em x0. Isto implica que Φ(x) tambem e contınua em x0 -

de facto, derivavel. Assim, iremos impor que a funcao de onda e a sua derivada sao contınuas

nas descontinuidades do potencial.

Page 92: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

76 A equacao de Schrodinger

Note-se que a analise do ultimo paragrafo assumiu implicitamente que o potencial e

finito, caso contrario o integrando em (3.2.17) seria infinito. No caso de o potencial ser

infinito, a derivada da funcao de onda nao sera contınua, mas podemos ainda requerer con-

tinuidade da funcao de onda. O potencial ser infinito numa dada regiao (finita) significa que

a funcao de onda sera zero nessa regiao. Como veremos, uma partıcula quantica pode pene-

trar numa regiao com um potencial, V , maior do que a sua energia, E - regiao classicamente

proibida pois, como E = Ecinetica + V , significaria que Ecinetica < 0. Contudo, o seu poder

de penetracao, que e dado por uma onda evanescente, diminui quando V − E aumenta.

Quando V → ∞, essa possibilidade de penetracao desaparece. Assim, para uma descon-

tinuidade infinita do potencial imporemos apenas a continuidade da funcao de onda, o que

sera suficiente para resolver o problema, dado que o valor da funcao de onda na regiao onde

o potencial e infinito e conhecido: e zero.

Vamos desde ja definir a intensidade de uma funcao de onda, I, como a densidade de

probabilidade de posicao da partıcula vezes a velocidade de propagacao da mesma. Para

uma onda plana

Ψ(x, t) = Aei(Et/−kx) ⇒ I = |A|2 ~k

m. (3.2.18)

Note-se que a definicao e analoga a da intensidade de uma onda plana, que e a quantidade

de energia que atravessa uma superfıcie disposta normalmente a direccao de propagacao da

onda por unidade de tempo e de area. Equivalentemente, e a densidade de energia vezes a

velocidade de propagacao.

3.2.2 Salto de potencial (E > V0)

Consideramos o potencial na figura 3.3. As solucoes da equacao de Schrodinger indepen-

dente do tempo para uma partıcula com energia E, tal que E > V0 sao

Regiao I Φ(x) = A1eik1x + A′

1e−ik1x com k1 =

√2mE

~

Regiao II Φ(x) = A2eik2x + A′

2e−ik2x com k2 =

2m(E − V0)

~

. (3.2.19)

Requerendo continuidade da funcao de onda e da sua derivada em x = 0 obtemos, respec-

tivamente

Page 93: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

3.2 Partıcula em potenciais independentes do tempo 77

V0

I II

A1A’1 A2 A’2

V(x)

x0

E

Figura 3.3: Salto de potencial. Distinguimos duas regioes: x < 0 e a Regiao I, onde V = 0;x > 0 e a Regiao II, onde V = V0; aqui consideramos as varias ondas associadas a umapartıcula com E > V0.

A1 + A′1 = A2 + A′

2

k1(A1 −A′1) = k2(A2 −A′

2). (3.2.20)

Temos quatro constantes de integracao e duas condicoes entre elas, o que, portanto, nao

especifica suficientemente a solucao. Podemos pois por uma constante igual a zero: A′2 = 0.

Fisicamente esta escolha tem o seguinte significado. Recordando que a funcao de onda total

e dada por

Ψ(x, t) = Φ(x)e−iEt/~ , (3.2.21)

podemos ver qual a direccao em que viajam as varias ondas da solucao, o que se encontra

representado na figura 3.3. Se pensarmos fisicamente no nosso problema como descrevendo

uma partıcula que vem de x = −∞ (associada a onda A1), que tem uma probabilidade de

ser transmitida para a regiao II em x = 0 (associada a onda A2) e uma probabilidade de

ser reflectida de volta para a regiao I (associada a onda A′1), concluimos que nao devemos

ter a onda A′2. Assim, escrevemos a solucao das equacoes (3.2.20) como

A′1

A1=k1 − k2

k1 + k2,

A2

A1=

2k1

k1 + k2. (3.2.22)

Page 94: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

78 A equacao de Schrodinger

Estas sao designadas, respectivamente, amplitudes de reflexao e transmissao. As intensi-

dades das ondas incidentes, reflectida e transmitida sao, respectivamente

Ii =|A1|2~k1

m, Ir =

|A′1|2~k1

m, It =

|A2|2~k2

m. (3.2.23)

Definimos o factor de transmissao T , e o factor de reflexao R, respectivamente como

T ≡ ItIi

=k2

k1

A2

A1

2

=4k1k2

(k1 + k2)2, R ≡ Ir

Ii=

A′1

A1

2

=

(

k1 − k2

k1 + k2

)2

. (3.2.24)

Note-se que

T +R = 1 . (3.2.25)

Assim, as quantidades T e R sao apropriadas para ser interpretadas como a probabilidade

de transmissao e reflexao da partıcula. Vemos desde ja uma diferenca fundamental entre

a descricao quantica e classica desta partıcula: Classicamente a partıcula seria sempre

transmitida para a regiao II; quanticamente existe uma probabilidade de a partıcula ser

reflectida de volta para a regiao I. Este facto e facilmente entendido se pensarmos numa

analogia com optica. Uma onda que chega a fronteira entre dois meios com ındices de

refraccao diferentes, proporcionais a k1 e k2, tem uma componente transmitida e reflectida.

Para incidencia normal, as formulas de Fresnel que descrevem a razao entre os varios

campos electricos envolvidos coincidem com (3.2.22). Assim, em optica este resultado e

claro. A mecanica quantica entra quando pensamos na onda como a funcao de onda que

descreve uma partıcula.

3.2.3 Salto de potencial (E < V0)

Consideramos o mesmo potencial que no caso anterior, mas tomamos agora uma partıcula

com E < V0, como representado na figura 3.4. As solucoes da equacao de Schrodinger

independente do tempo sao:

Regiao I Φ(x) = Aeik1x + A′e−ik1x com k1 =

√2mE

~

Regiao II Φ(x) = Bek2x +B′e−k2x com k2 =

2m(V0 − E)

~

. (3.2.26)

Page 95: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

3.2 Partıcula em potenciais independentes do tempo 79

V0

I II

V(x)

x0

EA’ AB B’

Figura 3.4: Salto de potencial. Aqui consideramos as varias ondas associadas a umapartıcula com E < V0. Na regiao II essas ondas sao exponenciais; na figura damos a ideiade qual a crescente e qual a decrescente.

Requerendo continuidade da funcao de onda e da sua derivada em x = 0 obtemos, respec-

tivamente

A+ A′ = B +B′

ik1(A− A′) = k2(B − B′). (3.2.27)

Neste caso, para que a funcao de onda seja limitada quando x → +∞ tomamos B = 0.

Logo

A′

A=k1 − ik2

k1 + ik2,

B′

A=

2k1

k1 + ik2. (3.2.28)

A funcao de onda na regiao II ja nao e uma onda plana, e nao lhe podemos associar uma

velocidade e como tal uma intensidade de probabilidade. Por isso nao podemos calcular

um coeficiente de transmissao. Isto e consistente com o facto de o coeficiente de reflexao

ser

R =

k1 − ik2

k1 + ik2

2

= 1 . (3.2.29)

Concluimos que 1) tal como em mecanica classica, a partıcula quantica e sempre reflectida;

2) mas a funcao de onda nao e zero na regiao II, decaindo exponencialmente - diz-se que

existe uma onda evanescente na regiao II (figura 3.5), havendo portanto uma probabilidade

nao nula de encontrar a partıcula nessa regiao. A razao da consistencia entre estes dois

Page 96: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

80 A equacao de Schrodinger

V0

I II

x,tΨ( ) x,tΨ( )

x0

*

Figura 3.5: Salto de potencial. Representacao do modulo da funcao de onda ao quadradopara um t fixo, para uma partıcula com E < V0. Note-se a onda evanescente na regiao II.

factos e a seguinte. Note-se que A′/A tem uma parte imaginaria

Im

(

A′

A

)

= − 2k1k2

k21 + k2

2

. (3.2.30)

Logo, ha um diferenca de fase entre a onda incidente e a reflectida, que pode ser vista

como um atraso na reflexao. Podemos pensar que, embora a partıcula quantica - tal

como a classica - seja sempre reflectida, a partıcula quantica - ao contrario da classica -

pode penetrar na regiao II antes de ser reflectida, causando o atraso referido. Note-se que

no limite V0 → ∞ temos k2 → ∞; logo a parte imaginaria (3.2.30) vai para zero. Neste

limite perdemos a onda evanescente e consequentemente o ‘atraso’ na onda reflectida.

Note-se ainda que ao analizar este limite confirmamos que a funcao de onda e zero quando

o potencial e infinitamente maior do que a energia da partıcula, o que prova a afirmacao

feita no final da seccao 3.2.1.

Usando A′ ≡ eϕiA, podemos escrever a parte espacial da funcao de onda neste problema

como

Φ(x) = A(eik1x + e−ik1x+iϕ) , (3.2.31)

de onde concluimos que ΨΨ∗ = 2A2(1 + cos(2k1x− ϕ)); este modulo esta representado na

figura (3.5).

Page 97: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

3.2 Partıcula em potenciais independentes do tempo 81

V0

A1 A’1 A2 A’2 A3 A’3

I II III

V(x)

x0 L

E

Figura 3.6: Barreira de potencial. Distinguimos tres regioes: x < 0 e a Regiao I, ondeV = 0; 0 < x < L e a Regiao II, onde V = V0; x > L e a regiao III, onde V = 0. Aquirepresentamos as varias ondas associadas com uma partıcula com E > V0.

3.2.4 Barreira de potencial (E > V0)

Consideramos agora uma barreira de potencial, como a representada na figura 3.6 e uma

partıcula com E > V0. As solucoes da equacao de Schrodinger independente do tempo sao

agora

Regiao I Φ(x) = A1eik1x + A′

1e−ik1x com k1 =

√2mE

~

Regiao II Φ(x) = A2eik2x + A′

2e−ik2x com k2 =

2m(E − V0)

~

Regiao III Φ(x) = A3eik1x + A′

3e−ik1x

. (3.2.32)

Requerendo continuidade da funcao de onda e da sua derivada em x = 0 e x = L, obtemos,

respectivamente

A1 + A′1 = A2 + A′

2

k1(A1 −A′1) = k2(A2 −A′

2),

A2eik2L + A′

2e−ik2L = A3e

ik1L + A′3e

−ik1L

k2(A2eik2L −A′

2e−ik2L) = k1(A3e

ik1L − A′3e

−ik1L).

(3.2.33)

Considerando uma partıcula que vem de x = −∞, tomamos A′3 = 0. Comecando pelo

segundo sistema de equacoes obtemos

A′2 =

k2 − k1

2k2ei(k1+k2)LA3 , A2 =

k2 + k1

2k2ei(k1−k2)LA3 . (3.2.34)

Page 98: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

82 A equacao de Schrodinger

Usando estes resultados no primeiro sistema de equacoes obtemos

A1 =

[

cos(k2L)− ik21 + k2

2

2k1k2

sin(k2L)

]

eik1LA3 , A′1 = i

k22 − k2

1

2k1k2

sin(k2L)A3 . (3.2.35)

Os factores de reflexao em x = 0 e de transmissao para a regiao 3 sao, respectivamente

R =IrIi

=

A′1

A1

2

=(k2

1 − k22)

2 sin2(k2L)

4k21k

22 + (k2

1 − k22)

2 sin2(k2L), (3.2.36)

T =ItIi

=

A3

A1

2

=4k2

1k22

4k21k

22 + (k2

1 − k22)

2 sin2(k2L). (3.2.37)

Verifica-se facilmente que T+R = 1, como seria de esperar. Concluimos que em geral existe

uma probabilidade de a partıcula ser reflectida, tal como no caso do salto de potencial. Isto

contrasta com a situacao em mecanica classica em que a partıcula e sempre transmitida.

Contudo, para

k2L = nπ ⇔ L

n=λ

2, n ∈ N , (3.2.38)

a probabilidade de transmissao e um. Isto acontece quando um multiplo inteiro de metade

do comprimento de onda e igual ao comprimento da barreira, L.

Podemos dar a este comportamento a seguinte interpretacao fısica. Consideremos as

ondas que se propagam na direccao positiva do eixo dos x, isto e A1, A2, A3. Para A3 ter o

mesmo modulo do que A1, ou seja, para o coeficiente de transmissao ser um, as ondas nao

podem sofrer perdas na regiao II. Ou seja A2 tem de ter ainda o mesmo modulo. Mas A2

pode ser reflectida em x = L e a onda resultante novamente em x = 0. Para que esta dupla

reflexao de A2 esteja em fase consigo mesma necessitamos da relacao (3.2.38). Note-se que

neste caso tanto A′2/A2 como A′

1/A1 nao tem parte imaginaria e nao ha atrasos na reflexao.

Deste modo nao ha perdas na regiao II e o coeficiente de transmissao e um. Este fenomeno

e designado por ressonancia, pois resulta de uma ressonancia das ondas na regiao II. Este

fenomeno e usado para explicar o efeito Ramsauer que consiste na capacidade de certos

gases nobres serem transparentes a electroes com certas energias bem definidas (da ordem

do eV ).

Page 99: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

3.2 Partıcula em potenciais independentes do tempo 83

V0

III III

A’1A1 A3 A’3

V(x)

x0 L

EB’B

Figura 3.7: Barreira de potencial. Aqui representamos as varias ondas associadas com umapartıcula com E < V0.

3.2.5 Barreira de potencial (E < V0)

Consideremos novamente uma barreira de potencial, mas agora uma partıcula com E < V0,

como representada na figura 3.7. O calculo da seccao anterior aplica-se com a modificacao

k2 → −ik , com k =

2m(V0 −E)

~. (3.2.39)

Concluimos pois que

R =(k2

1 + k2)2 sinh2(kL)

4k21k

2 + (k21 + k2)2 sinh2(kL)

, (3.2.40)

T =4k2

1k2

4k21k

2 + (k21 + k2)2 sinh2(kL)

. (3.2.41)

Obviamente T +R = 1. A propriedade importante e que o coeficiente de transmissao nao

e nulo. Existe uma probabilidade de a partıcula quantica ‘furar’ a barreira de potencial,

enquanto que uma partıcula classica voltaria necessariamente para tras. Este fenomeno

designa-se por efeito tunel. Note-se que podemos reexprimir o coeficiente de transmissao

como

T =

(

1 +V 2

0

4E(V0 − E)sinh2(kL)

)−1

. (3.2.42)

Note-se ainda que no caso frequente de a barreira ser muito maior do que o comprimento

de onda de de Broglie da partıcula, kL >> 1, a ultima expressao e aproximada como

T ≃ 16E(V0 − E)

V 20

e−2kL . (3.2.43)

Page 100: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

84 A equacao de Schrodinger

V0

I II III

Ψ(x,t)Ψ(x,t)*

xL0

Figura 3.8: Barreira de potencial. Representacao do quadrado do modulo da funcao deonda, para uma partıcula com E < V0. A existencia da onda evanescente na zona classi-camente proibida resulta na probabilidade de encontrar a partıcula na regiao III.

O efeito tunel e observado numa variedade de fenomenos quanticos. Historicamente

a sua primeira aplicacao foi ao decaimento radioactivo por emissao de partıculas α, que

agora descrevemos.

Radioactividade alfa

Como mencionado na seccao 2.2, Rutherford estudou o potencial V (r) que uma partıcula

α sente a uma distancia r do nucleo atomico. Os seus estudos e estudos posteriores com

nucleos mais leves concluiram que o potencial referido tem a forma exibida na figura 3.9.

Isto e para distancias maiores que r′′ ≡ 3× 10−14m, as partıculas α sentem um potencial

do tipo de Coulomb entre uma partıcula com carga +2e e um nucleo com carga +Ze

V (r) =1

4πǫ0

2e2Z

r. (3.2.44)

Para distancias menores que r′, onde r′ < r′′ sabia-se que havia um desvio do potencial

de Coulomb, devido a experiencias de difusao com nucleos leves, mas nao se sabia o valor

exacto de r′ para nucleos pesados.

Por outro lado sabia-se que varios nucleos pesados, como o U234 (uranio) e o Ra226

(radio) emitiam espontaneamente partıculas α. Isto sugere que pensemos no potencial

para r < r′ como um poco de potencial onde existe uma forca (de facto a forca nu-

Page 101: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

3.2 Partıcula em potenciais independentes do tempo 85

Figura 3.9: Potencial sentido por uma partıcula α a distancia r de um nucleo de U238

(Extraıdo de Eisberg & Resnick, ‘Quantum Physics’).

clear forte) que vence a repulsao de Coulomb e ‘cola’ uma partıcula α a um determinado

nucleo, correspondendo o conjunto, por exemplo, ao nucleo de Uranio 234. Mas existe

uma probabilidade de a partıcula α sair por efeito tunel: radiactividade α. Estimemos

essa probabilidade usando o resultado para a barreira quadrada (3.2.43) que reescrevemos

como

T ∼ e−2L√

2m(V0−E)/~ . (3.2.45)

A barreira de potencial na figura 3.9 nao e quadrada; mas podemos pensar na curva como

uma soma de barreiras quadradas no limite em que a base destas barreiras quadradas vai

para zero. Nesse limite obtemos5

lnT ∼ −2

~

∫ r′′′

r′

2m[V (r)− E]dr = −√

8m

~

∫ r′′′

r′dr

1

4πǫ0

2e2Z

r− E , (3.2.46)

para uma partıcula com energia dada por E = V (r′′′). Usando o facto que

dr

a

r− b =

a√b

(

arcsin

br

a+

br

a

(

1− br

a

)

)

, (3.2.47)

juntamente com

E = V (r′′′) , E << V (r′) , (3.2.48)

5A relacao usada e de facto a aproximacao WKB; ver relacao (8.5.10).

Page 102: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

86 A equacao de Schrodinger

obtemos

lnT ∼ −e2Z

ǫ0~

m

2E+ 4

e2Zmr′

πǫ0~2. (3.2.49)

Vamos estimar uma relacao entre T e E usando esta formula. Para isso tomamos um valor

tıpico para Z e r′. Tomamos o decaimento do isotopo 226 do Radio (numero atomico 88).

Assim

Z = 86 , r′ = 7.3 Fermi = 7.3× 10−15m . (3.2.50)

Usando tambem que

mα ≃ 6.645× 10−27Kg ≃ 3.737× 103(MeV ) . (3.2.51)

Obtemos assim, a aproximacao

log T = log e lnT ∼ − 148√

E (MeV )+ 32.5 . (3.2.52)

Queremos agora relacionar o coeficiente de transmissao com o tempo medio de vida τ do

isotopo radioactivo, que e a quantidade medida experimentalmente. Para isso imaginamos

o seguinte cenario simplista. A partıcula α encontra-se no poco de potencial correspondente

a regiao da forca forte, r < r′ oscilando ao longo de um diametro, com velocidade v =√

2E/m. De cada vez que ela chega a r = r′ tem uma probabilidade T de ser transmitida

por efeito tunel. Logo a probabilidade por unidade de tempo de ser transmitida e Tv/2r′.

Assumimos que a vida media, τ , e o inverso da probabilidade de decaimento por unidade

de tempo

τ =2r′

T

m

2E≡ τ0T, ⇒ log τ ∼ 148

E (MeV )− 32.5 + log

(

2r′√

m

2E

)

. (3.2.53)

O segundo termo varia com a energia muito mais lentamente do que o primeiro, devido ao

logaritmo. Assim, dentro do nosso cenario aproximado usamos para o segundo termo uma

constante, estimada com base no decaimento tıpico do Radio, acima referido, para o qual a

energia da partıcula α e cerca de 5MeV . O significado desta aproximacao e que o processo

de decaimento alfa e essencialmente determinado pelo efeito tunel, sendo o que acontece

dentro do nucleo de importancia secundaria. Concluimos que τ0 ≃ 10−21s. E como tal

Page 103: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

3.2 Partıcula em potenciais independentes do tempo 87

Figura 3.10: Decaimento alfa: comparacao da curva teorica (3.2.54) com os dados experi-mentais. Note-se que a ordenada e o logaritmo comum de τ e a abcissa e −1/

E(MeV )(Extraıdo de ‘Quantum Physics ’, Berkeley Physics Course - Volume 4).

Page 104: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

88 A equacao de Schrodinger

log τ ∼ 148√

E (MeV )− 53.5 . (3.2.54)

Os resultados desta curva teorica encontram-se na figura 3.10. E de salientar a boa de-

scricao global dada pelo nosso cenario simplista, apesar da enormıssima variedade de tem-

pos medios de vida considerados. Como exemplos, o U238 tem uma vida media de 1017s

enquanto que o Po212 tem uma vida media de 10−7s. Este tipo de calculo, originalmente

feito por Gamow, Condon e Gurney em 1928, foi um dos primeiros e mais convincentes

sucessos da mecanica ondulatoria de Schrodinger.

3.2.6 Poco de potencial de profundidade finita (E < 0)

Consideramos agora um poco de potencial, como o representado na figura 3.11 e uma

partıcula com energia −V0 < E < 0. As solucoes da equacao de Schrodinger independente

do tempo sao agora

Regiao I Φ(x) = B1ek1x +B′

1e−k1x com k1 =

√−2mE

~

Regiao II Φ(x) = Aeikx + A′e−ikx com k =

2m(E + V0)

~

Regiao III Φ(x) = B2ek1x +B′

2e−k1x

. (3.2.55)

Requeremos continuidade da funcao de onda e da sua derivada em x = −L/2 e x = L/2;

requeremos tambem que a funcao de onda seja finita em x = ±∞, o que significa que

B′1 = B2 = 0. Assim obtemos

B1e−k1L/2 = Ae−ikL/2 + A′eikL/2

k1B1e−k1L/2 = ik(Ae−ikL/2 − A′eikL/2)

,

AeikL/2 + A′e−ikL/2 = B′2e

−k1L/2

ik(AeikL/2 − A′e−ikL/2) = −k1B′2e

−k1L/2

.

(3.2.56)

Resolvendo cada um dos sistemas para a razao A/A′ obtemos, respectivamente,

A

A′ = −eikL

(

k1 + ik

k1 − ik

)

,A

A′ = e−ikL ik − k1

ik + k1, (3.2.57)

Page 105: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

3.2 Partıcula em potenciais independentes do tempo 89

V0

III IIIA A’B1B’1 B’2 B2

x0

V(x)

−L/2 L/2

E

Figura 3.11: Poco de potencial. Distinguimos tres regioes: x < −L/2 e a Regiao I, ondeV = 0; −L/2 < x < L/2 e a Regiao II, onde V = −V0; x > L/2 e a regiao III, onde V = 0.

o que implica que

k1 − ikk1 + ik

= ±eikL ⇔

cot(kL/2) = −k1/k ⇔

| sin(kL/2)| = k/k0

tan (kL/2) < 0

tan (kL/2) = k1/k ⇔

| cos(kL/2)| = k/k0

tan (kL/2) > 0

, (3.2.58)

onde definimos

k0 ≡√

2mV0

~. (3.2.59)

Existem portanto duas famılias de solucoes. Em cada um dos casos, os valores permitidos

para k e portanto para a energia E sao discretos. Graficamente podem ser imaginados como

a interseccao da funcao | sin(x)| ou | cos(x)| com uma recta que passa pela origem (problema

3, folha 4). Esta discretizacao dos nıveis de energia dos estados ligados e uma caracterıstica

da mecanica quantica que nao se encontra na mecanica classica onde a partıcula pode ter

qualquer energia entre 0 > E > V0. Pode ser interpretada do seguinte modo: as ondas

associadas a partıcula vao sofrer reflexoes sucessivas em x = ±L/2. Em geral, as varias

ondas interferem destrutivamente, e so para certos comprimentos de onda - e como tal

certas energias - esta interferencia permite a existencia de estados estacionarios. O caso

de E > 0 num poco finito de potencial e tratado tambem no problema 3 da folha 4.

Page 106: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

90 A equacao de Schrodinger

3.2.7 Poco de potencial de profundidade infinita

Tomamos agora um poco de potencial de profunidade infinita, que e mais convenientemente

tratado tomando V (x) da forma

V (x) = 0 para x ∈ [0, L] , V (x) = +∞ para x > L e x < 0 . (3.2.60)

Consideramos um estado com energia E positiva. Vimos, para a barreira de potencial,

que no caso em que V0 → ∞ perdemos a onda evanescente. De um modo semelhante,

esperamos que neste caso a funcao de onda se anule fora do intervalo [0, L]. De facto, a

solucao da equacao de Schrodinger independente do tempo da-nos

Regiao I e III Φ(x) = 0

Regiao II Φ(x) = Aeikx + A′e−ikx com k =

√2mE

~

. (3.2.61)

Para saltos infinitos de potencial o nosso argumento acerca da continuidade da funcao

de onda e da sua derivada nao e aplicavel. Mas podemos ainda requerer pelo menos

continuidade da funcao de onda em x = 0, L:

A+ A′ = 0

AeikL + A′e−ikL = 0⇒ sin(kL) = 0 , (3.2.62)

ou seja

kL = nπ ⇔ E =n2π2~2

2mL2≡ En . (3.2.63)

Tal como no caso anterior os estados quanticos tem as suas energias possıveis quantifi-

cadas. Notemos que neste caso, a quantificacao dos comprimentos de onda (e das energias)

e obtida pela relacao L = nλ/2, que exprime a condicao para a existencia de estados

estacionarios num sistema periodico. A mesma situacao nao se verificava no caso do poco

finito, essencialmente devido a existencia de uma onda evanescente.

A funcao de onda normalizada correspondente ao estado de energia n e

Ψn(x, t) =

2

Lsin(nπx

L

)

e−iEnt/~ para x ∈ [0, L] , (3.2.64)

Page 107: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

3.3 Evolucao de um trem de ondas 91

e zero fora deste intervalo e como tal, a funcao de distribuicao de probabilidade associada

a partıcula e

P(x) =2

Lsin2

(nπx

L

)

para x ∈ [0, L] , (3.2.65)

e zero fora do intervalo. Se calcularmos, por exemplo, o valor esperado de x e de x2,

obtemos

〈x〉 =

∫ L

0

xP(x)dx =L

2, 〈x2〉 =

∫ L

0

x2P(x)dx =L2

3− L2

2π2n2. (3.2.66)

Podemos comparar este resultado com o da mecanica classica, pensando na partıcula

classica como tendo uma funcao de distribuicao de probabilidade uniforme no intervalo

[0, L],

Pc(x) =1

Lpara x ∈ [0, L] , (3.2.67)

e zero fora do intervalo. Assim

〈x〉 =

∫ L

0

xPc(x)dx =L

2, 〈x2〉 =

∫ L

0

x2Pc(x)dx =L2

3. (3.2.68)

Concluimos que o resultado classico e aproximado para numeros quanticos elevados corre-

spondendo a energias elevadas. Este e um padrao que se repete em muitos casos.

3.3 Evolucao de um trem de ondas

Como referimos na seccao 3.1, a descricao de uma partıcula livre deve ser feita por um trem

de ondas. Mas mesmo para uma partıcula sob a influencia de potenciais como aqueles que

vimos na seccao 3.2 o trem de ondas e a descricao apropriada, pois e a maneira natural de

obter uma funcao de onda normalizavel. Note-se no entanto que sendo o trem de ondas

apenas uma sobreposicao de ondas planas com diferentes energias, concluimos que toda a

fısica da interacao do trem de ondas com os varios potenciais da seccao 3.2 foi ja vista.

Usar o trem de ondas em vez das ondas individuais aumenta a complexidade tecnica da

analise sem introduzir grandes novidades. Assim nesta seccao discutiremos brevemente a

evolucao de um trem de ondas gaussiano livre e a interaccao de um trem de ondas com um

salto de potencial.

Page 108: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

92 A equacao de Schrodinger

3.3.1 Trem de ondas Gaussiano livre

Um exemplo tratavel analiticamente de um trem de ondas e considerar em (3.1.26)

g(k) =

(

a2

)1/4

e−a2(k−k0)2/4 , φ(k) = 0 , ω(k) =~

2mk2 , (3.3.1)

correspondendo a uma funcao gaussiana para o perfil de Fourier de amplitudes, com todas

as ondas em fase e com a relacao de dispersao de uma partıcula livre (3.0.4). Assim sendo,

(3.1.26) pode-se escrever na forma

Ψ(x, t) =

√a

(2π)3/4exp

(

ix+ a2k0

2

)2

a2 + 2i~tm

− a2k20

4

∫ +∞

−∞exp

−[

a2

4+i~t

2m

]

(

k − 2ix+ a2k0

a2 + 2i~tm

)2

dk ,

(3.3.2)

ou, fazendo o integral Gaussiano,

Ψ(x, t) =

(

2a2

π

)1/4(

a2 +2i~t

m

)−1/2

exp

(

ix+ a2k0

2

)2

a2 + 2i~tm

− a2k20

4

. (3.3.3)

Trabalhando os termos na exponencial, reescrevemos a funcao de onda como

Ψ(x, t) =

(

2a2

π

)1/4(

a2 +2i~t

m

)−1/2

exp i

(

−~k20t

2m+ k0x

)

exp

(

−[

x− ~k0tm

]2

a2 + 2i~tm

)

, (3.3.4)

ou, definindo θ como

tan 2θ =2~t

ma2⇔ e−iθ =

(

a2 − 2i~tm

a2 + 2i~tm

)1/4

, (3.3.5)

temos

Ψ(x, t) =

(

2a2

π

)1/4(

a4 +4~2t2

m2

)−1/4

exp i

(

−θ − ~k20t

2m+ k0x

)

exp

(

−[

x− ~k0tm

]2

a2 + 2i~tm

)

.

(3.3.6)

Nesta forma e simples verificar que o modulo da funcao de onda ao quadrado e

|Ψ(x, t)|2 =

(

2a2

π

)1/2(

a4 +4~

2t2

m2

)−1/2

exp

(

−2a2

[

x− ~k0tm

]2

a4 + 4~2t2

m2

)

. (3.3.7)

Extraımos as seguintes conclusoes:

Page 109: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

3.3 Evolucao de um trem de ondas 93

• A funcao de onda esta normalizada e a sua norma e conservada na evolucao temporal

‖Ψ(t)‖2 ≡∫ +∞

−∞|Ψ(x, t)|2 = 1 . (3.3.8)

Veremos mais tarde que este facto resulta de o Hamiltoniano ser Hermıtico e como

tal a evolucao unitaria.

• A variancia, σx, associado com a funcao de distribuicao de probabilidade P(x) = |Ψ(x, t)|2

e

σx =a2

4+

~2t2

a2m2, (3.3.9)

o que significa que a funcao de onda se esta a espalhar para t > 0. Isto e, definimos

a nossa partıcula livre como uma gaussiana para t = 0 posteriormente ela espalha-se

delocalizando cada vez mais a partıcula. Este fenomeno de espalhamento e geral para

trens de onda livres.

3.3.2 Trem de ondas incidente num salto de potencial (E < V0)

Vamos considerar um trem de ondas incidente no salto de potencial da figura (3.3). Vamos

considerar o caso em que todas as ondas no nosso trem tem uma energia E < V0. Este

caso para uma onda foi tratado na seccao 3.2.3. Concluimos que para cada onda plana

monocromatica - vector de onda k - as amplitudes A e A′ estavam relacionadas por (3.2.28).

Portanto, para um trem de ondas vamos ter as relacoes

A′(k1)

A(k1)=k1 − ik2

k1 + ik2≡ e−2iθ(k1) , onde tan θ ≡ k2

k1, (3.3.10)

para cada onda no trem. Isto e, dada uma onda com energia E, que define k1 e k2, temos

que as amplitudes incidente e reflectida diferem apenas de uma fase. Como vimos na seccao

3.2.3 isto significa que a reflexao e total mas ha um atraso correspondente a diferenca de

fase. Definimos

K0 =

√2mV0

~, (3.3.11)

e consideramos que todas as ondas no trem obedecem a k1 < K0; todas as ondas sao

reflectidas. Consideremos a solucao na Regiao I para t = 0 sendo

Ψ(x, 0) =1√2π

∫ K0

0

dk1g(k1)[

eik1x + e−2iθ(k1)e−ik1x]

. (3.3.12)

Page 110: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

94 A equacao de Schrodinger

Vamos assumir que |g(k1)| tem um pico pronunciado em k1 = k < K0 de modo a que a

velocidade de grupo vai ser definida pela propagacao deste pico. A evolucao do trem de

ondas e descrita pela funcao de onda

Ψ(x, t) =1√2π

∫ K0

0

dk1g(k1)ei(k1x−ω(k1)t) +

1√2π

∫ K0

0

dk1g(k1)e−i(k1x+ω(k1)t) , (3.3.13)

onde

ω(k1) = ω(k1) + 2θ(k1)

t. (3.3.14)

O primeiro termo representa o trem de ondas incidente. O segundo representa o trem de

ondas reflectido. A relacao de dispersao que usamos e mais uma vez a relacao de dispersao

para uma partıcula livre

ω(k1) =~k2

1

2m. (3.3.15)

A posicao do centro do trem de ondas incidente e dado por

xi(t) = t

[

dk1

]

k1=k

=~k

mt , (3.3.16)

enquanto que a posicao do centro do trem de ondas reflectidas e dado por

xr(t) = −t[

dk1

]

k1=k

= −~k

mt+

2√

K20 − k2

. (3.3.17)

Se pensarmos no centro do trem de ondas como descrevendo a ‘posicao’ da partıcula

quantica associada ao trem de ondas xi(t) e xr(t) podemos fazer a seguinte analise do

movimento:

• Esta solucao descreve o movimento na regiao I, isto e para x < 0. Para t < 0, xr > 0,

logo para t negativo nao ha onda reflectia. Do mesmo modo, para t > 0, xi > 0.

Logo, para t positivo nao ha onda incidente.

• Assim descrevemos o movimento como: i) para t < 0 a ‘partıcula’ desloca-se com veloci-

dade ~k/m no sentido positivo do eixo dos x; ii) entre

0 < t <2m

~k√

K20 − k2

≡ ∆τ , (3.3.18)

Page 111: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

3.4 Sumario 95

a ‘partıcula’ nao esta na regiao I; ao contrario de uma partıcula classica que seria

reflectida instantaneamente, a partıcula quantica pode ‘penetrar’ na regiao II, devido

a onda evanescente originando um atraso na reflexao dado por ∆τ ; iii) para t > ∆τ

a ‘partıcula’ desloca-se com velocidade ~k/m no sentido negativo do eixo dos x.

Assim, usando um trem de ondas conseguimos obter uma solucao ‘localizada’ cujo cen-

tro podemos encarar como a ‘localizacao’ da partıcula quantica. Mas ao mesmo tempo

vemos os efeitos quanticos que decorrem da propagacao desta partıcula ser feita de um

modo ondulatorio, que neste caso corresponde ao atraso na reflexao. Analises semelhantes

poderiam ser feitas para todos os outros casos da seccao 3.2.

3.4 Sumario

Neste capıtulo introduzimos a equacao de Schrodinger. Discutimos as razoes porque uma

onda plana monocromatica nao e uma boa descricao da funcao de onda para uma partıcula

livre o que nos levou a introduzir o conceito de trem de ondas. Investigamos as con-

sequencias da equacao de Schrodinger em alguns potenciais independentes do tempo, es-

tudando os estados estacionarios do sistema, para ondas monocromaticas. A figura 3.12

faz um sumario dos potenciais estudados. Finalmente, estudamos a evolucao de um trem

de ondas Gaussiano e de um trem de ondas a interagir com um salto de potencial. A

importante licao a tirar desta analise e que as propriedes inesperadas da partıcula quantica

sao facilmente percebidas se nos lembrarmos que uma partıcula quantica se propaga como

uma onda, que e interpretada como uma onde de probabilidade.

Page 112: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

96 A equacao de Schrodinger

SECÇAO

3.2.2

3.2.3

3.2.5

3.2.4

3.2.6

3.2.7

~

Figura 3.12: Os potenciais em escada estudados na seccao 3.2 (extraıdo de Eisberg &Resnick, ‘Quantum Physics’ ).

Page 113: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

CAPITULO 4

Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica

Quantica

Neste capıtulo vamos introduzir de um modo sistematico a matematica usada na mecanica

quantica e os postulados que a definem como teoria fısica.

4.1 Funcoes de onda e operadores

O objecto matematico fundamental em mecanica quantica e a funcao de onda Ψ(~x, t).

Devido ao postulado de Born para a interpretacao da funcao de onda vamos estar par-

ticularmente interessados em funcoes de onda normalizaveis, ditas funcoes de quadrado

somavel, que obedecem a

‖Ψ(t)‖2 ≡∫

d3~xΨ(~x, t)Ψ(~x, t)∗ ≡∫

d3~x|Ψ(~x, t)|2 <∞ . (4.1.1)

O espaco das funcoes de quadrado somavel sobre o corpo dos complexos, C, forma um

espaco vectorial designado por ‘L2’ e tem a estrutura de um espaco de Hilbert. Mas o nosso

interesse incidira apenas sobre um subconjunto de ‘L2’, denotado por F que compreende

funcoes de onda de quadrado somavel infinitamente derivaveis e limitadas.

Page 114: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

98 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

4.1.1 Estrutura de F e produto escalar em F

F e um espaco vectorial, isto e, se (a partir de agora deixamos de escrever, para simplici-

dade de notacao, o argumento (~x, t) das funcoes de onda)

Ψ1,Ψ2 ∈ F ⇒ Ψ ≡ λ1Ψ1 + λ2Ψ2 ∈ F , (4.1.2)

onde λ1, λ2 ∈ C. De facto,

|Ψ|2 = |λ1|2|Ψ1|2 + |λ2|2|Ψ1|2 + λ∗1λ2Ψ∗1Ψ2 + λ1λ

∗2Ψ1Ψ

∗2 , (4.1.3)

onde os dois ultimos termos tem o mesmo modulo (pois sao complexos conjugados) e sao

limitados superiormente por

2|λ1||λ2||Ψ1||Ψ2| ≤ |λ1||λ2|[

|Ψ1|2 + |Ψ2|2]

. (4.1.4)

Logo,

‖Ψ‖2 ≤∫

d3~x(

|λ1|2|Ψ1|2 + |λ2|2|Ψ1|2 + |λ1||λ2|[

|Ψ1|2 + |Ψ2|2])

, (4.1.5)

que e um numero finito pois, por hipotese, Ψ1,Ψ2 sao funcoes de quadrado somavel.

A definicao de norma que temos usado, (4.1.1), sugere a definicao de um produto escalar

entre duas funcoes de onda Ψ e Φ:

(Ψ,Φ) ≡∫

d3~xΨ∗Φ , (4.1.6)

que associa a um par de funcoes de onda Ψ,Φ ∈ F um numero complexo. Note-se que

porque as funcoes pertencem ao espaco de Hilbert este integral e necessariamente conver-

gente. Esta propriedade e uma consequencia da desigualdade de Schwarz que veremos em

baixo.

Propriedades do produto escalar:

i) Nao e simetrico

(Φ,Ψ) = (Ψ,Φ)∗ ; (4.1.7)

Page 115: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.1 Funcoes de onda e operadores 99

ii) Linear no segundo argumento

(Φ, λ1Ψ1 + λ2Ψ2) = λ1(Φ,Ψ1) + λ2(Φ,Ψ2) ; (4.1.8)

iii) Anti-linear no primeiro argumento

(λ1Φ1 + λ2Φ2,Ψ) = λ∗1(Φ1,Ψ) + λ∗2(Φ2,Ψ) ; (4.1.9)

iv) Definicao de funcoes ortogonais: se

(Φ,Ψ) = 0 , (4.1.10)

as funcoes sao ditas ortogonais;

v) Definicao da norma:

(Ψ,Ψ) = ‖Ψ‖2 , (4.1.11)

que e real, positiva e so e zero se Ψ = 0.

vi) Finito

|(Ψ1,Ψ2)| ≤√

(Ψ1,Ψ1)√

(Ψ2,Ψ2) = ‖Ψ1‖‖Ψ2‖ <∞ , (4.1.12)

que decorre da desigualdade de Schwarz habitual

∫ b

a

f ∗gdx

2

≤∫ b

a

f ∗fdx

∫ b

a

g∗gdx . (4.1.13)

4.1.2 Bases de F

Dado que as funcoes de onda vivem num espaco vectorial e natural definir uma base. Isto

e, um conjunto completo de funcoes em que possamos expandir, de um modo unico, a

funcao de onda em cada instante t. Dependendo da estrutura de F , esta base pode ser

discreta ou contınua:

Base discreta un(~x) , n ∈ N Base contınua uα(~x) , α ∈ R . (4.1.14)

Nos casos em que analisaremos, un(~x) ∈ F para todo o n, mas uα(~x) /∈ F , pelo que o

uso do termo base e abusivo no caso contınuo, mas ainda assim sera usado com o sentido

Page 116: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

100 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

de que expandiremos funcoes de F usando o conjunto uα(~x). Analisemos primeiro uma

base discreta:

• Expansao da funcao de onda para um dado t:

Ψ(~x) =∑

n

cnun(~x) , (4.1.15)

o que define de um modo unico as componentes cn;

• Relacao de ortonormalizacao da base:

(un, um) = δnm ; (4.1.16)

• Produto escalar de uma funcao de onda com uma funcao da base (i.e. projeccao na base)

(un,Ψ) =

d3~xu∗nΨ =∑

m

d3~xu∗ncmum =∑

m

cm(un, um) =∑

m

cmδnm = cn;

(4.1.17)

• Produto escalar de duas funcoes de onda em termos das suas componentes: Tomamos

Ψ =∑

n

cnun , Φ =∑

m

bmum , (4.1.18)

logo

(Φ,Ψ) =∑

n,m

b∗mcn

d3~xu∗mun(4.1.16)

=∑

n,m

b∗mcnδnm =∑

n

b∗ncn , (4.1.19)

e em particular

(Ψ,Ψ) =∑

n

|cn|2 , (4.1.20)

que e uma generalizacao da igualdade de Bessel-Parseval (C.21).

• Relacao de fecho (isto e, un formam uma base)

Ψ(~x) =∑

n

cnun(~x)(4.1.17)

=∑

n

(un,Ψ)un(~x) =

d3~x ′Ψ(~x ′)

[

n

u∗n(~x ′)un(~x)

]

.

(4.1.21)

Page 117: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.1 Funcoes de onda e operadores 101

Introduzimos aqui a Funcao delta de Dirac, δ(~x− ~x ′), definida pela propriedade1

f(~x)δ(~x− ~x ′)d3~x = f(~x ′) ; (4.1.22)

(assumiu-se que ~x′ pertence ao domınio de integracao). Logo, se Ψ pode ser expandida

em termos da base concluimos que

n

u∗n(~x′)un(~x) = δ(~x− ~x ′) . (4.1.23)

Reciprocamente, se (4.1.23) e verdadeira, Ψ pode ser expressa em termos da base; de

facto

Ψ(~x) =

d3~x ′δ(~x−~x ′)Ψ(~x ′)hipotese

=

d3~x ′Ψ(~x ′)

[

n

u∗n(~x ′)un(~x)

]

=∑

n

cnun(~x) .

(4.1.24)

Assim, a relacao de fecho (4.1.23) e a expressao matematica de que un formam

uma base.

Facamos agora uma analise semelhante para uma ‘base’ contınua:

• Expansao da funcao de onda para um dado t:

Ψ(~x) =

dαc(α)uα(~x) , (4.1.25)

o que define de um modo unico as componentes c(α);

• Relacao de ortonormalizacao da base:

(uα, uα′) =

d3~xu∗αuα′ = δ(α− α′) ; (4.1.26)

• Projeccao na base

(uα,Ψ) =

d3~xu∗α

dα′c(α′)uα′

(4.1.26)=

dα′c(α′)δ(α− α′) = c(α); (4.1.27)

Portanto, definindo a relacao de ortonormalizacao anterior permite-nos obter esta

relacao de projeccao, analoga ao caso discreto.

1Notemos que a ordem dos argumentos na funcao delta de Dirac nao interessa, i.e. δ(~x−~x ′) = δ(~x ′−~x).

Page 118: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

102 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

• Produto escalar de duas funcoes de onda em componentes: Tomamos

Ψ =

dαc(α)uα , Φ =

dα′b(α′)uα′ , (4.1.28)

logo

(Φ,Ψ) =

dαdα′b(α′)∗c(α)

d3~xu∗α′uα(4.1.26)

=

dαb(α)∗c(α) , (4.1.29)

e em particular

(Ψ,Ψ) =

dα|c(α)|2 . (4.1.30)

• Relacao de fecho (isto e, uα formam uma base)

Ψ(~x) =

dαc(α)uα(~x)(4.1.27)

=

d3~x ′Ψ(~x ′)

dαu∗α(~x ′)uα(~x) . (4.1.31)

Logo, se Ψ pode ser expandida em termos da base concluimos que∫

dαu∗α(~x ′)uα(~x) = δ(~x− ~x ′) . (4.1.32)

Reciprocamente, e simples demonstrar que se (4.1.32) e verdadeira, Ψ pode ser ex-

pressa em termos da base.

Resumimos as propriedades das bases contınuas e discretas nas seguinte tabela:

Base discreta un Base contınua uα

Expansao da Funcao de Onda Ψ(~x) =∑

n

cnun(~x) Ψ(~x) =∫

dαc(α)uα(~x)

Relacao de Ortonormalizacao (un, um) = δnm (uα, uα′) = δ(α− α′)

Projeccao da Funcao de Onda (un,Ψ) = cn (uα,Ψ) = c(α)

Produto escalar em componentes (Φ,Ψ) =∑

n

b∗ncn (Φ,Ψ) =∫

dαb∗(α)c(α)

Relacao de Fecho∑

n

u∗n(~x ′)un(~x) = δ(~x− ~x ′)∫

dαu∗α(~x ′)uα(~x) = δ(~x− ~x ′)

Note-se portanto que a passagem da base discreta para contınua pode ser sistemati-

zada como uma mudanca do ındice discreto da base para contınuo (n → α), somatorios

para integrais (∑

→∫

) e deltas de Kronecker para deltas de Dirac (δmn → δ(α − α′)).

Especializamos agora o caso contınuo para dois importantes conjuntos de funcoes:

Page 119: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.1 Funcoes de onda e operadores 103

i) Tomamos o parametro contınuo α = ~p, as componentes c(α) = c(~p) ≡ Ψ(~p) e os vectores

da base (em n dimensoes)

uα(~x) = u~p(~x) =1

(2π~)n/2ei~x·~p/~ , (4.1.33)

ou seja ondas planas, que sao funcoes com momento bem definido;

ii) Tomamos o parametro contınuo α = ~x0, as componentes c(α) = c(~x0) ≡ Ψ(~x0) e os

vectores da base

uα(~x) = u~x0(~x) = δ(~x− ~x0) , (4.1.34)

ou seja deltas de Dirac, que sao funcoes cujo suporte esta bem definido no espaco de

posicoes.

Para estes dois exemplos de ‘bases’2 a tabela anterior toma a forma

Ondas Planas Deltas de Dirac

Expansao Ψ(~x) = (2π~)−n/2

d~p Ψ(~p)ei~x·~p/~ Ψ(~x) =

d~x0Ψ(~x0)δ(~x− ~x0)

Orto (2π~)−n

d~x ei~x·(~p ′−~p)/~ = δ(~p ′ − ~p)∫

d~xδ(~x− ~x0)δ(~x− ~x0′) = δ(~x0 − ~x0

′)

Projeccao Ψ(~p) = (2π~)−n/2

d~x Ψ(~x)e−i~x·~p/~ Ψ(~x0) =

d~xΨ(~x)δ(~x− ~x0)

P.E.

d~xΦ(~x)∗Ψ(~x) =

d~pΦ(~p)∗Ψ(~p)

d~xΦ(~x)∗Ψ(~x) =

d~x0Φ(~x0)∗Ψ(~x0)

Fecho (2π~)−n

d~p ei~p·(~x ′−~x)/~ = δ(~x ′ − ~x)∫

d~x0δ(~x− ~x0)δ(~x′ − ~x0) = δ(~x− ~x ′)

Note-se que a penultima linha expressa relacoes do tipo da igualdade de Parseval-

Plancharel (C.29).

4.1.3 Operadores Lineares a actuar em F

Um operador linear A, e uma aplicacao (endomorfismo) em F

A : F −→ FΨ(~x) −→ Ψ′(~x) = AΨ(~x)

, (4.1.35)

2Relembramos que o termo base e abusivo pois os vectores da ‘base’ nao pertencem a F .

Page 120: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

104 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

que e linear

A[λ1Ψ1 + λ2Ψ2] = λ1AΨ1 + λ2AΨ2 . (4.1.36)

Alguns exemplos de operadores:

• Operador Paridade

ΠΨ(x, y, z) = Ψ(−x,−y,−z) ; (4.1.37)

• Operador multiplicacao por x

XΨ(x, y, z) = xΨ(x, y, z) ; (4.1.38)

• Operador derivada em ordem a x

DxΨ(x, y, z) =∂

∂xΨ(x, y, z) ; (4.1.39)

• Operadores Hamiltoniano e Translacoes temporais (ver capıtulo 3) a actuar numa funcao

de onda do tipo Ψ(~x, t) = Φ(~x)e−iEt/~

HΨ(~x, t) = EΨ(~x, t) , TΨ(~x, t) = EΨ(~x, t) . (4.1.40)

Sejam A, B dois operadores. Definimos o produto de operadores AB como

(AB)Ψ(~x) = A[

BΨ(~x)]

. (4.1.41)

Em geral o produto de operadores nao e comutativo, isto e o comutador

[

A, B]

≡ AB − BA , (4.1.42)

e diferente de zero. Por exemplo, o comutador dos operadores X e Dx nao e zero

[

X, Dx

]

Ψ(~x) =

(

x∂

∂x− ∂

∂xx

)

Ψ(~x) = −Ψ(~x) , (4.1.43)

ou seja[

X, Dx

]

= −1 . (4.1.44)

Page 121: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.1 Funcoes de onda e operadores 105

Como veremos adiante o facto de dois operadores comutarem ou nao esta intrinsecamente

associado ao princıpio da incerteza e ao facto de duas grandezas fısicas serem compatıveis

ou incompatıveis.

Um tipo particularmente importante de operadores em Mecanica Quantica sao os op-

eradores hermıticos, que por definicao obedecem a

(Ψ, AΨ) = (AΨ,Ψ) , ∀Ψ ∈ F . (4.1.45)

Estudemos a hermiticidade dos operadores anteriores:

• Operador Paridade

(Ψ, ΠΨ) =

∫ +∞

−∞d3~xΨ∗(~x)Ψ(−~x) ~x→−~x

= −∫ −∞

+∞d3~xΨ∗(−~x)Ψ(~x) = (ΠΨ,Ψ) ,

(4.1.46)

logo o operador Paridade e hermıtico.

• Operador multiplicacao por x

(Ψ, XΨ) =

d3~xΨ∗(~x)xΨ(~x) =

d3~x(xΨ(~x))∗Ψ(~x) = (XΨ,Ψ) , (4.1.47)

logo o operador multiplicacao por x e hermıtico. Deste exemplo conclui-se que se

os valores proprios do operador sao reais ele e hermıtico. O resultado recıproco e

tambem verdade, como veremos na seccao 4.2.6.

• Operador derivada em ordem a x

(Ψ, DxΨ) =

d3~xΨ∗(~x)∂

∂xΨ(~x)

por partes= −

d3~x∂

∂xΨ∗(~x)Ψ(~x) = −(DxΨ,Ψ) ,

(4.1.48)

logo o operador derivada nao e hermıtico (de facto e anti-hermıtico). Note-se que na

integracao por partes usamos que o modulo da funcao de onda desaparece no infinito,

devido a funcao de onda ser de quadrado somavel. Um exercıcio analogo mostra que

o operador iDx e hermıtico. Logo, o operador

P = −i~ ∂

∂x, (4.1.49)

que interpretaremos como operador momento, e um operador hermıtico.

Page 122: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

106 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

• Operadores Hamiltoniano e Translacoes temporais (ver capıtulo 3) a actuar numa funcao

de onda do tipo Ψ(~x, t) = Φ(~x)e−iEt/~: pelo que vimos anterioremente este operadores

serao hermıticos se E for real.

Concluimos com a definicao que aos valores proprios de um operador se chama espectro do

operador.

4.2 A notacao de Dirac

Como vimos no fim do capıtulo 2, um sistema quantico caracteriza-se pelo estado em que

se encontra. Este estado e definido pela sua funcao de onda, que por sua vez, e um vector

em F . E desejavel ter uma designacao generica e caracterıstica para os vectores associados

a estados quanticos, independentemente de F ter dimensao finita ou infinita, de a base ser

contınua ou discreta e de o estado viver no espaco de configuracoes, polarizacoes, spin, etc

(todos os graus de liberdade possıveis). Dirac sugeriu a designacao de ket e a representacao

|αi〉 , (4.2.1)

onde os αi sao um conjunto apropriado de rotulos para o estado em consideracao.3 Por

exemplo, as funcoes de onda que tratamos no capıtulo 3, para uma partıcula sem spin,

Ψ(x) sao agora representadas pelo ket

Ψ(x) ∈ F −→ |Ψ〉 ∈ E . (4.2.2)

A ausencia do argumento espacial no rotulo do ket significa que o ket representa o estado,

independentemente das coordenadas usadas, enquanto que Ψ(~x) sao as componentes de

|Ψ〉 num dado sistema coordenado. Esta situacao e analoga a considerarmos um vector

~v, que e uma entidade geometrica autonoma, independentemente da base escolhida para

o representar numa situacao concreta, em que tem componentes vi. Definimos tambem

um espaco de estados E , onde vivem os kets, que e isomorfico ao espaco das funcoes de

onda F . Vejamos pois como se reexpressam em E os conceitos de produto escalar e de

accao de operadores lineares.

3Como veremos na seccao 4.4.1, estes rotulos sao os valores proprios dos operadores de um ConjuntoCompleto de Observaveis que Comutam (C.C.O.C.).

Page 123: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.2 A notacao de Dirac 107

4.2.1 Produto escalar e espaco dual a E

Definimos o produto escalar de kets como a associacao a cada par de kets de um numero

complexo

( , ) : E × E −→ C

|Ψ〉, |Φ〉 −→ (|Ψ〉, |Φ〉), (4.2.3)

que obedece as propriedades (4.1.7)-(4.1.12). Por outro lado podemos definir um espaco

dual a E , isto e um espaco cujos membros sao aplicacoes lineares de E para C

〈αi| ∈ E∗ : E −→ C . (4.2.4)

Os vectores deste espaco sao designados por bra e representados por

〈αi| , (4.2.5)

onde αi sao mais uma vez rotulos. A existencia do produto escalar determina uma corre-

spondencia entre E e E∗:4

E −→ E∗

|Φ〉 −→ (|Φ〉, . . .) ≡ 〈Φ|, (4.2.6)

onde os . . . representam a entrada livre. Esta correspondencia e antilinear. De facto

λ1|Φ1〉+ λ2|Φ2〉corresponde ao bra−→ (λ1|Φ1〉+ λ2|Φ2〉, . . .) = λ∗1(|Φ1〉, . . .) + λ∗2(|Φ2〉, . . .)

= λ∗1〈Φ1|+ λ∗2〈Φ2|.

(4.2.7)

Nesta notacao, o produto escalar e representado da seguinte forma

(|Φ〉, |Ψ〉) = 〈Φ|Ψ〉 . (4.2.8)

As propriedades (4.1.7)-(4.1.12) aplicam-se tambem nesta notacao. O uso de bras e

kets denomina-se notacao de Dirac. Nesta notacao o produto escalar aparece como um

parentesis da forma 〈. . . | . . .〉, ou seja a justaposicao de um bra a um ket; a origem destes

esta no ingles em que parentesis se diz bracket=bra+ket.

4Se E for finito, E e E∗ sao isomorficos, mas em geral nao sao.

Page 124: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

108 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

4.2.2 Accao de operadores lineares

Podemos reescrever a seccao 4.1.3 na notacao de Dirac. Assim, um operador linear A e

um endomorfismo em E

A : E −→ E|Φ〉 −→ |Φ′〉 ≡ A|Φ〉

, (4.2.9)

que e linear

A [λ1|Ψ1〉+ λ2|Ψ2〉] = λ1A|Ψ1〉+ λ2A|Ψ2〉 . (4.2.10)

O produto escalar do ket |Φ〉 com A|Ψ〉,

〈Φ|A|Ψ〉 , (4.2.11)

e designado elemento de matriz do operador A entre |Φ〉 e |Ψ〉, que e um numero complexo

que depende linearmente em |Ψ〉 e antilinearmente em |Φ〉. Um exemplo particular de

operador e construıido com um bra e um ket com a ordem ‘trocada’:

|Φ〉〈Ψ| : E −→ E|χ〉 −→ |Φ〉〈Ψ|χ〉 = z|Φ〉

, (4.2.12)

onde z ≡ 〈Ψ|χ〉 e um numero complexo. Em particular, o operador |Ψ〉〈Ψ| e um operador

de projeccao de um ket arbitrario em |Ψ〉

|Ψ〉〈Ψ| : E −→ E|χ〉 −→ |Ψ〉〈Ψ|χ〉

, (4.2.13)

projeccao que e nula se |Ψ〉 e |χ〉 forem ortogonais, isto e 〈Ψ|χ〉 = 0. Deste exemplo

concluımos que a ordem com que colocamos kets e bras e fundamental:

〈Ψ|Φ〉 = numero , |Φ〉〈Ψ| = operador . (4.2.14)

Podemos usar a accao de um operador num ket para definir a accao de um operador

num bra do seguinte modo:

(

〈Φ|A)

|Ψ〉 ≡ 〈Φ|(

A|Ψ〉)

. (4.2.15)

Page 125: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.2 A notacao de Dirac 109

Isto e, um elemento de matriz e independente de o operador actuar primeiramente no bra

ou no ket. Como exercıcio pode tentar demonstrar que a accao no bra assim definida e

linear. Podemos pois escrever o elemento de matriz como (4.2.11) pois nao ha ambiguidades

de ordem de actuacao.

4.2.3 O operador adjunto

Definimos o operador adjunto a A, representado A† (le-se “A dagger” ou “A adjunto”), do

seguinte modo: a cada ket associamos um bra5

|Ψ〉 −→ 〈Ψ| ; (4.2.16)

definimos o operador adjunto como o operador que actuando no bra 〈Ψ| da origem ao bra

associado ao ket A|Ψ〉|Ψ′〉 ≡ A|Ψ〉 −→ 〈Ψ′| ≡ 〈Ψ|A† . (4.2.17)

Mostremos que, por esta definicao, a accao de A† nos bras e linear. Seja

λ∗1|Ψ1〉+ λ∗2|Ψ2〉 −→ λ1〈Ψ1|+ λ2〈Ψ2| ; (4.2.18)

pela linearidade de A

A (λ∗1|Ψ1〉+ λ∗2|Ψ2〉) = λ∗1

(

A|Ψ1〉)

+ λ∗2

(

A|Ψ2〉)

, (4.2.19)

e igualando os bras associados a cada um destes kets obtemos imediatamente

(λ1〈Ψ1|+ λ2〈Ψ2|) A† = λ1

(

〈Ψ1|A†)

+ λ2

(

〈Ψ2|A†)

, (4.2.20)

o que demonstra que a accao de A† e linear.

Uma importante equacao e a que relaciona os elementos de matriz de A† com os de A.

Por (4.1.7),

〈Ψ′|Φ〉 = 〈Φ|Ψ′〉∗ , (4.2.21)

para |Φ〉 e |Ψ′〉 arbitrarios. Se tomarmos |Ψ′〉 como em (4.2.17) obtemos

〈Ψ|A†|Φ〉 = 〈Φ|A|Ψ〉∗ . (4.2.22)

5Nesta seccao a seta denota a correspondencia (4.2.6).

Page 126: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

110 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

As seguintes propriedades sao consequencia de (4.2.17) e (4.2.22):

i)(

A†)†

= A ; (4.2.23)

ii)(

λA)†

= λ∗A† ; (4.2.24)

iii)(

A+ B)†

= A† +B† ; (4.2.25)

iv)

AB|ψ〉 −→ 〈Ψ|(

AB)†

A(

B|Ψ〉)

−→(

〈Ψ|B†)

A†. (4.2.26)

Logo(

AB)†

= B†A† . (4.2.27)

Reexpressemos a definicao de operador hermıtico (4.1.45), na notacao de Dirac. Con-

sideramos os kets |Ψ〉 e A|Ψ〉. Os seus bras associados sao

|Ψ〉 −→ (|Ψ〉, . . .) ≡ 〈Ψ|A|Ψ〉 −→

(

A|Ψ〉, . . .)

≡ 〈Ψ|A†. (4.2.28)

Logo, a condicao (4.1.45) e expressa

〈Ψ|A|Ψ〉 = 〈Ψ|A†|Ψ〉 , (4.2.29)

que, sendo |Ψ〉 arbitrario, e equivalente a

A† = A . (4.2.30)

Notemos que o produto de 2 operadores hermıticos so e um operador hermıtico se o seu

comutador for zero

(

AB)†

= AB(4.2.27)⇔ B†A† = AB

hermiticidade⇔ BA = AB ⇔[

A, B]

= 0 . (4.2.31)

Page 127: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.2 A notacao de Dirac 111

4.2.4 A operacao adjunta

A definicao de operador adjunto resulta da correspondencia entre E e E∗. Chamamos por

isso a um ket e ao seu bra associado adjuntos e denotamos

〈Ψ|† = |Ψ〉 , |Ψ〉† = 〈Ψ| . (4.2.32)

O que acontece quando temos um produto de kets e bras como por exemplo

(|a〉〈b|)† ? (4.2.33)

O elemento de matriz deste operador entre 2 estados arbitrarios e

〈Ψ| (|a〉〈b|)† |Φ〉 (4.2.22)= (〈Φ|a〉〈b|Ψ〉)∗ = 〈Φ|a〉∗〈b|Ψ〉∗ = 〈Ψ|b〉〈a|Φ〉 = 〈Ψ| (|b〉〈a|) |Φ〉 ,

(4.2.34)

ou seja

(|a〉〈b|)† = |b〉〈a| . (4.2.35)

Assim, a accao da operacao adjunta transforma ket ↔ bra e, tal como para operadores,

inverte a ordem. Notando que a operacao adjunta transforma um escalar no seu com-

plexo conjugado (por (4.2.24)), resumimos a accao da operacao adjunta numa expressao

composta por kets, bras, constantes e operadores do seguinte modo:

i) Substituimos

• constantes pelos complexos conjugados;

• kets pelos bras associados e vice-versa;

• operadores pelos adjuntos;

ii) Invertemos a ordem dos factores.

4.2.5 Notacao de Dirac numa dada base

Reproduzimos a tabela da seccao 4.1.2 na notacao de Dirac:6

6Os kets |uα〉 sao designados por kets generalizados, pois nao pertencem a E , i.e. nao sao normalizaveis,tal como os vectores uα(~x) na seccao 4.1.2.

Page 128: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

112 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

Base discreta |un〉 Base contınua |uα〉

Expansao da Funcao de Onda |Ψ〉 =∑

n

cn|un〉 |Ψ〉 =∫

dαc(α)|uα〉

Relacao de Ortonormalizacao 〈un|um〉 = δnm 〈uα|uα′〉 = δ(α− α′)

Projeccao da Funcao de Onda 〈un|Ψ〉 = cn 〈uα|Ψ〉 = c(α)

Produto escalar em componentes 〈Φ|Ψ〉 =∑

n

b∗ncn 〈Φ|Ψ〉 =∫

dαb∗(α)c(α)

Relacao de Fecho P (n) ≡∑

n

|un〉〈un| = 1 P (α) ≡∫

dα|uα〉〈uα| = 1

onde usamos o ket

|Φ〉 =∑

n

bn|un〉 , (4.2.36)

e denotamos o operador identidade como 1. Demonstremos a relacao de fecho no caso

discreto. Considerando o ket |Ψ〉 nesta base temos

|Ψ〉 =∑

n

cn|un〉 =∑

n

〈un|Ψ〉|un〉 =∑

n

|un〉〈un|Ψ〉 , (4.2.37)

o que implica a equivalencia∑

n

|un〉〈un| = 1 . (4.2.38)

E simples expressar um bra nesta base usando este operador. No caso discreto

〈Ψ| =∑

n

〈Ψ|un〉〈un| =∑

n

c∗n〈un| . (4.2.39)

Por outro lado, os elementos de matriz de um operador A sao

Anm = 〈un|A|um〉 A(α, α′) = 〈uα|A|uα′〉 , (4.2.40)

para uma base discreta e contınua respectivamente. Assim, no caso de uma base discreta

podemos resumir a situacao do seguinte modo:

• O ket |Ψ〉 =∑

n cn|un〉 e representado como um vector coluna com componentes cn;

• O bra 〈Φ| = ∑n b∗n〈un| e representado como um vector linha com componentes b∗n;

Page 129: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.2 A notacao de Dirac 113

• O operador A e representado como uma matriz com componentes Anm = 〈un|A|um〉;

• O ket A|Ψ〉 e representado como um vector coluna com componentes dn =∑

mAnmcm,que resulta da multiplicacao de uma matriz (que representa A) por um vector coluna

(que representa |Ψ〉); de facto projectando este ket nos vectores da base obtemos

dn = 〈un|A|Ψ〉 = 〈un|A1|Ψ〉 =∑

m

〈un|A|um〉〈um|Ψ〉 =∑

m

Anmcm ; (4.2.41)

• O bra 〈Ψ|A e representado como um vector linha com componentes ∑

n c∗nAnm, que

resulta da multiplicacao de um vector linha (que representa 〈Ψ|) por uma matriz

(que representa A); de facto projectando este bra nos vectores da base obtemos

〈Ψ|A|um〉 = 〈Ψ|1A|um〉 =∑

n

〈Ψ|un〉〈un|A|um〉 =∑

n

c∗nAnm ; (4.2.42)

• O numero 〈Φ|A|Ψ〉 e representado como∑

n,m b∗nAnmcm, que resulta da multiplicacao

de uma matriz (que representa A) por um vector linha a esquerda (que representa o

bra) e um vector coluna a direita (que representa o ket); de facto

〈Φ|A|Ψ〉 = 〈Φ|1A1|Ψ〉 =∑

n,m

〈Φ|un〉〈un|A|um〉〈um|Ψ〉 =∑

n,m

b∗nAnmcm ; (4.2.43)

• O operador adjunto A† de um operador A e representado pela matriz complexa conjugada

e transposta da matriz que representa A; de facto

(

A†)nm

= 〈un|A†|um〉(4.2.22)

= 〈um|A|un〉∗ = A∗mn ; (4.2.44)

• Um operador hermıtico e representado por uma matriz hermıtica, pois A† = A implica

que

Anm = A∗mn . (4.2.45)

4.2.6 Valores proprios e vectores proprios de um operador

Um problema fundamental em mecanica quantica e encontrar os valores proprios, λ, e os

vectores proprios, |Ψ〉, de um operador A; isto e, resolver a equacao

A|Ψ〉 = λ|Ψ〉 . (4.2.46)

Page 130: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

114 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

Chama-se espectro do operador A ao seu conjunto de valores proprios. Notemos que para

qualquer operador linear

i) Se |Ψ〉 e vector proprio, α|Ψ〉 tambem o e, correspondendo ao mesmo valor proprio.

Podemos por isso escolher sempre os vectores proprios normalizados, isto e

〈Ψ|Ψ〉 = 1 . (4.2.47)

ii) Se |Ψi〉, i=1,...,n, sao linearmente independentes e correspondem ao mesmo valor

proprio, o valor proprio diz-se degenerado com grau de degenerescencia n.

No caso de o operador em consideracao ser hermıtico podemos ainda enunciar as seguintes

propriedades:

i) Os valores proprios de um operador hermıtico A sao reais:

λ〈Ψ|Ψ〉 = 〈Ψ|A|Ψ〉 (4.2.22)= 〈Ψ|A|Ψ〉∗ = λ∗〈Ψ|Ψ〉 , (4.2.48)

logo

λ = λ∗ ; (4.2.49)

ii) Dois vectores proprios |Ψ〉, |Φ〉 associados a valores proprios distintos λ, µ sao ortogo-

nais. De facto,

A|Ψ〉 = λ|Ψ〉A|Φ〉 = µ|Φ〉

adjunto←→

〈Ψ|A = λ〈Ψ|〈Φ|A = µ〈Φ|

, (4.2.50)

logo se considerarmos 〈Φ|A|Ψ〉 podemos pensar de duas maneiras

λ〈Φ|Ψ〉 = 〈Φ|(

A|Ψ〉)

= 〈Φ|A|Ψ〉 =(

〈Φ|A)

|Ψ〉 = µ〈Φ|Ψ〉 , (4.2.51)

e como λ 6= µ concluımos que 〈Φ|Ψ〉 = 0.

Na pratica, dada uma base em que expressamos um operador A como uma matriz, encon-

trar os valores proprios do operador resume-se a encontrar os valores proprios da matriz e

portanto resolver a equacao

det (Amn − λδmn) = 0 . (4.2.52)

Page 131: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.3 Os postulados da Mecanica Quantica 115

4.2.7 Observaveis

Consideremos um operador hermıtico A, e por simplicidade assumimos que os seus valores

proprios formam um espectro discreto λn, n=1,...,N, com

A|Ψin〉 = λn|Ψi

n〉 , (4.2.53)

onde i representa a degenerescencia de cada valor proprio, i = 1, ..., gn, onde gn e um

numero inteiro que depende de n. Para cada n podemos escolher uma base ortonormada

do subespaco vectorial associado ao valor proprio λn,

〈Ψin|Ψj

n〉 = δij . (4.2.54)

Como vimos anteriormente os vectores proprios associados a valores proprios distintos sao

necessariamente ortogonais e podemos escolhe-los normalizados. Assim o conjunto |Ψin〉,

n = 1...N , i = 1...gn forma uma base ortonormada do espaco de funcoes proprias de A. Se

este conjunto e tambem uma base do espaco de estados E , o operador hermıtico e designado

uma observavel. Portanto, o requerimento para ser observavel e que qualquer estado de Epossa ser expresso como uma combinacao linear de funcoes proprias da observavel, condicao

que e expressa matematicamente pela relacao de fecho

N∑

n=1

gn∑

i=1

|Ψin〉〈Ψi

n| = 1 . (4.2.55)

Veremos na proxima seccao que as grandezas fısicas mensuraveis estao associadas a ob-

servaveis.

4.3 Os postulados da Mecanica Quantica

Pensemos na descricao da mecanica classica dada pelo formalismo Hamiltoniano descrito

na seccao 1.3. Podemos escrever “postulados” para a mecanica classica de N partıculas

pontuais usando a linguagem de estado do sistema que temos usado na descricao quantica.

Os postulados classicos seriam os seguintes:

i) O estado de um sistema no instante t0 e definido especificando qi(t0), pi(t0), i = 1...N ;

Page 132: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

116 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

ii) Num dado instante o valor de todas as quantidades fısicas e completamente determinado

se o estado do sistema e conhecido. Sabendo o estado do sistema em t0 podemos

prever com toda a certeza o resultado de qualquer medida efectuada no sistema em

t0;

iii) A evolucao do estado do sistema e dada pelas equacoes canonicas (1.3.13)

pi = −∂H∂qi

, qi =∂H

∂pi

, (4.3.1)

onde H e o Hamiltoniano. Dado estas serem equacoes diferenciais de primeira ordem,

a sua solucao qi(t), pi(t) e completamente determinada pelas condicoes iniciais

qi(t0), pi(t0). Assim, o estado do sistema e conhecido para todo o t se for conhecido

para t0.

Qual o sistema de postulados que substituem os anteriores em mecanica quantica? Ou

seja:

i) Como se descreve matematicamente num dado instante t0 o estado de umsistema quantico?

Primeiro Postulado

Num dado instante t0, o estado de um sistema e descrito por um ket |Ψ(to)〉 pertencente

ao espaco de estados E .

Note-se que neste postulado esta implıcito: a) o princıpio de sobreposicao, pois E e um

espaco vectorial; b) normalizabilidade da funcao de onda pois E e um subespaco de um

espaco de Hilbert.

ii) Dado este estado, como podemos prever o resultado da medida de quanti-dades fısicas?

Segundo Postulado

Qualquer quantidade fısica mensuravel, A, e descrita por um operador, A, que actua

em E ; este operador e uma observavel.

Page 133: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.3 Os postulados da Mecanica Quantica 117

Note-se desde ja que em mecanica quantica o estado do sistema - representado por

um vector - e uma quantidade fısica mensuravel - representada por um operador - tem

naturezas diferentes. Em mecanica classica este contraste nao existe.

Terceiro Postulado

Os unicos resultados possıveis numa medicao de A sao os valores proprios de A.

Note-se que a) o resultado de uma medicao e um numero real, como consequencia de

A ser hermıtico; b) se o espectro de A for discreto os resultados possıveis da medicao de

A estao quantificados.

Quarto Postulado

A previsao do resultado da medicao de A e de natureza probabilıstica. Se A for medida

num sistema descrito por um estado normalizado |Ψ〉, temos as seguintes possibilidades

para a probabilidade de obter um dado valor:

• Se A tem um espectro discreto an, a probabilidade de obter um dado valor proprio an

e

P(an) =

gn∑

i=1

|〈uin|Ψ〉|2 , (4.3.2)

onde gn e o grau de degenerescencia do valor proprio an e |uin〉, i = 1...gn e uma

base ortonormada do subespaco de vectores proprios associados a an;

• Se A tem um espectro contınuo a(α), a probabilidade dP(α) de obter um resultado

entre α e α+ dα e

dP(α) = |〈uα|Ψ〉|2dα , (4.3.3)

onde |uα〉 e o vector proprio de A associado ao valor proprio a(α).

Note-se que para este postulado ser coerente, a soma da probabilidade de todos os resul-

tados possıveis tem de ser 1. Este e o caso se A for uma observavel. De facto, tomando

como exemplo simples o caso de um espectro discreto nao degenerado,

n

P(an) =∑

n

|〈un|Ψ〉|2 A e observavel=

m

n

|〈un|um〉cm|2 =∑

m

|cm|2 = 1 , (4.3.4)

Page 134: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

118 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

pois 〈Ψ|Ψ〉 = 1 por hipotese. Logo, a condicao de A ser observavel garante que

〈Ψ|Ψ〉 = 1A e Observavel⇒

todos os valores proprios

P(valor proprio) = 1 . (4.3.5)

Note-se tambem que poderıamos considerar casos mais complicados, como espectros contınuos

degenerados ou espectros parcialmente contınuos e parcialmente discretos.

Quinto Postulado - Colapso da funcao de onda

Se a medicao de uma grandeza fısica A no sistema no estado |Ψ〉 da resultado:

• (caso discreto) an, o sistema imediatamente depois da medida encontra-se no estado

descrito pela projeccao normalizada de |Ψ〉 para o subespaco associado a an

|Ψ〉 medida da an−→ Pn|Ψ〉√

〈Ψ|Pn|Ψ〉, (4.3.6)

onde

Pn =

gn∑

i=1

|uin〉〈ui

n| ; (4.3.7)

• (caso contınuo) α0 com incerteza ∆α, o sistema imediatamente depois da medida encontra-

se no estado descrito pela projeccao

|Ψ〉medida da α0incerteza ∆α−→ P∆α(α0)|Ψ〉

〈Ψ|P∆α(α0)|Ψ〉, (4.3.8)

onde

P∆α(α0) =

∫ α0+∆α/2

α0−∆α/2

dα|uα〉〈uα| . (4.3.9)

Note-se que a evolucao normal do sistema podera retira-lo deste estado proprio de A,

caso este operador nao comute com o operador Hamiltoniano.

iii) Sabendo o estado inicial em t0, como calcular o estado num instante poste-rior t?

Sexto Postulado

A evolucao temporal do estado do sistema |Ψ(t)〉 e descrita pela equacao de Schrodinger

i~d

dt|Ψ(t)〉 = H(t)|Ψ(t)〉 , (4.3.10)

Page 135: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.4 Quantificacao 119

onde H(t) e o operador Hamiltoniano que e a observavel associada com a energia total do

sistema.

4.4 Quantificacao

O princıpio da incerteza de Heisenberg ficou, aparentemente, de fora nos postulados da

seccao anterior. Por outro lado, o segundo postulado associa a uma grandeza mensuravel

A um operador A, que nao especificamos como construir. Vamos agora estabelecer como

e que associamos as variaveis fısicas mensuraveis operadores e como e que incorporamos

nesses operadores o princıpio da incerteza.

4.4.1 Variaveis compatıveis, incompatıveis e C.C.O.C.

Duas grandezas mensuraveis A e B dizem-se compatıveis se os operadores que lhes estao

associados A e B comutam. Tambem se usa o termo compatıveis para as proprias ob-

servaveis. Significado matematico de compatibilidade:

Teorema: A compatibilidade de duas observaveis e equivalente a possuirem um sistema

ortonormado completo e comum de funcoes proprias, isto e, uma base propria comum.

Estas observaveis sao ditas simultaneamente diagonalizaveis.

Demonstracao: Aqui tomamos somente o caso mais simples em que A e B tem espectro

discreto nao degenerado com valores proprios, respectivamente, an e bn.i) (⇐) Utilizemos estes valores proprios como rotulos do conjunto ortonormado e com-

pleto de vectores proprios comum a A e B denotado |an, bm〉:

A|an, bm〉 = an|an, bm〉 , B|an, bm〉 = bm|an, bm〉 . (4.4.1)

Logo(

BA− AB)

|an, bm〉 = 0 , (4.4.2)

de onde concluimos, devido aos |an, bm〉 formarem uma base do espaco de estados, que[

A, B]

= 0.

Page 136: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

120 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

ii) (⇒) Consideramos duas variaveis compatıveis, que portanto tem operadores associ-

ados A e B que comutam. Consideremos um conjunto completo de vectores proprios de

A, |an〉,A|an〉 = an|an〉 . (4.4.3)

O vector B|an〉 e tambem vector proprio de A com valor proprio an; de facto

A(

B|an〉)

[A,B]=0= BA|an〉 = an

(

B|an〉)

. (4.4.4)

Mas como assumimos que o espectro e nao degenerado, todos os vectores proprios associ-

ados a um valor proprio sao colineares. Logo

B|an〉 = b|an〉 , (4.4.5)

o que mostra que os vectores proprios de A sao tambem vectores proprios de B e como tal

que existe um conjunto completo de vectores proprios comum a A e B. (q.e.d.)

Corolario: Se o Hamiltoniano H comuta com um operador O entao existe uma base de

estados estacionarios cujos elementos sao tambem estados proprios de O. Note, no entanto,

que se o espectro de H for degenerado podera ser possıvel construir estados estacionarios

que nao sao estados proprios de O.

Nota: o facto de nao existir uma base propria comum a duas observaveis nao significa

que nao exista nenhum vector proprio comum.

Obviamente, duas grandezas mensuraveis A e B dizem-se incompatıveis se os oper-

adores que lhes estao associados A e B nao comutam (os operadores tambem sao ditos

incompatıveis). Significado fısico da incompatibilidade:

Teorema: A incompatibilidade de duas grandezas fısicas implica a impossibilidade de

determinar ambas as grandezas com precisao arbitraria.

Demonstracao: Assumimos que os operadores A e B associados as nossas grandezas

fısicas A e B nao comutam:

[

A, B]

= ia1 , a ∈ R+ . (4.4.6)

Page 137: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.4 Quantificacao 121

Estas grandezas tem associadas funcoes de distribuicao de probabilidade. Podemos por

isso associar-lhes um valor esperado, uma variancia e um desvio padrao. Pretendemos

demonstrar que o produto dos desvios padrao tem um ınfimo. Se o espectro de A e B for

dado por an e bn, os valores esperados das grandezas A e B serao dados por

〈A〉 =∑

n

P(an)an , 〈B〉 =∑

n

P(bn)bn , (4.4.7)

onde P(an) = |〈an|Ψ〉|2 e os desvios padrao

∆A =√

〈(A− 〈A〉)2〉 , ∆B =√

〈(B − 〈B〉)2〉 . (4.4.8)

Primeiro, notamos como expressar 〈A〉 na notacao de Dirac:

〈A〉 =∑

n

〈an|Ψ〉∗〈an|Ψ〉an =∑

n

〈Ψ|an〉〈an|Ψ〉an =∑

n

〈Ψ|A|an〉〈an|Ψ〉 = 〈Ψ|A|Ψ〉 ≡ 〈A〉 .

(4.4.9)

Observe a notacao. No fim da linha denotamos o valor esperado de um operador num

determinado estado de uma maneira analoga ao valor esperado (ou medio) estatıstico que

aparece no inıcio da linha.

Segundo, definimos as observaveis α, β do seguinte modo

α = A− 〈A〉1 , β = B − 〈B〉1 , (4.4.10)

que sao observaveis com a mesma relacao de comutacao que A e B, [α, β] = ia1, correspon-

dentes a grandezas fısicas, α, β, com o mesmo desvio padrao de A,B mas valor esperado

zero. Logo (4.4.8) fica neste caso

(∆α)2 = 〈α2〉, (∆β)2 = 〈β2〉 , (4.4.11)

ou, na notacao de Dirac

(∆α)2 = 〈Ψ|α2|Ψ〉, (∆β)2 = 〈Ψ|β2|Ψ〉 , (4.4.12)

ou ainda, definindo |Ψ1〉 = α|Ψ〉 e |Ψ2〉 = β|Ψ〉

(∆α)2 = 〈Ψ1|Ψ1〉, (∆β)2 = 〈Ψ2|Ψ2〉 . (4.4.13)

Page 138: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

122 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

Terceiro usamos a desigualdade de Schwarz (4.1.12)

(∆α∆β)2 = 〈Ψ1|Ψ1〉〈Ψ2|Ψ2〉(4.1.12)

≥ 〈Ψ1|Ψ2〉〈Ψ2|Ψ1〉 = 〈Ψ|αβ|Ψ〉〈Ψ|βα|Ψ〉 . (4.4.14)

Notemos que embora α e β sejam hermıticos, o seu produto αβ nao e hermıtico, pois eles

nao comutam. Assim

x+ iy ≡ 〈Ψ|αβ|Ψ〉 = 〈Ψ|(

αβ)†|Ψ〉∗ = 〈Ψ|βα|Ψ〉∗ ⇒ 〈Ψ|βα|Ψ〉 ≡ x− iy . (4.4.15)

Logo reescrevemos (4.4.14) como

(∆α∆β)2 ≥ x2 + y2 ≥ y2 = −1

4

(

〈Ψ|αβ|Ψ〉 − 〈Ψ|βα|Ψ〉)2

= −1

4

(

〈Ψ|[

α, β]

|Ψ〉)2

=a2

4.

(4.4.16)

Finalmente concluimos entao que

∆α∆β ≥ a

2⇔ ∆A∆B ≥ a

2, (4.4.17)

o que mostra que nao podemos determinar as duas grandezas simultaneamente com precisao

arbitraria. (q.e.d.)

Tendo compreendido que um conjunto de variaveis compatıveis corresponde a um con-

junto de observaveis que comutam e portanto tem uma base propria comum, introduzimos

a seguinte definicao

Definicao: Um conjunto de observaveis, A, B, C . . ., diz-se um Conjunto Completo de

Observaveis que Comutam (C.C.O.C) se:

i) Todos os pares de observaveis comutarem;

ii) Especificando o valor proprio de todas as observaveis determina um unico vector proprio

(normalizado);

iii) Ao retirarmos uma qualquer observavel, ii) deixa de ser obedecido, ou seja, o conjunto

e minimal.

Page 139: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.4 Quantificacao 123

A base para o espaco de estados de um sistema fısico e escolhida como o conjunto de

vectores proprios de um C.C.O.C, sendo estes vectores rotulados pelos valores proprios do

C.C.O.C.

|an, bn, cn, . . .〉 , (4.4.18)

onde an, bn, cn, . . ., sao os espectros de A, B, C . . .. Note-se que para um dado

sistema fısico existem, em geral, varios C.C.O.C.

4.4.2 Os operadores X e P

O exemplo canonico de variaveis incompatıveis sao as grandezas fısicas momento e posicao.

Associando a estas grandezas fısicas as observaveis X e P e comparando (4.4.17) com (2.3.6)

identificamos a = ~ e usando em (4.4.6) temos que a relacao de comutacao

[

X, P]

= i~1 , (4.4.19)

reproduz a relacao de incerteza de Heisenberg. Ou seja (4.4.19) e a expressao do princıpio

da incerteza de Heisenberg em termos das observaveis X e P . Se tivessemos varias com-

ponentes de posicao e momento, Xk e Pj terıamos

[

Xk, Pj

]

= i~δkj 1 ,

[

Xk, Xj]

= 0 =[

Pk, Pj

]

, (4.4.20)

que sao denominadas relacoes de comutacao canonicas. Deste modo, nao podemos escolher

uma base de funcoes proprias comum a X e P , pelo que temos duas importantes alternativas

para a escolha de base de um sistema fısico:7

• Representacao |~x〉: Expandimos o estado do sistema fısico na base de funcoes proprias

do operador X. Esta base foi estudada no final da seccao 4.1.2 e corresponde a tomar

os vectores da base como deltas de Dirac, ou, na notacao de Dirac

δ(~x− ~x0) → |~x0〉 ; (4.4.21)

7Note-se que os kets que vamos usar |~x0〉 e |~p〉 sao kets generalizados.

Page 140: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

124 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

• Representacao |~p〉: Expandimos o estado do sistema fısico na base de funcoes proprias

do operador P . Tomamos os vectores da base como ondas planas, ou, na notacao de

Dirac1

(2π~)n/2ei~p·~x/~ → |~p〉 . (4.4.22)

Para estas ‘bases’ a tabela da seccao 4.2.5 fica

Representacao |~p〉 Representacao |~x〉

Expansao da Funcao de Onda |Ψ〉 =

d~p Ψ(~p)|~p〉 |Ψ〉 =

d~x0Ψ(~x0)|~x0〉

Relacao de Ortonormalizacao 〈~p|~p ′〉 = δ(~p− ~p ′) 〈~x0|~x0′〉 = δ(~x0 − ~x0

′)

Projeccao da Funcao de Onda 〈~p|Ψ〉 = Ψ(~p) 〈~x0|Ψ〉 = Ψ(~x0)

Produto escalar em componentes 〈Φ|Ψ〉 =∫

d~pΦ∗(~p)Ψ(~p) 〈Φ|Ψ〉 =∫

d~x0Φ∗(~x0)Ψ( ~x0)

Relacao de Fecho∫

d~p|~p〉〈~p| = 1∫

d~x0|~x0〉〈~x0| = 1

Assim, podemos reinterpretar a funcao de onda no espaco de configuracoes Ψ(~x) e a

sua transformada de Fourier Ψ(~p) como os coeficientes da expansao do estado do sistema

na representacao |~x〉 e |~p〉 respectivamente. Notemos que

〈~x0|~p0〉 =

d~xδ(~x− ~x0)1

(2π~)n/2ei~p0·~x/~ =

1

(2π~)n/2ei~p0·~x0/~ . (4.4.23)

Para simplificar a notacao trabalharemos a partir de agora em uma so dimensao. A

accao do operador X na representacao |x〉 e do operador P na representacao |p〉 e

X|x〉 = x|x〉 , P |p〉 = p|p〉 . (4.4.24)

Uma questao natural e a seguinte: Qual a accao do operador P na representacao |x〉 e

do operador X na representacao |p〉? Para obter a resposta consideramos o ket P |Ψ〉projectado na representacao |x〉:

〈x|P |Ψ〉 =

dp〈x|p〉〈p|P |Ψ〉 =1√2π~

dpeipx/~pΨ(p)

=1√2π~

(

−i~ d

dx

)∫

dpeipx/~Ψ(p) =

(

−i~ d

dx

)

Ψ(x) =

(

−i~ d

dx

)

〈x|Ψ〉. (4.4.25)

Page 141: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.4 Quantificacao 125

Portanto, na representacao |x〉 o operador P coincide com o operador diferencial −i~d/dx,que e hermıtico, como vimos na seccao 4.1.3. Um elemento de matriz fica

〈Φ|P |Ψ〉 =

dxdx′〈Φ|x〉〈x|P |x′〉〈x′|Ψ〉 =

dxdx′Φ(x)∗(

−i~ d

dx

)

〈x|x′〉〈x′|Ψ〉

=

dxΦ(x)∗(

−i~ d

dx

)

〈x|[∫

dx′|x′〉〈x′|]

|Ψ〉 =

dxΦ(x)∗(

−i~ d

dx

)

Ψ(x)

.

(4.4.26)

Podemos ainda verificar a consistencia desta representacao do operador P com (4.4.19);

consideremos

〈x|[

X, P]

|Ψ〉 = 〈x|XP − P X|Ψ〉 , (4.4.27)

e se nos situarmos na representacao |x〉 temos

=(

〈x|X)

P |Ψ〉 − 〈x|P(

X|Ψ〉)

= x〈x|P |Ψ〉+ i~d

dx〈x|X|Ψ〉

= x

(

−i~ d

dx〈x|Ψ〉

)

+ i~d

dx(x〈x|Ψ〉) = i~〈x|Ψ〉

, (4.4.28)

ou, como |Ψ〉 e arbitrario,[

X, P]

= i~1 , (4.4.29)

em concordancia com (4.4.19).

De um modo analogo podemos concluir que o operador X na representacao |p〉 toma a

forma do operador diferencial i~d/dp.

Notemos que qualquer variavel ou equacao dinamica pode ser expressa tanto na rep-

resentacao |x〉 como |p〉. Assim, a equacao de Schrodinger, que e usualmente escrita na

representacao |x〉,i~∂Ψ(x, t)

∂t=

[

− ~2

2m∆ + V (x, t)

]

Ψ(x, t) , (4.4.30)

pode ser vista como resultando da relacao de energia

E =p2

2m+ V (x, t) , (4.4.31)

por substituicao de

E → i~∂

∂t, ~p→ −i~∇ , (4.4.32)

Page 142: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

126 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

o que significa o uso da representacao |x〉. Por contraste, na representacao |p〉 farıamos a

substituicao

E → i~∂

∂t, ~x→ i~∇p , (4.4.33)

o que nos leva a equacao de Schrodinger na representacao |p〉

i~∂Ψ(p, t)

∂t=

[

p2

2m+ V (i~∇p, t)

]

Ψ(p, t) . (4.4.34)

Claro que esta equacao nao e mais do que a representacao de (4.4.30) no espaco de Fourier.

Concluimos com a observacao de que tanto X como P sao observaveis (a hermiticidade

foi demonstrada na seccao 4.1.3) e que para o problema de uma partıcula sem spin a

mover-se livremente no espaco de posicoes varios C.C.O.C. sao

X, Y , Z , Px, Py, Pz , X, Py, Pz , . . . (4.4.35)

4.4.3 Regras de Quantificacao canonica

Consideremos um sistema classico de uma partıcula, descrito pelo ‘estado classico’ q(t), p(t).A quantificacao deste sistema e feita do seguinte modo:

i) O estado do sistema passa a ser interpretado como um vector |Ψ〉 em E ;

ii) Uma grandeza fısica mensuravel, A(q, p, t) passa a ser um operador

A(q, p, t) → A(X, P , t) , (4.4.36)

onde, quando houver ambiguidade de ordem entre X e P a expressao deve ser

simetrizada, o que garante a hermiticiadade do operador;

iii) Impoem-se relacoes de comutacao canonicas (em coordenadas cartesianas) entre a

observavel associada a posicao, X, e a observavel associada ao seu momento canonico

conjugado, P .

Exemplos:

Page 143: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.4 Quantificacao 127

• A quantidade fısica qp tem associado o operador

1

2(XP + P X) , (4.4.37)

que contem a simetrizacao necessaria para evitar ambiguidades de ordem e garante

a hermiticidade necessaria para ser observavel;

• O momento angular

~L = ~x× ~p = (ypz − zpy, zpx − xpz, xpy − ypx) , (4.4.38)

tem operador associado

~L = (Lx, Ly, Lz) = (Y Pz − ZPy, ZPx − XPz, XPy − Y Px) . (4.4.39)

Usando as relacoes de comutacao canonicas obtemos

[Lx, Ly] = i~Lz , [Ly, Lz] = i~Lx , [Lz, Lx] = i~Ly , (4.4.40)

que sao as relacoes de comutacao para o momento angular.

• Consideremos um sistema descrito pelo Lagrangiano

L =1

2mq2 − V (q)

p=mq⇒ H =p2

2m+ V (q) . (4.4.41)

Quantificando, temos o operador Hamiltoniano

H =P 2

2m+ V (X) , (4.4.42)

e as relacoes de comutacao canonicas sao

[

X, P]

= i~1 ; (4.4.43)

• Consideremos uma partıcula sob a influencia de um campo electromagnetico

L =1

2m~x

2+q~x· ~A(t, ~x)−qφ(t, ~x)

~p=m~x+q ~A⇒ H =(~p− q ~A(t, ~x))2

2m+qφ(t, ~x) . (4.4.44)

Page 144: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

128 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

Quantificando, temos o operador Hamiltoniano

H =(~P − q~A(t,

~X))2

2m+ qφ(t,

~X) , (4.4.45)

e as relacoes de comutacao canonicas

[Xj , Pk] = i~δjk1 . (4.4.46)

No capıtulo 5 estudaremos detalhadamente a quantificacao canonica do oscilador harmonico

e do problema de Larmor. Em conclusao notamos que este metodo de quantificacao nao

pode ser aplicado a variaveis que nao tenham analogo classico. O exemplo obvio e o spin,

que tem de ser definido directamente pelo operador associado.

4.4.4 Comentarios sobre a evolucao de um sistema quantico

A evolucao de um sistema quantico e dada pela equacao de Schrodinger

i~d|Ψ(t)〉dt

= H|Ψ(t)〉 . (4.4.47)

Vamos discutir algumas propriedades desta equacao:

i) Determinista: dado o estado inicial |Ψ(t0)〉, o estado final |Ψ(t)〉 esta totalmente deter-

minado; o indeterminismo na mecanica quantica surge na altura da medicao devido

ao colapso da funcao de onda;

ii) Linearidade, que e equivalente ao princıpio de sobreposicao;

iii) Conservacao da probabilidade, isto e 〈Ψ(t)|Ψ(t)〉 e constante na evolucao devido a

hermiticidade do operador Hamiltoniano:

d

dt〈Ψ(t)|Ψ(t)〉 =

(

d

dt〈Ψ(t)|

)

|Ψ(t)〉+ 〈Ψ(t)|(

d

dt|Ψ(t)〉

)

, (4.4.48)

mas, pela equacao de Schrodinger

d|Ψ(t)〉dt

=1

i~H|Ψ(t)〉 ⇔ d〈Ψ(t)|

dt= − 1

i~〈Ψ(t)|H . (4.4.49)

Logo, (4.4.48) fica igual a zero, o que mostra que a norma da funcao de onda e

conservada.

Page 145: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.4 Quantificacao 129

Claro que na evolucao do sistema podera haver variacoes locais da densidade de probabil-

idade. Assumindo que a funcao de onda esta normalizada,

V

P(~x, t)d~x =

V

Ψ(~x, t)∗Ψ(~x, t)d~x , (4.4.50)

representa a probabilidade de a partıcula estar num determinado volume V . Assim

d

dt

V

P(~x, t)d~x =

V

[(

∂tΨ(~x, t)∗

)

Ψ(~x, t) + Ψ(~x, t)∗(

∂tΨ(~x, t)

)]

d~x , (4.4.51)

ou, usando a equacao de Schrodinger

=i~

2m

V

[−Ψ(~x, t)∆Ψ(~x, t)∗ + Ψ(~x, t)∗∆Ψ(~x, t)] d~x = −∫

V

∇ · ~J(~x, t)d~x , (4.4.52)

onde definimos o vector densidade de corrente de probabilidade

~J(~x, t) =i~

2m[Ψ(~x, t)∇Ψ(~x, t)∗ −Ψ(~x, t)∗∇Ψ(~x, t)] . (4.4.53)

Assim temos∫

V

∂tP(~x, t)d~x+

V

∇ · ~J(~x, t)d~x = 0 , (4.4.54)

ou, como o volume e arbitrario

∂tP(~x, t) +∇ · ~J(~x, t) = 0 , (4.4.55)

que e uma equacao de continuidade para a probabilidade.

4.4.5 Evolucao do valor medio de uma variavel

Para um dado instante t, o valor medio de uma grandeza fısica A e dado por (4.4.9)

〈A〉(t) = 〈Ψ(t)|A|Ψ(t)〉 . (4.4.56)

Diferenciando

d

dt〈A〉(t) =

(

∂t〈Ψ(t)|

)

A|Ψ(t)〉+ 〈Ψ(t)|∂A∂t|Ψ(t)〉+ 〈Ψ(t)|A

(

∂t|Ψ(t)〉

)

, (4.4.57)

ou, usando a equacao de Schrodinger

=1

i~〈Ψ(t)|AH − HA|Ψ(t)〉+ 〈∂A

∂t〉(t) , (4.4.58)

Page 146: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

130 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

de onde concluimos que

d

dt〈A〉(t) = 〈∂A

∂t〉(t) +

1

i~〈[

A, H]

〉(t) . (4.4.59)

Logo, a dinamica do valor medio e a mesma da mecanica classica (1.3.28). Tal como em

mecanica classica, se a observavel A nao depender explicitamente do tempo e comutar

com o Hamiltoniano, o seu valor medio e uma constante do movimento. Note-se que os

parentesis de Poisson desempenham o papel de comutador classico.

Uma aplicacao particular de (4.4.59) e aos operadores X e P para um sistema com

Hamiltoniano (4.4.42); aplicando a X obtemos

d

dt〈X〉 =

1

i~〈[

X,P 2

2m

]

〉 =1

i~〈[

X, P] P

2m+

P

2m

[

X, P]

〉 =〈P 〉m

, (4.4.60)

enquanto que notando que

[

P , V (X)]

serie Taylor= [P , V01 + V1X + V2X

2 + V3X3 + . . .]

= −i~(

V1 − 2V2X − 3V3X2 − . . .

)

= −i~dV (X)

dX

, (4.4.61)

e aplicando a P obtemos

d

dt〈P 〉 =

1

i~〈[

P , V (X)]

〉 =1

i~〈−i~dV (X)

dX〉 = −〈dV (X)

dX〉 , (4.4.62)

que reproduzem as formulas classicas

dx

dt=

p

m,

dp

dt= −dV (x)

dx. (4.4.63)

Estes resultados demonstram o teorema de Ehrenfest : “As equacoes de evolucao dos valores

medios de um sistema quantico sao formalmente identicas as da mecanica classica.”

Como tal, se os valores medios de observaveis derem uma boa descricao da fısica de

um sistema, a mecanica classica fornece uma descricao satisfatoria, que e o conteudo do

princıpio da correspondencia. Por exemplo, a mecanica classica so ‘ve’ a posicao do centro

do trem de ondas; se a dispersao do mesmo for irreconhecıvel nas experiencias levadas a

cabo, a descricao da mecanica classica sera satisfatoria.

Page 147: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.5 Mecanica Quantica Estatıstica 131

4.5 Mecanica Quantica Estatıstica

O formalismo que desenvolvemos ate ao momento consegue apenas fazer previsoes prob-

abilısticas relativamente aos resultados possıveis em medicoes de um sistema quantico.

Contudo, este formalismo baseia-se em saber exactamente o estado quantico do sistema,

|Ψ〉, o que temos sempre assumido. Podemos, no entanto, imaginar situacoes em que

temos uma informacao incompleta acerca do estado do sistema. Por exemplo, a energia

cinetica de atomos emitidos por uma fornalha a temperatura T e conhecida apenas prob-

abilisticamente, mesmo em mecanica classica. De facto, tal como em Mecanica Classica

Estatıstica sabemos, por exemplo, a energia de uma partıcula num sistema em equilıbrio

termico apenas probabilisticamente atraves da distribuicao de Boltzmann

P(E) ∼ e−E/KBT , (4.5.1)

em Mecanica Quantica Estatıstica saberemos o estado em que uma partıcula se encontra

apenas probabilisticamente. Existe uma mistura estatıstica de estados, ou estado mistura.

Por oposicao, um estado quantico perfeitamente conhecido e designado por estado puro.

Para compreender as alteracoes introduzidas se considerarmos uma mistura estatıstica

de estados consideremos o seguinte exemplo. O nosso sistema quantico encontra-se no

estado mistura descrito por

|Ψ〉 = a1|α〉+ a2|β〉 com probabilidade p1

|Ψ′〉 = a3|α〉+ a4|β〉 com probabilidade p2

, (4.5.2)

onde cada estado esta normalizado

|a1|2 + |a2|2 = 1 , |a3|2 + |a4|2 = 1 , (4.5.3)

e p1 + p2 = 1. Uma pergunta natural e: “Qual a probabilidade de obter o valor proprio

associado a |α〉 ou |β〉 numa medicao?” A resposta natural e

P(α) = p1|a1|2 + p2|a3|2 , P(β) = p1|a2|2 + p2|a4|2 , (4.5.4)

o que implica que

P(α) + P(β) = 1 . (4.5.5)

Page 148: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

132 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

Note-se que esta resposta nao e equivalente a considerar o novo estado

|Ψ〉 =√p1|Ψ〉+

√p2|Ψ′〉 = (

√p1a1 +

√p2a3) |α〉+ (

√p1a2 +

√p2a4) |β〉 , (4.5.6)

que, pelos postulados usuais implicaria que

P(α) =p1|a1|2 + p2|a3|2 +

√p1p2(a1a

∗3 + a∗1a3)√

p1p2(a1a∗3 + a∗1a3 + a2a

∗4 + a4a

∗2) + 1

. (4.5.7)

Neste caso existem termos de interferencia, que nao estao presentes na mistura estatıstica

de estados.

Com este exemplo concluimos os seguintes dois factos:

• Uma mistura estatıstica de estados quanticos |Ψ1〉 . . . |Ψn〉 nao pode ser expressa como

uma combinacao linear destes estados quanticos

|Ψ〉 6=n∑

i=1

χi|Ψi〉 , (4.5.8)

pois nesta combinacao linear existiriam sempre termos de interferencia entre os varios

estados |Ψi〉 no calculo de probabilidades, termos que nao estao presentes nas prob-

abilidades da mistura estatıstica. Mais concretamente, uma sobreposicao linear de

estados puros

|Ψ〉 = λ1|Ψ1〉+ λ2|Ψ2〉 , (4.5.9)

que e ainda um estado puro, tem um significado fısico diferente de uma mistura

estatıstica de |λ1|2 sistemas no estado |Ψ1〉 com |λ2|2 sistemas no estado |Ψ2〉, que e

um estado mistura.

• Na mecanica quantica estatıstica existem dois nıveis diferentes onde entra a probabili-

dade: i) no facto de a informacao sobre o estado inicial ser probabilıstica - semelhante

a mecanica classica estatıstica; ii) no facto da previsao de resultados de medicoes ser

probabilıstica - puramente quantico.

Vamos agora introduzir um operador, denominado operador de densidade que unifica

a descricao de estados puros e estados mistura.

Page 149: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.5 Mecanica Quantica Estatıstica 133

4.5.1 O operador de densidade para um estado puro

Assumimos que temos um espaco de estados com uma base discreta, |un〉, de modo que

um estado puro normalizado se escreve

|Ψ(t)〉 =∑

n

cn(t)|un〉 ,∑

n

|cn(t)|2 = 1 . (4.5.10)

Introduzimos agora um operador construıdo com base no estado do sistema e que contem

a mesma informacao que este: o operador densidade definido por

ρ(t) ≡ |Ψ(t)〉〈Ψ(t)| . (4.5.11)

Note-se que este operador depende do tempo. Consideremos algumas propriedades de ρ(t):

• Na base |un〉, o operador de densidade e representado pela matriz de densidade:

ρmn(t) = 〈um|ρ(t)|un〉 = 〈um|Ψ(t)〉〈Ψ(t)|un〉 = cm(t)c∗n(t) . (4.5.12)

• A condicao de normalizacao do estado quantico em termos do operador de densidade

fica

1 = 〈Ψ(t)|Ψ(t)〉 =∑

n

|cn|2 =∑

n

ρnn(t) = Tr(ρ(t)) , (4.5.13)

ou seja

Tr(ρ(t)) = 1 . (4.5.14)

• O valor medio de uma observavel e

〈A〉(t) = 〈Ψ(t)|A|Ψ(t)〉 =∑

n,p

〈Ψ(t)|un〉〈un|A|up〉〈up|Ψ(t)〉

=∑

n,p

cp(t)c∗n(t)Anp =

n,p

Anpρpn(t) = Tr(Aρ(t)), (4.5.15)

ou seja

〈A〉(t) = Tr(Aρ(t)) = Tr(ρ(t)A) . (4.5.16)

• A evolucao do operador de densidade e deduzida da equacao de Schrodinger

d

dtρ(t) =

d

dt(|Ψ(t)〉) 〈Ψ(t)|+ |Ψ(t)〉 d

dt(〈Ψ(t)|) =

1

i~H|Ψ(t)〉〈Ψ(t)| − 1

i~|Ψ(t)〉〈Ψ(t)|H

=1

i~

[

H, ρ(t)]

.

(4.5.17)

Page 150: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

134 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

• A probabilidade de obter o valor proprio associado ao estado |un〉, an, numa medicao e:

P(an) = 〈Ψ(t)|un〉〈un|Ψ(t)〉 = 〈Ψ(t)|Pn|Ψ(t)〉 = Tr(ρ(t)Pn) , (4.5.18)

onde Pn = |un〉〈un| e o operador de projeccao (4.3.7).

• Pela definicao ρ(t) e hermıtico

ρ(t) = ρ(t)† . (4.5.19)

• ρ(t) e um operador de projeccao

ρ(t)2 = |Ψ(t)〉〈Ψ(t)|Ψ(t)〉〈Ψ(t)| = |Ψ(t)〉〈Ψ(t)| = ρ(t) . (4.5.20)

• Logo

Tr(ρ(t)2) = Tr(ρ(t)) = 1 . (4.5.21)

Esta propriedade e a anterior so sao validas para um estado puro. Veremos que

nao se verificam para uma mistura estatıstica de estados e por isso podem funcionar

para testar se uma determinada matriz de densidade descreve um estado puro ou um

estado mistura.

Assim, para um estado puro, especificar o operador de densidade ou o proprio estado e

equivalente.

4.5.2 O operador de densidade para uma mistura estatıstica deestados

Consideremos agora uma mistura estatıstica de estados

|Ψi〉 =∑

n

cin(t)|un〉

com probabilidades

pi

. (4.5.22)

Definimos o operador de densidade como

ρ(t) ≡∑

i

pi|Ψi(t)〉〈Ψi(t)| ≡∑

i

piρi(t) . (4.5.23)

Claramente (4.5.11) e o caso particular correspondente a p1 = 1 e pi = 0 quando i 6= 1,

ou seja um estado puro. Reconsideremos agora as propriedades do operador de densidade

vistas anteriormente:

Page 151: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.5 Mecanica Quantica Estatıstica 135

• Na base |un〉, o operador de densidade e representado pela matriz de densidade, que

agora toma a forma:

ρmn(t) = 〈um|ρ(t)|un〉 = 〈um|∑

i

pi|Ψi(t)〉〈Ψi(t)|un〉 =∑

i

piρimn(t) =

i

picim(t)cin(t)∗ .

(4.5.24)

Note-se que para n = m

ρnn(t) =∑

i

pi|cin(t)|2 , (4.5.25)

que e um numero real positivo que nos da a probabilidade de encontrarmos numa

medicao o sistema no estado |un〉, como demonstrara a relacao (4.5.30). Assim, os

termos da diagonal da matriz de densidade designam-se por populacoes. Para n 6= m,

ρnm e um numero complexo. Representa uma media (para todos os estados |Ψi〉) de

termos de interferencia entre |uin〉 e |ui

m〉. Estes termos sao designados por coerencias.

• A condicao de normalizacao dos varios estados quanticos na mistura fica, em termos do

operador de densidade

1 = 〈Ψi(t)|Ψi(t)〉 =∑

n

|cin|2 =∑

n

ρinn(t) = Tr(ρi(t)) ; (4.5.26)

logo

1 =∑

i

pi =∑

i

piTr(ρi(t)) = Tr(ρ(t)) . (4.5.27)

Ou seja temos ainda a condicao (4.5.14).

• O valor medio de uma observavel e

〈A〉(t) =∑

n

an

(

i

piP i(an)

)

=∑

i

pi∑

n

anP i(an) =∑

i

piTr(ρi(t)A)

= Tr(ρ(t)A) ,

(4.5.28)

que e ainda o mesmo resultado do caso puro (4.5.16).

• A evolucao do operador de densidade e ainda dada pela equacao do caso puro

d

dtρ(t) =

1

i~

[

H, ρ(t)]

. (4.5.29)

Page 152: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

136 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

• A probabilidade de obter o valor proprio associado ao estado |un〉, an, numa medicao e:

P(an) =∑

i

piP i(an) =∑

i

piTr(ρi(t)Pn) = Tr(ρ(t)Pn) , (4.5.30)

recuperando o resultado do estado puro.

• Obviamente ρ(t) e ainda hermıtico

• Em geral ρ(t) nao e um operador de projeccao:

ρ(t)2 =∑

i,j

pipj |Ψi(t)〉〈Ψi(t)|Ψj(t)〉〈Ψj(t)| 6= ρ(t) . (4.5.31)

• Assim sendo calculemos o traco do quadrado de ρ(t):

Tr(ρ(t)2) =∑

n,m

〈un|ρ(t)|um〉〈um|ρ(t)|un〉 =∑

i,j

pipj∑

n,m

cin(t)cim(t)∗cjm(t)cjn(t)∗

=∑

i,j

pipj∑

n

cjn(t)∗cin(t)∑

m

cim(t)∗cjm(t) =∑

i,j

pipj〈Ψj(t)|Ψi(t)〉〈Ψi(t)|Ψj(t)〉

≤∑

i,j

pipj =∑

i

pi∑

j

pj = 1 ,

(4.5.32)

onde usamos a desigualdade de Schwarz

|〈Ψi(t)|Ψj(t)〉| ≤√

〈Ψi(t)|Ψi(t)〉〈Ψj(t)|Ψj(t)〉 = 1 . (4.5.33)

Deste modo

Tr(ρ(t)2) ≤ 1 , (4.5.34)

sendo a desigualdade saturada apenas para um estado puro. Vemos, tal como anun-

ciado, que esta propriedade e a anterior distinguem a matriz de densidade de um

estado puro e de um estado mistura.

• Notemos ainda que o operador densidade e definido positivo; para um ket arbitrario |Φ〉

〈Φ|ρ(t)|Φ〉 =∑

i

pi〈Φ|Ψi(t)〉〈Ψi(t)|Φ〉 =∑

i

pi|〈Φ|Ψi(t)〉|2 ≥ 0 . (4.5.35)

Page 153: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.5 Mecanica Quantica Estatıstica 137

4.5.3 O operador de evolucao e a evolucao de um estado puro

Devido a linearidade e homogeneidade da equacao de Schrodinger, existe um operador

linear, denominado operador de evolucao que relaciona o estado inicial de um sistema

|Ψ(t0)〉 com o estado do sistema num instante posterior |Ψ(t)〉, atraves de

|Ψ(t)〉 = U(t, t0)|Ψ(t0)〉 . (4.5.36)

Obviamente

U(t0, t0) = 1 . (4.5.37)

Substituindo na equacao de Schrodinger

i~d|Ψ(t)〉dt

= H(t)|Ψ(t)〉 ⇔ dU(t0, t)

dt|Ψ(t0)〉 = − i

~H(t)U(t0, t)|Ψ(t0)〉 . (4.5.38)

Em geral, usando a condicao inicial (4.5.37), podemos escrever formalmente a solucao desta

equacao como

U(t, t0) = 1− i

~

∫ t

t0

H(t′)U(t′, t0)dt′ . (4.5.39)

No caso particular de um Hamiltoniano nao depender do tempo (sistemas conservativos)

a solucao explıcita fica

U(t, t0) = e−i(t−t0)H/~ . (4.5.40)

Uma importante propriedade da evolucao de um sistema quantico e a conservacao da

norma ou equivalentemente, a conservacao da probabilidade. Logo requeremos que

〈Ψ(t0)|Ψ(t0)〉 = 〈Ψ(t)|Ψ(t)〉 ⇔ 〈Ψ(t0)|Ψ(t0)〉 = 〈Ψ(t0)|U(t0, t)†U(t0, t)|Ψ(t0)〉 ,

(4.5.41)

ou seja

U(t0, t)†U(t0, t) = 1 , (4.5.42)

o operador de evolucao deve ser unitario. Note-se que no caso de sistemas conservativos,

onde U tem a forma (4.5.40) isso e garantido se o Hamiltoniano for Hermıtico. Unitariedade

e uma importante propriedade em teorias quanticas. De um modo mais geral significa que

as probabilidades estao bem definidas e sao conservadas. Tecnicamente, significa que o

Page 154: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

138 Formalismo Matematico e Postulados da Mecanica Quantica

espaco de Hilbert e positivo definido (nao ha normas negativas) e o operador de evolucao

e unitario.

Consideremos agora a evolucao de um estado puro. A matriz de densidade pode-se

escrever

ρ(t) = |Ψ(t)〉〈Ψ(t)| = U(t0, t)|Ψ(t0)〉〈Ψ(t0)|U(t0, t)† = U(t0, t)ρ(t0)U(t0, t)

† . (4.5.43)

Logo,

Tr(ρ(t)2) = Tr(U(t0, t)ρ(t0)U(t0, t)†U(t0, t)ρ(t0)U(t0, t)

†) , (4.5.44)

ou, usando a unitariedade do operador de evolucao e a propriedade cıclica do traco,

Tr(ρ(t)2) = Tr(ρ(t0)2) = 1 , (4.5.45)

pela relacao (4.5.21). Assim, num sistema quantico unitario um estado puro evolui sempre

para um estado puro.

Na decada de 1970, Stephen Hawking mostrou que existe um processo quantico pelo

qual os buracos negros, que classicamente so absorvem, emitem radiacao, denominada

radiacao de Hawking. Esta radiacao parecia ser, na aproximacao usada por Hawking,

termica, e como tal um estado mistura. Extrapolando o processo de Hawking ate o buraco

negro desaparecer completamente devido a emissao de radiacao, parece que o resultado

final seria a existencia de apenas radiacao termica e como tal um estado mistura. Por

outro lado, o buraco negro poderia ter sido formado pelo colapso gravitacional de estados

puros. Hawking concluiu que, em gravitacao quantica, a evolucao nao poderia ser unitaria,

pois estados puros poderiam evoluir para estados mistura. Esta aparente contradicao entre

gravitacao quantica e um princıpio fundamental da teoria quantica foi baptizado de ‘para-

doxo da informacao’. Embora o problema nao esteja completamente resolvido, acredita-se

hoje, que a unitariedade e tambem valida em gravitacao quantica e a aproximacao usada

por Hawking nao estava correcta.

Page 155: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

4.6 Sumario 139

4.6 Sumario

Estabelecemos a linguagem da mecanica quantica que e uma linguagem de estados e

operadores cuja representacao abstracta se faz na notacao de Dirac. Em muitos prob-

lemas concretos escolhem-se bases discretas para os representar como vectores e matrizes

respectivamente. Daı a designacao deste formalismo por mecanica matricial de Heisen-

berg. Este formalismo e muito apropriado para lidar com graus de liberdade abstractos

que vivem em espacos vectoriais internos, como o spin ou a polarizacao de fotoes como sera

visto em Mecanica Quantica II. Numa ‘base’ contınua como a representacao |x〉 o estado

do sistema |Ψ(t)〉 tem como componentes a funcao de onda do capıtulo 3, Ψ(~x, t). Assim

o formalismo geral faz o contacto com a mecanica ondulatoria de Schrodinger do capıtulo

3, que como vimos e intuitiva dado usar a bem conhecida fısica das ondas.

Estabelecemos um conjunto de postulados que podem ser vistos como as regras basicas

do formalismo quantico e aprendemos a usar essas regras num sistema classico atraves da

quantificacao deste. Em particular discutimos que a representacao matematica do princıpio

da incerteza de Heisenberg no formalismo de operadores aparece na forma de operadores

que nao comutam. Notamos tambem que os valores medios das grandezas fısicas num

sistema quantico se comportam como as grandezas classicas do capıtulo 1 estabelecendo

um princıpio de correspondencia entre a mecanica quantica e a sua aproximacao classica.

Discutimos mecanica quantica estatıstica em que o estado do sistema so e conhecido prob-

abilisticamente. Isto levou-nos a distinguir estados puros e estados mistura, mas pela

introducao da matriz de densidade podem ambos os tipos ser tratados de um modo unifi-

cado. Finalmente vimos que uma evolucao unitaria nao pode transformar um estado puro

num estado mistura.

Page 156: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro
Page 157: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

CAPITULO 5

Exemplos de Quantificacao Canonica

Neste capıtulo vamos voltar ao problema do oscilador harmonico e ao problema de Larmor

tratados no capıtulo 1, usando as regras do capıtulo 4 para os tratar como problemas

quanticos.

5.1 Oscilador Harmonico Quantico em Uma Dimensao

Na seccao 4.4.3 vimos a forma do operador Hamiltoniano para um sistema com Hamil-

toniano classico dado por H = Ecin + Epot. Especializando para o potencial do oscilador

harmonico, obtemos o operador Hamiltoniano

H =P 2

2m+mω2

2X2 , (5.1.1)

e, usando as regras de quantificacao canonica impomos as relacoes de comutacao

[

X, P]

= i~1 . (5.1.2)

Dada a forma do potencial (figura 1.3) naturalmente teremos estados ligados, pelo que

esperamos que o conjunto de estados seja discreto, correspondendo ao facto de as energias

possıveis estarem quantificadas. O nosso objectivo e encontrar os valores proprios En e

Page 158: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

142 Exemplos de Quantificacao Canonica

funcoes proprias |n〉 da equacao de Schrodinger independente do tempo

H|n〉 = En|n〉 . (5.1.3)

Introduzimos os operadores a e o seu adjunto a† (note-se que nao sao operadores hermıticos)

a =1√2

(√

~X +

i√mω~

P

)

, a† =1√2

(√

~X − i√

mω~P

)

, (5.1.4)

que sao designados, respectivamente, por operador de destruicao e operador de criacao.

Calculando o seu produto obtemos

a†a =1

2

(

~X2 +

1

mω~P 2 +

i

~

[

X, P]

)

⇔ a†a =1

~ωH − 1

2, (5.1.5)

ou, equivalentemente

H = ~ω

(

N +1

2

)

. (5.1.6)

onde definimos o operador de numero N ≡ a†a, que e hermıtico, o que e consistente com o

facto de o Hamiltoniano tambem o ser. Note-se que a traducao para os operadores a e a†

da relacao de comutacao e

[a, a†] =1

2~

(

−i[X, P ] + i[P , X])

, (5.1.7)

ou seja

[a, a†] = 1 . (5.1.8)

Calculemos tambem os comutadores entre o operador de numero N e os operadores de

criacao e destruicao:

[N , a] = [a†a, a] = [a†, a]a + a†[a, a] = −a , (5.1.9)

[N , a†] = [a†a, a†] = [a†, a†]a+ a†[a, a†] = a† . (5.1.10)

5.1.1 O espectro de energia do Oscilador Harmonico Quantico

As grandezas fısicas que associamos ao oscilador harmonico sao a posicao, momento e

energia. Como os seus operadores associados X, P , H nao comutam, o C.C.O.C. contem

Page 159: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

5.1 Oscilador Harmonico Quantico em Uma Dimensao 143

apenas uma destas quantidades, que escolhemos ser a energia, ou, equivalentemente, o

operador de numero N

C.C.O.C. = N . (5.1.11)

Assim, vamos escrever o estado do sistema usando como base os vectores proprios do op-

erador de numero, denotados por |n〉, cujos valores proprios irao ser numeros inteiros que

servem de rotulo para os vectores proprios. Os vectores do conjunto |n〉 sao necessaria-

mente ortogonais, mas para ja nada assumiremos acerca da sua normalizacao. A energia

do estado proprio |n〉 e dada por (5.1.3), o que implica que

En =〈n|H|n〉〈n|n〉 = ~ω

(〈n|a†a|n〉〈n|n〉 +

1

2

)

= ~ω

( ||a|n〉||2〈n|n〉 +

1

2

)

≥ ~ω

2. (5.1.12)

Assim, existe um estado de energia mınima para o oscilador harmonico, dito o estado

fundamental ou “vacuo”, que vamos rotular com n = 0 e definido por

a|0〉 = 0 ⇒ E0 =~ω

2. (5.1.13)

Desde ja notamos uma diferenca fundamental com a mecanica classica: o estado fundamen-

tal nao tem energia zero - como em mecanica classica - mas antes E0 = ~ω/2, designada

energia do ponto zero. Este facto esta intrinsecamente ligado ao princıpio da incerteza; uma

energia nula do estado fundamental implicaria uma partıcula congelada em x = 0 = p; mas

pelo princıpio da incerteza isso nao pode acontecer. De facto, podemos encontrar o valor

(5.1.13) minimizando a expressao classica da energia com a condicao de que xp = ~/2:

E(x, p) =p2

2m+mω2

2x2 xp=~/2⇔ E(x) =

~2

8mx2+mω2

2x2 , (5.1.14)

que extremizando

0 =dE

dx= − ~2

4mx3+mω2x ⇔ x2 =

~

2mω, (5.1.15)

valor para o qual a energia do oscilador harmonico e E = ~ω/2. Existe evidencia ex-

perimental para a existencia da energia do ponto zero e ate mesmo uma manifestacao

macroscopica:o efeito Casimir em teoria quantica de campo.

Page 160: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

144 Exemplos de Quantificacao Canonica

A accao do operador de destruicao no estado fundamental aniquila-o. Logo, o estado

fundamental e um vector proprio de N com valor proprio zero. Consideremos agora o

estado obtido pela accao no estado fundamental do operador de criacao, a†|0〉. Actuando

com N

N a†|0〉 =(

[N , a†] + a†N)

|0〉 =(

a† + a†N)

|0〉 = a†|0〉 , (5.1.16)

ou seja, a†|0〉 e um estado proprio de N com valor proprio 1; assim, denotamos

|1〉 ≡ a†|0〉 . (5.1.17)

Analogamente

N a†|1〉 =(

a† + a†N)

|1〉 = 2a†|1〉 , (5.1.18)

ou seja, a†|1〉 ≡ |2〉 e vector proprio de N com valor proprio 2. O padrao que descobrimos

pode ser agora sistematizado:

Teorema: Seja |n〉 um vector proprio de N com valor proprio n ∈ N0. Logo

i) |n〉 tem energia

En = ~ω

(

n+1

2

)

; (5.1.19)

ii) a†|n〉 ≡ |n+ 1〉 e um vector proprio de N com valor proprio n+ 1;

iii) a|n〉 = n|n− 1〉 e vector proprio de N com valor proprio n− 1 (note-se a consistencia

com a|0〉 = 0).

Demonstracao:

i) A energia e o valor proprio de H . Logo

H|n〉 = ~ω

(

N +1

2

)

|n〉 = ~ω

(

n +1

2

)

|n〉 , (5.1.20)

de onde concluimos que a energia do estado |n〉 e dada por (5.1.19). Este e o espectro

de energia do oscilador harmonico, que como esperado exibe quantificacao de energia

- figura 5.1;

Page 161: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

5.1 Oscilador Harmonico Quantico em Uma Dimensao 145

~ω/23~ω/2

5~ω/2

x

V(x)

E

Figura 5.1: Nıveis de energia permitidos para o oscilador harmonico quantico, marcadospelas linhas horizontais, correspondentes a relacao (5.1.19).

ii)

N |n+1〉 = N a†|n〉 (5.1.10)= a†

(

1 + N)

|n〉 = (n+1)a†|n〉 = (n+1)|n+1〉 , (5.1.21)

o que mostra que |n+ 1〉 e um vector proprio de N com valor proprio n + 1;

iii)

nN |n−1〉 = N a|n〉 (5.1.9)= a

(

N − 1)

|n〉 = (n−1)a|n〉 = n(n−1)|n−1〉 , (5.1.22)

o que mostra que |n− 1〉 e um vector proprio de N com valor proprio n− 1. (q.e.d.)

Note-se que no ponto iii), o factor de n tem que aparecer por consistencia; de facto

|n〉 = a†|n− 1〉 ⇒ a|n〉 = aa†|n− 1〉 = (N + 1)|n− 1〉 = n|n− 1〉 . (5.1.23)

Deste modo compreendemos a terminologia que introduzimos: o operador de Numero

da-nos o numero de quantoes de energia no estado que estamos a considerar; o operador de

criacao/destruicao transformam um dado estado num outro com mais/menos um quantao

de energia.

Finalmente discutamos a normalizacao dos estados |n〉. Vamos assumir que |0〉 esta

normalizado, 〈0|0〉 = 1. Logo

〈1|1〉 = 〈0|aa†|0〉 = 〈0|1 + N |0〉 = 1 , (5.1.24)

o que mostra que |1〉 tambem esta normalizado, mas

〈2|2〉 = 〈1|aa†|1〉 = 〈1|1 + N |1〉 = 2 , (5.1.25)

Page 162: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

146 Exemplos de Quantificacao Canonica

que ja nao esta normalizado. Mostremos por inducao matematica que

〈n|n〉 = n! : (5.1.26)

Acabamos de mostrar que este resultado e verdade para n = 1. Assumindo (5.1.26)

consideramos

〈n+ 1|n+ 1〉 = 〈n|aa†|n〉 = 〈n|1 + N |n〉 = (n+ 1)〈n|n〉 = (n + 1)! , (5.1.27)

o que prova a tese. Assim introduzimos a base ortonormalizada no espaco de estados

|Φn〉 definidos como

|Φn〉 ≡|n〉√n!

, (5.1.28)

e obedecendo a

〈Φn|Φm〉 = δnm . (5.1.29)

Notemos que, em termos destes estados normalizados,

a†|n〉 = |n+ 1〉 ⇔ a†|Φn〉 =√n+ 1|Φn+1〉 , (5.1.30)

e de um modo semelhante

a|n〉 = n|n− 1〉 ⇔ a|Φn〉 =√n|Φn−1〉 . (5.1.31)

5.1.2 As funcoes de onda para o oscilador harmonico

O grau de liberdade primordial do oscilador harmonico e a sua posicao espacial. Logo,

estamos interessados em conhecer as funcoes de onda no espaco de configuracoes, Φn(x),

que estao associadas aos estados normalizados |Φn〉. Estas funcoes de onda dizem-nos,

como habitualmente, a amplitude de probabilidade espacial para encontrar a partıcula

quantica que se encontra nesse estado |Φn〉. A conversao de |Φn〉 para Φn(x) faz-se usando

a representacao |x〉 da seccao 4.4.2; Φn(x) sao vistos como as componentes da expansao da

funcao de onda nesta base:

|Φn〉 =

dxΦn(x)|x〉 . (5.1.32)

Page 163: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

5.1 Oscilador Harmonico Quantico em Uma Dimensao 147

Vamos agora construir explicitamente essas funcoes de onda. Comecamos pelo vacuo, que

e definido por

a|0〉 = 0 ⇔ a|Φ0〉 = 0 ⇔ 1√2

(√

~X +

i√mω~

P

)

|Φ0〉 = 0 . (5.1.33)

Usando a representacao |x〉, isto e projectando esta equacao num bra 〈x|:√

~〈x|X|Φ0〉+

i√mω~

〈x|P |Φ0〉 = 0(4.4.24),(4.4.25)⇔

~x〈x|Φ0〉+

~√mω~

d

dx〈x|Φ0〉 = 0 ,

(5.1.34)

ou, finalmente, usando a tabela da seccao 4.4.2 e a expansao (5.1.32) temos 〈x|Φ0〉 = Φ0(x)

e como tal(

d

dx+mω

~x

)

Φ0(x) = 0 . (5.1.35)

A solucao desta equacao diferencial de primeira ordem e

Φ0(x) = C0e−mω

2~x2

, (5.1.36)

onde tomamos a constante de integracao como

C0 =(mω

π~

)1/4

, (5.1.37)

de modo que a funcao de onda Φ0(x) esteja normalizada, pois o estado |Φ0〉 esta normal-

izado. Note-se que a solucao normalizada e unica e por isso o estado fundamental e nao

degenerado.

Na pratica, (5.1.35) resultou de (5.1.33) pelas substituicoes

(X, P , |Φn〉) −→(

x,−i~ d

dx,Φn(x)

)

, (5.1.38)

com n = 0. Com isto em mente construimos as funcoes de onda para os proximos estados

do seguinte modo:

√n + 1|Φn+1〉 = a†|Φn〉 ⇔

√n + 1|Φn+1〉 =

1√2

(√

~X − i√

mω~P

)

|Φn〉 ,(5.1.39)

ou, usando a nossa substituicao (5.1.38)

Φn+1(x) =

~

2mω(n+ 1)

(

~x− d

dx

)

Φn(x) , n ∈ N0 . (5.1.40)

Page 164: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

148 Exemplos de Quantificacao Canonica

Deste modo, obtemos para Φ1(x)

Φ1(x) = C0

2mω

~xe−

mω2~

x2

, (5.1.41)

e para Φ2(x)

Φ2(x) =C0√

2

(

2mω

~x2 − 1

)

e−mω2~

x2

. (5.1.42)

E agora facil de concluir que todas as funcoes de onda sao do tipo

Φn(χ) = CnHn(χ)e−χ2/2 , χ ≡√

~x , (5.1.43)

onde Cn e uma constante e Hn e um polinomio de grau n e com paridade bem definida

(−1)n (1=par, −1=ımpar). Usando esta forma para a funcao de onda em (5.1.40) obtemos

Cn+1Hn+1(χ)e−χ2/2 =1

2(n+ 1)

(

χ− d

)

(

CnHn(χ)e−χ2/2)

, (5.1.44)

que e obedecido escolhendo

Cn+1 =Cn

2(n+ 1), Hn+1(χ) = 2χHn(χ)− d

dχHn(χ) . (5.1.45)

A formula de recorrencia para os polinomios define os polinomios de Hermite. Os quatro

primeiros sao

H0 = 1 , H1 = 2χ , H2 = 4χ2 − 2 , H3 = 8χ3 − 12χ . (5.1.46)

Resumimos a situacao respeitante aos primeiros estados estacionarios (dado que o estado

Φn tem energia constante) do oscilador harmonico na seguinte tabela:

Estado Normalizado Componentes na representacao |x〉 Paridade Energia

|Φ0〉 = |0〉 Φ0(χ) = C0e−χ2/2 Par ~ω/2

|Φ1〉 = |1〉 Φ1(χ) = C1(2χ)e−χ2/2 Impar 3~ω/2

|Φ2〉 = |2〉/√

2 Φ2(χ) = C2(4χ2 − 2)e−χ2/2 Par 5~ω/2

|Φ3〉 = |3〉/√

3! Φ3(χ) = C3(8χ3 − 12χ)e−χ2/2 Impar 7~ω/2

. . . . . . . . . . . .

Page 165: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

5.1 Oscilador Harmonico Quantico em Uma Dimensao 149

Figura 5.2: Funcoes de onda para n = 0, 1, 2 e n = 10 do oscilador Harmonico e asrespectivas densidades de probabilidade. Na notacao da figura Φn = ϕn. (Extraıdo deCohen et al, ‘Quantum Mechanics ’).

Note-se que para cada nıvel de energia a funcao de onda (normalizada) e unica, pelo

que o espectro e nao degenerado. Na figura 5.2 representamos as funcoes de onda para os

nıveis n = 0, 1, 2 e n = 10.

Concluimos com o comentario de que se pode mostrar matematicamente que as funcoes

Φn(x) formam uma base do espaco de funcoes sobre R, que e necessario para que N e

H seja observaveis.

5.1.3 Resolucao directa da equacao de Schrodinger

A semelhanca do que fizemos no capıtulo 3, podıamos ter procurado os estados estacionarios

resolvendo directamente a equacao de Schrodinger. Tomando a funcao de onda

Ψ(x, t) = Φ(x)e−iEt/~ , (5.1.47)

Page 166: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

150 Exemplos de Quantificacao Canonica

obtinhamos a equacao para a funcao de onda espacial (3.2.5) especializada para o potencial

do oscilador harmonico

[

− ~2

2m

d2

dx2+mω2

2x2

]

Φ(x) = EΦ(x) . (5.1.48)

Como da nossa analise da seccao anterior ja sabemos a resposta, usamos como ansatz a

forma

Φ(x) = f(x)e−mω2~

x2

, (5.1.49)

de modo a que (5.1.48) toma a forma

f ′′(x)− 2mω

~xf ′(x) +

2m

~2

(

E − ~ω

2

)

f(x) = 0 . (5.1.50)

Procuremos uma solucao como uma serie de potencias:

f(x) =∞∑

n=0

anxn ⇒ f ′(x) =

∞∑

n=0

nanxn−1 ⇒ f ′′(x) =

∞∑

n=0

n(n−1)anxn−2 , (5.1.51)

de modo que a equacao diferencial para f(x) fica

∞∑

n=0

[

(n + 2)(n+ 1)an+2 +2m

~2

(

E − ~ω

[

n+1

2

])

an

]

xn = 0 . (5.1.52)

Para a equacao ser obedecida para todo o x todos os termos na serie tem de ser zero;

obtemos portanto a relacao de recorrencia

(n+ 2)(n+ 1)an+2 =2m

~2

(

[

n+1

2

]

− E)

an . (5.1.53)

Para compararmos com a analise da seccao anterior e conveniente usar a variavel χ intro-

duzida em (5.1.43). Em termos desta variavel

f(x) =

∞∑

n=0

anxn → f(χ) =

∞∑

n=0

bnχn , com bn =

(

~

)n/2

an . (5.1.54)

A relacao de recorrencia fica

(n+ 2)(n+ 1)bn+2 =

(

2n+ 1− 2E

)

bn . (5.1.55)

Page 167: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

5.1 Oscilador Harmonico Quantico em Uma Dimensao 151

Vamos assumir que a serie e finita; voltaremos a este ponto mais em baixo. Para a serie

ser finita e necessario que o coeficiente do bn se torne zero para algum n; isto restringe os

valores possıveis para a energia; existe um n0 ∈ N0 para o qual

2E

~ω= 2n0 + 1 , (5.1.56)

o que nao e mais do que o nosso espectro de energias. Obtemos assim a quantificacao da

energia, usando directamente a equacao de Schrodinger

En0 =

(

2,3~ω

2,5~ω

2,7~ω

2, . . .

)

, para n0 = (0, 1, 2, . . .) . (5.1.57)

Deste modo a relacao de recorrencia para o polinomio fn0(χ) fica

(n+ 2)(n+ 1)bn+2 = 2(n− n0)bn . (5.1.58)

Como a relacao de recorrencia relaciona termos de ordem par ou termos de ordem ımpar,

para a serie ser finita, temos de tomar unicamente os termos com a paridade de n0. Assim

temos

• Para n0 = 0 a serie so tem o termo b0 cujo valor e arbitrario; tomamos b0 = 1; o

polinomio correspondente e

f0(χ) = 1 ; (5.1.59)

• Para n0 = 1 a serie so tem o termo b1 cujo valor e arbitrario; tomamos b1 = 2; o

polinomio correspondente e

f1(χ) = 2χ ; (5.1.60)

• Para n0 = 2 a serie tem o termo b0 = 1 e b2 = −2; o polinomio correspondente e

f2(χ) = 1− 2χ2 ; (5.1.61)

• Para n0 = 3 a serie tem o termo b1 = 2 e b3 = −4/3; o polinomio correspondente e

f3(χ) = 2χ− 4

3χ3 ; (5.1.62)

Page 168: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

152 Exemplos de Quantificacao Canonica

etc. Claro que estes polinomios sao todos proporcionais aos polinomios de Hermite,

fn0(χ) ∝ Hn0(χ). De facto, a serie (5.1.58) define o polinomio de Hermite Hn0 . Obte-

mos deste modo tanto o espectro de energias como as funcoes de onda da seccao anterior.

Falta-nos justificar a hipotese fundamental de que a serie (5.1.53) tem de ser finita.

Esta condicao surge de requerer que a funcao de onda seja normalizavel. De facto, as

funcoes de onda tomam a forma

Ψ(x, t) = e−iEt/~

∞∑

n=0

anxn

emω2~

x2

. (5.1.63)

Podemos escrever

emωx2/(2~) =∞∑

n=0

cnxn , com c2n =

(mω

2~

)n 1

n!, (5.1.64)

e como talc2n+2

c2n=(mω

2~

) 1

n+ 1

n→∞≃ mω

2~n, (5.1.65)

enquanto que por (5.1.53)an+2

an

n→∞≃ 2mω

~n. (5.1.66)

Assim, se tomarmos a parte par da serie dos an,

a2n+2

a2n

n→∞≃ mω

~n. (5.1.67)

Concluimos que para n suficientemente grande

a2n+2

a2n

>c2n+2

c2n

, (5.1.68)

pelo que a divisao das duas series nao podera tender para zero quando |x| → ∞ e como tal

o modulo da funcao de onda (5.1.63) nao ira tender para zero o que implica que a funcao

de onda nao sera normalizavel. Se a serie dos an tiver apenas parte ımpar podemos ainda

majorar a serie dos cn extraindo portanto a mesma conclusao relativa a normalizacao da

funcao de onda.

Page 169: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

5.1 Oscilador Harmonico Quantico em Uma Dimensao 153

5.1.4 Valor medio e desvio padrao de x e p

Usando (5.1.4) expressamos os operadores posicao e momento X e P em termos dos oper-

adores de criacao e destruicao:

X =

~

2mω

(

a† + a)

, P = i

mω~

2

(

a† − a)

. (5.1.69)

Note-se a hermiticidade de P e X. Logo, a accao destes operadores num estado estacionario

e

X|Φn〉 =

~

2mω

(√n+ 1|Φn+1〉+

√n|Φn−1〉

)

, (5.1.70)

P |Φn〉 = i

mω~

2

(√n+ 1|Φn+1〉 −

√n|Φn−1〉

)

, (5.1.71)

e como tal obtemos os elementos de matriz

〈X〉 = 〈Φn|X|Φn〉 = 0 = 〈Φn|P |Φn〉 = 〈P 〉 . (5.1.72)

Assim concluimos que o valor medio da posicao e do momento sao zero em qualquer estado

estacionario. O desvio padrao e calculado pela expressao (4.4.8):

(∆x)2 = 〈X2〉 = 〈Φn|X2|Φn〉 =~

2mω〈Φn|a2 + (a†)2 + aa† + a†a|Φn〉 =

~

(

n +1

2

)

,

(5.1.73)

(∆p)2 = 〈P 2〉 = 〈Φn|P 2|Φn〉 = −mω~

2〈Φn|a2 + (a†)2 − aa† − a†a|Φn〉 = mω~

(

n+1

2

)

,

(5.1.74)

onde a contribuicao nao trivial vem dos termos aa† e a†a usando (5.1.30) e (5.1.31). Logo

∆x∆p = ~

(

n+1

2

)

≥ ~

2, (5.1.75)

em concordancia com o princıpio de incerteza. Os estados estacionarios |Ψn〉 nao tem

equivalente classico, dado que tem valores medios zero para momento e posicao e ao mesmo

tempo energia diferente de zero. Pelo teorema de Ehrenfest os valores medios 〈X〉 e 〈P 〉 cor-

respondem as variaveis classicas e a unica situcao em que um oscilador harmonico classico

tem x(t) = 0 = p(t) e quando tem energia nula. Contudo, sobrepondo estados esta-

cionarios podemos construir estados cuja media se comporta como um oscilador classico.

Page 170: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

154 Exemplos de Quantificacao Canonica

Seja o estado inicial dado pela sobreposicao

|Ψ(0)〉 =

∞∑

n=0

cn(0)|Φn〉 . (5.1.76)

No instante t,

|Ψ(t)〉 =

∞∑

n=0

cn(0)e−iEnt/~|Φn〉 =

∞∑

n=0

cn(0)e−iω(n+1/2)t|Φn〉 . (5.1.77)

Logo obtemos para o valor medio de X, 〈X〉(t) = 〈Ψ(t)|X|Ψ(t)〉,

〈X〉(t) =

~

2mω

∞∑

n=0

∞∑

m=0

〈Φm|c∗m(0)cn(0)eiω(m−n)t(√

n + 1|Φn+1〉+√n|Φn−1〉

)

,

=

~

2mω

∞∑

n=0

∞∑

m=0

c∗m(0)cn(0)eiω(m−n)t(√

n + 1δm,n+1 +√nδm,n−1

)

,

=

~

2mω

[( ∞∑

n=0

√n + 1cn(0)c∗n+1(0)

)

eiωt +

( ∞∑

n=0

√ncn(0)c∗n−1(0)

)

e−iωt

]

.

(5.1.78)

Note-se que se apenas um dos cn(0) for nao nulo entao obtemos imediatamente 〈X〉(t) = 0,

tal como discutido anteriormente. Se definirmos

z ≡∞∑

n=0

√n+ 1cn(0)c∗n+1(0) , (5.1.79)

entao

z∗ =

∞∑

n=0

√n + 1c∗n(0)cn+1(0)

m≡n+1=

∞∑

m=1

√mc∗m−1(0)cm(0) =

∞∑

m=0

√mcm(0)c∗m−1(0) ,

(5.1.80)

reescrevemos (5.1.78) como

〈X〉(t) =

~

2mω

(

zeiωt + z∗e−iωt)

, (5.1.81)

ou, expressando o numero complexo z =√

mω/(2~)Aeiφ0 , onde A e φ0 sao numeros reais,

temos

〈X〉(t) = A

(

ei(ωt+φ0) + e−i(ωt+φ0)

2

)

= A cos(ωt+ φ0) . (5.1.82)

Assim, o valor medio de uma sobreposicao de estados estacionarios do oscilador harmonico

quantico evolui de acordo com a teoria do oscilador classico (1.1.6), em concordancia com

o teorema da correspondencia de Ehrenfest.

Page 171: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

5.2 O Oscilador Harmonico Quantico em Duas Dimensoes 155

5.2 O Oscilador Harmonico Quantico em Duas Di-

mensoes

O Hamiltoniano classico para um oscilador harmonico isotropico em duas dimensoes e

Hxy =p2

x + p2y

2µ+µω2

2(x2 + y2) . (5.2.1)

A partir de agora designamos por ‘µ’ a massa da partıcula. As trajectorias que resolvem

o problema classico sao

x(t) = xM cos(ωt− φx)

y(t) = yM cos(ωt− φy), (5.2.2)

onde xM , yM , φx, φy sao constantes de integracao. O movimento geral e elıptico, depen-

dendo dos detalhes da diferenca de fase φy − φx:

φy − φx = −π movimento linear na direccao x = −y

0 > φy − φx > −π movimento retrogrado na elipse

φy − φx = 0 movimento linear na direccao x = y

π > φy − φx > 0 movimento directo na elipse

φy − φx = +π movimento linear na direccao x = −y

Por quantificacao canonica introduzimos o operador Hamiltoniano

Hxy =P 2

1 + P 22

2µ+µω2

2

[

(X1)2 + (X2)2]

, (5.2.3)

onde X1 e X2 sao as observaveis associadas as grandezas fısicas x e y sendo P1 e P2 os

seus momentos canonicos conjugados. As relacoes canonicas de comutacao sao

[Xk, Pj] = i~δkj . (5.2.4)

5.2.1 Quantoes lineares

Claramente, temos duas copias de tudo o que fizemos na seccao 5.1. Definindo os operadores

de criacao a†1, a†2 e destruicao como a1, a2

aj =1√2

(√

µω

~Xj +

i√µω~

Pj

)

, a†j =1√2

(√

µω

~Xj − i√

µω~Pj

)

, j = 1, 2

(5.2.5)

Page 172: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

156 Exemplos de Quantificacao Canonica

obtemos

Hxy = ~ω(

N1 + N2 + 1)

, (5.2.6)

com os operadores de numero sendo Nj = a†j aj . As unicas relacoes de comutacao nao

triviais entre estes operadores de criacao e destruicao sao

[

ai, a†j

]

= δij 1 . (5.2.7)

Claramente podemos tomar como C.C.O.C.

C.C.O.C =

N1, N2

, (5.2.8)

pelo que a base para o nosso espaco de estados sera o conjunto de kets |n1, n2〉, com n1e n2 sendo o espectro de N1 e N2 respectivamente. O espectro de energias sera

E(n1,n2) = ~ω(n1 + n2 + 1) , (5.2.9)

e as funcoes de onda para os estados estacionarios serao simplesmente

Ψ(n1,n2)(t, x, y) = Φn1(x)Φn2(y)e−iE(n1,n2)t/~ , (5.2.10)

onde Φn e dado por (5.1.43). Note que o espectro e degenerado.

5.2.2 Quantoes circulares

O potencial do oscilador harmonico isotropico em duas dimensoes e invariante por rotacoes

em torno do eixo Oz. E por isso natural considerarmos o operador momento angular

segundo z; por (4.4.39)

Lz = X1P2−X2P1(5.1.69)

=i~

2

[

(a†1 + a1)(a†2 − a2)− (a†2 + a2)(a

†1 − a1)

]

= i~[

a1a†2 − a†1a2

]

.

(5.2.11)

Vemos facilmente que Lz comuta com Hxy:

[

N1 + N2, Lz

]

= i~[

N1, a1a†2 − a†1a2

]

+ i~[

N2, a1a†2 − a†1a2

]

= i~(−a1a†2 − a†1a2 + a1a

†2 + a†1a2) = 0

. (5.2.12)

Page 173: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

5.2 O Oscilador Harmonico Quantico em Duas Dimensoes 157

Assim, em vez de usarmos

N1, N2

poderiamos escolher como C.C.O.C.

C.C.O.C. =

Lz, Hxy

. (5.2.13)

Para o fazermos e util introduzirmos os operadores de criacao e destruicao circulares:1

ad =1√2

(a1 − ia2) , ae =1√2

(a1 + ia2) , (5.2.14)

e os seus adjuntos a†d, a†e; os unicos comutadores nao triviais sao:

[ad, a†d] = 1 = [ae, a

†e] . (5.2.15)

Facilmente vemos que

a†dad =1

2

(

a†1a1 + a†2a2 − ia†1a2 + ia†2a1

)

, a†eae =1

2

(

a†1a1 + a†2a2 + ia†1a2 − ia†2a1

)

.

(5.2.16)

Definindo os operadores de numero circulares

Nd = a†dad , Ne = a†eae , (5.2.17)

temos

Hxy = ~ω(

Nd + Ne + 1)

Lz = ~(Nd − Ne). (5.2.18)

Podemos pois como uma outra hipotese tomar como C.C.O.C.

C.C.O.C. =

Ne, Nd

, (5.2.19)

e rotular a base no nosso espaco de estados como |ne, nd〉. Os espectros da energia e (da

componente z) do momento angular sao

E(ne,nd) = ~ω(nd + ne + 1) ≡ ~ω(n+ 1) , lz = ~(nd − ne) ≡ ~m . (5.2.20)

Nestas relacoes definimos n ≡ nd + ne e m ≡ nd − ne. Podemos agora compreender a

terminologia de quantoes circulares. O operador a†d (a†e) adiciona ao estado um quantao de

1Os sub-ındices d e e significam ‘direita’ e ‘esquerda’.

Page 174: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

158 Exemplos de Quantificacao Canonica

momento angular -~- no sentido directo (inverso), para alem de adicionarem um quantao

de energia.

Para cada valor da energia, existe uma degenerescencia de grau n+ 1, correspondendo

aos pares

(ne, nd) = [(0, n); (1, n− 1); (2, n− 2); . . . ; (n− 1, 1); (n, 0)] , (5.2.21)

que correspondendem aos valores de lz = m~ com

m = [n;n− 2;n− 4; . . . ; 2− n;−n] . (5.2.22)

Note-se que a accao dos operadores circulares nos estados |ne, nd〉 e dada por

a†d|ne, nd〉 = |ne, nd + 1〉 , a†e|ne, nd〉 = |ne + 1, nd〉 ,

ad|ne, nd〉 = nd|ne, nd − 1〉 , ae|ne, nd〉 = ne|ne − 1, nd〉 .(5.2.23)

5.2.3 Funcoes de Onda para quantoes circulares

Vimos na seccao 5.1.2 que a accao de operadores de destruicao e criacao lineares e dada

por, na representacao |x〉,

ai →1√2

(

µω

~xi +

~

µω

∂xi

)

, (5.2.24)

a†i →1√2

(

µω

~xi −

~

µω

∂xi

)

. (5.2.25)

Logo, usando (5.2.14), a accao dos operadores de destruicao e criacao circulares e dada

por2

ad →1

2

(

µω

~(x− iy) +

~

µω

(

∂x− i ∂

∂y

)

)

, (5.2.26)

a†d →1

2

(

µω

~(x+ iy)−

~

µω

(

∂x+ i

∂y

)

)

. (5.2.27)

2Usamos x1 = x e x2 = y.

Page 175: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

5.2 O Oscilador Harmonico Quantico em Duas Dimensoes 159

Os operadores circulares ‘retrogrados’ ae, a†e sao obtidos pela transformacao i → −i nas

duas ultimas expressoes respectivamente.3 A mudanca para quantoes circulares pretendeu

usar a simetria de rotacao em torno do eixo Oz do problema; e pois natural reexpressar

estas quantidades em coordenadas polares:

x = ρ cosφ

y = ρ sinφ⇒

x+ iy = ρeiφ

∂φ=∂x

∂φ

∂x+∂y

∂φ

∂y= −y ∂

∂x+ x

∂y∂

∂ρ=∂x

∂ρ

∂x+∂y

∂ρ

∂y=x

ρ

∂x+y

ρ

∂y

∂ρ+i

ρ

∂φ=x− iyρ

∂x+i(x− iy)

ρ

∂y= e−iφ

(

∂x+ i

∂y

)

.

(5.2.28)

Logo, reexpressamos a accao dos operadores de criacao e destruicao directos

ad →1

2e−iφ

(

µω

~ρ+

~

µω

(

∂ρ− i

ρ

∂φ

)

)

, (5.2.29)

a†d →1

2eiφ

(

µω

~ρ−

~

µω

(

∂ρ+i

ρ

∂φ

)

)

, (5.2.30)

e os operadores circulares ‘retrogrados’ ae, a†e sao obtidos pela transformacao i → −i nas

duas ultimas expressoes respectivamente. As funcoes proprias do oscilador harmonico 2-

dimensional em termos destes quantoes circulares (que sao portanto estados proprios da

energia e momento angular)

Ψ(ne,nd)(ρ, φ) = Φ(ne,nd)(t, ρ, φ)e−iE(ne,nd)t/~ , (5.2.31)

sao obtidas actuando no vacuo com a†d e a†e. A funcao de onda do vacuo para os quantoes

lineares e (5.2.10) com n1 = n2 = 0

Ψ(n1=0,n2=0)(t, x, y) =

ωµ

π~e−

µω2~

(x2+y2)e−iωt , (5.2.32)

ou, em termos dos quantoes circulares

n = 0, m = 0 , Φ(ne=0,nd=0)(ρ, φ) =

ωµ

π~e−

µω2~

ρ2

. (5.2.33)

3Note que isto nao corresponde a tirar o complexo conjugado, dado que os operadores ai e a†i nao

mudam.

Page 176: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

160 Exemplos de Quantificacao Canonica

Note-se que por (5.2.29), adΦ(0,0) = 0 como requerido (e tambem aeΦ(0,0) = 0). Actuando

agora com a†d ou a†e respectivamente obtemos

n = 1 ,

m = 1 , Φ(ne=0,nd=1)(ρ, φ) =ωµ√π~eiφρe−

µω2~

ρ2

,

m = −1 , Φ(ne=1,nd=0)(ρ, φ) =ωµ√π~e−iφρe−

µω2~

ρ2

,(5.2.34)

e assim por diante. Repare-se que para este nıvel de energia (n = 1) os diferentes estados

de momento angular diferem de uma fase. Em geral o mesmo nao se verifica; de facto isso

pode ser verificado para n = 2; tendo em atencao o factor de normalizacao obtemos

n = 2 ,

m = 2 , Φ(ne=0,nd=2)(ρ, φ) =(ωµ

~

)3/2

e2iφ ρ2

√2πe−

µω2~

ρ2

,

m = 0 , Φ(ne=1,nd=1)(ρ, φ) =

ωµ

π~

[ωµ

~ρ2 − 1

]

e−µω2~

ρ2

,

m = −2 , Φ(ne=2,nd=0)(ρ, φ) =(ωµ

~

)3/2

e−2iφ ρ2

√2πe−

µω2~

ρ2

.

(5.2.35)

As densidades de probabilidade respeitantes a estas funcoes de onda estao representadas

na figura 5.3.

5.3 O problema de Landau

O problema de Landau para uma partıcula sem spin e a versao quantica do problema de

Larmor do capıtulo 1. Consideramos o hamiltoniano (1.3.22)

HL =1

(

px +qBy

2

)2

+1

(

py −qBx

2

)2

+p2

z

2µ. (5.3.1)

Tal como discutido na seccao 4.4.3, a quantificacao deste sistema e feita usando o operador

Hamiltoniano

HL =µ

2

(

Px

µ+ωcY

2

)2

2

(

Py

µ− ωcX

2

)2

+P 2

z

2µ, (5.3.2)

onde usamos a frequencia ciclotronica ωc = qB/µ e onde impomos as relacoes de comutacao

canonicas

[X, Px] = i~ , [Y , Py] = i~ , [Z, Pz] = i~ , (5.3.3)

Page 177: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

5.3 O problema de Landau 161

0.3

0.25

0.2

0.15

0.1

0.05

0

rho

21.510.50

0.08

0.04

0

rho

32.521.510 0.5

0.1

0.06

0.02

0.06

0.02

rho

3.532.5210.50 1.5

0.08

0.04

0

0.2

0.1

rho

3.5321.510.50

0.3

0.25

0.15

0.05

0

2.5

Figura 5.3: Densidades de probabilidade para os nıveis (n,m) = (0, 0) (cima esquerda),(n,m) = (1,±1) (cima direita) , (n,m) = (2,±2) (baixo esquerda), (n,m) = (2, 0) (baixodireita). Nos graficos tomamos µω/~ = 1.

Page 178: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

162 Exemplos de Quantificacao Canonica

sendo todos os outros comutadores envolvendo momento e posicao zero. Reescrevemos

(5.3.2) como

HL =P 2

x + P 2y

2µ+µω2

c

8(X2 + Y 2)− ωc

2(XPy − Y Px) +

P 2z

2µ= Hxy −

ωc

2Lz +

P 2z

2µ, (5.3.4)

onde Hxy e o Hamiltoniano do oscilador harmonico dois dimensional (5.2.3) com ω = ωc/2

e Lz e a componente z do operador momento angular. Usando (5.2.18), reescrevemos o

hamiltoniano como

HL = ~ωc

(

Ne +1

2

)

+P 2

z

2µ. (5.3.5)

Note-se que podiamos ter definido directamente de (5.3.2) os operadores de destruicao e

criacao

−iae =

µ

2~ωc

[(

Px

µ+ωcY

2

)

+ i

(

Py

µ− ωcX

2

)]

, (5.3.6)

ia†e =

µ

2~ωc

[(

Px

µ+ωcY

2

)

− i(

Py

µ− ωcX

2

)]

, (5.3.7)

de modo que

a†eae =µ

2~ωc

[

2

µ

(

HL −P 2

z

)

− iωc

2µ[Px, X] +

iωc

2µ[Y , Py]

]

=1

~ωc

(

HL −P 2

z

)

− 1

2,

(5.3.8)

recuperando (5.3.5). So que ao usarmos a comparacao com o oscilador harmonico em

duas dimensoes temos imediatamente a interpretacao de ae e a†e como destruindo e criando

quantoes circulares (retrogrados). Assim, o Hamiltoniano e igual ao do oscilador harmonico

um dimensional, mas com quantoes circulares, mais uma parte que descreve o movimento

(livre) segundo o eixo do z.

Consideremos a decomposicao

HL = H⊥ + H‖ , com H⊥ = ~ωc

(

Ne +1

2

)

e H‖ =P 2

z

2µ. (5.3.9)

Analisamos primeiro o movimento no plano xy que e descrito por H⊥. O espectro de

energias no plano xy e infinitamente degenerado. De facto, estados proprios de Lz com

diferentes valores de nd tem o mesmo valor proprio da energia, que so depende de ne;

Page 179: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

5.3 O problema de Landau 163

adicionando ou subtraindo quantoes circulares directos nao altera a energia do estado.

Para compreender fisicamente este resultado vamos definir varios operadores:

• Operadores Velocidade: Pela relacao classica (1.3.19)

~p = µ~x+ q ~A , (5.3.10)

definimos os operadores associados a velocidade

V i =Pi

µ− q

µAi , (5.3.11)

que no nosso caso sao

V x =Px

µ+ωc

2Y , V y =

Py

µ− ωc

2X , V z =

Pz

µ. (5.3.12)

Logo

[V x, V y] =i~ωc

µ, (5.3.13)

e portanto existe uma incerteza mınima associada a determinacao das componentes

x e y da velocidade, quando B 6= 0

∆vx∆vy ≥ ωc~

2µ. (5.3.14)

• Operadores Centro da Trajectoria Classica: Pelas relacoes classicas (1.1.10)-(1.1.12)

temos

x = x0 −vy

ωc

, y = y0 +vx

ωc

, (B 6= 0) (5.3.15)

definimos as observaveis associadas ao centro da trajectoria classica

X0 = X +V y

ωc=X

2+

Py

µωc, Y0 = Y − V x

ωc=Y

2− Px

µωc. (5.3.16)

Primeiro notamos que

[X0, Y0] = − i~

µωc. (5.3.17)

Logo, X0 e Y0 sao incompatıveis e existe uma incerteza mınima associada as suas

grandezas fısicas associadas

∆x0∆y0 ≥~

2µωc. (5.3.18)

Page 180: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

164 Exemplos de Quantificacao Canonica

Segundo notamos que

[HL, X0] = 0 = [HL, Y0] , (5.3.19)

pelo que tanto X0 como Y0 sao constantes do movimento no sentido da seccao 4.4.5.

Terceiro notamos que

[X0, Lz] = −i~Y0 , [Y0, Lz] = i~X0 , (5.3.20)

pelo que nao podemos incluir mais do que uma das tres grandezas X0, Y0, Lz no nosso

C.C.O.C..

Quarto notamos que o operador

R20 ≡ X2

0 + Y 20 =

2

µω2c

(

P 2x + P 2

y

2µ+µω2

c

8(X2 + Y 2) +

ωc

2(XPy − Y Px)

)

=2

µω2c

(

Hxy +ωc

2Lz

)

=2~

µωc

(

Nd +1

2

) .

(5.3.21)

Deste modo vemos que o valor proprio do operador R20 depende somente do numero

de quantoes circulares directos.

• Operador Raio da trajectoria classica: Pela expressao classica (1.1.13)

r2 = (x(t)− x0)2 + (y(t)− y0)

2 , (5.3.22)

definimos o operador raio da trajectoria classica

R2 = (X − X0)2 + (Y − Y0)

2 =1

ω2c

((V x)2 + (V y)2) =2~

µωc

(

Ne +1

2

)

. (5.3.23)

Assim, R2 e determinado pelo numero de quantoes circulares retrogrados.

Assim, o C.C.O.C. para o problema de Landau e

C.C.O.C =

Ne, Nd, Pz

, (5.3.24)

e a base para o espaco de estados pode ser tomada como rotulada pelos seus valores proprios

|ne, nd, pz〉. Podemos pensar em ne como determinando a energia do sistema ou tambem

Page 181: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

5.4 Sumario 165

o valor proprio do operador raio da trajectoria classica. Por outro lado nd determina o

valor proprio do operador R20. O espectro total de energias e

E(ne,pz) = ~ωc

(

ne +1

2

)

+p2

z

2µ, (5.3.25)

que tem uma parte discreta relativa ao movimento no plano xy que e designada por nıveis de

Landau e uma parte contınua relativa ao movimento segundo z. Este espectro e degenerado

em dois sentidos diferentes. Primeiro, como discutido atras, funcoes de onda que so diferem

de nd tem a mesma energia - degenerescencia infinita. Segundo, mesmo tomando o mesmo

valor de nd, duas funcoes de onda com diferentes valores de pz e ne podem ainda ter a

mesma energia, desde que a soma das duas parcelas ainda se mantenha igual. Esta e uma

degenerescencia finita com grau n + 1 onde n e o maior inteiro menor que E/(~ωc) −1/2. As funcoes de onda totais para o problema de Landau que sao estados proprios

simultaneamente de HL, Lz e Pz sao dadas pelo produto das funcoes de onda da seccao

5.2.3 por uma onda plana que descreve o movimento livre segundo z:

Ψ(ρ, φ, z, t) = Φ(ne,nd)(ρ, φ)eipzz/~eiE(ne,pz)t/~ . (5.3.26)

Claro esta, que tal como discutido no capıtulo 3, esta funcao de onda nao vai ser nor-

malizavel, devido a componente segundo z ser livre. Para normalizar a funcao de onda

terıamos de considerar um pacote de ondas na direccao z.

5.4 Sumario

Consideramos tres exemplos de quantificacao canonica. O primeiro, o oscilador harmonico

quantico em uma dimensao e o paradigma de problema que e resolvido pela introducao

de operadores de criacao e destruicao. O espectro de energias mostra que a diferenca de

energia entre dois nıveis diferentes e um multiplo de ~ω. Esta foi exactamente a observacao

de Planck discutida na seccao 2.1.2 que e obtida naturalmente no formalismo quantico. Ao

considerarmos o oscilador harmonico isotropico em duas dimensoes pudemos introduzir

tambem os operadores de criacao e destruicao circulares, que sao uteis para tratar estados

Page 182: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

166 Exemplos de Quantificacao Canonica

com momento angular bem definido. Vimos tambem aqui um exemplo de espectro de

energias (finitamente) degenerado em cada nıvel. O problema de Landau permitiu-nos ver

um exemplo de um espectro de energias infinitamente degenerado; esta degenerescencia

pode ser associada a redundancia de trajectorias classicas no problema classico de Larmor,

que resulta da uniformidade do campo magnetico. O problema de Landau da-nos tambem

um exemplo de uma situacao em que os operadores associados a velocidades (ou a posicoes)

nao comutam entre si.

Page 183: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

CAPITULO 6

Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

No capıtulo anterior estudamos sistemas com componente Lz do momento angular bem

definida. Isso levou-nos a estudar as funcoes de onda da seccao 5.2.3 que sao estados

proprios dos operadores H e Lz - estes operadores comutam e podem, como tal, ser di-

agonalizados simultaneamente. Neste capıtulo vamos comecar por estudar um conjunto

de funcoes proprias comuns a Lz e L2 que aplicaremos depois ao estudo do atomo de

Hidrogenio.

6.1 Operadores de momento angular orbital

As componentes do momento angular orbital sao dadas por (4.4.39)

~L = (Lx, Ly, Lz) = (Y Pz − ZPy, ZPx − XPz, XPy − Y Px) . (6.1.1)

Na representacao |~x〉, estes operadores sao escritos associando

(

Px, Py, Pz

)

→(

−i~ ∂

∂x,−i~ ∂

∂y,−i~ ∂

∂z

)

, (6.1.2)

de modo que representamos

(Lx, Ly, Lz) = −i~(

y∂

∂z− z ∂

∂y, z

∂x− x ∂

∂z, x

∂y− y ∂

∂x

)

. (6.1.3)

Page 184: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

168 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

Podemos facilmente verificar que esta representacao obedece as relacoes de comutacao para

o momento angular

[Lx, Ly] = i~Lz , [Ly, Lz] = i~Lx , [Lz, Lx] = i~Ly ; (6.1.4)

por exemplo, sendo φ(x, y, z) uma funcao de onda arbitraria

[Lx, Ly]φ(x, y, z) = ~2

[

−(

y∂

∂z− z ∂

∂y

)(

z∂

∂x− x ∂

∂z

)

+

(

z∂

∂x− x ∂

∂z

)(

y∂

∂z− z ∂

∂y

)]

φ(x, y, z)

= ~2

(

x∂

∂y− y ∂

∂x

)

φ(x, y, z) = i~Lzφ(x, y, z) ,

(6.1.5)

em acordo com (6.1.4).

Definimos o operador momento angular total

L2 =~L · ~L = L2

x + L2y + L2

z . (6.1.6)

Note-se que L2 comuta com qualquer das componentes do momento angular

[

L2, Lx

]

= 0 ,[

L2, Ly

]

= 0 ,[

L2, Lz

]

= 0 . (6.1.7)

Por exemplo

[

L2, Lx

]

=[

L2y + L2

z, Lx

]

= Ly

[

Ly, Lx

]

+[

Ly, Lx

]

Ly + Lz

[

Lz, Lx

]

+[

Lz , Lx

]

Lz

= −i~LyLz − i~LzLy + i~LzLy + i~LyLz = 0

.

(6.1.8)

Assim, em mecanica quantica, classificamos os estados com momento angular bem definido

usando o momento angular total e apenas uma das suas componentes, normalmente z; ou

seja, consideramos o

C.C.O.C. =

L2, Lz

, (6.1.9)

para descrever os estados proprios do momento angular.

Tal como na seccao 5.2.3. usamos coordenadas polares para descrever as funcoes de onda

que sao estados proprios de Lz, e conveniente usar coordenadas esfericas para descrever

Page 185: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.2 Os Harmonicos Esfericos 169

as funcoes de onda que sao estados proprios simultaneamente de L2 e Lz. A relacao entre

coordenadas esfericas e cartesianas e dada por

x = r sin θ cosφ

y = r sin θ sinφ

z = r cos θ

. (6.1.10)

Os versores em coordenadas esfericas e cartesianas relacionam-se como

eθ = cos θ cosφex + cos θ sinφey − sin θez

eφ = cosφey − sin φex

er =x

rex +

y

rey +

z

rez

. (6.1.11)

O operador momento angular, ~L = ~r × ~p, na representacao |x〉 e usando coordenadas

esfericas toma a forma

~L = rer × (−i~∇) = −i~rer ×(

er∂

∂r+ eθ

1

r

∂θ+ eφ

1

r sin θ

∂φ

)

, (6.1.12)

ou seja

~L = −i~(

eφ∂

∂θ− eθ

1

sin θ

∂φ

)

. (6.1.13)

Usando (6.1.11) para projectar esta equacao em ex, ey e ez obtemos respectivamente

Lx = i~

(

sinφ∂

∂θ+ cot θ cosφ

∂φ

)

Ly = i~

(

− cos φ∂

∂θ+ cot θ sinφ

∂φ

)

Lz = −i~ ∂

∂φ

. (6.1.14)

Calculando o operador momento angular total L2 = L2x + L2

y + L2z nesta representacao

obtemos

L2 = −~2

[

1

sin θ

∂θ

(

sin θ∂

∂θ

)

+1

sin2 θ

∂2

∂φ2

]

. (6.1.15)

6.2 Os Harmonicos Esfericos

Vamos agora construir as funcoes proprias comuns a L2 e Lz. Comecemos por calcular as

funcoes proprias de L2 com valor proprio α~2 que denotamos por Yα(θ, φ) e obedecem a

Page 186: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

170 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

equacao diferencial

L2Yα(θ, φ) = α~2Yα(θ, φ) , (6.2.1)

ou seja

−~2

[

1

sin θ

∂θ

(

sin θ∂

∂θ

)

+1

sin2 θ

∂2

∂φ2

]

Yα(θ, φ) = α~2Yα(θ, φ) . (6.2.2)

Separamos variaveis

Yα(θ, φ) = Θ(θ)Φ(φ) , (6.2.3)

de modo a obtermos a equacao

sin θ

Θ(θ)

d

(

sin θd

dθΘ(θ)

)

+ α sin2 θ = − 1

Φ(φ)

d2

dφ2Φ(φ) . (6.2.4)

Como o lado esquerdo so depende de θ e o direito de φ, para obedecer a igualdade cada

lado tem de ser uma constante a que chamamos m2. Do lado direito obtemos entao

d2

dφ2Φ(φ) +m2Φ(φ) = 0 ⇒ Φ(φ) = C1e

imφ + C2e−imφ . (6.2.5)

Note-se que as funcoes e±imφ sao tambem funcoes proprias de Lz , com valores proprios

−i~(±im) = ±m~ , (6.2.6)

enquanto que a combinacao linear C1eimφ + C2e

−imφ nao e funcao propria de Lz . Deste

modo tomamos

Φ(φ) = Ce±imφ , (6.2.7)

onde C e uma constante de normalizacao. Alem disso, para a funcao e±imφ ter valor unico,

precisamos

e±imφ = e±im(φ+2π) ⇒ m ∈ Z , (6.2.8)

ou seja, m e inteiro e como tal os valores proprios de Lz sao

0,±~,±2~,±3~ , . . . (6.2.9)

Do lado esquerdo de (6.2.4) obtemos

sin θd

(

sin θd

dθΘ(θ)

)

+(

α sin2 θ −m2)

Θ(θ) = 0 . (6.2.10)

Page 187: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.2 Os Harmonicos Esfericos 171

Para resolvermos esta equacao fazemos uma mudanca de variavel:

χ ≡ cos θ ⇒ d

dθ=dχ

d

dχ= − sin θ

d

dχ, f(χ) ≡ Θ(θ) , (6.2.11)

de modo que a equacao em θ fica

d

[

(1− χ2)d

dχf(χ)

]

+

(

α− m2

1− χ2

)

f(χ) = 0 . (6.2.12)

Comecamos por considerar o caso com m = 0, ficando a equacao

(1− χ2)d2f(χ)

dχ2− 2χ

df(χ)

dχ+ αf(χ) = 0 . (6.2.13)

Esta e uma equacao diferencial ordinaria de segunda ordem, denominada equacao de Leg-

endre. Tentemos encontrar uma solucao como uma serie de potencias

f(χ) =∞∑

n=0

anχn , (6.2.14)

de modo que a equacao fica

(1− χ2)

∞∑

n=0

n(n− 1)anχn−2 − 2χ

∞∑

n=0

nanχn−1 + α

∞∑

n=0

anχn = 0

⇔∞∑

n=0

[−n(n− 1)− 2n+ α] anχn +

∞∑

n=0

n(n− 1)anχn−2 = 0

⇔∞∑

n=0

[α− n(n+ 1)] anχn +

∞∑

m=−2

(m+ 2)(m+ 1)am+2χm = 0

, (6.2.15)

notando que os termos com m = −2 e m = −1 no ultimo somatorio dao contribuicao zero

e chamando n a m obtemos

⇔∞∑

n=0

[(α− n(n+ 1))an + (n + 2)(n+ 1)an+2]χn = 0 , (6.2.16)

que para ser obedecido implica a relacao de recorrencia para a serie

an+2 =(n + 1)n− α(n+ 2)(n+ 1)

an . (6.2.17)

Notamos de imediato quean+2

an

n→∞−→ 1 , (6.2.18)

Page 188: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

172 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

de modo que para a serie nao divergir quando χ = ±1 (que e o valor maximo para χ dado

que χ ≡ cos θ) temos de requerer que ela seja finita, isto e que o valor proprio α obedeca a

α = ℓ(ℓ+ 1) , (6.2.19)

para um dado ℓ ∈ N0. As solucoes da equacao de Legendre sao entao polinomios de grau

ℓ. Note-se ainda que como a relacao de recorrencia relaciona apenas an+2 com an, temos

que a serie de termos pares e independentente da serie de termos ımpares; a escolha de

α = ℓ(ℓ + 1) para um dado ℓ garante que a serie com a paridade de ℓ pare; assim para

termos uma serie finita temos de escolher somente termos pares ou termos ımpares:

serie par (ℓ par) a0 6= 0 , a1 = 0 ,

serie ımpar (ℓ ımpar) a0 = 0 , a1 6= 0 .(6.2.20)

Estes polinomios sao designados por polinomios de Legendre e denotados por Pℓ(χ) (grau

ℓ) quando obedecem a condicao de normalizacao

∫ 1

−1

Pℓ(χ)Pℓ′(χ)dχ =2

2ℓ+ 1δℓℓ′ . (6.2.21)

Os quatro primeiros sao

• Tomamos ℓ = 0, a0 = 1, a1 = 0 e obtemos

P0(χ) = 1; (6.2.22)

• Tomamos ℓ = 1, a0 = 0, a1 = 1 e obtemos

P1(χ) = χ ; (6.2.23)

• Tomamos ℓ = 2, a0 = −1/2, a1 = 0 e obtemos

P2(χ) = −1

2

(

1− 3χ2)

; (6.2.24)

• Tomamos ℓ = 3, a0 = 0, a1 = −3/2 e obtemos

P3(χ) = −3

2χ+

5

2χ3 . (6.2.25)

Page 189: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.2 Os Harmonicos Esfericos 173

Pode-se verificar que com estas normalizacoes os polinomios obedecem a (6.2.21).

Descobrimos pois um conjunto de funcoes proprias comuns a L2 e Lz, da forma

Y mℓ (θ, φ) = F (θ)eimφ , (6.2.26)

cujo valor proprio de Lz e m~, com m ∈ Z, e, para m = 0 estas funcoes tomam a forma

Y 0ℓ (θ, φ) = CPℓ(cos θ) , (6.2.27)

onde C e uma constante de normalizacao, sendo o valor proprio de L2, ℓ(ℓ + 1)~2 com

ℓ ∈ N0.

Vamos agora usar (6.2.27) para construir Y mℓ (θ, φ) com m 6= 0. Primeiro notamos que

os valores de m e ℓ nao sao completamente independentes. Por definicao

L2 = L2x + L2

y + L2z ; (6.2.28)

o valor esperado desta equacao num determinado estado com momento angular bem

definido, |Ψ〉 = | . . . , ℓ,m〉 (normalizado) e

〈Ψ|L2|Ψ〉 = 〈Ψ|L2x + L2

y + L2z|Ψ〉 , (6.2.29)

e dado que Lx e Ly sao hermıticos

ℓ(ℓ+ 1)~2 = ‖Lx|Ψ〉‖2 + ‖Ly|Ψ〉‖2 +m2~

2 ≥ m2~

2 , (6.2.30)

o que equivale a que |m| ≤√

ℓ(ℓ+ 1), ou, como |m|, ℓ ∈ N0,

|m| ≤ ℓ . (6.2.31)

Note-se que assumimos que mesmo para m 6= 0 os estados proprios do momento angular

tem valor proprio de L2 igual a ℓ(ℓ+ 1)~2; iremos confirmar isto em baixo.

Segundo definimos os operadores de escada

L+ = Lx + iLy , L− = Lx − iLy . (6.2.32)

Page 190: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

174 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

Estes operadores obedecem as relacoes de comutacao

[

L2, L±

]

= 0 ,[

L−, L+

]

= −2~Lz ,[

Lz, L±

]

= ±~L± . (6.2.33)

Por exemplo,[

L−, L+

]

=[

Lx − iLy, Lx + iLy

]

= −2~Lz . (6.2.34)

Compare-se as relacoes de comutacao[

Lz, L±

]

= ±~L± com as relacoes (5.1.9) e (5.1.10);

sao identicas, pelo que podemos fazer uma analogia para L+/L− como operadores de

criacao/destruicao e para Lz como operador de numero. Mais concretamente, L+/L− vao

transformar um estado com momento angular segundo z, m~, num estado com mais/menos

um quantao de momento angular segundo z, (m+1)~/(m−1)~. Isto, sem alterar o momento

angular total ~2ℓ(ℓ+1), pois[

L2, L±

]

= 0, o que justifica a hipotese tomada acima de que

os valores proprios de L2 mantinham a sua forma para m 6= 0.

Deste modo tomamos para estados proprios do momento angular o conjunto |ℓ,m〉,com |m| ≤ ℓ e

L2|ℓ,m〉 = ℓ(ℓ+ 1)~2|ℓ,m〉 , Lz|ℓ,m〉 = m~|ℓ,m〉

L+|ℓ,m〉 = Cmℓ |ℓ,m+ 1〉 , L−|ℓ,m〉 = Cm

ℓ |ℓ,m− 1〉, (6.2.35)

onde Cℓℓ = 0, C−ℓ

ℓ = 0, para garantir que |m| ≤ ℓ. Tal como para o oscilador harmonico

(formulas (5.1.30) e (5.1.31)), as constantes Cmℓ , C

mℓ sao necessarias para garantir a nor-

malizacao dos estados. Para vermos a forma destas constantes notamos que

L∓L± = L2x + L2

y ∓ iLyLx ± iLxLy = L2x + L2

y ± i[

Lx, Ly

]

= L2 − L2z ∓ ~Lz . (6.2.36)

Logo,

〈ℓ,m|L∓L±|ℓ,m〉 = 〈ℓ,m|L2 − L2z ∓ ~Lz|ℓ,m〉 = ~

2(

ℓ(ℓ+ 1)−m2 ∓m)

〈ℓ,m|ℓ,m〉 .(6.2.37)

Mas, por outro lado,

〈ℓ,m|L−L+|ℓ,m〉 = Cmℓ (Cm

ℓ )∗ 〈ℓ,m+ 1|ℓ,m+ 1〉

〈ℓ,m|L+L−|ℓ,m〉 = Cmℓ

(

Cmℓ

)∗〈ℓ,m− 1|ℓ,m− 1〉

, (6.2.38)

Page 191: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.2 Os Harmonicos Esfericos 175

e como tal

~2 (ℓ(ℓ+ 1)−m(m+ 1)) 〈ℓ,m|ℓ,m〉 = Cm

ℓ (Cmℓ )∗ 〈ℓ,m+ 1|ℓ,m+ 1〉

~2 (ℓ(ℓ+ 1)−m(m− 1)) 〈ℓ,m|ℓ,m〉 = Cm

(

Cmℓ

)∗〈ℓ,m− 1|ℓ,m− 1〉

. (6.2.39)

Concluimos que para garantir que a accao dos operadores em escada preserva a normal-

izacao dos estados tomamos

Cmℓ = ~

ℓ(ℓ+ 1)−m(m+ 1) , Cmℓ = ~

ℓ(ℓ+ 1)−m(m− 1) , (6.2.40)

que naturalmente obedecem a Cℓℓ = 0, C−ℓ

ℓ = 0.

Terceiro, os operadores em escada na representacao |~x〉 e em coordenadas esfericas

tomam a forma (usando (6.2.32) e (6.1.14))

L+ = ~eiφ

(

∂θ+ i cot θ

∂φ

)

, (6.2.41)

L− = −~e−iφ

(

∂θ− i cot θ

∂φ

)

, (6.2.42)

e os estados |ℓ,m〉 tomam a forma Y mℓ (θ, φ), sendo a condicao de normalizacao

∫ π

θ=0

∫ 2π

φ=0

dφ sin θY mℓ (Y m

ℓ )∗ = 1 , (6.2.43)

e designam-se por harmonicos esfericos. Consideremos os primeiros

• Para ℓ = 0, m = 0 temos Y 00 = C; normalizando obtemos C = 1/

√4π, logo

Y 00 =

1√4π

; (6.2.44)

• Para ℓ = 1, m = 0 temos Y 01 = C cos θ; normalizando obtemos C =

3/(4π), logo

Y 01 =

3

4πcos θ , (6.2.45)

e usando

L+|1, 0〉 = ~√

2|1, 1〉 ⇔ Y 11 =

1√2~

~eiφ

(

∂θ+ i cot θ

∂φ

)

Y 01 = −

3

8πeiφ sin θ ,

(6.2.46)

Page 192: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

176 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

e de um modo semelhante

L−|1, 0〉 = ~√

2|1,−1〉 ⇔ Y −11 = − 1√

2~~e−iφ

(

∂θ− i cot θ

∂φ

)

Y 01 =

3

8πe−iφ sin θ ;

(6.2.47)

• Para ℓ = 2, m = 0 temos Y 02 = C(3 cos2 θ − 1); normalizando obtemos C =

5/(16π),

logo

Y 02 =

5

16π(3 cos2 θ − 1) , (6.2.48)

e pela accao dos operadores em escada obtemos

L+|2, 0〉 = ~√

6|2, 1〉 ⇔ Y 12 =

1√6~

~eiφ

(

∂θ+ i cot θ

∂φ

)

Y 02 = −

15

8πeiφ cos θ sin θ ,

(6.2.49)

L−|2, 0〉 = ~√

6|2,−1〉 ⇔ Y −12 = − 1√

6~~e−iφ

(

∂θ− i cot θ

∂φ

)

Y 02 =

15

8πe−iφ cos θ sin θ ,

(6.2.50)

L+|2, 1〉 = ~2|2, 2〉 ⇔ Y 22 =

1

2~~eiφ

(

∂θ+ i cot θ

∂φ

)

Y 12 =

15

32πe2iφ sin2 θ ,

(6.2.51)

L−|2,−1〉 = ~2|2,−2〉 ⇔ Y −22 = − 1

2~~e−iφ

(

∂θ− i cot θ

∂φ

)

Y −12 =

15

32πe−2iφ sin2 θ .

(6.2.52)

Nas figuras 6.1, 6.2, 6.3 e representada a dependencia angular da funcao Y mℓ (Y m

ℓ )∗.

Como toda a dependencia em φ desaparece, a figura obtida e dada pela revolucao em

torno do eixo dos z das figuras planares exibidas.

6.3 Partıcula numa forca central

Consideremos o operador Hamiltoniano para uma partıcula sem spin num campo de forcas

central1

H =P 2

2µ+ V (R) . (6.3.1)

1Denotaremos de futuro a massa por ‘µ’ para evitar confusao com o numero quantico azimutal ‘m’.

Page 193: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.3 Partıcula numa forca central 177

Figura 6.1: Dependencia angular dos harmonicos esfericos com numero quantico azimutalmınimo, Y 0

0 , Y 01 , Y 0

2 , respectivamente. Note-se que as zonas de maior probabilidade seencontram ao longo do eixo polar (extraıdo de Cohen et al., ‘Quantum Mechanics ’).

Figura 6.2: Dependencia angular dos harmonicos esfericos com numero quantico azimu-tal maximo, Y 0

0 , Y ±11 , Y ±2

1 , Y ±33 , Y ±4

4 respectivamente. Note-se que as zonas de maiorprobabilidade se encontram ao longo do plano equatorial (extraıdo de Eisberg & Resnick,‘Quantum Physics ’).

Page 194: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

178 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

Figura 6.3: Dependencia angular dos harmonicos esfericos Y 03 , Y ±1

3 , Y ±22 , Y ±3

3 , respecti-vamente. Note-se que as zonas de maior probabilidade se deslocam do eixo polar para oplano equatorial a medida que o numero quantico azimutal cresce (extraıdo de Eisberg &Resnick, ‘Quantum Physics ’).

Vamos reescrever este Hamiltoniano em termos do operador momento angular. Para isso

notamos que na representacao |~x〉

P 2 = (−i~∇) · (−i~∇) = −~2∆ , (6.3.2)

onde ∆ e o Laplaciano. Em coordenadas esfericas temos entao

P 2 = −~2

(

1

r2

∂r

(

r2 ∂

∂r

)

+1

r2 sin θ

∂θ

(

sin θ∂

∂θ

)

+1

r2 sin2 θ

∂2

∂φ2

)

, (6.3.3)

ou ainda, usando o operador distancia radial R e definindo o operador radial

Ξ ≡ −~2

r2

∂r

(

r2 ∂

∂r

)

, (6.3.4)

temos em forma de operadores

P 2 = Ξ +L2

R2⇒ H =

Ξ

2µ+

L2

2µR2+ V (R) . (6.3.5)

Desta forma do Hamiltoniano podemos extrair as seguintes conclusoes:

Page 195: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.3 Partıcula numa forca central 179

i) Quer L2 quer Lz quando representados no espaco de configuracoes em coordenadas

esfericas actuam apenas nas coordenadas angulares, conforme (6.1.14), (6.1.15), logo

[

L2, Ξ]

= 0 ,[

L2, V (R)]

= 0 ,

[

L2,1

R2

]

= 0 ⇒[

L2, H]

= 0 , (6.3.6)

e de um modo semelhante

[

Lz , Ξ]

= 0 ,[

Lz, V (R)]

= 0 ,

[

Lz,1

R2

]

= 0[Lz,L2]=0⇒

[

Lz, H]

= 0 . (6.3.7)

Assim, no problema quantico de uma partıcula num campo de forcas central podemos

incluir no C.C.O.C.

C.C.O.C. =

H, L2, Lz

, (6.3.8)

isto e, os estados com energia bem definida (estados estacionarios) tem tambem

momento angular bem definido.

ii) Para encontrarmos os estados estacionarios e o espectro de energias temos de resolver

a equacao de Schrodinger independente do tempo

H|Φ〉 = E|Φ〉 , (6.3.9)

que no espaco de configuracoes toma a forma[

− ~2

(

1

r2

∂r

(

r2 ∂

∂r

)

+1

r2 sin θ

∂θ

(

sin θ∂

∂θ

)

+1

r2 sin2 θ

∂2

∂φ2

)

+ V (r)

]

Φ(r, θ, φ)

= EΦ(r, θ, φ) .

(6.3.10)

E natural tomarmos como ansatz para as funcoes de onda espaciais

Φ(r, θ, φ) = f(r)Y mℓ (θ, φ) , (6.3.11)

de modo aproveitar o conhecimento que adquirimos sobre as funcoes proprias do mo-

mento angular. A equacao de onda fica reduzida a uma equacao diferencial ordinaria

de segunda ordem na coordenada radial

[

− ~2

2µr2

d

dr

(

r2 d

dr

)

+ℓ(ℓ+ 1)~2

2µr2+ V (r)

]

f(r) = Ef(r) . (6.3.12)

Page 196: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

180 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

6.4 O atomo de hidrogenio (sem spin)

Especializamos agora a equacao (6.3.12) para o problema de Coulomb, para o qual

V (r) = − 1

4πǫ0

e2

r, (6.4.1)

e introduzindo a funcao R(r) por

f(r) =R(r)

r, (6.4.2)

o que transforma a equacao radial em (usamos µ = me massa do electrao)

−r2 d2

dr2R(r) =

2meE

~2r2 +

mee2

2πǫ0~2r − ℓ(ℓ+ 1)

R(r) . (6.4.3)

Esta equacao tem a forma da chamada equacao de Whittaker

z2 d2

dz2W (z) =

z2

4− kz +

(

m2 − 1

4

)

W (z) , (6.4.4)

cuja solucao se toma como sendo da forma

W (z) = zm+1/2e−z/2g(z) , (6.4.5)

o que implica que (denotando dg/dz = g′)

d2W (z)

dz2= zm+1/2e−z/2

[

g′′ +g′

z(2m+ 1− z) +

(

1

4+

1

z2

[

m2 − 1

4

]

− 1

z

[

m+1

2

])

g

]

,

(6.4.6)

transformando a equacao de Whittaker na equacao

zg′′ + (2m+ 1− z)g′ +(

k −m− 1

2

)

g = 0 . (6.4.7)

Esta equacao e agora resolvida por uma serie de potencias

g(z) =∞∑

n=0

bnzn , (6.4.8)

que substituindo em (6.4.7) fica

z∞∑

n=0

n(n− 1)bnzn−2 + (2m+ 1− z)

∞∑

n=0

nbnzn−1 +

(

k −m− 1

2

) ∞∑

n=0

bnzn = 0

⇔∞∑

n=0

(n+ 1)(2m+ 1 + n)bn+1 −(

n+m+1

2− k)

bn

zn = 0

,

(6.4.9)

Page 197: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.4 O atomo de hidrogenio (sem spin) 181

e obtemos a relacao de recorrencia

bn+1 =n+m− k + 1/2

(n+ 1)(n+ 2m+ 1)bn . (6.4.10)

Notemos que esta relacao de recorrencia implica que

bn+1

bn

n→∞−→ 1

n. (6.4.11)

Concluimos que a solucao da equacao de Whittaker tem a forma

W (z) =

∑∞n=0 bnz

n+m+1/2

ez/2. (6.4.12)

Expressando a exponencial no denominador como uma serie de potencias

ez/2 =∞∑

n=0

cnzn , cn =

1

2nn!⇒ cn+1

cn=

2nn!

2n+1(n+ 1)!n→∞−→ 1

2n. (6.4.13)

Comparando (6.4.11) com (6.4.13) vemos que os coeficientes decrescem mais rapidamente

para a serie no denominador. Assim, o comportamento da funcao quando z → ∞ e

dominado pelo numerador e portanto nao converge para zero. Para a funcao de Whittaker

convergir para zero quando z →∞2 requeremos que exista um inteiro, n0 tal que

n0 +m− k + 1/2 = 0 , n0 ∈ N0 . (6.4.14)

Voltemos agora a equacao radial (6.4.3). Para a transformar na forma da equacao de

Whittaker, (6.4.4) introduzimos a variavel z tal que

z2

4≡ −2meE

~2r2 ⇒ z =

√−8meE

~r . (6.4.15)

Note-se que esta transformacao so e possıvel para E < 0, isto e para os estados ligados,

que sao exactamente aqueles para os quais esperamos encontrar quantificacao da energia.

Fazendo esta transformacao, (6.4.3) fica da forma de (6.4.4), com

k =e2

4πǫ0~

−me

2E, m = ℓ+

1

2. (6.4.16)

2Esta condicao e necessaria para a funcao de onda ser normalizavel.

Page 198: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

182 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

Figura 6.4: Espectro de energias do Hidrogenio; na figura o numero quantico principal edenotado por n (extraıdo de Cohen et al., ‘Quantum Mechanics ’).

A condicao de que a serie para (6.4.14) fica

n0 + ℓ+1

2− e2

4πǫ0~

−me

2E+

1

2= 0 ⇔ E = −

(

e2

4πǫ0~

)2me

2(n0 + ℓ+ 1)2, (6.4.17)

ou definindo o numero quantico principal N ≡ n0 + ℓ+ 1 obtemos

EN = −(

e2

4πǫ0~

)2me

2N2, (6.4.18)

que e o espectro de energias do atomo de hidrogenio visto no capıtulo 2 (relacao (2.2.12)

com Z = 1).

Este espectro de energias so depende do numero quantico principal, mas nao do mo-

mento angular total definido por ℓ ou do momento angular azimutal definido por m. Assim

o espectro e degenerado de duas maneiras

• Um determinado numero quantico principal N pode ser obtido tomando

ℓ = 0, 1, . . . , N − 1 , (6.4.19)

Page 199: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.4 O atomo de hidrogenio (sem spin) 183

Er

V(r)

Figura 6.5: Espectro de energias do Hidrogenio versus o potencial; compare-se com o casodo oscilador harmonico exibido na figura 5.1.

e o correspondente n0 para complementar. Assim temos uma degenerescencia de

grau N . Na notacao dos espectroscopistas a cada valor de ℓ = 0, 1, 2 . . . e atribuıdo

uma letra, respectivamente ℓ = s, p, d, f, g, . . . seguindo-se a ordem alfabetica. E por

isso usual encontrar uma referencia, por exemplo, a orbital 2p, o que significa N = 2,

ℓ = 1. Esta degenerescencia e exibida na figura 6.4;

• Para cada ℓ temos 2ℓ+ 1 valores possıveis de m

m = −ℓ,−ℓ+ 1, . . . , ℓ− 1, ℓ ; (6.4.20)

Assim o grau total de degenerescencia e, para o nıvel N

1 + 3 + 5 + . . .+ 2N − 1 = N2 . (6.4.21)

Orbitais

Para exibirmos a forma explıcita das funcoes de onda, tambem designadas neste contexto

por orbitais, notamos que se introduzirmos o raio de Bohr

a0 ≡4πǫ0~

2

mee2, (6.4.22)

o espectro de energias (6.4.18) escreve-se

EN = − ~2

2mea20

1

N2, (6.4.23)

Page 200: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

184 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

Figura 6.6: Funcoes de onda radiais f(1,0), f(2,0) e f(2,1); na notacao da figura R(n,ℓ) = f(N,ℓ)

(extraıdo de Cohen et al., ‘Quantum Mechanics ’).

e como tal a transformacao (6.4.15) fica

z =2

a0Nr . (6.4.24)

Deste modo, a funcao de onda radial (6.4.2) fica

f(N,ℓ)(r) =R(r)

r=W (z = 2r/Na0)

r=e−r/a0N

r

n

bn

(

2r

Na0

)n+ℓ+1

. (6.4.25)

Notando que usando (6.4.23) em (6.4.16) obtemos k = N , a relacao de recorrencia e

bn+1 =n + ℓ+ 1−N

(n+ 1)(n+ 2ℓ+ 2)bn . (6.4.26)

A relacao de normalizacao sera em geral

∫ ∞

0

f(N,ℓ)f∗(N,ℓ)r

2dr = 1 . (6.4.27)

Exemplos:

• Estado fundamental: N = 1 ⇒ ℓ = 0; a relacao de recorrencia reduz-se a

bn+1 =n

(n+ 1)(n+ 2)bn , ⇒ b0 ≡ C , bn = 0, n ≥ 1 . (6.4.28)

Page 201: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.4 O atomo de hidrogenio (sem spin) 185

Logo

f(1,0) =2C

a0

e−r/a0 . (6.4.29)

Normalizando,

∫ +∞

0

r2e−2r/a0dr =a3

0

4

normalizar⇒ C = 1/√a0 , (6.4.30)

onde integramos por partes. Deste modo a funcao de onda total para o primeiro nıvel

do atomo de hidrogenio, Ψ(N,ℓ,m)(t, r, θ, φ), e

Ψ(1,0,0)(t, r, θ, φ) = f(1,0)(r)Y00 (θ, φ)e−iE1t/~ =

1√π

e−r/a0

(a0)3/2e−iE1t/~ . (6.4.31)

• Orbital 2s: N = 2, ℓ = 0; a relacao de recorrencia reduz-se a

bn+1 =n− 1

(n + 1)(n+ 2)bn , ⇒ b0 ≡ C , b1 = −C

2, bn = 0, n ≥ 2 . (6.4.32)

Logo

f(2,0) =C

2a0

(

2− r

a0

)

e−r/2a0 . (6.4.33)

Normalizando,

∫ +∞

0

rne−r/a0dr = (n− 1)!an+10

normalizar⇒ C = 1/√

2a0 , (6.4.34)

onde integramos por partes. Logo a funcao de onda total para a orbital 2s do atomo

de hidrogenio, e

Ψ(2,0,0)(t, r, θ, φ) = f(2,0)(r)Y00 (θ, φ)e−iE2t/~ =

1

4√

(

2− r

a0

)

e−r/2a0

(a0)3/2e−iE2t/~ .

(6.4.35)

• As funcoes de onda radiais para os nıveis seguintes serao exponenciais multiplicadas por

um polinomio de r; na figura 6.6 estao representadas f(1,0), f(2,0) e f(2,1).

Repetindo este raciocınio para todas as orbitais dos tres primeiros nıveis de energia do

atomo de Hidrogenio obtemos a seguinte tabela:

Page 202: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

186 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

N ℓ m Funcao de onda

1 0 0 Ψ(1,0,0)(t, r, θ, φ) =1√π

e−r/a0

(a0)3/2e−iE1t/~

2 0 0 Ψ(2,0,0)(t, r, θ, φ) =1

4√

(

2− r

a0

)

e−r/2a0

(a0)3/2e−iE2t/~

2 1 0 Ψ(2,1,0)(t, r, θ, φ) =1

4√

r

a0

e−r/2a0

(a0)3/2cos θe−iE2t/~

2 1 ±1 Ψ(2,1,±1)(t, r, θ, φ) =1

8√π

r

a0

e−r/2a0

(a0)3/2sin θe±iφe−iE2t/~

3 0 0 Ψ(3,0,0)(t, r, θ, φ) =1

81√

(

27− 18r

a0+ 2

r2

a20

)

e−r/3a0

(a0)3/2e−iE3t/~

3 1 0 Ψ(3,1,0)(t, r, θ, φ) =

√2

81√π

(

6− r

a0

)

r

a0

e−r/3a0

(a0)3/2cos θe−iE3t/~

3 1 ±1 Ψ(3,1,±1)(t, r, θ, φ) =1

81√π

(

6− r

a0

)

r

a0

e−r/3a0

(a0)3/2sin θe±iφe−iE3t/~

3 2 0 Ψ(3,2,0)(t, r, θ, φ) =1

81√

r2

a20

e−r/3a0

(a0)3/2(3 cos2 θ − 1)e−iE3t/~

3 2 ±1 Ψ(3,2,±1)(t, r, θ, φ) =1

81√π

r2

a20

e−r/3a0

(a0)3/2sin θ cos θe±iφe−iE3t/~

3 2 ±2 Ψ(3,2,±2)(t, r, θ, φ) =1

162√π

r2

a20

e−r/3a0

(a0)3/2sin2 θe±2iφe−iE3t/~

Note-se que a densidade de probabilidade na direccao radial tem a forma

P(N,ℓ)(r)dr = r2f(N,ℓ)f∗(N,ℓ)dr , (6.4.36)

que pode ser representada como na figura 6.7. Juntando esta informacao com a dos

harmonicos esfericos obtemos uma representacao da densidade de probabilidade electronica

das orbitais do atomo de hidrogenio dada na figura 6.8. Novas orbitais, ditas hıbridas, po-

dem ser construıdas sobrepondo diferentes orbitais com o mesmo N .

Terminamos esta seccao com a observacao que na notacao de Dirac, as orbitais do

atomo de hidrogenio podem ser escritas como os estados |N, ℓ,m〉, que diagonalizam o

C.C.O.C. composto por H, L2, Lz e que obedecem a

H|N, ℓ,m〉 = EN |N, ℓ,m〉 = − ~2

2mea20N

2|N, ℓ,m〉 ,

L2|N, ℓ,m〉 = ~2ℓ(ℓ+ 1)|N, ℓ,m〉 , Lz|N, ℓ,m〉 = m~|N, ℓ,m〉 ,

(6.4.37)

onde N ∈ N e ℓ,m ∈ N0 com as restricoes 0 ≤ ℓ ≤ N − 1 e |m| ≤ ℓ.

Page 203: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.4 O atomo de hidrogenio (sem spin) 187

Figura 6.7: Densidade de probabilidade na direccao radial para as funcoes de onda doatomo de hidrogenio (extraıdo de Eisberg & Resnick, ‘Quantum Physics ’).

Page 204: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

188 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

Figura 6.8: Representacao artıstica das primeiras orbitais do atomo de hidrogenio (extraıdode Eisberg & Resnick, ‘Quantum Physics ’).

Page 205: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.5 O atomo de hidrogenio (sem spin) num campo magnetico 189

6.5 O atomo de hidrogenio (sem spin) num campo

magnetico

Vimos na seccao anterior a resolucao exacta do problema do atomo de hidrogenio (sem

spin) em Mecanica Quantica. Na seccao 5.3 tinhamos visto a resolucao exacta do prob-

lema de uma carga num campo magnetico uniforme. Vamos agora combinar estes dois

problemas e considerar que o atomo de hidrogenio esta imerso num campo magnetico, que

tomamos como sendo uniforme. Note-se que esta ultima hipotese e perfeitamente adequada

a experimentacao, uma vez que os campos magneticos produzidos no laboratorio variam

muito pouco em escalas da ordem do tamanho atomico.

Nao nos ira ser possıvel, neste caso, a resolucao exacta do problema. Mas com algumas

aproximacoes conseguiremos determinar a alteracao do espectro do atomo de hidrogenio

devida ao campo magnetico, denominada Efeito Zeeman.

6.5.1 Deducao dos varios termos do Hamiltoniano

O Hamiltoniano classico para um electrao (carga q massame), num campo electromagnetico

e dado por (1.3.20)

H =(~p− q ~A)2

2me+ qφ . (6.5.1)

Sendo o campo ~B uniforme, podemos escrever o potencial magnetico na forma

~A = −1

2~r × ~B ⇔ ~A = −1

2(yBz − zBy , zBx − xBz, xBy − yBx) ; (6.5.2)

de facto, como ~B e constante, segue-se que

∇× ~A = (Bx, By, Bz) = ~B , (6.5.3)

como e necessario pela definicao de potencial magnetico. Logo, para o problema quantico,

expressamos o operador Hamiltoniano, obtido por quantificacao canonica, na forma:

H =

[

~P + q

2

~R× ~B

]2

2me+ qφ(

~R) . (6.5.4)

Page 206: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

190 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

Note-se que ~B sendo constante nao e operador. Tratemos do quadrado perfeito

[

~P +

q

2~R× ~B

]2

=[

~P +

q

2~R× ~B

]

·[

~P +

q

2~R× ~B

]

=~P

2

+q

2

(

~P · (~R× ~B) + (

~R× ~B) · ~P

)

+q2

4

(

~R× ~B

)2

.

(6.5.5)

Consideremos as seguintes identidades do calculo vectorial

( ~A× ~B) · ( ~C × ~D) = ( ~A · ~C)( ~B · ~D)− ( ~A · ~D)( ~B · ~C) ,

~A · ( ~B × ~C) = ~C · ( ~A× ~B) ,(6.5.6)

sendo que a segunda pode ser reescrita como

( ~A× ~B) · ~C = −( ~A× ~C) · ~B . (6.5.7)

Aplicando estas identidades a (6.5.5) obtemos

[

~P +

q

2~R× ~B

]2

=~P

2

+q

2

(

~B · (~P × ~R)− (

~R× ~

P ) · ~B)

+q2

4

(

~R

2~B2 − (

~R · ~B)2

)

.

(6.5.8)

Verificamos que surge o operador momento angular

~L =

~R× ~

P = −~P × ~R , (6.5.9)

onde a segunda igualdade e verdadeira apesar de~R e

~P nao comutarem; de facto cada

componente do momento angular e da forma X iPj − XjPi com i 6= j, pelo que a ordem

com que aparecem as posicoes e os momentos e irrelevante. Logo o Hamiltoniano do

problema e

H =~P

2

2me− q

2me

~L · ~B +

q2

8me

(

R2 ~B2 − (~R · ~B)2

)

+ qφ(~R) , (6.5.10)

que reescrevemos como

H ≡ H0 + H1 + H2 , (6.5.11)

onde definimos

H0 ≡~P

2

2me+ qφ(

~R) , H1 ≡ −

µB

~

~L · ~B , H2 ≡

q2 ~B2

8meR2

⊥ , (6.5.12)

Page 207: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.5 O atomo de hidrogenio (sem spin) num campo magnetico 191

e ainda, o magnetao de Bohr

µB ≡q~

2me, (6.5.13)

que tem as dimensoes de um momento magnetico (carga vezes momento angular a dividir

por massa), e o operador

R2⊥ =

~R

2

− (~R · ~B)2

~B2, (6.5.14)

que e a projeccao de~R num plano perpendicular a ~B. Se escolhermos um sistema cartesiano

e ~B = Bez, fica

R2⊥ = X2 + Y 2 . (6.5.15)

Notemos os casos limites deste Hamiltoniano:

• Tomando ~B = 0, H fica reduzido a H0, que, com o potencial de Coulomb e o problema

da seccao 6.4;

• Tomando φ = 0 e escolhendo ~B = Bez, H fica

H =P 2

x + P 2y + P 2

z

2me

− qB

2me

Lz +q2B2

8me

(

X2 + Y 2)

, (6.5.16)

que coincide com o Hamiltoniano (5.3.4) do problema de Landau.

6.5.2 Interpretacao dos varios termos do Hamiltoniano

Quando ~B = 0 o Hamiltoniano reduz-se a H0, isto e a soma da energia cinetica com a

energia potencial. Mas quando ~B 6= 0, H0 ja nao pode ser interpretado como a energia

cinetica mais a energia potencial. Para verificarmos este ponto consideremos a seguinte

analise classica. O Hamiltoniano de uma carga sob a accao de um campo electromagnetico

e dado por (1.3.20) que podemos reescrever em termos da velocidade

H =(~p− q ~A)2

2me+ qφ =

1

2me~x

2+ qφ , (6.5.17)

logo a energia cinetica na presenca de um campo magnetico e

Ec =(~p− q ~A)2

2me, (6.5.18)

Page 208: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

192 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

e nao ~p2/2me. O significado fısico de ~p2/2me depende da gauge escolhida para ~A. Para um

campo ~B uniforme, com a escolha de gauge (6.5.2) e tomando ~B = Bez temos (usando a

frequencia ciclotronica ωc = qB/me)

~x =~p

me+

q

2me~r× ~B =

~p

me−ωcr

2(cosφey−sin φex) ⇔ ~p

me= ~x−ωcr

2(sin φex−cos φey) ,

(6.5.19)

ou seja a ‘velocidade’ ~p/me e a velocidade da partıcula relativamente a um referencial em

rotacao em torno da direccao do campo uniforme, com velocidade angular ωc/2, no sentido

directo, denominado referencial de Larmor. Assim,

• H0 e a energia cinetica da partıcula relativamente ao referencial de Larmor mais a energia

potencial;

• H2, que coincide com

me

2

[ωcr

2(sin φex − cosφey)

]2

, (6.5.20)

e a energia cinetica do referencial de Larmor;

• H1 e um termo cruzado que surge sempre que a velocidade da partıcula relativamente

ao referencial de Larmor nao seja ortogonal a velocidade do referencial de Larmor.

A interpretacao que acabamos de dar dos varios termos e puramente mecanica. Mas

os termos H1 e H2 tem tambem uma interpretacao electromagnetica de interesse. Para

a compreendermos consideramos novamente uma analise classica. Define-se geralmente a

densidade de momento magnetico (ou magnetizacao) como sendo

~M(~x) =1

2

[

~x×~i(~x)]

, (6.5.21)

onde ~i e o vector densidade de corrente; o integral da densidade de magnetizacao e a

magnetizacao total ou momento magnetico total ou ainda o dipolo magnetico

~µ =1

2

V

~x×~i(~x)d3~x . (6.5.22)

Page 209: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.5 O atomo de hidrogenio (sem spin) num campo magnetico 193

No caso em que uma corrente com intensidade I so existe ao longo de um circuito fechado

e planar, com elemento de linha d~l, o integral de volume reduz-se a um integral de linha

fechado

~µ =I

2

~x× d~l = AIn , (6.5.23)

onde n e a ortogonal ao plano com orientacao dada pelo sentido da corrente e A e a area

planar delimitada pelo circuito. Se considerarmos uma carga com movimento circular e

uniforme com velocidade angular v/r = ω, associamos-lhe uma intensidade de corrente

I = densidade de carga× velocidade =qv

2πr; (6.5.24)

como a superfıcie delimitada pelo circuito tem area A = πr2, o momento magnetico e

~µ = IAn =qvr

2n . (6.5.25)

Consideremos agora o momento angular ~L de uma tal carga com um movimento circular

e uniforme anterior que se move num campo magnetico constante que representamos na

gauge (6.5.2); por definicao

~L = ~r × ~p = ~r × (me~v + q ~A) = mervn−q

2~r × (~r × ~B) , (6.5.26)

que usando a identidade

~a× (~b× ~c) = ~b(~a · ~c)− ~c(~a ·~b) , (6.5.27)

e (6.5.25) reescrevemos como

~L =2me

q~µ− q

2

[

(~r · ~B)~r − r2 ~B]

⇔ ~µ =q

2me

~L+q2

4me

[

(~r · ~B)~r − r2 ~B]

. (6.5.28)

Assim, a nossa carga tem duas contribuicoes para o seu momento magnetico. Uma devido a

estar numa orbita circular e consequentemente ter momento angular; uma segunda devido

a estar imersa num campo magnetico. A densidade de energia3 devida a interaccao entre

o momento magnetico e um campo magnetico externo e

dH = −~µ · d ~B ⇒ H = − q

2me

~L · ~B +q2

8me

[

r2B2 − (~r · ~B)2]

, (6.5.29)

3Em sistemas magneticos a segunda lei da termodinamica pode ser escrita dF = −SdT − ~µ · d ~B, ondeF e a energia livre de Helmholtz.

Page 210: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

194 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

que sao exactamente os analogos classicos dos termos H1 e H2 em (6.5.10). Assim o termo

H1 pode ser escrito como

H1 = −~µL · ~B , (6.5.30)

onde

~µL =q

2me

~L . (6.5.31)

Este termo e, portanto, a energia de acoplamento entre o campo magnetico externo e o

momento magnetico do electrao que resulta do seu momento angular, ~µL. E denominado

acoplamento paramagnetico, pois e energeticamente vantajoso o momento magnetico do

electrao encontrar-se paralelo ao campo externo. Por outro lado, o termo H2, e a energia

de acoplamento entre o campo magnetico externo e o momento magnetico do electrao que

e induzido pelo proprio campo externo. A sua contribuicao para a energia e positiva pelo

que este momento magnetico induzido e anti-paralelo ao campo indutor. E denominado

acoplamento diamagnetico. Como veremos na proxima seccao, o acoplamento diamagnetico

e bem menos importante que o paramagnetico e so tem de ser considerado em estados com

momento angular zero. Na natureza, substancias diamagneticas consistem de atomos ou

moleculas com momento angular total zero. A aplicacao de um campo magnetico externo

leva a criacao de correntes atomicas em circulacao que produzem um momento magnetico

antiparalelo ao campo externo; de facto, o termo diamagnetico e o associado ao referencial

de Larmor, como vimos em cima. O Bismuto e a substancia mais diamagnetica conhecida.

Se os atomos ou moleculas constituintes da substancia tiverem um momento angular total

nao nulo, oriundo de electroes desemparelhados, a substancia e paramagnetica. Imerso

num campo magnetico, o momento magnetico do electrao desemparelhado alinhar-se-a

paralelamente ao campo.

Nota: Em geral, uma carga q (massa m) com momento angular ~J , seja ele de origem

orbital ou intrınseco (spin), tem um momento magnetico dado por

~µ = gq

2m~J , (6.5.32)

Page 211: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.5 O atomo de hidrogenio (sem spin) num campo magnetico 195

onde g se denomina a razao giromagnetica. Para uma carga classica com o ~J de origem

orbital, g = 1 - como exemplificado em cima - mas para o electrao com o seu ~J intrınseco,

verifica-se que g ≃ 2. De facto g = 2 e a previsao da equacao de onda relativista (eq.

de Dirac), mas efeitos associados as flutuacoes quanticas do vacuo alteram ligeiramente

este valor, denominado por razao giromagnetica anomala. Este valor pode ser calculado

em electrodinamica quantica (QED) com grande precisao e o acordo com a experiencia

verifica-se com 10 algarismos significativos!

6.5.3 Comparacao dos varios termos no Hamiltoniano

Vamos agora comparar as ordens de magnitude dos tres termos em (6.5.10). Quando ~B = 0

ficamos apenas com H0, cujo espectro de energias e (6.4.23). Como tal associamos com

este termo energias da ordem de

E0 ∼~2

mea20

. (6.5.33)

Pela forma do operador H1 (6.5.12), tomando um campo magnetico na direccao z e recor-

dando que os valores proprios de Lz sao inteiros vezes ~ concluimos que dara origem a

energias da ordem de

E1 ∼qB~

me. (6.5.34)

Por outro lado, assumindo que os elementos de matriz do operador R2⊥ sao da ordem de

grandeza de a20, dado que o raio de Bohr caracteriza as distancias atomicas, temos que

E2 ∼q2B2a2

0

me. (6.5.35)

Concluimos imediatamente as seguintes ordens de grandeza relativas:

E2

E1

∼ E1

E0

∼ Bqa20

~∼ B(Tesla)× 10−5 . (6.5.36)

Sendo os maiores campos magneticos produzidos em laboratorio da ordem dos 100 Tesla,

concluimos que nessas experiencias E2 ≪ E1 ≪ E0.

Page 212: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

196 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

6.5.4 Espectro de Energias aproximado: efeito Zeeman

Vamos agora entao levar a cabo a tarefa a que nos propusemos: ver como o espectro de um

atomo de hidrogenio se altera quando imerso num campo magnetico. A aproximacao que

vamos usar e a de negligenciar o termo H2, que, como vimos na seccao anterior, tem uma

grandeza inferior aos outros dois. Assim, consideramos como Hamiltoniano aproximado

H ≃ H0 + H1 =~P

2

2me+ qφ(

~R)− q

2me

~L · ~B . (6.5.37)

Ao fazermos esta aproximacao, o unico operador novo relativamente ao problema do atomo

de hidrogenio sem campo magnetico (descrito por H0) e~L · ~B; no problema sem campo

magnetico tomamos o C.C.O.C.= H0, L2, Lz. Tomando ~B = Bez, verificamos que o

unico operador no termo novo e Lz, que e diagonalizado pelos mesmos estados que diago-

nalizam H0, que tem a forma (6.4.37). A accao do operador Hamiltoniano nestes estados

e dada por

H|N, ℓ,m〉 =

(

− ~2

2mea20N

2− qB

2mem~

)

|N, ℓ,m〉 , (6.5.38)

pelo que o espectro de energias e agora

E(N,m) = EN − µBBm , (6.5.39)

onde EN e espectro do atomo de hidrogenio livre, dado por (6.4.23). Ha, portanto um

levantamento da degenerescencia do espectro de energias; estados com o mesmo numero

quantico principal, N , mas diferente numero quantico azimutal, m, irao em geral ter difer-

entes energias: efeito Zeeman. Mas note-se que a degenerescencia do espectro de energias

nao e totalmente eliminada; resiste ainda a degenerescencia que origina de estados com

diferente ℓ mas com o mesmo N e m. Deste modo a degenerescencia decresce de N2 para

N − |m| (para valores genericos de B).

Duas notas:

• A aproximacao falha para estados com m = 0; para esses, a primeira correccao ao espec-

tro do atomo de hidrogenio origina no termo negligenciado (termo diamagnetico);

Page 213: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.5 O atomo de hidrogenio (sem spin) num campo magnetico 197

Sem Campo Magnetico Com Campo Magnetico

Espectro sem Campo Espectro com Campo

Figura 6.9: Efeito Zeeman: Desdobramento das linhas espectrais devido a presenca de umcampo magnetico. Note-se que nem todas as transicoes sao possıveis; de facto ha regrasde seleccao.

• Na realidade, tanto o electrao como o protao tem spin, que estamos aqui a negligenciar.

Por essa razao, o espectro anterior nao e o observado numa experiencia fısica real.

Mas a inclusao de spin e uma generalizacao simples do calculo aqui exemplificado e

o efeito fısico da alteracao das energias (e tambem das polarizacoes que veremos a

seguir) permanece valido qualitativamente.

A presenca do campo magnetico altera genericamente, como vimos, a energia dos esta-

dos estacionarios do atomo de hidrogenio. Como tal, a frequencia da radiacao emitida em

transicoes atomicas e tambem alterada. Em geral existe um desdobramento das riscas es-

pectrais, como exemplificado na figura 6.9. Mas para alem desta alteracao das frequencias

possıveis, o efeito Zeeman consiste tambem na alteracao da polarizacao dos fotoes emiti-

dos numa transicao atomica. Para estudarmos este ponto, consideramos o operador dipolo

electrico, definido por

~D ≡ q

~R . (6.5.40)

Consideremos os elementos de matriz deste operador num estado estacionario do atomo

de hidrogenio imerso no campo magnetico. Continuamos a considerar a aproximacao em

Page 214: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

198 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

que negligenciamos o termo diamagnetico. Estes estados sao os mesmos dos atomo de

hidrogenio livre |N, ℓ,m〉, apenas possuindo energias diferentes. Estes estados tem uma

paridade bem definida. Pode-se verificar que Y mℓ tem paridade (−1)ℓ. Logo, os estados

|N, ℓ,m〉 tem paridade (−1)ℓ. Por outro lado, o operador~D e ımpar. Logo

〈N, ℓ,m| ~D|N, ℓ,m〉 = 0 , (6.5.41)

em qualquer estado estacionario. Para termos um dipolo diferente de zero temos de consid-

erar uma sobreposicao de estados estacionarios. Tomemos uma sobreposicao dos estados

1s e 2p, isto e

|Ψ(0)〉 = cosα|1, 0, 0〉+ sinα|2, 1, m〉 , (6.5.42)

onde m = 0,±1 e α ∈ R. A energia destes dois estados e

E1s = E1 , E2p = E2 − µBBm = E1 + ~(Ω +mωL) , (6.5.43)

onde EN e dado por (6.4.23), e introduzimos

Ω ≡ E2 − E1

~, ωL ≡ −

ωc

2, (6.5.44)

respectivamente a frequencia angular associada a um fotao emitido na transicao de N = 2

para N = 1 do atomo de hidrogenio livre e a frequencia angular do referencial de Larmor.

Logo

|Ψ(t)〉 =[

cosα|1, 0, 0〉+ sinαe−i(Ω+mωL)t|2, 1, m〉]

e−iE1t/~ . (6.5.45)

Vamos agora calcular o valor esperado do operador dipolo neste estado

〈 ~D〉(t) = 〈Ψ(t)| ~D|Ψ(t)〉

= sinα cosα(

ei(Ω+mωL)t〈2, 1, m| ~D|1, 0, 0〉+ e−i(Ω+mωL)t〈1, 0, 0| ~D|2, 1, m〉)

.

(6.5.46)

Para calcularmos estes elementos de matriz notamos que

~D = (Dx, Dy, Dz) = q(X, Y , Z) . (6.5.47)

Page 215: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.5 O atomo de hidrogenio (sem spin) num campo magnetico 199

Por outro lado, recordando a forma dos harmonicos esfericos com ℓ = 1, dada por (6.2.45),

(6.2.46) e (6.2.47), podemos escrever estes harmonicos em coordenadas cartesianas como

Y 01 =

3

z

r, Y ±1

1 = ∓√

3

(x

r± iy

r

)

; (6.5.48)

invertendo estas relacoes obtemos

x =

3r(

Y −11 − Y 1

1

)

, y = i

3r(

Y −11 + Y 1

1

)

, z =

3rY 0

1 . (6.5.49)

Deste modo, usando a representacao do produto escalar no espaco de configuracoes temos

〈1, 0, 0|Dx|2, 1, m〉 =

=

∫ 2π

0

∫ π

0

∫ +∞

0

drr2 sin θ(

f(1,0)(r)Y00

)∗q

3r(

Y −11 − Y 1

1

)

f(2,1)(r)Ym1

=qχ√

6

∫ 2π

0

∫ π

0

dθ sin θ(

Y −11 − Y 1

1

)

Y m1 ,

(6.5.50)

onde definimos

χ ≡∫ +∞

0

r3f(1,0)(r)f(2,1)(r)dr , (6.5.51)

e usamos o facto que as funcoes de onda radiais sao reais. Usamos tambem o valor de Y 00 =

1/√

4π. Usamos agora o facto de que os harmonicos esfericos sao uma base ortonormal do

espaco de funcoes de quadrado somavel na esfera. A relacao de ortonormalizacao e

∫ 2π

0

∫ π

0

dθ sin θ(Y mℓ (θ, φ))∗Y m′

ℓ′ (θ, φ) = δℓℓ′δmm′

. (6.5.52)

Logo, dado que (Y ±11 )∗ = −Y ∓1

1

〈1, 0, 0|Dx|2, 1, m〉 =qχ√

6

∫ 2π

0

∫ π

0

dθ sin θ(

−Y 11 + Y −1

1

)∗Y m

1 =qχ√

6(−δ1m + δ−1m) .

(6.5.53)

Calculos analogos revelam que

〈1, 0, 0|Dy|2, 1, m〉 =qχ√

6

∫ 2π

0

∫ π

0

dθ sin θi(

Y 11 + Y −1

1

)

Y m1 = −i qχ√

6(δ1m + δ−1m) ,

(6.5.54)

〈1, 0, 0|Dz|2, 1, m〉 =qχ√

3

∫ 2π

0

∫ π

0

dθ sin θY 01 Y

m1 =

qχ√3δ0m . (6.5.55)

Page 216: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

200 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

Podemos agora concluir que o valor esperado das varias componentes do operador dipolo

electrico e o seguinte:

〈Dx〉(t) =qχ√

6sin(2α)

(

cos[(Ω− ωL)t]δ−1m − cos[(Ω + ωL)t]δ1m)

, (6.5.56)

〈Dy〉(t) = − qχ√6

sin(2α)(

sin[(Ω− ωL)t]δ−1m + sin[(Ω + ωL)t]δ1m)

, (6.5.57)

〈Dz〉(t) =qχ√

3sin(2α) cos(Ωt)δm0 . (6.5.58)

Para qualquer um dos tres valores possıveis de m, o valor esperado do dipolo electrico

e uma funcao oscilatoria do tempo. Logo havera emissao de radiacao electromagnetica.

Podemos pensar nessa radiacao como sendo emitida devido a transicao |2, 1, m〉 → |1, 0, 0〉.Para estudarmos as caracterısticas dessa radicao tomemos os tres valores possıveis de m

separadamente:

• m = +1, temos

〈Dx〉(t) = − qχ√6

sin(2α) cos[(Ω + ωL)t] , 〈Dy〉(t) = − qχ√6

sin(2α) sin[(Ω + ωL)t] ,

〈Dz〉(t) = 0 .

(6.5.59)

A frequencia angular da radiacao emitida, ωrad, e igual a frequencia angular de os-

cilacao do dipolo:

ωrad = Ω + ωL ⇒ νrad =ωrad

2π=

(E2 − µBB)−E1

h=E(2,1) −E(1,0)

h, (6.5.60)

que e exactamente a frequencia esperada na transicao |2, 1, 1〉 → |1, 0, 0〉. A polar-

izacao da radiacao emitida vai depender da direccao. Consideremos a direccao com

versor ~n. De acordo com o electromagnetismo classico, o estado de polarizacao da

radiacao sera dado pelo vector

~kp = (~n× ~D)× ~n = ~D − ~n(~n · ~D)⇔

(kpx, k

py , k

pz) = ((1− n2

x)Dx − nxnyDy, (1− n2y)Dy − nxnyDx,−nz(nxDx + nyDy)) ,

(6.5.61)

que corresponde a projeccao de ~D num plano ortogonal a ~n.

Page 217: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.5 O atomo de hidrogenio (sem spin) num campo magnetico 201

- Radiacao emitida na direccao Oz: nx = ny = 0, logo

~kp = ~D ⇒ (kpx)

2 + (kpy)

2 = constante ; (6.5.62)

A polarizacao e circular no sentido directo que e o movimento efectuado pelo

vector dipolo electrico;

- Radiacao emitida na direccao xOy: nz = 0, logo n2x + n2

y = 1, pelo que

~kp = (ny(nyDx − nxDy), nx(nxDy − nyDx), 0) ⇒ nxkpx = −nyk

py ; (6.5.63)

A polarizacao e linear;

- Numa direccao arbitraria a polarizacao e elıptica.

• m = 0, temos

〈Dx〉(t) = 0 , 〈Dy〉(t) = 0 , 〈Dz〉(t) =qχ√

3sin(2α) cos(Ωt) . (6.5.64)

A frequencia angular e

ωrad = Ω ⇒ νrad =ωrad

2π=E2 −E1

h=E(2,0) −E(1,0)

h, (6.5.65)

que e exactamente a frequencia esperada na transicao |2, 1, 0〉 → |1, 0, 0〉. A polar-

izacao neste caso e linear em todas as direccoes excepto na direccao Oz, em que nao

e emitida radiacao.

• m = −1, temos

〈Dx〉(t) =qχ√

6sin(2α) cos[(Ω− ωL)t] , 〈Dy〉(t) = − qχ√

6sin(2α) sin[(Ω− ωL)t] ,

〈Dz〉(t) = 0 .

(6.5.66)

A frequencia angular da radiacao emitida e igual a frequencia angular de oscilacao

do dipolo:

ωrad = Ω− ωL ⇒ νrad =ωrad

2π=

(E2 + µBB)−E1

h=E(2,−1) −E(1,0)

h, (6.5.67)

Page 218: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

202 Momento Angular Orbital e o Atomo de Hidrogenio

2 1(E − E )/h2 1(E − E )/h ν ν

Figura 6.10: Efeito Zeeman - esquerda: riscas observadas na direccao perpendicular aocampo; a polarizacao da radiacao e linear em todas elas, mas e paralela ao campo ~Bna risca central e perpendicular nas riscas laterais; direita: riscas observadas na direccaodo campo; tem polarizacao circular. O espacamento entre a risca central e as laterais e∆ν = µBB/h (adaptado de Cohen et al., ‘Quantum Mechanics ’).

que e exactamente a frequencia esperada na transicao |2, 1,−1〉 → |1, 0, 0〉. A analise

da polarizacao e semelhante a do caso m = +1, com a diferenca de ser circular inversa

para a emissao na direccao Oz.

As riscas espectrais que acabamos de discutir estao representadas na figura 6.10. Note-se

que o resultado da introducao do campo magnetico, efeito Zeeman, e nao so o aparecimento

de novas riscas, mas tambem de diferentes polarizacoes.

Como nota final mencionamos que o tratamento da radiacao dado nesta seccao foi

classico, ao contrario do dado ao atomo que foi quantico. Note-se que usamos o teorema

de Ehrenfest para associarmos 〈 ~D(t)〉 com quantidade classica ~D(t) e assim deduzirmos

a polarizacao da radiacao. Neste sentido, usamos uma aproximacao semi-classica para o

problema ‘atomo+radiacao’.

6.6 Sumario

Estudamos os operadores que descrevem as varias componentes do momento angular e

tambem o momento angular total. Em mecanica classica, para descrever o momento angu-

lar de um sistema fısico necessitamos de tres numeros, correspondendo as tres componentes

do momento angular. Em mecanica quantica os estados proprios do momento angular tem

apenas dois numeros quanticos, correspondendo ao numero maximo de operadores que

Page 219: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

6.6 Sumario 203

conseguimos diagonalizar simulaneamente: L2 e, por escolha, Lz. Construimos explicita-

mente a representacao no espaco de configuracoes das funcoes proprias comuns a estes dois

operadores denominadas harmonicos esfericos. Consideramos uma partıcula num potencial

central e mostramos que os estados estacionarios vao ter tambem momento angular bem

definido. Especializando para o potencial de Coulomb, deduzimos as funcoes de onda que

diagonalizam simultaneamente a energia, o momento angular total e o momento angular

azimutal. Obtemos como resultado (e de primeiros princıpios) a quantificacao da energia

que havıamos estudado no capıtulo 2 para o atomo de hidrogenio no modelo de Bohr, que

reproduzia a formula de Balmer para o espectro do hidrogenio. Note-se no entanto que o

nosso estudo do atomo de hidrogenio foi incompleto devido a nao inclusao do spin. Esta

quantidade leva a existencia no espectro do hidrogenio duma sub estrutura do espectro

que nos deduzimos, denominada estrutura fina. Mergulhamos o atomo de hidrogenio num

campo magnetico uniforme. Usando uma aproximacao em que negligenciamos o termo dia-

magnetico, verificamos o levantamento de parte da degenerescencia do espectro de energias

correspondendo a inequivalencia energetica de estados com diferente numero quantico az-

imutal e mesmo numero quantico principal. Este facto leva ao aparecimento de novas riscas

no espectro do hidrogenio. Estudando o operador dipolo electrico vimos tambem o tipo de

polarizacao correspondente a essas riscas.

Page 220: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro
Page 221: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

CAPITULO 7

Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

Solucoes analıticas exactas da equacao de Schrodinger existem apenas para alguns casos

especiais; potencias constantes por pedacos (capıtulo 3), osciladores harmonicos, campos

magneticos constantes (capıtulo 5) e o potencial de Coulomb (capıtulo 6) sao alguns destes

casos que foram estudados aqui. Dada esta limitacao, foram construidos varios metodos

de aproximacao que serao estudados nos proximos capıtulos.

Neste capıtulo iremos rematar o nosso estudo de modelos exactamente soluveis, procu-

rando esclarecer duas questoes:

i) Existe alguma estrutura subjacente aos modelos exactamente soluveis?

ii) Existe algo analogo aos operadores de criacao e destruicao do oscilador harmonico para

outros modelos exactamente soluveis?

Vamos comecar por mencionar alguns modelos soluveis, que ilustrarao a dificuldade que,

genericamente, existe em os resolver atraves de um ‘ataque’ directo a equacao de Schrodinger,

isto e, pelo metodo diferencial. Seguidamente introduziremos um metodo algebrico, baseado

em operadores analogos aos operadores de criacao e destruicao do oscilador harmonico.

Estes operadores resultam do conceito de superpotencial e potenciais parceiros. Finalmente

discutiremos como os potenciais exactamente soluveis tem, genericamente, a propriedade

Page 222: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

206 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

de invariancia de forma, e como esta propriedade pode ser usada para determinar o es-

pectro de energias e as funcoes proprias de um modelo exactamente soluvel, o que nos

permitira construir, resolver e compreender modelos exactamente soluveis.

7.1 Alguns pocos de potencial exactamente soluveis

No capıtulo 3 estudamos potenciais constantes por pedacos. Estes sao, obviamente, ca-

sos em que existe uma solucao exacta da equacao de Schrodinger. Nao sendo potenciais

realistas sao casos paradigmaticos que nos ensinam muita da fısica desta equacao. Dois

problemas fundamentais em Mecanica Quantica, que sao ilustrados pelos exemplos do

capıtulo 3, sao:

• Calculo do espectro de estados ligados: Sempre que temos um estado com energia E

num potencial cujo valor assimptotico, para ambos os lados, e maior do que E, este

estado e denominado estado ligado. Significa que esta “preso” num tipo de poco

de potencial. Sempre que existem estados ligados existe discretizacao de energias.

A interpretacao fısica e que nem todos os comprimentos de onda podem existir no

poco de potencial como estados estacionarios, devido a interferencia com as ondas

reflectidas nas paredes do potencial. O calculo do espectro de energias de estados

ligados e um importante problema em Mecanica Quantica.

• Calculo da difusao de uma partıcula num potencial : A funcao de onda que descreve

a partıcula quantica sofre difusao, ou espalhamento, que depende das variacoes no

espaco e no tempo do potencial onde se propaga. Em problemas a uma dimensao,

esta difusao e quantificada pelos factores de reflexao e transmissao. Em mais do que

uma dimensao iremos definir (capıtulo 9) uma seccao eficaz diferencial de difusao.

Em qualquer dos casos a difusao da funcao de onda permite calcular a distribuicao

de probabilidade espacial de encontar a partıcula. Esta difusao permite ainda efeitos

fısicos inexistentes em Mecanica classica, como o efeito tunel. Um estado com energia

E tem uma funcao de onda nao nula mesmo em zonas onde o potencial e maior que

a energia (so sera zero se o potencial for infinitamente maior do que a energia). Isso

Page 223: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

7.1 Alguns pocos de potencial exactamente soluveis 207

permite que a funcao de onda de um estado com energia E seja diferente de zero

em ambos os lados de uma barreira de potencial mais elevado do que o valor de E.

Esta e a origem do efeito tunel. O calculo do factor de transmissao atraves de uma

barreira de potencial e tambem um importante problema em Mecanica Quantica.

Neste capıtulo debrucar-nos-emos exclusivamente sobre o calculo dos estados ligados. Note-

se que a difusao, e em particular o factor de transmissao por efeito tunel, sera tambem

exactamente calculavel num modelo soluvel em que o efeito exista (como no potencial de

Poschl-Teller invertido).

7.1.1 Estados Ligados em Pocos infinitos

Comecemos por estudar o espectro de estados ligados em alguns potenciais com profundi-

dade infinita.

Poco de potencial rectangular de profundidade infinita

Como visto na seccao 3.2.7, para um poco de profundidade infinita

V (x) = 0 para x ∈ [0, L] , V (x) = +∞ para x > L e x < 0 , (7.1.1)

o espectro de energias e

En =n2π2~2

2mL2, n = 1, 2, 3, . . . (7.1.2)

e a parte espacial da funcao de onda normalizada e

Φn(x) =

2

Lsin(nπx

L

)

para x ∈ [0, L] , (7.1.3)

e zero fora deste intervalo. O espectro de energias e as funcoes de onda dos tres estados

estacionarios de energia mais baixa estao representados nas figuras 7.1 e 7.2.

Oscilador Harmonico

Como visto no capıtulo 5, para o potencial harmonico

V (x) =mω2

2x2 , (7.1.4)

Page 224: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

208 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

E

xx

V(x)

EV(x)

Figura 7.1: Nıveis de energia no oscilador harmonico e no poco de potencial rectangularde profundidade infinita.

4

0.6

0.2

-0.6

2-4

x

0.4

-2

-0.4

00

-0.2

1

0

0.5

2

x

1.50.5 10

-1

-0.5

Figura 7.2: Funcoes de onda dos tres estados estacionarios de energia mais baixa do os-cilador harmonico e do poco de potencial rectangular de profundidade infinita. Note-seque o numero de nodos aumenta com a energia.

o espectro de energias e

En = ~ω

(

n +1

2

)

, n = 0, 1, 2, . . . (7.1.5)

e a parte espacial da funcao de onda normalizada e

Φn(x) =(mω

π~

)1/4 1√2n · n!

Hn

(√

~x

)

e−mωx2/2~ , (7.1.6)

onde Hn sao polinomios de Hermite. O espectro de energias e as funcoes de onda dos tres

estados estacionarios de energia mais baixa estao representados nas figuras 7.1 e 7.2.

Page 225: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

7.1 Alguns pocos de potencial exactamente soluveis 209

x

543210

5

4

3

2

1

0

Figura 7.3: O potencial V (x) = (1/x − x)2. O espacamento entre os nıveis de energia econstante.

Poco da forma V0(a/x− x/a)2

O potencial

V (x) = V0

(a

x− x

a

)2

, x > 0 , V0 > 0 , (7.1.7)

admite solucao analıtica exacta (ver Folha 1, Problema 1). Este potencial e representado

na figura 7.3. O espectro de energias tem a forma

En = ~

8V0

ma2

n +1

2+

1

4

(√

8mV0a2

~2+ 1−

8mV0a2

~2

)

, n = 0, 1, 2, . . . (7.1.8)

e a parte espacial das funcoes de onda tem a forma

Φn(x) = cnxν exp

(

−√

mV0

2~2a2x2

)

F

(

−n, ν +1

2,

2mV0

~2a2x2

)

, (7.1.9)

onde F (a, b, z) sao funcoes confluentes hipergeometricas,

ν ≡ 1

2

(√

8mV0a2

~2+ 1 + 1

)

, (7.1.10)

e cn sao constantes de normalizacao. Notamos que a funcao confluente hipergeometrica

tem expansao

F (a, b;χ) =

+∞∑

p=0

(a)p

(b)p

χp

p!, (7.1.11)

Page 226: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

210 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

onde os sımbolos de Pochhammer sao definidos da seguinte forma:

(a)p = a(a + 1)(a+ 2) . . . (a+ p− 1) , (a)0 = 1 . (7.1.12)

Devido ao primeiro argumento da funcao confluente hipergeometrica ser um inteiro nega-

tivo, a funcao reduz-se a um polinomio finito, de grau n. Explicitamente, nas tres primeiras

funcoes de onda usamos

F (0, b;χ) = 1 , F (−1, b;χ) = 1− χ

b, F (−2, b;χ) = 1− 2χ

b+

χ2

b(b+ 1). (7.1.13)

As tres primeiras funcoes de onda dos estados estacionarios estao representadas na figura

7.4.

Note-se que, devido ao comportamento para x grande ser o mesmo do oscilador harmonico,

o espectro e o de um oscilador harmonico. Neste limite o potencial fica aproximadamente

V (x) ≃ V0

a2x2 , x > 0 V (x) ≃ 0 , x < 0 , (7.1.14)

ou seja metade de um potencial harmonico com frequencia ω =√

2V0/ma2. Para um

potencial harmonico truncado desta maneira, so subsistem metade dos nıveis de energia

(funcoes de onda ımpares), pelo que a frequencia e efectivamente o dobro da frequencia do

potencial harmonico completo. Logo, para o potencial (7.1.14) esperamos uma frequencia

ω = 2

2V0

ma2, (7.1.15)

que e de facto a que observamos em (7.1.8). Esta e tambem a frequencia para pequenas

oscilacoes a volta do mınimo. Note-se que a energia de ponto zero e sempre maior do que a

do oscilador harmonico com essa frequencia. Este potencial e, de facto, um caso particular

do potencial harmonico efectivo tres dimensional (Ver problema 4, Folha de problemas 1).

Poco da forma V0 cot2(πx/L)

V (x) = V0 cot2(π

Lx)

, 0 < x < L , V0 > 0 , (7.1.16)

tambem admite solucao analıtica exacta (ver Folha 1, Problema 2). O espectro de energias

tem a forma

En =(

n2 + 4nλ− 2λ) π2~2

2mL2, n = 1, 2, 3, . . . , (7.1.17)

Page 227: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

7.1 Alguns pocos de potencial exactamente soluveis 211

2

0.4

01 4

x

30

0.2

-0.2

Figura 7.4: Funcoes de onda dos tres estados estacionarios de energia mais baixa do po-tencial V (x) = (1/x− x)2. O numero de nodos aumenta com a energia.

onde

λ =1

4

(√

8mV0L2

π2~2+ 1− 1

)

. (7.1.18)

As funcoes de onda tem a forma diferente dependendo da paridade de n. Para valores

ımpares de n, obtemos a funcao de onda

Φn(x) = cn

(

sinπx

L

)−2λ

F

(

−n2− 2λ,

n

2,1

2; cos2 πx

L

)

, (7.1.19)

enquanto que para valores pares de n obtemos a funcao de onda

Φn(x) = cn

(

sinπx

L

)−2λ

cosπx

LF

(

−n2− 2λ+

1

2,n

2+

1

2,3

2; cos2 πx

L

)

, (7.1.20)

onde F (a, b, c; z) sao funcoes hipergeometricas. Na seccao 7.2.1 analisaremos algumas

destas funcoes de onda, que estao representadas na figura 7.15.

E interessante analisar dois casos limites deste potencial. O primeiro e o limite em que

V0 → 0. Como se pode ver na figura 7.5, nesse limite o potencial aproxima-se do poco de

potencial infinito rectangular. Nesse limite, λ→ 0 e o espectro (7.1.17) reduz-se a

En ≃n2π2~2

2mL2, (7.1.21)

Page 228: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

212 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

5

4

3

2

1

0

x

32.521.510.50

x

32.521.510.50

5

4

3

2

1

0

Figura 7.5: Os potenciais V (x) = cot2 x e V (x) = cot2 x/100.

exactamente o espectro do poco rectangular infinito (7.1.2). Um outro limite interessante

e oposto e tomar λ≫ 1; nesse caso

λ ≃√

mV0L2

2π2~2, (7.1.22)

e, para os primeiros nıveis de energia podemos escrever o espectro como

En ≃ ~ω

(

n +1

2

)

, n = 0, 1, 2, . . . , ω ≡√

2V0π2

mL2. (7.1.23)

Obtemos portanto um espectro de oscilador harmonico, o que se pode entender facilmente,

se expandirmos o potencial a volta de x = L/2:

V (x) = V0 cot2 πx

L= V0

sin2[

πL

(

x− L2

)]

cos2[

πL

(

x− L2

)] =V0π

2

L2

(

x− L

2

)2

+O[

(

x− L

2

)3]

;

o primeiro termo tem a forma V (x) = mω2(x − L/2)2/2, com ω dado pela expressao

anterior.

Poco Triangular

Consideremos um potencial linear

V (x) = V0x , V0 > 0 . (7.1.24)

Page 229: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

7.1 Alguns pocos de potencial exactamente soluveis 213

0.8

0.4

0

-0.4

-0.8

x

1050-5-10

Figura 7.6: A funcao de Airy convergente.

A equacao de Schrodinger independente do tempo para um estado com energia E fica

− ~2

2m

d2

dx2+ V0x

Φ(x) = EΦ(x) , (7.1.25)

ou ainda

d2

dx2− 2mV0

~2

(

x− E

V0

)

Φ(x) = 0 . (7.1.26)

As solucoes da equacao(

d2

dz2− z)

f(z) = 0 , (7.1.27)

chamam-se funcoes de Airy, e as duas solucoes linearmente independentes sao denotadas

por Ai(z) e Bi(z), sendo que a segunda e divergente. Assim, a solucao geral da equacao

de Airy (7.1.27) e dada por

f(z) = αAi(z) + βBi(z) . (7.1.28)

A funcao de Airy convergente juntamente com um potencial linear de declive 1 estao

representadas na figura 7.6. Note-se que a forma e exactamente a esperada. A funcao de

onda oscila quando a energia e maior do que o potencial e torna-se uma onda evanescente

Page 230: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

214 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

quando a energia e menor do que o potencial. Assim, tomamos a solucao de (7.1.26) como

sendo

Φ(x) = cAi

(

3

2mV0

~2

(

x− E

V0

)

)

, (7.1.29)

onde c e uma constante de normalizacao.

Um potencial linear origina uma forca constante, como por exemplo a de uma partıcula

carregada num campo electrico constante. Mas um potencial linear em todo o espaco

nao faz sentido fisicamente, pois a energia nao esta limitada inferiormente. Podemos, no

entanto, considerar um poco de potencial triangular da seguinte forma

V (x) =

V0x x > 0

+∞ x < 0 .(7.1.30)

Se o fizermos, esperamos quantificacao de energia. Matematicamente, esta quantificacao

aparece como consequencia da condicao

Φ(0) = 0 . (7.1.31)

Logo, em x = 0, o argumento da funcao de Airy tem de ser um dos seus zeros, xn, isto e

En = −(

V 20 ~2

2m

)1/3

xn . (7.1.32)

Estes zeros nao tem uma expressao matematica simples, mas e muito simples compreender

a forma da funcao de onda para os varios estados estacionarios; representamos os primeiros

na figura 7.7. Numericamente,

x1 ≃ −2.34 , x2 ≃ −4.09 , x3 ≃ −5.52 , (7.1.33)

o que revela que |E3−E2| < |E2−E1|. Este e um padrao que se repete: os nıveis de energia

estao cada vez mais proximos a medida que a energia aumenta, ou, posto na linguagem da

proxima seccao, a densidade de estados aumenta com a energia.

Nesta altura vale a pena observar que em todos os exemplos de pocos de potencial

estudados ate agora, o numero de nodos aumente sempre de uma unidade com o nıvel

de energia. Esta e uma caracterıstica generica de problemas em uma dimensao. Note-se

tambem que o estado fundamental nunca tem qualquer nodo.

Page 231: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

7.1 Alguns pocos de potencial exactamente soluveis 215

-0.8

x

1086420

0.8

0.4

0

-0.4

x

1086420

0.8

0.4

0

-0.4

-0.8

x

1086420

0.8

0.4

0

-0.4

-0.8

Figura 7.7: As funcao de onda dos tres primeiros estados estacionarios no poco triangular.

7.1.2 Densidade de estados

Comparemos agora a densidade de estados, ρ(E), definida por

ρ(E) =dN(E)

dE, (7.1.34)

para alguns destes pocos infinitos. No caso do oscilador harmonico, temos

N(E) =E

~ω− 1

2⇒ ρ(E) =

1

~ω. (7.1.35)

Obviamente para o caso do oscilador harmonico, a densidade de estados e constante, dado

o espacamento energetico entre os nıveis ser sempre igual.

No caso do poco rectangular infinito,

N(E) =L

π~

√2mE ⇒ ρ(E) =

L

π~

m

2E. (7.1.36)

A densidade de estados tende para zero a medida que a energia aumenta, devido ao

espacamento energetico aumentar com o nıvel.

No caso do poco de potencial do tipo cot2 x, escolhemos a raiz positiva da equacao

quadratica

N(E)2+4N(E)λ−2λ−2mEa2

π2~2= 0 ⇒ N(E) =

4λ2 + 2λ+2mEa2

π2~2−2λ , (7.1.37)

pelo que obtemos uma densidade de estados

ρ(E) =ma2

π2~2

1√

4λ2 + 2λ+ 2mEa2

π2~2

. (7.1.38)

Page 232: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

216 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

1

0.8

0.6

0.4

0.2

0

E

1086420

Figura 7.8: Densidade de estados para o oscilador harmonico (constante), poco rectangularinfinito (curva divergente em zero) e poco do tipo cot2 x.

Estas varias densidades de estados estao representadas na figura 7.8. Note-se, que de acordo

com a analise efectuada anteriormente, o potencial cot2 x tem uma densidade aproximada-

mente constante para energias baixas e converge para a densidade do poco rectangular

infinito para energias elevadas. Estas curvas da densidade de estados ajudam-nos a ter

uma intuicao sobre outros casos onde nao possamos resolver analiticamente o problema.

Por exemplo, no potencial x4, deveremos ter uma densidade de estados cujo declive estara

algures entre entre o do poco rectangular infinito e o do potencial harmonico. Notemos

ainda que o potencial triangular da seccao anterior tem uma densidade de estados que

aumenta com a energia.

7.1.3 Estados Ligados em Pocos finitos

Vamos agora estudar o espectro de estados ligados de dois potenciais com profundidade

finita, um dos quais ja nosso conhecido. Recordemos ainda que na seccao 3.2.6 estudamos

um outro caso de um potencial rectangular finito, cujos nıveis de energia se determinaram

por um metodo geometrico.

Page 233: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

7.1 Alguns pocos de potencial exactamente soluveis 217

0.3

0.2

0.1

0

-0.1

-0.2

-0.3

x

20151050

0

-0.2

-0.4

-0.6

-0.8

-1

x

20151050

Figura 7.9: Potencial de Coulomb efectivo para b 6= 0 and b = 0 respectivamente.

Poco de potencial efectivo de Coulomb

No capıtulo 6 resolvemos a equacao de Schrodinger tres dimensional no potencial de

Coulomb. Devido a simetria esferica, reduzimos o problema a uma dimensao, com um

potencial efectivo do tipo

V (x) =a

x+

b

x2, se x > 0 ; V (x) = +∞ , se x < 0 . (7.1.39)

As constantes a e b tem valores negativo e positivo (ou zero) respectivamente. O potencial

esta representado na figura 7.9. No caso do problema de Coulomb, estas constantes tem o

valor

a = − e2

4πǫ0, b = ℓ(ℓ+ 1)

~2

2µ. (7.1.40)

Usando um metodo analogo ao do capıtulo 6, mostra-se que os nıveis de energia sao

dados por

En = −µa2

2~2

1(

n+√

14

+ 2µb~2 + 1

2

)2 , n = 0, 1, 2, 3, . . . . (7.1.41)

Tomando os valores (7.1.40) obtemos o espectro de energias do atomo de Hidrogenio, que

esta representado na figura 6.5. As funcoes de onda serao dadas pela parte radial das

funcoes de onda estudadas no capıtulo 6 para o atomo de Hidrogenio. Note-se que para

ℓ = 0 (b = 0) este e um poco infinito. Na seccao 7.2.4 voltaremos a analisar este problema

usando o metodo algebrico.

Page 234: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

218 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

x

420-2-40

-0.2

-0.4

-0.6

-0.8

-1

Figura 7.10: O potencial de Pochl-Teller para V0 = 1 = a.

Poco de potencial de Poschl-Teller

O poco de potencial

V (x) = − V0

cosh2 xa

, V0 , a > 0 , (7.1.42)

denominado potencial de Poschl-Teller, admite solucao analıtica exacta (ver Folha 1, Prob-

lema 3). Este potencial e representado na figura 7.10. O espectro de energias tem a forma

En = − ~2

2ma2

[

1

2

8mV0a2

~2+ 1−

(

n +1

2

)

]2

, n = 0, 1, 2, . . . , N , (7.1.43)

onde N e o maior inteiro que satisfaz a desigualdade

N +1

2<

1

2

8mV0a2

~2+ 1 . (7.1.44)

As funcoes de onda tem a forma diferente dependendo da paridade de n. Para valores

ımpares de n, obtemos a funcao de onda

Φn = cn sinhx

a

(

coshx

a

)−2λ

F

(

−n2

+1

2,−2λ+

n

2+

1

2,3

2;− sinh2 x

a

)

, (7.1.45)

enquanto que para valores pares de n obtemos a funcao de onda

Φn = cn

(

coshx

a

)−2λ

F

(

−n2,−2λ+

n

2,1

2;− sinh2 x

a

)

, (7.1.46)

Page 235: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

7.1 Alguns pocos de potencial exactamente soluveis 219

1

0

0.5

-0.5

-1

x

21-1-3 30-2

Figura 7.11: Funcoes de onda dos tres estados estacionarios de energia mais baixa dopotencial de Poschl-Teller (nao normalisadas). Usamos λ = 2, a = 1. O numero de nodosaumenta com a energia.

onde F (a, b, c; z) sao funcoes hipergeometricas e λ e dado pela expressao

λ ≡ 1

4

(√

1 +8mV0a2

~2− 1

)

. (7.1.47)

Notamos que a funcao hipergeometrica tem expansao

F (a, b, c;χ) =

+∞∑

p=0

(a)p(b)p

(c)p

χp

p!. (7.1.48)

Devido ao primeiro argumento da funcao hipergeometrica ser um inteiro negativo (quer no

caso par, quer ımpar), a funcao reduz-se a um polinomio finito, de grau n. Explicitamente,

para as tres primeiras funcoes de onda usamos

F (0, b, c;χ) = 1 , F (−1, b, c;χ) = 1− b

cχ . (7.1.49)

As funcoes de onda dos tres primeiros estados estacionarios encontram-se representadas na

figura 7.11.

Notemos que este poco de profundidade finita admite um numero finito de estados lig-

ados, enquanto que o poco de potencial efectivo de Coulomb, sendo ainda de profundidade

finita, admite um numero infinito de estados ligados.

Page 236: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

220 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

7.2 Metodo algebrico para potenciais com forma in-

variante

Quando, no capıtulo 5, estudamos o oscilador harmonico, deduzimos o seu espectro e

funcoes proprias usando dois metodos diferentes: um metodo algebrico baseado na in-

troducao de operadores de criacao e destruicao (seccoes 5.1.1 e 5.1.2); um metodo difer-

encial de resolucao directa da equacao de Schrodinger, com um “ansatz” apropriado que

introduz uma serie de potencias que devera ser finita por normalizabilidade da funcao de

onda. O primeiro metodo e, sem duvida, bem mais elegante e pratico.

Os potenciais estudados na seccao 7.1 sao, tradicionalmente, resolvidos usando o se-

gundo metodo. Existe, no entanto, um metodo algebrico aplicavel a estes e outros potenci-

ais, que nos permitira, de um modo mais pratico, extrair o espectro e as funcoes proprias do

problema (e tambem os factores de transmissao e reflexao, quando aplicavel, mas que nao

sera aqui tratado). O metodo que vamos descrever tem a sua origem em tecnicas de “super-

simetria” - uma simetria (ainda nao observada) que relaciona bosoes com fermioes - mas

que e essencialmente equivalente a um metodo de factorizacao introduzido por Schrodinger

em 1940 (Proc. Roy. Irish Acad. A46 (1940) 9).

7.2.1 O superpotencial e potenciais parceiros

Consideramos o operador Hamiltoniano na representacao |x〉:

ˆH1 = − ~2

2m

d2

dx2+ V1(x) . (7.2.1)

Assumimos que o potencial e limitado inferiormente e tem um espectro de estados ligados,

acima do qual podera, ou nao, existir um contınuo de estados. E uma propriedade universal

que o estado fundamental Φ0 nao tem nodos. Este estado tem energia E0 e obedece a

− ~2

2m

d2Φ0

dx2+ V1(x)Φ0 = E0Φ0 ,

que, invertendo, resulta em

V1(x) =~

2

2m

1

Φ0

d2Φ0

dx2+ E0 . (7.2.2)

Page 237: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

7.2 Metodo algebrico para potenciais com forma invariante 221

Conhecendo, pois, o estado fundamental de um problema, podemos facilmente reconstruir

o potencial, a menos de uma constante (a energia de ponto zero). No que se segue iremos

considerar o potencial que e obtido do original atraves da subtraccao da energia de ponto

zero, o que garante que o estado fundamental do novo potencial tem energia zero:

V1 − E0 = V1 ,ˆH1 − E01 = H1 . (7.2.3)

Podemos agora factorizar o operador Hamiltoniano da seguinte maneira

H1 = A†A , (7.2.4)

onde os operadores A e A† sao adjuntos e tomam a forma, na representacao |x〉:

A =~√2m

d

dx+W (x) , A† = − ~√

2m

d

dx+W (x) . (7.2.5)

A funcao W (x) e denominada superpotencial. Da equivalencia entre (7.2.1) e (7.2.4),

(

− ~√2m

d

dx+W (x)

)(

~√2m

d

dx+W (x)

)

= − ~2

2m

d2

dx2+ V1(x) ,

resulta que

V1(x) = W (x)2 − ~√2m

dW

dx. (7.2.6)

Esta equacao e denominada equacao de Riccati. Dado um potencial V1(x) = V1(x) + E0,

usamo-la para determinar o superpotencial, descobrindo simultaneamente a energia de

ponto zero do potencial V1(x).

O estado definido por AΦ = 0, obedece a H1Φ = A†AΦ = 0; isto e tem a energia

do estado fundamental. Como o espectro e nao degenerado (caracterıstica generica de

problemas um dimensionais), este deve ser o estado fundamental:

AΦ0 = 0 ⇔ W (x) = − ~√2m

1

Φ0

dΦ0

dx. (7.2.7)

Substituindo em (7.2.6) obtemos

V1(x) =~

2

2m

1

Φ0

d2Φ0

dx2, (7.2.8)

Page 238: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

222 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

em concordancia com (7.2.2) apos a transformacao (7.2.3). Por outro lado, de (7.2.7),

temos que dado o superpotencial podemos determinar Φ0(x) por

Φ0(x) = exp

(

−√

2m

~

W (x)dx

)

. (7.2.9)

Exemplo: Consideremos o oscilador harmonico tratado no capıtulo 5. Usando a repre-

sentacao |x〉, escrevemos os operadores de criacao e destruicao (5.1.4) da seguinte maneira

a† =1√ω~

(

− ~√2m

d

dx+

mω2

2x

)

, a =1√ω~

(

~√2m

d

dx+

mω2

2x

)

. (7.2.10)

O Hamiltoniano escreve-se, em termos destes operadores

ˆH1 = ~ω

(

a†a+1

2

)

⇔ ˆH1 −~ω

21 = (

√~ωa†)(

√~ωa) ,

de onde concluimos que os operadores A e A† sao dados por

A† =√

~ωa† , A =√

~ωa , (7.2.11)

e o superpotencial e linear

W (x) =

mω2

2x . (7.2.12)

Usando (7.2.9), obtemos ainda que a funcao de onda do estado fundamental e uma Gaus-

siana do tipo Φ0 = Ce−mωx2/(2~), em concordancia com (5.1.36), e obtemos de (7.2.8)

V1(x) =mω2

2x2 − ~ω

2, (7.2.13)

que e, de facto, o potencial harmonico com a energia de ponto zero removida.

Para introduzir a nocao de potencial parceiro, definimos um novo Hamiltoniano, H2,

H2 = AA† , (7.2.14)

obtido invertendo a ordem de A e A†. Usando (7.2.5)

H2 =

(

~√2m

d

dx+W (x)

)(

− ~√2m

d

dx+W (x)

)

= − ~2

2m

d2

dx2+W (x)2 +

~√2m

dW (x)

dx,

Page 239: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

7.2 Metodo algebrico para potenciais com forma invariante 223

de onde definimos o potencial parceiro, V2(x) por

V2(x) = W (x)2 +~√2m

dW (x)

dx. (7.2.15)

A designacao de potenciais parceiros para V1(x) e V2(x) surge porque os seus espectros

e funcoes proprias (e matrizes de difusao quando aplicavel) estao relacionados. De facto,

se Φ(1)n , n ≥ 0, for o conjunto de funcoes proprias de H1, com correspondente espectro

E(1)n ≥ 0, ∀n,

H1Φ(1)n = E(1)

n Φ(1)n ,

entao, as funcoes AΦ(1)n , com n > 0, sao funcoes proprias de H2 com valor proprio E

(1)n :

H2

(

AΦ(1)n

)

= AA†AΦ(1)n = AH1Φ

(1)n = AE(1)

n Φ(1)n = E(1)

n

(

AΦ(1)n

)

.

Note-se que o estado fundamental de H1 nao origina, por este procedimento, nenhuma

funcao propria nao trivial de H2.

De um modo semelhante, se Φ(2)n , n ≥ 0, for o conjunto de funcoes proprias de H2,

com correspondente espectro E(2)n > 0, ∀n,

H2Φ(2)n = E(2)

n Φ(2)n ,

entao, as funcoes A†Φ(2)n , com n ≥ 0, sao funcoes proprias de H1 com valor proprio E

(2)n :

H1

(

A†Φ(2)n

)

= A†AA†Φ(2)n = A†H2Φ

(2)n = A†E(2)

n Φ(2)n = E(2)

n

(

A†Φ(2)n

)

.

Note-se que H2Φ(2)0 6= 0, pelo que o estado fundamental de H2 origina, por este procedi-

mento, uma funcao propria nao trivial de H1.

Concluimos pois que os espectros dos potenciais parceiros estao relacionados por

E(2)n = E

(1)n+1 , n ≥ 0, E

(1)0 = 0 ; (7.2.16)

as funcoes proprias estao relacionadas por

Φ(2)n =

1√

E(1)n+1

AΦ(1)n+1 , ou Φ

(1)n+1 =

1√

E(2)n

A†Φ(2)n , (7.2.17)

Page 240: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

224 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

A

A†

0 = E(1)0

E(1)1

E(1)2

E(1)3

E(2)0

E(2)1

E(2)2

Figura 7.12: Espectros de potenciais parceiros e accao dos operadores A e A†. Note-se queo operador A/A† destroi/cria um nodo na funcao de onda. Nesse sentido os operadoressao ainda operadores de destruicao/criacao.

que estao normalizadas, assumindo normalizacao de Φ(1)n ou Φ

(2)n respectivamente. Na

figura 7.12 ilustramos a relacao entre os espectros de potenciais parceiros.

Exemplo 1: No caso do oscilador harmonico, os operadores A e A† sao proporcionais

aos operadores de criacao e destruicao. Logo, e de prever que o potencial parceiro do os-

cilador harmonico seja ainda um potencial harmonico. Facilmente se verifica que, tomando

o superpotencial (7.2.12) se obtem, de (7.2.15)

V2(x) =mω2

2x2 +

2,

que e de facto um potencial harmonico com energia de ponto zero E(2)0 = ~ω - figura 7.13.

Esta energia de ponto zero corresponde, de facto, a energia do primeiro estado excitado do

potencial parceiro (7.2.13). Vemos pois que o potencial harmonico tem forma invariante;

isto e nao modifica a sua forma relativamente ao potencial parceiro. Potenciais de forma

invariante irao desempenhar um importante papel no que se segue.

Exemplo 2: Consideramos o poco de potencial rectangular de profundidade infinita

(revisto em 7.1.1), que subtraido da sua energia de ponto zero, tomamos como o potencial

V1(x). O espectro de energias fica entao:

E(1)n =

(n+ 1)2π2~2

2mL2− π2~2

2mL2=n(n+ 2)π2~2

2mL2, n ≥ 0 ; (7.2.18)

Page 241: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

7.2 Metodo algebrico para potenciais com forma invariante 225

V(x)

E

V(x)

E

x x

1 2

Figura 7.13: Potencial harmonico com energia de ponto zero nula (esquerda) e o seupotencial parceiro (direita), que e um potencial harmonico igual mas subido de ~ω.

as funcoes proprias sao

Φ(1)n =

2

Lsin

(

(n+ 1)πx

L

)

, x ∈ [0, L] , (7.2.19)

e zero no complementar. Usando (7.2.7) obtemos o superpotencial

W (x) = − ~π√2mL

cotπx

L, (7.2.20)

e como tal, o potencial parceiro, usando (7.2.15),

V2(x) =~

2π2

2mL2

(

2 cot2 πx

L+ 1)

. (7.2.21)

Concluimos pois, de (7.2.16), que o espectro deste potencial e

E(2)n =

(n + 1)(n+ 3)π2~

2

2mL2, n ≥ 0 . (7.2.22)

As funcoes proprias do potencial parceiro, por sua vez, sao obtidas das de H1 pela accao

do operador

A =~√2m

(

d

dx− π

Lcot

πx

L

)

.

Usando (7.2.17) obtemos as funcoes de onda do potencial parceiro:

Φ(2)n =

2

(n+ 1)(n+ 3)L

(

(n + 2) cos(n+ 2)πx

L− cot

πx

Lsin

(n+ 2)πx

L

)

. (7.2.23)

As tres primeiras funcoes de onda encontram-se representadas na figura 7.15.

Page 242: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

226 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

x

V(x)E

V(x)1 2

Figura 7.14: Poco de potencial rectangular com energia de ponto zero nula (esquerda) e oseu potencial parceiro (direita), que e um potencial do tipo π2~2/mL2(2 cot2(πx/L) + 1).

Vale a pena notar, neste segundo exemplo, que o potencial parceiro do poco de potencial

rectangular de profundidade infinita, que e bastante trivial de resolver, e um potencial

altamente nao trivial de resolver - figura 7.14. Notemos ainda que

V2(x)−~2π2

2mL2=π2~2

mL2cot2 πx

L, (7.2.24)

que e o potencial (7.1.16), com V0 = π2~2/mL2. Para este valor especial de V0, a variavel

λ (7.1.18) toma o valor de 1/2 e o espectro de energias (7.1.17)

En = (n(n+ 2)− 1)π2~2

2mL2, n = 1, 2, 3, . . . , (7.2.25)

o que coincide exactamente com E(2)n − π2~2/2mL2, em acordo com o calculo anterior.

7.2.2 Hierarquia de Hamiltonianos

Vamos assumir que conhecemos um potencial que e exactamente soluvel, V1(x) e conhece-

mos o seu espectro e funcoes de onda. Se assim e, podemos, aparentemente, construir um

numero infinito de potenciais exactamente soluveis. O metodo e o seguinte.

Conhecendo o estado fundamental de um Hamiltoniano H1, Φ(1)0 , que tem energia E

(1)0

igual a zero, podemos encontrar o superpotencial W1(x), usando (7.2.7). Os operadores

A1 e A†1, podem entao ser construidos usando (7.2.5), e podem ser usados para factorizar o

Hamiltoniano, escrevendo-o na forma H1 = A†1A1. O estado fundamental do Hamiltoniano

parceiro H2 = A1A†1, Φ

(2)0 , que tem energia E

(2)0 maior do que zero, e obtido a partir do

Page 243: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

7.2 Metodo algebrico para potenciais com forma invariante 227

1.5

0.5

-1.5

1

0

x

10.80.60.4

-1

-0.5

0.20

Figura 7.15: Funcoes de onda dos tres estados estacionarios de energia mais baixa dopotencial do tipo cot2(πx/L). O numero de nodos aumenta com a energia.

primeiro estado excitado de H1, pela aplicacao do operador A1. O Hamiltoniano H2−E(2)0 1

tem estado fundamental Φ(2)0 com energia igual a zero. Podemos por isso recomecar o

processo e calcular um novo superpotencialW2(x), novos operadores A2 e A†2 que factorizam

o Hamiltoniano H2 = A†2A2 e um novo Hamiltoniano parceiro H3 = A2A

†2, com um novo

estado fundamental, Φ(3)0 , que tem energia maior do que zero. O Hamiltoniano H3 −

E(3)0 1 tem estado fundamental Φ

(3)0 com energia igual a zero. Podemos recomecar agora

novamente o processo. Construimos assim toda uma hierarquia de Hamiltonianos, criados

por refactorizacoes repetidas.

A razao pela qual, genericamente, nao construimos por este metodo um conjunto infinito

de potenciais exactamente soluveis e que, genericamente, os potenciais parceiros vao ter a

mesma forma do potencial original, apenas com parametros diferentes. Isto e, potenciais

exactamente soluveis sao, genericamente, potenciais de forma invariante que tratamos de

seguida. Usando a condicao de invariancia de forma apropriada podemos resolver um

potencial de primeiros princıpios, e nao apenas resolver um potencial dado o conhecimento

do seu potencial parceiro.

Page 244: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

228 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

7.2.3 Potenciais de forma invariante

Se um potencial tem a mesma forma do seu potencial parceiro, isto e, se o potencial V1(x; ai)

e o seu parceiro V2(x; aj), onde ai,j sao os parametros que definem o potencial, obedecerem

a

V2(x; ai) = V1(x; f(ai)) +R(ai) , (7.2.26)

entao dizemos que o potencial tem forma invariante. f(ai) e R(ai) sao duas funcoes dos

parametros ai. Esta condicao e uma condicao de integrabilidade. Usando-a podemos, de

um modo sistematico, obter as funcoes proprias e os valores proprios de qualquer potencial

de forma invariante. Vejamos como.

Consideramos um Hamiltoniano, H1 construido com um potencial, V1(x; a), que obedece

a condicao de invariancia de forma. Se

H1 = − ~2

2m

d2

dx2+ V1(x, a) ,

pela condicao de invariancia de forma, o Hamiltoniano parceiro sera

H2 = − ~2

2m

d2

dx2+ V1(x, f(a)) +R(a) .

O Hamiltoniano H1 tem energia de ponto zero igual a zero, por construcao, para qualquer

conjunto de parametros a. O Hamiltoniano H2 e igual ao Hamiltoniano H1, com um

conjunto de parametros f(a) - que ainda tera energia do estado fundamental igual a zero

- somado de R(a). Logo a energia do estado fundamental de H2, que e igual a energia do

primeiro estado excitado de H1 e

E(1)1 = E

(2)0 = R(a) . (7.2.27)

Subtraindo a energia de ponto zero ao Hamiltoniano H2, H′2 = H2 − R(a)1, tera como

Hamiltoniano parceiro

H3 = − ~2

2m

d2

dx2+ V1(x, f

2(a)) +R(f(a)) ,

de onde concluimos que a energia do segundo estado excitado de H1 sera

E(1)2 = R(a) +R(f(a)) .

Page 245: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

7.2 Metodo algebrico para potenciais com forma invariante 229

Logo, para potenciais de forma invariante, podemos construir uma hierarquia de Hamilto-

nianos, Hs, s = 1, 2, 3, . . ., em que Hn tem o mesmo espectro que H1, a menos dos primeiros

n−1 nıveis de H1, que estao ausentes em Hn, sendo as suas energias subtraıdas no espectro

de Hn. Usando repetidamente a condicao de invariancia de forma, temos que

Hs = − ~2

2m

d2

dx2+ V1(x, f

s−1(a)) +R(f s−2(a)) .

Logo, a energia do nıvel n do Hamiltoniano H1 e

E(1)n =

n−1∑

k=0

R(fk(a)) , n ≥ 1 , , E(1)0 = 0 .

Consideremos agora o calculo das funcoes de onda dos estados estacionarios. Dado

o potencial original V1(x; a), podemos encontrar o superpotencial W (x; a), via (7.2.6),

a funcao de onda do estado fundamental Φ0(x; a), via (7.2.7) e os operadores A(x; a) e

A†(x; a) usando (7.2.5). Como o potencial e de forma invariante, o potencial parceiro e, a

menos de uma constante (E(1)1 ), V1(x; f(a)). A funcao de onda do estado fundamental do

potencial parceiro sera, por isso, Φ0(x; f(a)). Logo, a funcao de onda do primeiro estado

excitado de V1(x; a) sera, usando (7.2.17),

Φ1(x; a) =1

E(1)1

A†(x; a)Φ0(x; f(a)) .

Analogamente,

Φn(x; a) =1

E(1)n

A†(x; a)Φn−1(x; f(a)) . (7.2.28)

Deste modo construimos, com um metodo algebrico em tudo analogo ao usado no oscilador

harmonico, todas as funcoes de onda do problema original.

7.2.4 Potenciais de forma invariante relacionados por translacao

Ha, essencialmente, duas classes de potenciais de forma invariante que tem sido estudados:

i) Potenciais que estao relacionados com o parceiro por uma translacao

f(a) = a+ α ; (7.2.29)

Page 246: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

230 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

ii) Potenciais que estao relacionados com o parceiro por uma transformacao de escala

f(a) = qa . (7.2.30)

Existem ainda outras classes discutidas na literatura. Contudo e um facto notavel que todos

os modelos exactamente soluveis que se encontram genericamente nos livros de Mecanica

Quantica nao relativista pertencem a primeira classe descrita em cima. Consideremos dois

exemplos.

Oscilador Harmonico generalizado

Consideramos um potencial harmonico centrado no ponto x = a. Vamos assumir que nada

sabemos da teoria quantica deste potencial; em particular desconhecemos a energia de

ponto zero, E0. O potencial harmonico com energia de ponto zero nula sera

V1(x) =1

2mω2(x− a)2 − E0 . (7.2.31)

O superpotencial esta relacionado com V1(x) por

V1(x) = W (x)2 − ~√2m

dW

dx; (7.2.32)

Tomamos como ansatz para o superpotencial

W (x) = α(x+ β) ; (7.2.33)

inserindo este ansatz juntamente com a forma de V1(x) na equacao anterior obtemos

α = ±√

m

2ω , β = −a ⇒ E0 = ±~ω

2. (7.2.34)

Isto e encontrando o superpotencial que origina a parte nao constante do potencial, encon-

tramos tambem a energia de ponto zero! De facto temos duas hipoteses para a energia de

ponto zero; mas uma delas, associada ao sinal inferior, nao e fısica pois diminui a energia

dos estados excitados em vez de a aumentar. Assim tomamos o sinal superior e

W (x) =

m

2ω(x− a) . (7.2.35)

Page 247: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

7.2 Metodo algebrico para potenciais com forma invariante 231

O potencial parceiro e

V2(x) = W (x)2 +~√2m

dW

dx=

1

2mω2(x− a)2 +

2. (7.2.36)

Logo

V2(x) = V1(x) + ~ω, (7.2.37)

que demonstra que o potencial e de forma invariante. Daqui deduzimos, por (7.2.27) que

E(1)1 = E

(2)0 = ~ω. Subtraindo a energia de ponto zero do potencial V2(x) recuperamos

exactamente o potencial original V1(x) e podemos recomecar o processo. No calculo do

novo potencial parceiro iremos ganhar novamente uma energia de ~ω, pelo que

E(1)2 = ~ω + ~ω = 2~ω . (7.2.38)

Repetindo o procedimento verificamos facilmente que

E(1)n = n~ω ⇒ En = ~ω

(

n+1

2

)

, (7.2.39)

onde repusemos a energia de ponto zero, de acordo com (7.2.3).

Consideramos agora o calculo das funcoes proprias. O operador A† e,

A† = − ~√2m

d

dx+

m

2ω(x− a) =

√ω~a† , (7.2.40)

onde a† e o operador de criacao habitual (em termos da variavel x− a). Logo, por (7.2.28)

temos, para as funcoes de onda normalizadas,

Φn(x) =1√n~ω

√~ωa†Φn−1(x) , (7.2.41)

exactamente de acordo com (5.1.30). Esta e uma relacao iterativa; o conhecimento de todas

as funcoes de onda decorre do conhecimento da funcao de onda do estado fundamental.

Este pode ser determinado usando (7.2.7), que, dado o superpotencial, determina a funcao

de onda atraves de:

ln Φ0 = −√

2m

~

W (x)dx+ constante , (7.2.42)

que neste caso e facilmente integravel para dar

Φ0(x) = C0e−mω

2~(x−a)2 , (7.2.43)

como esperado.

Page 248: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

232 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

Potencial efectivo de Coulomb

Num campo de forcas central, escolhendo o ansatz,

Φ(r, θ, φ) =R(r)

rY m

ℓ (θ, φ) , (7.2.44)

a equacao de Schrodinger independente do tempo fica reduzida a uma equacao de Schrodinger

um dimensional(

− ~2

d2

dr2+ Vefe(r)

)

R(r) = ER(r) , (7.2.45)

com potencial efectivo

Vefe =ℓ(ℓ+ 1)~2

2µr2+ V (r) , (7.2.46)

onde µ e a massa da partıcula e V (r) o potencial central a que a partıcula esta sujeita.

Tomando para V (r) o potencial de Coulomb

V (r) = − e2

4πǫ0r= − ~2

µa0r, (7.2.47)

temos

V1(r; ℓ) =ℓ(ℓ+ 1)~2

2µr2− ~2

µa0r− E0(ℓ) , (7.2.48)

onde o ultimo termo corresponde a subtrair a menor energia possıvel para uma orbital com

numero quantico angular ℓ e usamos o raio de Bohr a0, dado por (6.4.22). Para encontrar

o superpotencial, i.e. resolver

V1(r, ℓ) = W (r, ℓ)2 − ~√2µ

dW

dr, (7.2.49)

parece natural tomar o ansatz

W (r; ℓ) =α(ℓ)

r+ β(ℓ) . (7.2.50)

Inserindo esta forma na equacao anterior, juntamente com V1(r; ℓ) obtemos

α(ℓ) =

− ~√2µ

(ℓ+ 1) ,

~√2µℓ ,

β(ℓ) =

~√2µa0(ℓ+ 1)

,

− ~√2µa0ℓ

,

E0 =

− ~2

2µa20(ℓ+ 1)2

,

− ~2

2µa20ℓ

2.

(7.2.51)

Page 249: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

7.2 Metodo algebrico para potenciais com forma invariante 233

A solucao inferior diminui a energia dos estados excitados (para alem de divergir para

ℓ = 0) e por isso tomamos a solucao superior. Nesse caso, a energia de ponto zero coincide,

de facto com a menor energia possıvel para uma orbital com numero quantico angular ℓ

do atomo de hidrogenio (6.4.23). Assim, de um modo extremamente simples derivamos a

energia de um numero infinito de orbitais do atomo de hidrogenio! Tomamos, por isso

V1(r; ℓ) =ℓ(ℓ+ 1)~2

2µr2− ~2

µa0r+

~2

2µa20(ℓ+ 1)2

; (7.2.52)

o superpotencial e

W (r; ℓ) =~√2µ

(

1

a0(ℓ+ 1)− ℓ+ 1

r

)

, (7.2.53)

e o potencial parceiro

V2(r; ℓ) =(ℓ+ 2)(ℓ+ 1)~2

2µr2− ~2

µa0r+

~2

2µa20(ℓ+ 1)2

. (7.2.54)

Logo

V2(r; ℓ) = V1(r; ℓ+ 1) +~

2

2µa20

(

1

(ℓ+ 1)2− 1

(ℓ+ 2)2

)

, (7.2.55)

o que confirma que o potencial em questao e de forma invariante. Como tal

E(1)1 = E

(2)0 =

~2

2µa20

(

1

(ℓ+ 1)2− 1

(ℓ+ 2)2

)

. (7.2.56)

Tomando o potencial V2(r; ℓ) com energia de ponto zero nula recuperamos o potencial

original V1(r; ℓ), com parametro ℓ = ℓ+ 1 e podemos recomecar o processo. No calculo do

novo potencial parceiro iremos ganhar novamente uma energia de

~2

2µa20

(

1

(ℓ+ 1)2− 1

(ℓ+ 2)2

)

, (7.2.57)

pelo que

E(1)2 =

~2

2µa20

(

1

(ℓ+ 1)2− 1

(ℓ+ 2)2+

1

(ℓ+ 1)2− 1

(ℓ+ 2)2

)

=~2

2µa20

(

1

(ℓ+ 1)2− 1

(ℓ+ 3)2

) , (7.2.58)

Repetindo o procedimento verificamos facilmente que

E(1)n =

~2

2µa20

(

1

(ℓ+ 1)2− 1

(ℓ+ 1 + n)2

)

⇒ En = − ~2

2µa20(ℓ+ 1 + n)2

, (7.2.59)

Page 250: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

234 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

onde repusemos a energia de ponto zero, de acordo com (7.2.3).

Consideremos agora o calculo das funcoes proprias. O operador de criacao e

A†(ℓ) =~√2µ

(

− d

dr+

1

a0(ℓ+ 1)− ℓ+ 1

r

)

. (7.2.60)

Usando (7.2.28), temos neste caso

Rn(r; ℓ) =a0

1(ℓ+1)2

− 1(n+ℓ+1)2

(

− d

dr+

1

a0(ℓ+ 1)− ℓ+ 1

r

)

Rn−1(r; ℓ+ 1) . (7.2.61)

Para usarmos esta relacao de recorrencia, comecemos por determinar a funcao de onda do

estado fundamental. Usando (7.2.42) temos neste caso

lnR0(r; ℓ) = −√

~

W (r; ℓ)dr + constante , (7.2.62)

de onde resulta

R0(r; ℓ) = C(ℓ)rℓ+1e− r

(ℓ+1)a0 . (7.2.63)

Comparando com as funcoes de onda dadas na seccao 6.4 verificamos que a dependencia

radial e de facto a correcta para os nıveis com N = ℓ+ 1, que, para cada ℓ, correspondem

ao ‘estado fundamental’. Tomando os casos especıficos com ℓ = 0, 1, temos

R0(r; 0) = C(0)re− r

a0 ; R0(r; 1) = C(1)r2e− r

2a0 . (7.2.64)

O primeiro estado excitado com ℓ = 0 e obtido por accao do operador de criacao no estado

fundamental com ℓ = 1:

R1(r; 0) =2a0√

3

(

− d

dr+

1

a0− 1

r

)

R0(r; 1) = −√

3a0rC(1)

(

2− r

a0

)

e− r

2a0 . (7.2.65)

Notando que a parte espacial da funcao de onda com numeros quanticos (N, ℓ,m) (na

notacao do capıtulo 6) e

Φ(N,ℓ,m) =RN−ℓ−1(r; ℓ)

rY m

ℓ (θ, φ) , (7.2.66)

obtemos

Φ(1,0,0) =C(0)√

4πe−r/a0 , Φ(2,0,0) = −

3

4πa0C(1)

(

2− r

a0

)

e−r/2a0 ,

Page 251: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

7.3 Sumario 235

Φ(2,1,0) =

3

4πrC(1) cos θe−r/2a0 ,

que com as normalizacoes adequadas concordam (a menos de uma fase que e irrelevante)

com as funcoes de onda calculadas no capıtulo 6.

7.3 Sumario

Neste capıtulo discutimos alguns potenciais nos quais a equacao de Schrodinger tem solucao

exacta. Comecamos por exemplificar alguns casos de pocos de potencial de profundidade

finita e infinita, que sao normalmente resolvidos por um metodo diferencial (ver folha de

exercıcios 1). Seguidamente introduzimos um metodo algebrico baseado no conceito de

superpotencial, que permite factorizar o Hamiltoniano e introduzir operadores de criacao

e destruicao. Este metodo permite calcular o espectro de energias e as funcoes proprias

de potenciais de forma invariante, sendo muito analogo ao dos operadores de criacao e

destruicao usados no oscilador harmonico. O metodo foi exemplificado construindo o es-

pectro de energias e funcoes de onda do problema de Coulomb. Genericamente o metodo

pode ser sumarizado na seguinte receita:

i) Dado um potencial, que denominamos V1(x; ai), escrevemos o potencial

V1(x; ai) = V1(x; ai)− E0 ,

que e igual ao anterior, mas com energia de ponto zero nula. Note-se que E0 e

desconhecida neste momento.

ii) Usando a equacao de Riccati

V1(x; ai) = W (x; ai)2 − ~√

2m

dW (x; ai)

dx,

determinamos o superpotencial W (x; ai) e a energia de ponto zero. Este e o ponto

onde alguma intuicao e necessaria para escolher um bom ansatz para o superpotencial.

iii) Determinamos o potencial parceiro

V2(x; ai) = W (x; ai)2 +

~√2m

dW (x; ai)

dx.

Page 252: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

236 Outras solucoes exactas da equacao de Schrodinger

iv) Se o potencial for de forma invariante, isto e, se existirem funcoes f(ai) e R(ai) tal que

V2(x; ai) = V1(x; f(ai)) +R(ai) ,

entao podemos determinar o espectro e funcoes de onda de V1(x; ai) (e logo de

V1(x; ai)) analiticamente.

v) O espectro de V1(x; ai) e dado por

En = E0 +n−1∑

s=0

R(f s(ai)) , n ≥ 0

onde f 0(ai) = ai, f1(ai) = f(ai), etc.

vi) As funcoes de onda de V1(x; ai) (que sao as mesmas das funcoes de onda de V1(x; ai))

sao dadas por:

• Estado fundamental

Φ0(x; ai) = exp

(

−√

2m

~

W (x; ai)dx

)

,

onde tem que se escolher a constante de integracao de modo a normalizar a

funcao de onda;

• nesimo estado excitado (n ≥ 1)

Φn(x; ai) =1

∑n−1s=0 R(f s(ai))

A†(x; ai)Φn−1(x; f(ai)) ,

onde

A†(x; ai) = − ~√2m

d

dx+W (x; ai) .

Page 253: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

Parte II

Metodos de aproximacao e Spin

Page 254: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

CAPITULO 8

A aproximacao WKB

A introducao da equacao de Schrodinger completa a nova mecanica ondulatoria e torna

alguns dos postulados introduzidos arbitrariamente na “velha teoria quantica” naturais.

Por exemplo, a quantificacao introduzida por Planck (capıtulo 2) torna-se um problema

de modos normais e frequencias proprias num potencial de oscilador harmonico (capıtulo

5). Contudo nao nos devemos esquecer que as ondas descritas pela equacao de Schrodinger

diferem de ondas classicas, como as electromagneticas, de duas maneiras: sao ondas de

probabilidade (interpretacao de Born); sao ondas complexas.

Como vimos no capıtulo anterior, existem casos em que se pode resolver exactamente a

equacao de Schrodinger correspondentes a potenciais de forma invariante. Mas, em geral,

tal nao e possıvel e como tal necessitamos de metodos aproximados. Alguns destes, como

metodos perturbativos ou variacionais, sao muito gerais e ganham forca quando discutidos

num contexto mais abrangente do que apenas problemas em uma dimensao. Mas existe

um metodo de grande interesse para problemas em uma dimensao: a aproximacao WKB

cujo metodo e moralmente analogo ao usado no capıtulo 3 para potenciais constantes por

pedacos e origina um resultado para a funcao de onda formalmente semelhante as ondas

planas vistas nesse caso. E este metodo que agora consideramos.

Esta aproximacao foi aplicada a equacao de Schrodinger quase simultaneamente por

Page 255: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

8.1 O metodo 239

G.Wentzel [Zeits.f.Phys. 38 (1926) 518], H.A.Kramers [Zeits.f.Phys. 39 (1926) 828] e

L.Brillouin [Comptes Rendus 183 (1926) 24], sendo por isso conhecida como aproximacao

ou metodo WKB. Alternativamente, a aproximacao e por vezes denominada BWK, WBK

ou por razoes que se discutirao em baixo, aproximacao semi-classica ou aproximacao da

fase integral.

8.1 O metodo

Consideremos o calculo de estados estacionarios da equacao de Schrodinger atraves da

resolucao da equacao de Schrodinger independente do tempo em uma dimensao

[

− ~2

2m

d2

dx2+ V (x)

]

Φ(x) = EΦ(x) , (8.1.1)

ou equivalentemente

d2Φ(x)

dx2+

2m

~2(E − V (x))Φ(x) = 0 ⇔ Φ(x)′′ + [k(x)]2Φ(x) = 0 , (8.1.2)

onde as ‘linhas’ denotam derivadas em ordem a x e definimos

k(x) ≡√

2m(E − V (x))

~. (8.1.3)

A equacao (8.1.2) tem a forma da equacao de Helmholtz, muito familiar na teoria ondu-

latoria. Sabemos que quando k e constante a solucao e da forma e±ikx (capıtulo 3); isto

sugere que se V nao for constante mas variar lentamente com x, possamos tomar o ansatz

Φ(x) = eiu(x) , (8.1.4)

onde a funcao u(x) nao devera ser simplesmente proporcional a x. Introduzindo este ansatz

em (8.1.2) obtemos a equacao

id2u

dx2−(

du

dx

)2

+ [k(x)]2 = 0 . (8.1.5)

Esta equacao e totalmente equivalente a (8.1.1). So que e nao linear em u(x), pelo que

poderemos pensar que estamos pior do que comecamos! A aproximacao WKB toma partido

Page 256: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

240 A aproximacao WKB

desta nao linearidade para construir uma aproximacao a (8.1.5), atraves de um metodo

iterativo; este metodo e sugerido pelo facto de que a segunda derivada e zero para uma

partıcula livre (i.e potencial constante):

• Primeira aproximacao (aproximacao classica - ver seccao 8.4): Se o potencial variar

suficientemente lentamente, negligenciamos o termo da segunda derivada. Desig-

nando esta aproximacao a u(x) por u0(x) (8.1.5) fica

(

du0

dx

)2

= [k(x)]2 ⇔ u0(x) = ±∫

k(x)dx+ C0 . (8.1.6)

Esta quantidade, designada por fase integral, e a quantidade fundamental na aprox-

imacao.

• Aproximacoes seguintes: Escrevemos a equacao de Schrodinger na forma (8.1.5) mas

reflectindo ja o metodo iterativo

(

dun+1

dx

)2

= [k(x)]2 + id2un

dx2; (8.1.7)

isto e, tomamos do lado direito a aproximacao de ordem n, un, e obtemos do lado

esquerdo a aproximacao de ordem n + 1, un+1, que portanto se pode escrever na

forma

un+1(x) = ±∫

[k(x)]2 + id2un

dx2dx+ Cn+1 . (8.1.8)

• Segunda aproximacao (aproximacao WKB): Em particular

u1(x) = ±∫

[k(x)]2 + id2u0

dx2dx+ C1 = ±

[k(x)]2 ± idkdxdx+ C1 . (8.1.9)

Esta segunda aproximacao e designada por aproximacao semi-classica ou WKB.

Para fazer sentido que este procedimento iterativo seja truncado aqui, e necessario que

u1(x) esteja proximo de u0(x), isto e, que u1(x) seja uma pequena correccao a u0(x) na

aproximacao a verdadeira funcao u(x). Em particular isto significa que

|dk/dx| ≪ |k2(x)| . (8.1.10)

Page 257: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

8.2 Interpretacao da validade da aproximacao 241

Se assim for,

u1(x) ≃ ±∫(

k(x)± i

2k

dk

dx

)

dx+ C1 = ±∫

k(x)dx+i

2log k(x) + C1 , (8.1.11)

e como tal, na aproximacao WKB a funcao de onda toma a forma

Φ(x) =Aei

R

k(x)dx + A′e−iR

k(x)dx

k(x), k(x) ≡

2m(E − V (x))

~, se E > V (x) ,

Φ(x) =Be

R

k(x)dx +B′e−R

k(x)dx

k(x), k(x) ≡

2m(V (x)− E)

~, se E < V (x) .

(8.1.12)

A constante C1 pode ser negligenciada pois a funcao de onda tera de ser, de qualquer

modo, normalizada. Comparando com a seccao 3.2.1 concluimos a semelhanca formal

anteriormente anunciada com a funcao de onda em potenciais constantes por pedacos.

8.2 Interpretacao da validade da aproximacao

Da analise anterior resulta que a condicao de validade da aproximacao WKB significa

que a fase varia muito mais rapidamente do que a amplitude da funcao de onda. Mas

para interpretar de um modo mais fısico a condicao (8.1.10) de validade da aproximacao

definimos, para E > V (x), um comprimento de onda efectivo

λ(x) =2π

k(x). (8.2.1)

Notando ainda que podemos atribuir um momento a partıcula pela relacao p(x) = ~k(x),

a condicao (8.1.10) pode ser escrita

|dp/dx|~

≪ |p|~

λ⇒ λ(x)|dp(x)/dx| ≪ |p(x)| . (8.2.2)

Ou seja, a condicao da validade da aproximacao WKB e que a alteracao do momento

da partıcula ao longo de um comprimento de onda deve ser muito menor que o proprio

momento. Esta condicao e violada:

Page 258: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

242 A aproximacao WKB

V(x)

E

x=a

Figura 8.1: Um potencial V (x) perto de um ponto de viragem classico x = a.

• Se o potencial variar muito rapidamente, ou equivalentemente, se k(x) variar muito

rapidamente. Se este for o caso a aproximacao WKB nao sera aplicavel;

• Nos pontos de viragem classicos onde E = V (x) ou equivalentemente k(x) = 0.

Logo, para podermos usar o metodo WKB temos de compreender como extender as solucoes

(8.1.12) atraves dos pontos de viragem classicos. Estes pontos existem tanto no estudo de

estados ligados como no calculo do factor de transmissao por efeito tunel. Precisamos pois

de estabelecer formulas de ligacao que permitirao relacionar os coeficientes Ai e Bi nas

funcoes de onda (8.1.12). Essas formulas de ligacao desempenharao o mesmo papel que

as condicoes de continuidade da funcao de onda e da sua derivada desempenharam nos

potenciais contınuos por pedacos do capıtulo 3.

8.3 Formulas de ligacao

Suponhamos que x = a e um ponto de viragem classico - figura 8.1. Assumimos que

a aproximacao WKB e aplicavel, excepto na vizinhanca imediata dos pontos de viragem

classicos; por outras palavras o potencial nao varia demasiado rapidamente. Fazemos a

seguinte mudanca de variaveis

v(x) =√

k(x)Φ(x) , y =

∫ x

k(x′)dx′ . (8.3.1)

Page 259: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

8.3 Formulas de ligacao 243

LogodΦ(x)

dx=

1√

k(x)

(

dv(x)

dx− v(x)

2k(x)

dk(x)

dx

)

, (8.3.2)

d2Φ(x)

dx2=

1√

k(x)

(

d2v(x)

dx2− 1

k(x)

dk(x)

dx

dv(x)

dx− v(x)

2k(x)

d2k(x)

dx2+

3

4

v(x)

[k(x)]2

(

dk(x)

dx

)2)

;

(8.3.3)

notamos ainda que

d2v

dx2= k

(

dk

dy

dv

dy+ k

d2v

dy2

)

,d2k

dx2= k

(

(

dk

dy

)2

+ kd2k

dy2

)

, (8.3.4)

de modo que a equacao de Schrodinger (8.1.2) fica

d2v

dy2+

[

1

4k2

(

dk

dy

)2

− 1

2k

d2k

dy2+ 1

]

v = 0 . (8.3.5)

Tambem esta equacao e completamente equivalente a equacao de Schrodinger (8.1.1). Da

discussao da seccao anterior resulta que a aproximacao WKB e tomar o termo dentro do

parentises [. . .] igual a unidade. Nesse caso

v(y) = e±iy , (8.3.6)

o que, com as definicoes (8.3.1) se reduz a funcao de onda anteriormente calculada com a

aproximacao WKB (8.1.12).

Em geral y = y(x) e uma variavel real se E > V (x) e imaginaria se E < V (x).

Considerando um potencial como o da figura 8.1 temos que:

• y e real a esquerda do ponto de viragem classico; logo na aproximacao WKB, a equacao

(8.3.5) tem solucao

v(y) = Aeiy + A′e−iy ; (8.3.7)

• y e imaginario a direito do ponto de viragem classico; logo na aproximacao WKB, a

equacao (8.3.5) tem solucao

v(y) = Be|y| +B′e−|y| . (8.3.8)

Page 260: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

244 A aproximacao WKB

O nosso objectivo e relacionar as constantes A,A′ com B,B′ de modo a v(y) ser a funcao

de onda de um mesmo estado em regioes distintas. Note-se que nestas variaveis, as solucoes

sao exactamente as mesmas que em potenciais constantes.

Dado que a aproximacao WKB falha perto do ponto de viragem classico, para constru-

irmos esta relacao temos de considerar a equacao de Schrodinger completa (8.3.5) perto

deste ponto. Fazemo-lo aproximando o potencial perto de x = a por uma funcao linear

V (x)−E ≃ α(x− a) , α > 0 . (8.3.9)

Com esta aproximacao

k(x) =

2m(E − V (x))

~⇒

k(x) =

2mα(a− x)~

x < a

k(x) = ±i√

2mα(x− a)~

x > a

. (8.3.10)

A variavel y por seu lado fica

y(x) =

∫ x

a

2mα(a− x′)~

dx′ = −2

3

√2mα

~(a− x)3/2 x < a ,

y(x) =

∫ x

a

±i√

2mα(x′ − a)~

dx′ = ±2i

3

√2mα

~(x− a)3/2 x > a .

(8.3.11)

Escolhemos a solucao negativa, de modo a que e+iy = e+|y|.

A variavel y = y(x) tornou-se uma medida da distancia entre x e o ponto de viragem

classico. Reexpressemos k(x) como k(y) usando a expressao para x < a:

k =

√2mα

~

√a− x =

(

−3mα

~2y

)1/3

. (8.3.12)

Logo1

4k2

(

dk

dy

)2

− 1

2k

d2k

dy2=

5

36y2. (8.3.13)

O mesmo resultado e obtido considerando a expressao para x > a. Logo, a equacao de

Schrodinger (8.3.5) ficad2v

dy2+

(

1 +5

36y2

)

v = 0 . (8.3.14)

Para |y| elevado, o termo 5/36y2 pode ser negligenciado e obtemos a aproximacao WKB.

Para |y| pequeno - perto do ponto de viragem classico - a equacao torna-se exacta. O que

Page 261: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

8.3 Formulas de ligacao 245

E

V(x)

x=b

Figura 8.2: Um potencial V (x) perto de um ponto de viragem classico x = b.

estamos a assumir e que para valores intermedios esta equacao e uma boa aproximacao de

modo a conseguirmos ligar a aproximacao WKB de ambos os lados.1

Um estudo detalhado da equacao (8.3.14) permite-nos entao relacionar a solucao WKB

a esquerda com a solucao WKB a direita do ponto de viragem classico da figura 8.1 da

seguinte forma

cos(

−y − π4

)

√k

←→ 1

2

e−|y|

k,

sin(

−y − π4

)

√k

←→ −e|y|

k.

(8.3.15)

Estas sao as chamadas formulas de ligacao. Em termos da coordenada original x e es-

pecificando os dois casos possıveis para pontos de viragem temos as seguintes formulas de

ligacao:

• Caso da figura 8.1

2√k

cos

(∫ a

x

k(x′)dx′ − π

4

)

←→ 1√

ke−

R xa k(x′)dx′

F ormula i

1√k

sin

(∫ a

x

k(x′)dx′ − π

4

)

←→ − 1√

ke

R xa k(x′)dx′

F ormula ii

(8.3.16)

1Este procedimento e problematico se o valor de E estiver proximo de um extremo do potencial; aquiiremos negligenciar essa subtileza.

Page 262: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

246 A aproximacao WKB

I

V0

A A’

II III

B’1 B1 B’2 B2

xE

V(x)

x=b x=a

Figura 8.3: Um estado com energia E num poco de potencial V (x); x = b e x = a sao ospontos de viragem classicos.A regiao I e desde x = −∞ ate ligeiramente antes de x = b; aregiao II e desde ligeiramente depois de x = b ate ligeiramente antes de x = a; a regiao IIIe desde ligeiramente depois de x = a ate x = +∞.

• Caso da figura 8.2

1√

ke−

R bx k(x′)dx′ ←→ 2√

kcos

(∫ x

b

k(x′)dx′ − π

4

)

F ormula iii

− 1√

ke

R bx

k(x′)dx′ ←→ 1√k

sin

(∫ x

b

k(x′)dx′ − π

4

)

F ormula iv

(8.3.17)

Estas formulas de ligacao desempenham, na aproximacao WKB, o mesmo papel das con-

sidcoes de continuidade desempenharam no nosso estudo de potenciais constantes por

pedacos no capıtulo 3.

8.4 Aplicacao ao calculo de estados ligados

Vamos agora usar a aproximacao WKB para calcular o espectro de estados ligados num

poco de potencial do tipo da figura 8.3. Consideramos um estado com energia E, com

−V0 < E < 0. Na aproximacao WKB, as solucoes da equacao de Schrodinger independente

Page 263: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

8.4 Aplicacao ao calculo de estados ligados 247

do tempo nas varias regioes esquematizadas na figura 8.3 sao:

Regiao I Φ(x) =B1e

−R bx k(x′)dx′

+B′1e

R bx k(x′)dx′

k(x)com k(x) ≡

2m(V (x)− E)

~

Regiao II Φ(x) =Aei

R xb k(x′)dx′

+ A′e−iR xb k(x′)dx′

k(x)com k(x) ≡

2m(E − V (x))

~

Regiao III Φ(x) =B2e

R xa k(x′)dx′

+B′2e

−R x

a k(x′)dx′

k(x)

.

(8.4.1)

Para a funcao de onda ser normalizavel, as funcoes que crescem exponencialmente quando

x→ ±∞ tem que ser rigorosamente zero, isto e B′1 = 0 = B2. Logo, na regiao I a funcao

de onda nao normalizada sera

Φ(x) ≃ B1√

k(x)e−

R bx k(x′)dx′

, x < b . (8.4.2)

Pela formula de ligacao iii, esta funcao de onda tem a forma, na regiao II

Φ(x) ≃ 2B1√

k(x)cos

(∫ x

b

k(x′)dx′ − π

4

)

, b < x < a . (8.4.3)

Reescrevemos esta funcao de onda como

Φ(x) ≃ 2B1√k

cos

(∫ a

b

k(x)dx−∫ a

x

k(x′)dx′ − π

4

)

=2B1√k

sin

(∫ a

b

k(x)dx−∫ a

x

k(x′)dx′ +π

4

)

= −2B1√k

cos

(∫ a

b

k(x)dx

)

sin

(∫ a

x

k(x′)dx′ − π

4

)

+2B1√k

sin

(∫ a

b

k(x)dx

)

cos

(∫ a

x

k(x′)dx′ − π

4

)

. (8.4.4)

Pelas formulas de ligacao i e ii, obtemos finalmente que a funcao de onda na regiao III tem

a forma

Φ(x) = 2B1 cos

(∫ a

b

k(x)dx

)

eR x

ak(x′)dx′

k(x)+B1 sin

(∫ a

b

k(x)dx

)

e−R x

ak(x′)dx′

k(x). (8.4.5)

Page 264: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

248 A aproximacao WKB

Comparando com (8.4.1), verificamos que

B2 = 2B1 cos

(∫ a

b

k(x)dx

)

, (8.4.6)

pelo que a condicao de normalizabilidade B2 = 0 requer que

∫ a

b

k(x)dx =

(

n+1

2

)

π , n ∈ N0 . (8.4.7)

Note-se que n ∈ N0 e nao Z, pois o lado esquerdo desta equacao e positivo. Esta equacao

determina o espectro de energias dos estados ligados.

Exemplo: Consideramos o potencial do oscilador harmonico V (x) = mω2x2/2 e um

estado com energia E. Os pontos de viragem classicos, a e b, obedecem a V (a) = E = V (b),

e tomam neste caso a forma ±√

2E/mω2. Logo, a condicao (8.4.7) fica

q

2Emω2

−q

2Emω2

m(2E −mω2x2)

~dx =

(

n+1

2

)

π , (8.4.8)

de onde se conclui que

E = ~ω

(

n +1

2

)

, (8.4.9)

que e o valor exacto incluindo a energia de ponto zero!

Exercıcio: Calcule a funcao de onda do oscilador harmonico para os nıveis n = 0 e

n = 1 na aproximacao WKB.

Se introduzissemos o momento classico pela relacao p(x) = ±~k(x), o movimento limi-

tado no poco de potencial corresponde a uma trajectoria fechada no espaco de fase - figura

8.4. A condicao (8.4.7) pode ser reescrita como

p(x)dx =

(

n+1

2

)

h . (8.4.10)

Esta condicao e muito semelhante a uma outras impostas na velha teoria quantica, que

corespondiam a um passo intermedio entre a teoria classica e a teoria quantica completa.

Page 265: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

8.4 Aplicacao ao calculo de estados ligados 249

p

xb a

Figura 8.4: Movimento no espaco de fase de uma partıcula classica confinada entre x = be x = a no potencial da figura 8.3.

Por exemplo a quantificacao sugerida por Bohr, discutida no capıtulo 2 podia ser escrita

como∮

p(x)dx = nh . (8.4.11)

Por esta razao a aproximacao WKB e frequentemente designada por aproximacao semi-

classica. Isso e tambem confirmado notando que o ansatz Φ(x) = exp (iS(x))/~ transforma,

se negligenciarmos as segundas derivadas, a equacao de Schrodinger completa

i~∂Ψ

∂t=

[

− ~2

2m

d2

dx2+ V (x, t)

]

Ψ , (8.4.12)

na equacao de Hamilton-Jacobi da mecanica classica (1.3.51)

−∂S∂t

=1

2m

(

∂S

∂x

)2

+ V (x, t) . (8.4.13)

Portanto, a fase S(x, t) comporta-se como a accao funcao da mecanica classica. Isto justifica

a classificacao da primeira aproximacao na seccao 8.1 como ‘aproximacao classica’. A

segunda aproximacao (primeira ordem em ~) e a aproximacao WKB.

A formula (8.4.7) ajuda-nos tambem a pensar na funcao de onda da seguinte maneira.

Podemos entender esta relacao como expressando que a mudanca de fase ao longo do poco,

de a para b, e igual a (n + 1/2)π. Dividindo por 2π, concluimos que a funcao de onda

na aproximacao WKB tem n/2 + 1/4 (quase) comprimentos de onda no poco. Assim n

representa o numero de nodos da funcao de onda, facto que ajuda a visualizar Ψ.

Page 266: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

250 A aproximacao WKB

I II III

B’1A 1A’ 2A 2A’

xx=a x=b

E

B

V(x)

Figura 8.5: Um estado com energia E numa barreira de potencial V (x); x = a e x = bsao os pontos de viragem classicos. A regiao I e desde x = −∞ ate ligeiramente antes dex = a; a regiao II e desde ligeiramente depois de x = a ate ligeiramente antes de x = b; aregiao III e desde ligeiramente depois de x = b ate x = +∞.

8.5 Aplicacao ao calculo do factor de transmissao

Aplicamos agora o metodo WKB ao calculo do factor de transmissao atraves de uma

barreira com altura maior do que a energia da partıcula - figura 8.5. Este problema

e semelhante ao da barreira rectangular estudado no capıtulo 3, mas nenhuma hipotese

especifica e feita relativamente a forma concreta da barreira. Assumimos que a aproximacao

WKB e valida nas tres regioes. Isto e, o potencial nao varia demasiado rapidamente. Nesta

aproximacao obtemos as seguintes tres solucoes da equacao de Schrodinger independente

do tempo:

Regiao I : Φ(x) =A1e

iR xa

k(x′)dx′

+ A′1e

−iR xa

k(x′)dx′

k(x)com k(x) ≡

2m(E − V (x))

~

Regiao II : Φ(x) =Be

R xa k(x′)dx′

+B′e−R xa k(x′)dx′

k(x)com k(x) ≡

2m(V (x)− E)

~

Regiao III : Φ(x) =A2e

iR x

b k(x′)dx′

+ A′2e

−iR xb k(x′)dx′

k(x).

(8.5.1)

O nosso objectivo e usar as formulas de ligacao para relacionar os coeficientes A1, A′1 com

A2, A′2, de modo a poder comparar a onda incidente com a transmitida. Com esse objectivo

notamos que:

Page 267: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

8.5 Aplicacao ao calculo do factor de transmissao 251

• Usando as formulas de ligacao i e ii, ligamos a solucao na regiao II a regiao I:

Φ(x) =Be

R xa k(x′)dx′

+B′e−R x

a k(x′)dx′

k(x)

em I−→ 2B′√

k(x)cos

(∫ a

x

k(x′)dx′ − π

4

)

− B√

k(x)sin

(∫ a

x

k(x′)dx′ − π

4

)

=2B′ + iB

2√

k(x)e−iπ/4ei

R ax

k(x′)dx′

+2B′ − iB2√

k(x)eiπ/4e−i

R ax

k(x′)dx′

.

(8.5.2)

Logo

A1 =2B′ − iB

2eiπ/4

A′1 =

2B′ + iB

2e−iπ/4

B′ =A′

1eiπ/4 + A1e

−iπ/4

2

B =A′

1eiπ/4 − A1e

−iπ/4

i

. (8.5.3)

• Denotamos

θ ≡ eR b

a k(x)dx . (8.5.4)

Usando as formulas de ligacao iii e iv, ligamos a solucao na regiao II a regiao III

Φ(x) =Be

R xa k(x′)dx′

+B′e−R xa k(x′)dx′

k(x)=B′e

R bx k(x′)dx′

+Bθ2e−R bx k(x′)dx′

θ√

k(x)

em III−→ − B′

θ√

k(x)sin

(∫ x

b

k(x′)dx′ − π

4

)

+2Bθ√

k(x)cos

(∫ x

b

k(x′)dx′ − π

4

)

=2θB + iB′/θ

2√

k(x)e−iπ/4ei

R xb k(x′)dx′

+2θB − iB′/θ

2√

k(x)eiπ/4e−i

R xb k(x′)dx′

.

(8.5.5)

Logo

A2 =2θB + iB′/θ

2e−iπ/4

A′2 =

2θB − iB′/θ

2eiπ/4

B′ =A2e

iπ/4 − A′2e

−iπ/4

B =A2e

iπ/4 + A′2e

−iπ/4

. (8.5.6)

Igualando as duas solucoes (8.5.3) a (8.5.6) obtemos

2A1 =

(

2θ +1

)

A2 + i

(

2θ − 1

)

A′2

2A′1 = i

(

−2θ +1

)

A2 +

(

2θ +1

)

A′2

. (8.5.7)

Page 268: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

252 A aproximacao WKB

O factor de transmissao, T , foi definido por (3.2.24) como sendo a intensidade da onda

transmitida sobre a intensidade da onda reflectida. A intensidade de um onda foi, por sua

vez, definida na seccao 3.2.1 como a densidade de probabilidade vezes a velocidade; assim

sendo temos, para o nosso caso

T =|Φt|2vt

|Φi|2vi

=|Φt

√kt|2

|Φi

√ki|2

=|A2|2|A1|2

. (8.5.8)

Assumindo que temos uma onda incidente de x = −∞, nao devera existir onda incidente

da direita; logo A′2 = 0. Assim sendo

|A2|2|A1|2

=

(

4θ2 + 1

)2

. (8.5.9)

Para uma barreira larga e alta, θ ≫ 1; este factor e uma medida da opacidade da barreira.

Neste caso

T ≃ 1

θ2= e−2

R ba

√2m(V (x)−E)/~ . (8.5.10)

Esta e formula (3.2.46) usada no capıtulo 3 para estudar a radioactividade α, com uma

justificacao vaga. A sua verdadeira justificacao e a aproximacao WKB como acabamos de

deduzir. Nesse caso T e chamado o factor de Gamow.

8.6 Sumario

Neste capıtulo estabelecemos um metodo, denominado aproximacao WKB, que permite,

para uma vasta classe de potenciais e em analogia proxima com o tratamento de potenciais

constantes por pedacos do capıtulo 3, calcular o espectro de estados ligados e o factor de

transmissao atraves de barreiras de potencial.

Page 269: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

CAPITULO 9

Teoria Geral do Momento Angular e Spin

No capıtulo 6 estudamos o momento angular orbital em Mecanica Quantica. Em particular

vimos que as componentes do operador momento angular orbital, Li, i = 1, 2, 3, obedecem

as relacoes de comutacao (6.1.4),

[Lj , Lk] = i~ǫjklLl , (9.0.1)

onde ǫjkl e o sımbolo de Levi-Civita, que tem valor1

ǫjkl =

+1 se (jkl) = Πpar(123)

−1 se (jkl) = Πimpar(123), (9.0.2)

onde Π...(123) significa “permutacao par” ou “permutacao ımpar” da sequencia (123).

Estas relacoes de comutacao resultam da quantificacao canonica do momento angular

orbital, ~L ≡ ~r × ~p, e das relacoes de comutacao canonicas. No entanto vamos agora

tomar uma perspectiva mais abrangente. Vamos tomar estas relacoes de comutacao como

definindo os operadores de momento angular. Para manifestar que estes poderao ter outra

origem que nao a orbital, denotamos os operadores mais gerais de momento angular por

~Ji; as relacoes de comutacao sao assim

[Jj, Jk] = i~ǫjklJl . (9.0.3)

1Em linguagem de geometria diferencial o sımbolo de Levi-Civita que estamos a definir e uma densidade

tensorial e nao um tensor, pois mantem a forma (9.0.2) em todos os sistemas coordenados.

Page 270: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

254 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

Vamos comecar por demonstrar que esta algebra admite mais representacoes do que as que

correspondem a accao do momento angular orbital. Estas ultimas descrevem partıculas

com spin inteiro; as novas representacoes descrevem partıculas com spin semi-inteiro. Um

spin semi-inteiro e uma quantidade que nao tem equivalente em mecanica classica, mas

cuja existencia fısica estabeleceremos seguidamente, como consequencia de resultados ex-

perimentais.

9.1 Representacoes da algebra do momento angular

A algebra (9.0.3) e um caso particular de uma algebra de Lie. Como estas algebras sao

centrais no estudo de grupos de simetria contınuos (grupos de Lie), e estes descrevem

muitas simetrias que aparecem em sistemas fısicos, vamos enquadrar a nossa discussao

desta seccao no contexto mais geral de algebras e grupos de Lie. Comecamos por definir

algebra de Lie:

Definicao: Seja L um espaco vectorial de dimensao finita sobre um corpo K (K = R

ou K = C). L e uma algebra de Lie sobre K se existir, em L, uma regra de composicao

X, Y −→ [X, Y ] , (9.1.1)

que satisfaca os seguintes axiomas para ∀X, Y, Z ∈ L:

i) linearidade; ∀α, β ∈ K,

[αX + βY, Z] = α[X,Z] + β[Y, Z] ; (9.1.2)

ii) anti-simetria,

[X, Y ] = −[Y,X] ; (9.1.3)

iii) identidade (ou associatividade) de Jacobi,

[X, [Y, Z]] + [Z, [X, Y ]] + [Y, [Z,X]] = 0 . (9.1.4)

Page 271: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.1 Representacoes da algebra do momento angular 255

A operacao [. . . , . . .] e denominada multiplicacao de Lie. Esta multiplicacao e generica-

mente anti-comutativa e nao associativa. Notemos que um exemplo de produto de Lie, que

encontramos na seccao 1.3.1, e dado pelos parentesis de Poisson; um outro, que e a razao

pela qual introduzimos aqui a teoria de Lie, e o comutador quantico.

Consideremos algumas definicoes importantes relativas a uma algebra de Lie:

• Uma algebra de Lie e dita abeliana ou comutativa se, ∀X, Y ∈ L, [X, Y ] = 0.

• Um sub-espaco vectorial de L, L1 ⊂ L, e uma sub-algebra de Lie se

[X, Y ] ∈ L1 , ∀X, Y ∈ L1 . (9.1.5)

• Um sub-espaco vectorial de L, L1 ⊂ L, e um ideal se

[X, Y ] ∈ L1 , ∀X ∈ L1 , ∀Y ∈ L ; (9.1.6)

um ideal e, portanto, um sub-conjunto “absorvente” da algebra e qualquer ideal e

uma sub-algebra.

• Um sub-espaco vectorial de L, L1 ⊂ L, e um ideal maximo ou centro se

[X, Y ] = 0 , ∀X ∈ L1 , ∀Y ∈ L ; (9.1.7)

o centro comuta, portanto, com toda a algebra e constitui uma sub-algebra abeliana.

• Seja ei uma base de L. A multiplicacao de Lie para esta base define as constantes de

estrutura da algebra de Lie, c kij ,

[ei, ej] = c kij ek . (9.1.8)

Note-se que como consequencia dos axiomas, as constantes de estrutura obedecem a

c ijk = −c i

kj , c pis c

sjk + c p

js cs

ki + c pks c

sij = 0 . (9.1.9)

Note-se ainda que estas “constantes” dependem da base; de facto transformam-

se como um tensor com dois ındices covariantes e um contravariante numa trans-

formacao de base.

Page 272: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

256 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

• Uma representacao da algebra de Lie, denotada por D, e uma aplicacao linear de L para

um espaco vectorial V, que preserva o produto de Lie; isto e

D : L −→ V , (9.1.10)

tal que

D([X, Y ]) = [D(X),D(Y )] . (9.1.11)

Para definir a representacao necessitamos pois de definir o produto de Lie em V.

Geralmente as representacoes sao classificadas pelos valores proprios dos chama-

dos invariantes de Casimir, que sao operadores que comutam com os geradores da

algebra; encontram-se por isso no centro da mesma.2 No caso da algebra do momento

angular o invariante de Casimir sera J2.

• Uma representacao matricial de dimensao n da algebra da Lie e uma aplicacao da algebra

de Lie para o espaco de matrizes, em geral de entradas complexas, de n× n. E facil

de verificar que este e um espaco vectorial sobre o corpo C. O produto de Lie no

espaco vectorial das matrizes e definido como o comutador

[X, Y ] = X · Y − Y ·X , (9.1.12)

e onde “·” e o produto usual de matrizes. Com esta forma de multiplicacao de Lie,

e simples verificar a identidade de Jacobi, que surge como consequencia da associa-

tividade do produto de matrizes. O espaco vectorial onde a representacao matricial

actua tem como base os estados fısicos do sistema. Dizemos que os estados se trans-

formam pela accao da representacao n dimensional da algebra de Lie. Por exemplo,

para a algebra do momento angular, estados escalares transformam-se pela accao da

representacao um dimensional; estados spinoriais pela accao da representacao dois

dimensional; estados vectoriais pela accao da representacao tres dimensional, etc.

Vamos agora estudar representacoes matriciais da algebra do momento angular, isto e

um conjunto de matrizes Ji que obedecem a (9.0.3). Comecamos por definir os operadores

2Como os invariantes de Casimir sao geralmente quadraticos ou ate de ordem mais elevada nos geradores,poderao nao ser vectores de L; ainda assim dizemos que se encontram no centro da algebra.

Page 273: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.1 Representacoes da algebra do momento angular 257

nao hermıticos em escada analogos a (6.2.32):

J+ = Jx + iJy , J− = Jx − iJy , (9.1.13)

que obedecem as relacoes de comutacao

[

J2, J±

]

= 0 ,[

J−, J+

]

= −2~Jz ,[

Jz, J±

]

= ±~J± , (9.1.14)

exactamente analogas a (6.2.33), onde definimos o momento angular total J2 como

J2 ≡ J2x + J2

y + J2z . (9.1.15)

Queremos considerar os estados com momento angular bem definido. No caso do mo-

mento angular orbital estes estados diagonalizavam simultaneamente L2 e, por escolha, Lz ;

na notacao de Dirac tais estados foram denotados |ℓ,m〉. L2 e Lz formam um C.C.O.C.

para o problema dos estados com momento angular orbital bem definido; isto e, especifi-

cando ℓ e m, que determinam univocamente os valores proprios de L2 e Lz, especifica um

unico estado de momento angular orbital bem definido. Por analogia vamos assumir que:

• Os estados com momento angular bem definido diagonalizam simultaneamente J2 e Jz;

• Estes estados, denotados |j,m〉, sao rotulados pelos numeros quanticos j e m, que de-

terminam univocamente os valores proprios de J2 e Jz;

• A correspondencia entre o rotulo m e o valor proprio de Jz e

Jz|j,m〉 = m~|j,m〉 . (9.1.16)

Note-se que, como J2 e Jz sao observaveis, estados proprios com valores proprios distintos

sao ortogonais; assumindo normalizacao temos

〈j′, m′|j,m〉 = δj′jδm′m . (9.1.17)

Para construir as representacoes pretendidas, consideramos a algebra

[

Jz, J±

]

= ±~J± , (9.1.18)

Page 274: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

258 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

que implica que J±|j,m〉 e estado proprio de Jz com valor proprio (m± 1)~; logo

J+|j,m〉 = Cmj |j,m+ 1〉 , J−|j,m〉 = Cm

j |j,m− 1〉 . (9.1.19)

As constantes introduzidas Cmj e Cm

j nao sao todas independentes; de facto

(Cmj )∗ = (〈j,m+ 1|J+|j,m〉)∗ = 〈j,m|J−|j,m+ 1〉 = Cm+1

j . (9.1.20)

Por outro lado, a relacao de comutacao

[

J−, J+

]

= −2~Jz , (9.1.21)

origina

〈j,m|J−J+ − J+J−|j,m〉 = −2~〈j,m|Jz|j,m〉 ⇔ Cmj C

m−1j − Cm

j Cm+1j = 2~

2m .

(9.1.22)

Juntamente com (9.1.20) esta relacao implica

|Cm−1j |2 − |Cm

j |2 = 2~2m , (9.1.23)

que tem como solucao geral3

|Cmj |2 = (C −m(m+ 1))~2 ⇒ |Cm

j |2 = (C −m(m− 1))~2 , (9.1.24)

onde C e uma constante real, dado que |Cmj |2 e real. Como os lados esquerdos de (9.1.24)

sao positivos e os lados direitos se tornam negativos para m suficientemente grande em

3Para ver isto escreva |Cmj |2 ≡ f(m) como uma serie de potencias

f(m) =

+∞∑

n=0

anmn .

A equacao (9.1.23) e reescrita

f(m− 1)− f(m) = 2~2m⇔

+∞∑

n=0

an ((m− 1)n −mn) = 2~2m .

Logo an = 0 para n > 2, e a equacao anterior fica (1 − 2m)a2 − a1 = 2~2m ou ainda a2 = −~2, a1 = a2.Logo f(m) = −~2(m + m2) + a0, que e equivalente a primeira expressao em (9.1.24).

Page 275: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.1 Representacoes da algebra do momento angular 259

modulo, temos de concluir que os valores possıveis para m tem um maximo e um mınimo,

denotados por m e m, respectivamente:

m = m,m + 1, . . . , m− 1, m . (9.1.25)

Em termos destes valores, (9.1.24) deve ser escrito como

|Cmj |2 = (m(m+ 1)−m(m+ 1))~2 |Cm

j |2 = (m(m− 1)−m(m− 1))~2 , (9.1.26)

e como |Cmj |2 = |Cm+1

j |2, concluimos que m(m+ 1) = m(m− 1), o que pode ser reescrito

(m+ m)(m−m + 1) = 0 ⇒ m = −m ∨ m = m+ 1 . (9.1.27)

A segunda possibilidade e excluıda pois m > m, por hipotese. Como m − m ∈ Z+0 (dado

que diferem de um multiplo da unidade e o primeiro e maior do que o segundo), obtemos

que 2m ∈ Z+0 , pelo que concluimos que

m = 0,1

2, 1,

3

2, 2,

5

2, . . . (9.1.28)

Para vermos os valores proprios de J2 notamos que

J2 =1

2

(

J+J− + J−J+

)

+ J2z . (9.1.29)

O valor esperado deste operador num estado |j,m〉 e

〈j,m|J2|j,m〉 =1

2

(

|Cm−1j |2 + |Cm

j |2)

+m2~

2 9.1.26= ~

2m(m+ 1) . (9.1.30)

Mas |j,m〉 e funcao propria de J2 pelo que concluimos que o valor proprio e m(m+ 1)~2.

Denotando m ≡ j temos entao

J2|j,m〉 = j(j + 1)~2|j,m〉 , Jz|j,m〉 = m~|j,m〉

J±|j,m〉 = ~√

j(j + 1)−m(m± 1)|j,m± 1〉 ,(9.1.31)

onde 2j ∈ N0, m = −j,−j + 1, . . . , j − 1, j.

Descobrimos, pois um conjunto infinito de representacoes da algebra (9.0.3), rotuladas

por j e que denotamos Dj, com dimensao 2j+1. Estas representacoes sao todas irredutıveis,

Page 276: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

260 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

pois em cada uma delas podemos transformar |j,m〉 em |j,m′〉, ∀m,m′, pela accao de

J+ e J−. A base do espaco vectorial onde a representacao Dj actua e |j,m〉, com

m = −j,−j + 1, . . . , j − 1, j. Os geradores da algebra terao, em cada representacao Dj,

uma representacao matricial em termos de matrizes quadradas de dimensao 2j + 1, com

componentes

(Ji)m′m = 〈j,m′|Ji|j,m〉 . (9.1.32)

Consideremos as primeiras representacoes, para o que ira ser util notar que

Jx =J+ + J−

2, Jy =

J+ − J−2i

, (9.1.33)

logo

〈j,m′|Jx|j,m〉 =~

2

(

j(j + 1)−m(m+ 1)δm′,m+1 +√

j(j + 1)−m(m− 1)δm′,m−1

)

,

〈j,m′|Jy|j,m〉 =~

2i

(

j(j + 1)−m(m+ 1)δm′,m+1 −√

j(j + 1)−m(m− 1)δm′,m−1

)

,

〈j,m′|Jz|j,m〉 = ~mδm′,m .

(9.1.34)

• j = 0, representacao 1-dimensional; base do espaco onde a representacao actua e |0, 0〉;elementos de matriz:

〈0, 0|Jx|0, 0〉 = 0 ; 〈0, 0|Jy|0, 0〉 = 0 ; 〈0, 0|Jx|0, 0〉 = 0 . (9.1.35)

Logo todos os geradores da algebra sao representados por ‘zero’. Esta representacao

e trivial e nao e fiel (i.e nao e injectiva). O unico vector da base corresponde ao

harmonico esferico Y 00 , que e constante e nao e alterado pelo grupo de transformacoes

(rotacoes) geradas pela algebra do momento angular.

• j = 1/2, representacao 2-dimensional; a base do espaco vectorial onde a representacao

Page 277: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.1 Representacoes da algebra do momento angular 261

actua e |1/2, 1/2〉, |1/2,−1/2〉; elementos de matriz:

〈1/2, m′|Jx|1/2, m〉 =~

2

0 1

1 0

≡ ~

2σx

〈1/2, m′|Jy|1/2, m〉 =~

2

0 − ii 0

≡ ~

2σy

〈1/2, m′|Jz|1/2, m〉 =~

2

1 0

0 − 1

≡ ~

2σz

. (9.1.36)

As matrizes σx, σy e σz sao denominadas matrizes de Pauli. O espaco onde esta

representacao actua, tal como os de outras representacoes com j semi-inteiro, deve ser

visto como um espaco vectorial interno; neste caso esse espaco e denominado espaco

de spin 1/2 ou simplesmente espaco de spin e os Ji sao usualmente representados

como Si. Esta representacao e fiel.

• j = 1, representacao 3-dimensional; a base do espaco vectorial onde a representacao

actua e |1, 1〉, |1, 0〉, |1,−1〉; elementos de matriz:

〈1, m′|Jx|1, m〉 =~√2

0 1 0

1 0 1

0 1 0

, 〈1, m′|Jy|1, m〉 =~√2i

0 1 0

−1 0 1

0 −1 0

,

〈1, m′|Jz|1, m〉 = ~

1 0 0

0 0 0

0 0 −1

.

(9.1.37)

A base do espaco vectorial onde esta representacao actua corresponde aos harmonicos

esfericos Y ±11 e Y 0

1 . De acordo com as relacoes (6.5.49) podemos fazer a mudanca de

base

|x〉|y〉|z〉

=

3r

−1 0 1

i 0 i

0√

2 0

|1, 1〉|1, 0〉|1,−1〉

. (9.1.38)

Page 278: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

262 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

Tomando agora a base |x〉, |y〉, |z〉 para a representacao j = 1, temos os elementos

de matriz:

〈xi|Jk|xj〉 =1∑

m,m′=−1

〈xi|1, m′〉〈1, m′|Jk|1, m〉〈1, m|xj〉 ; (9.1.39)

obtemos assim as matrizes que representam os geradores da algebra do momento

angular na base |x〉, |y〉, |z〉:

〈xi|Jx|xj〉 = i~

0 0 0

0 0 1

0 −1 0

〈xi|Jy|xj〉 = i~

0 0 1

0 0 0

−1 0 0

〈xi|Jz|xj〉 = i~

0 1 0

−1 0 0

0 0 0

. (9.1.40)

Reconhecemos os geradores das rotacoes em R3. Por exemplo, uma rotacao finita por um

angulo θ em torno do eixo Oz e obtida exponenciando o respectivo gerador:

Rz(θ) = e−iθJz/~ =

cos θ sin θ 0

− sin θ cos θ 0

0 0 1

. (9.1.41)

As representacoes matriciais de dimensao mais elevada podem ser construidas de um modo

analogo.

Exercıcio: Construa a representacao com j = 3/2.

Relacao com o grupo de Lie

O mapa exponencial exemplificado em (9.1.41) e a relacao generica entre uma algebra de

Lie e o grupo de Lie respectivo. Comecemos por relembrar a estrutura de grupo:

Definicao: Um grupo G e um conjunto de elementos g com uma lei de composicao

‘’ que obedece as seguintes condicoes:

i) O grupo e uma estrutura fechada: g1 g2 ∈ G , ∀g1, g2 ∈ G;

Page 279: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.1 Representacoes da algebra do momento angular 263

ii) A lei de composicao do grupo e associativa: (g1g2)g3 = g1(g2g3) , ∀g1, g2, g3 ∈ G;

iii) Existe um elemento neutro (identidade) denotado por 1: 1 g = g 1 , ∀g ∈ G;

iv) Existe um inverso para qualquer elemento do grupo g, que e denotado por g−1:

∀g , ∃g−1: g g−1 = g−1 g = 1.

Um grupo de Lie e um grupo contınuo, isto e um grupo cujos elementos sao rotulados por

parametros que variam continuamente. Essa continuidade da uma estrutura de variedade

diferenciavel aos grupos de Lie, com uma determinada geometria local e uma determinada

topologia.

Dada uma algebra de Lie, L podemos obter um grupo de Lie GL exponenciando os

geradores da algebra, tal como em (9.1.41):

X ∈ L ⇒ e−iαX ∈ GL ; (9.1.42)

o ponto fundamental (que nao vamos demonstrar) e que a identidade de Jacobi da algebra

garante a associatividade da lei de composicao do grupo. Podemos agora ver duas pro-

priedades genericas das matrizes do grupo associado a algebra do momento angular:

• Para qualquer representacao o traco das matrizes que representam a algebra do momento

angular e zero para qualquer dos geradores. Usamos entao o seguinte facto: se duas

matrizes A e B obedecem a A = eB entao detA = eTrB. Logo se o traco das

matrizes que representam os geradores de uma algebra de Lie e zero o determinante

das matrizes que representam o grupo e igual a um. Tais matrizes denominam-se

especiais ;

• Como os geradores da algebra do momento angular sao hermıticos, os elementos do

grupo de Lie associado obedecem a g† = (e−iθJ)† = eiθJ = g−1. Os elementos do

grupo sao portanto operadores unitarios: gg† = g†g = 1.

No caso da representacao tres dimensional pudemos escolher uma base em que os

geradores sao matrizes puramente imaginarias e anti-simetricas (9.1.40). Nesse caso,

Page 280: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

264 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

as matrizes da representacao do grupo de Lie sao ortogonais; de facto, nesse caso o

expoente torna-se real e uma matriz anti-simetrica A, pelo que gT = (eθA)T = e−θA =

g−1, o que implica que ggT = gTg = 1, o que e a defincao de operadores ortogonais.

Considermos pois as varias representacoes do grupo de Lie associado ao momento angular:

• j = 0: dado que os geradores da algebra sao representados por zero, os elementos do

grupo reduzem-se todos ao operador identidade

Rk(θ) = e−iθJk/~ = 1 ; (9.1.43)

os estados que formam a base do espaco vectorial onde o grupo actua sao pois in-

variantes pela accao do grupo e denominam-se estados escalares.

• j = 1/2: Os elementos do grupo tem a forma

Rk(θ) = e−iθJk/~ = e−iθσk/2 . (9.1.44)

Para escrevermos os elementos do grupo mais explicitamente notamos a identidade

(~σ · ~A)(~σ · ~B) = ~A · ~B1 + i~σ · ( ~A× ~B) , (9.1.45)

onde ~A e ~B sao dois vectores arbitrarios e ~σ = (σx, σy, σz) as matrizes de Pauli

(9.1.36). Seja ~u um vector unitario. Pela formula anterior concluimos que

(~σ · ~u)2 = 1 ; logo (~σ · ~u)n =

1 se n par

~σ · ~u se n impar. (9.1.46)

Logo, a representacao dos elementos do grupo correspondentes a uma rotacao em

torno do eixo definido por ~u e dada por

R~u(θ) = e−iθ~σ·~u/2 =

cos θ2− iuz sin θ

2(−iux − uy) sin θ

2

(−iux + uy) sin θ2

cos θ2

+ iuz sin θ2

. (9.1.47)

Note-se que R~u(2π) = −1 e R~u(4π) = 1. Ou seja para voltar ao mesmo estado no

espaco de spin 1/2 necessitamos de fazer uma rotacao por um angulo 4π.

Page 281: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.2 Emergencia Fısica do Spin 265

• j = 1: Os elementos do grupo tem a forma

Rx(θ) = e−iθJx/~ =

1 0 0

0 cos θ sin θ

0 − sin θ cos θ

Ry(θ) = e−iθJy/~ =

cos θ 0 sin θ

0 1 0

− sin θ 0 cos θ

Rz(θ) = e−iθJz/~ =

cos θ sin θ 0

− sin θ cos θ 0

0 0 1

.

(9.1.48)

Estas sao as bem conhecidas matrizes de rotacao a actuar em R3.

Acabamos de construir varias representacoes dos operadores de rotacao. Estes operadores

sao os elementos do grupo de Lie que descreve as rotacoes. Este grupo e designado por

SU(2), pois e constituido por Special Unitary matrices sendo a sua representacao funda-

mental de dimensao 2 - as matrizes de Pauli. Este e o grupo de Lie associado a algebra do

momento angular. Um seu sub-grupo e SO(3) o grupo de Special Orthogonal matrices que

esta associado apenas as representacoes do momento angular orbital e cuja representacao

fundamental e tres dimensional. A algebra de Lie associada a SU(2) e denotada su(2),

enquanto que a algebra de Lie associada a SO(3) e denotada so(3). Como vimos estas

algebras sao isomorficas.

su(2) ∼= so(3) . (9.1.49)

Mas os grupos distinguem-se pelo facto de SU(2) ter mais representacoes que SO(3), sendo

SO(3) um grupo mais reduzido do que SU(2).4

9.2 Emergencia Fısica do Spin

No tratamento do atomo de hidrogenio que efectuamos no capıtulo 6 descrevemos os estados

estacionarios do electrao atraves de uma funcao de onda Φ(~r) que depende somente das

4Geometricamente o grupo SU(2) e uma 3-esfera, S3, enquanto que SO(3) e uma 3-esfera com pontosidentificados S3/Z2.

Page 282: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

266 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

variaveis espaciais ~r. Este tratamento permitiu-nos deduzir o espectro de energias para o

atomo de hidrogenio que havia sido introduzido fenomenologicamente por Bohr.

Claro que um tratamento baseado na equacao de Schrodinger nao e relativista. Para

justificarmos que a aproximacao nao relativista e aceitavel estimemos classicamente a ve-

locidade de um electrao numa orbita circular, que obedece a

mev2

r=

e2

4πǫ0r2; (9.2.1)

estimando o raio da orbita r pelo raio de Bohr (6.4.22) e introduzindo a constante de

estrutura fina (2.2.4) concluimos que

mev2 ∼ e2

4πǫ0a0

=

(

e2

4πǫ0~c

)2

mec2 ⇔ v ∼ αc . (9.2.2)

Como a constante de estrutura fina e da ordem de α ∼ 1/137, a aproximacao nao relativista

e justificada. Contudo, e de esperar que surjam correccoes relativistas no problema do

atomo de hidrogenio. A equacao relativista da mecanica quantica, designada por equacao

de Dirac introduz, de facto, nao so correccoes cinematicas para as variaveis de posicao

que descrevem o electrao - como a variacao da massa com a velocidade -, mas ainda uma

caracterıstica totalmente nova para o electrao: o spin.

Historicamente, contudo, o spin do electrao foi descoberto experimentalmente antes da

introducao da equacao de Dirac, proposta em 1928. Tais resultados experimentais, que

serao discutidos seguidamente, levaram George Uhlenbeck e Samuel Goudsmit a propor,

em 1925, a ideia de um momento angular intrınseco para o electrao; Pauli, em 1927,

formalizaria esta ideia propondo uma teoria - fenomenologica - que permitia incorporar o

spin na mecanica quantica nao relativista, usando alguns postulados suplementares. Esta

teoria foi motivada por varios resultados experimentais, dos quais discutiremos agora tres:

A estrutura fina

Um estudo preciso das linhas espectrais do atomo de hidrogenio (por exemplo), revela uma

sub-estrutura denominada estrutura fina.5 Cada linha na figura 2.12 e na verdade composta

5A estrutura fina de linhas espectrais foi descoberta usando interferometria por A.A.Michelson em1891-92: Phil. Mag. 31 (1891) 338; ibid. 34 (1892) 280.

Page 283: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.2 Emergencia Fısica do Spin 267

por varias linhas, com frequencias muito identicas mas que podem ser distinguidas por um

espectrometro com boa resolucao. Por exemplo, a transicao 2p → 1s e na verdade um

dupleto de linhas espectrais, com as duas linhas separadas por cerca de 10−4 eV . Esta

separacao e cerca de 105 vezes menor que a diferenca de energia entre o nıvel n = 2 e

n = 1, que e de cerca de 10.2 eV . Este dupleto sera estudado em detalhe na seccao 11.1.4.

Isto significa que existem grupos de nıveis atomicos energeticamente muito proximos

mas distintos, o que nao e previsto pela descricao quantica do atomo de hidrogenio feita

no capıtulo 6, i.e sem spin, que se baseava apenas no Hamiltoniano

H =p2

2µ− e2

4πǫ0r. (9.2.3)

A teoria completa do atomo de hidrogenio tem de levar em conta varios outros termos

no Hamiltoniano, todos eles aparecendo de um modo natural da equacao de Dirac. As

primeiras correccoes a (9.2.3), responsaveis pela estrutura fina, sao as seguintes:6

i) Correccoes relativistas a energia cinetica. A velocidade do electrao e da ordem de αc e

como tal nao e “muito relativista”, pelo que podemos considerar apenas a primeira

correccao relativista a energia cinetica, que tem a forma

Wmv = − p4

8µ3c2. (9.2.4)

Os estados estacionarios do atomo de hidrogenio sem spin nao sao estados proprios

deste operador (depois de quantificacao canonica deste termo), pelo que ele devera ser

tratado como uma perturbacao (cf. capıtulo 11). Pode-se estimar que as correccoes

ao espectro de energias do atomo de hidrogenio provenientes desta perturbacao sao

supressas por um factor de α2 relativamente ao espectro nao perturbado - ou seja as

correccoes sao cerca de 104 − 105 vezes menores que o espectro nao perturbado.

ii) Acoplamento spin-orbita. O electrao do atomo de hidrogenio ve uma corrente, devido

ao facto de no seu referencial o nucleo estar em movimento. Assim o electrao ve um

6Todos estes termos serao discutidos em maior detalhe na seccao 11.1.4.

Page 284: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

268 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

campo magnetico, pelo que, se ele tem um momento magnetico intrınseco ~µS, existe

um acoplamento do tipo

WSO = −~µS · ~B , ~µS = gµB

~

~S , (9.2.5)

no Hamiltoniano, onde g e a razao giromagnetica do electrao e µB o magnetao de

Bohr. A forma explıcita desta perturbacao requer entao calcular ~B, o que pode ser

feito atraves de uma transformacao de Lorentz do campo ~E do nucleo visto num

referencial onde este esta parado. Para esse calculo tem de ser tambem levada em

conta a chamada precessao de Thomas. Chega-se assim ao resultado:

WSO =1

2

e2

4πǫ0r3

g

2m2c2~L · ~S . (9.2.6)

Esta correccao ira ser da mesma ordem que a correccao relativista.

iii) Existe ainda uma outra correccao da mesma ordem de grandeza das duas anteriores,

denominada termo de Darwin. Este termo surge pelo facto de, na expansao em v/c da

equacao de Dirac, o electrao ser afectado numa vizinhanca da ordem do comprimento

de onda de Compton pelo potencial do protao, e nao apenas num ponto. O termo

tem a forma

WD =~2

8m2c2∆V , (9.2.7)

onde ∆V e o laplaciano da energia potencial de Coulomb.

A teoria de Pauli ira introduzir a correccao ii), o que ira explicar, qualitativamente, algumas

caracterısticas da estrutura fina.

O efeito Zeeman Anomalo

Como vimos na seccao 6.5.4, quando um atomo e imerso num campo magnetico uniforme,

cada uma das suas linhas espectrais separa-se num certo numero de linhas equidistantes,

cuja distancia e proporcional ao campo magnetico - efeito Zeeman. A explicacao deste

efeito baseia-se no Hamiltoniano (6.5.10) que inclui o acoplamento paramagnetico

H1 = −~µL · ~B , ~µL =µB

~

~L . (9.2.8)

Page 285: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.2 Emergencia Fısica do Spin 269

Negligenciando o acoplamento diamagnetico obtemos o espectro (6.5.39)

E(N,m) = EN − µBBm . (9.2.9)

Esta descricao teorica e verificada experimentalmente em certos casos - efeito Zeeman

normal - mas nao noutros - efeito Zeeman anomalo. A anomalia mais importante aparece

para atomos com Z ımpar, que inclui o hidrogenio: os seus nıveis de energia dividem-se

num numero par de sub-nıveis, enquanto que a teoria preve um numero ımpar igual a 2ℓ+1

para o nıvel com numero quantico ℓ, que e inteiro. A teoria de Pauli ira substituir ℓ por j

que pode tomar valores semi-inteiros, resolvendo este problema.

A experiencia de Stern Gerlach (1922)

A experiencia consiste em estudar a deflexao de um feixe de atomos de prata 47Ag (que

sao paramagneticos e neutros) num campo magnetico fortemente nao uniforme. O aparato

experimental esta representado na figura 9.1. O campo magnetico ~B tem as seguintes

caracterısticas:

• Tem um plano de simetria yOz;

• Nao depende de y (negligenciamos efeitos de bordo);

• Nao tem componente segundo y;

• A sua maior componente e segundo z.

Examinemos o calculo classico da deflexao. Sendo neutros, os atomos de prata nao estao

sujeitos a forca de Lorentz; a interaccao entre os atomos e o campo resulta apenas do

acoplamento dipolar

H = −~µ · ~B ; logo ~F = ∇(~µ · ~B) , (9.2.10)

e a forca sentida pelos atomos, que seria zero caso ~B fosse constante. Concluimos que

a forca depende do momento magnetico; mas o momento magnetico tem uma dinamica

propria devido a um torque exercido pelo campo magnetico externo da forma

~τ = ~µ× ~B ; (9.2.11)

Page 286: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

270 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

Figura 9.1: a) Atomos de prata estao contidos na fornalha E, que e aquecida a altas tem-peraturas. Os atomos podem ser emitidos da fornalha atraves de uma pequena abertura.Uma outra pequena abertura F colima o feixe de atomos, escolhendo aqueles cuja veloci-dade e paralela a direccao Oy. Os atomos sao entao deflectidos pelo gradiente do campomagnetico criado por A e condensam no ponto N do alvo P ; b) Perfil das linhas de forcado campo magnetico (extraıdo de Cohen et al,‘Quantum Mechanics’ ).

assumindo que este momento magnetico resulta de um momento angular,

~µ =gµB

~

~S , (9.2.12)

entao a lei fundamental da mecanica de rotacao diz-nos que

d~S

dt= ~µ× ~B ⇔ d~S

dt=gµB

~

~S × ~B . (9.2.13)

Esta equacao diz-nos que o dipolo precessa em torno do campo magnetico. Como o campo

magnetico e essencialmente segundo a direccao Oz, o dipolo precessa essencialmente em

torno do eixo Oz. Logo a media temporal das componentes µx e µy sera aproximadamente

zero, pelo que nao deverao influir na forca que os atomos de prata sentem. Com esta

aproximacao

~F ≃ µz∇Bz ; (9.2.14)

por hipotese ∂Bz/∂y = 0 e no plano de simetria ∂Bz/∂x = 0. Logo a forca e essencialmente

paralela a Oz e proporcional a µz, ~F ≃ µz∂zBzez. Como tal, deflexao HN e uma medida

Page 287: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.2 Emergencia Fısica do Spin 271

Figura 9.2: Resultado classico esperado (linha tracejada) e observado (linha solida) naexperiencia de Stern-Gerlach (extraıdo de Cohen et al,‘Quantum Physics’ ).

de µz.

O resultado esperado classicamente para a experiencia anterior baseia-se na seguinte

observacao. Os atomos de prata deveriam ter uma distribuicao de momento magnetico

isotropica quando saem da fornalha. Logo todos os valores de µz entre −|~µ| e +|~µ| deveriam

ser encontrados, pelo que se esperaria um padrao do tipo da linha tracejada na figura 9.2,

i.e. deflexoes entre N1 e N2. Note-se que a dispersao das velocidades e a largura finita

da fenda explicam a curva extender-se um pouco alem de Ni. O resultado observado e,

contudo, muito diferente. Observam-se 2 pontos de impacto priveligiados - linhas solidas

na figura 9.2; ou seja a medicao de µz so pode originar dois resultados possıveis.

Descrevemos agora a interpretacao quantica da experiencia anterior. Os atomos de

prata tem um electrao desemparelhado e o seu momento magnetico resulta do spin desse

electrao por (9.2.12). Assim, uma medicao de µz e uma medicao de Sz, que, de acordo

com a experiencia de Stern-Gerlach, so pode tomar dois valores possıveis. Pelo estudo das

representacoes do momento angular da seccao 9.1, na representacao Dj, Sz tem 2j + 1

valores possıveis, pelo que j = 1/2. Esta sera a representacao escolhida para descrever o

electrao na teoria de Pauli.

Notas:

Page 288: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

272 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

• Se fizessemos a experiencia com electroes, como a carga nao seria zero, a forca de

Lorentz iria disfarcar o efeito do spin. O objectivo de usar atomos de prata e ter uma

partıcula de spin 1/2 sem carga.

• As condicoes experimentais podem ser escolhidas de modo a que a dispersao espacial da

funcao de onda seja suficientemente pequena para poder tratar as variaveis posicao

e momento classicamente.

A experiencia anterior pode ser teorizada com o seguinte formalismo:

i) O electrao tem graus de liberdade externos ou orbitais (~r e ~p) e um grau de liberdade

interno (o spin ~S);

ii) O espaco vectorial interno tem dimensao 2 e base

|+〉 = |1/2, 1/2〉 , |−〉 = |1/2,−1/2〉 , (9.2.15)

tal que

Sz|±〉 = ±~

2|±〉 , (9.2.16)

o que equivale a dizer que, nesta base, a componente z do operador de momento

angular intrınseco tem representacao

Sz =~

2

1 0

0 − 1

≡ ~

2σz ; (9.2.17)

a algebra do momento angular e obedecida se escolhermos

Sx =~

2

0 1

1 0

≡ ~

2σx , Sy =

~

2

0 − ii 0

≡ ~

2σy . (9.2.18)

Esta e a representacao dois dimensional de su(2), (9.1.36).

• Note que o ponto fundamental da experiencia de Stern-Gerlach e nao so a confirmacao

da quantificacao do momento magnetico do electrao (e como tal do seu spin) mas

tambem, e sobretudo, mostrar que j = 1/2.

Page 289: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.3 Postulados da teoria de Pauli 273

9.3 Postulados da teoria de Pauli

Para explicar os resultados experimentais anteriores, Uhlenbeck e Goudsmit propuseram,

em 1925, que o electrao tem um momento angular intrınseco - spin. Este spin confere-lhe

um momento magnetico

~µS =2µB

~

~S . (9.3.1)

Ou seja, a razao giromagnetica do electrao e g = 2 (chamado valor quantico), que era

necessaria para explicar quantitativamente as deflexoes observadas na experiencia de Stern-

Gerlach e as separacoes espectrais no efeito Zeeman anomalo. Note-se que a razao giro-

magnetica orbital e g = 1 (chamado valor classico), metade da de spin. O valor g = 2 que

aqui e imposto fenomenologicamente e extraıdo naturalmente da equacao de Dirac.

Pauli elaborou a proposta de Uhlenbeck e Goudsmit tornando-a um pouco mais pre-

cisa e conferindo-lhe o caracter de postulados adicionais da mecanica quantica que agora

descrevemos.

Em primeiro lugar notamos que o nosso estudo ate ao momento incidiu sobre a quan-

tificacao de variaveis orbitais, como a posicao ~r e o momento ~p, as quais associamos op-

eradores~R e

~P que actuam num espaco de estados E~r, que e isomorfico ao espaco das

funcoes de onda. Denominamos E~r como espaco de estados orbitais. A estas variaveis

orbitais temos de adicionar as variaveis de spin que satisfazem os seguintes postulados:

i) O operador de spin,~S e um momento angular, o que significa que

[Sj , Sk] = i~ǫjklSl ; (9.3.2)

ii) Os operadores de spin actuam num novo espaco vectorial, denominado espaco de estados

de spin, ES, onde S2 e Sz sao um C.C.O.C.; o espaco ES tem como base os estados

proprios comuns a S2 e Sz, |s,m〉:

S2|s,m〉 = s(s+ 1)~2|s,m〉 , Sz|s,m〉 = m~|s,m〉 , (9.3.3)

onde 2s ∈ N0 e m = −s,−s + 1, . . . , s − 1, s. Uma dada partıcula e caracterizada

por um unico valor de s; dizemos que a partıcula tem spin s. Logo, ES tem sempre

Page 290: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

274 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

dimensao finita e igual a 2s+ 1; todos os estados de spin de uma dada partıcula sao

vectores proprios de S2 com o mesmo valor proprio s(s+ 1)~2;

iii) O espaco de estados completo, E , e o produto tensorial de E~r com ES:

E = E~r ⊗ ES .

Isto significa que todas as observaveis de spin comutam com todas as observaveis

orbitais. Daqui resulta que, excepto para o caso com s = 0, e insuficiente especificar

o ket de E~r para caracterizar o estado da partıcula. E necessario tambem especificar

o estado de spin; isto e

C.C.O.C. = observaveis orbitais, observaveis de spin .

Qualquer estado da partıcula e uma combinacao linear de vectores que sao o produto

tensorial de um ket de E~r com outro de ES;

iv) O electrao e uma partıcula de spin 1/2 (s = 1/2). Logo, para o electrao ES e 2-

dimensional. O momento magnetico intrınseco do electrao e dado por (9.3.1). O

operador Hamiltoniano que descreve o comportamento de um electrao na presenca

de um campo electromagnetico descrito pelos potenciais ~A e φ e dado por

H =(~P − q~A)2

2me

+ qφ− q~

2me

~σ · ~B , (9.3.4)

que, usando as propriedades das matrizes de Pauli, pode ser reescrito na forma

H =[~σ · (~P − q~A)]2

2me

+ qφ . (9.3.5)

Este e o Hamiltoniano de Pauli.

9.4 Descricao nao relativista de partıculas de spin 12

Vamos agora considerar em detalhe os graus de liberdade de spin para o caso s = 1/2. ES

tem dimensao 2 e tomamos como base |+〉, |−〉, que obedece a

S2|±〉 =3

4~

2|±〉 , Sz|±〉 = ±~

2|±〉 . (9.4.1)

Page 291: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.4 Descricao nao relativista de partıculas de spin 12

275

As relacoes de ortonormalizacao podem entao ser escritas:

〈+|−〉 = 0 , 〈−|−〉 = 1 , 〈+|+〉 = 1 , (9.4.2)

e a relacao de fecho

|+〉〈+|+ |−〉〈−| = 1 . (9.4.3)

O estado de spin mais geral tem a forma

|χ〉 = c+|+〉+ c−|−〉 , c± ∈ C . (9.4.4)

Todos os kets de ES sao vectores proprios de S2 com valor proprio 3~2/4. Logo

S2 =3~2

41 . (9.4.5)

Podemos definir os operadores em escada

S± = Sx ± iSy , (9.4.6)

que tem accao

S+|+〉 = 0 , S+|−〉 = ~|+〉 , S−|+〉 = ~|−〉 , S−|−〉 = 0 . (9.4.7)

Todos os operadores que actuam em ES sao representados na base |+〉, |−〉 por matrizes

de 2× 2; os operadores de momento angular tem a representacao

~S =

~

2~σ , (9.4.8)

onde ~σ sao as matrizes de Pauli (9.1.36). Estas matrizes tem as seguintes propriedades

Trσi = 0 , det σi = −1 . (9.4.9)

Juntamente com a identidade, as matrizes de Pauli formam uma base do conjunto de

matrizes de 2× 2 com entradas complexas GL(2,C).

Page 292: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

276 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

9.4.1 Juntando os graus de liberdade de spin aos orbitais

Podemos agora juntar num unico formalismo os graus de liberdade de spin e orbitais. O

espaco de estados tem como base os estados proprios de um C.C.O.C. de E , que e obtido

pela justaposicao de um C.C.O.C. de E~r com um de ES. Assim, varios C.C.O.C. possıveis

para um electrao livre sao:

X, Y , Z, S2, Sz , Px, Py, Pz, S2, Sz , H, L2, Lz, S

2, Sz .

Note-se que como todos os kets em E tem o mesmo valor proprio de S2, este pode ser

omitido do C.C.O.C.; de facto este valor caracteriza a partıcula, independentemente do

estado em que se encontra (tal como a massa em repouso ou a carga electrica).

Consideremos o primeiro destes C.C.O.C.. A base de E e

|~r, ǫ〉 = |x, y, z, ǫ〉 = |~r〉 ⊗ |ǫ〉 , (9.4.10)

onde |~r〉 = |x, y, z〉 ∈ E~r e |ǫ〉 ∈ ES. Os rotulos tomam os valores x, y, z ∈ R e ǫ = ±1. A

accao dos operadores que constituem o C.C.O.C. nestes estados e

X|~r, ǫ〉 = x|~r, ǫ〉 , Y |~r, ǫ〉 = y|~r, ǫ〉 , Z|~r, ǫ〉 = z|~r, ǫ〉 ,

S2|~r, ǫ〉 =3~2

4|~r, ǫ〉 , Sz|~r, ǫ〉 = ǫ

~

2|~r, ǫ〉 .

(9.4.11)

A base |~r, ǫ〉 e ortonormal, no sentido extenso da ortogonalidade por deltas de Dirac,

〈~r′, ǫ′|~r, ǫ〉 = δǫ′ǫδ(~r′ − ~r) . (9.4.12)

A relacao de fecho e

1 =∑

ǫ

d3~r|~r, ǫ〉〈~r, ǫ| =∫

d3~r|~r,+〉〈~r,+|+∫

d3~r|~r,−〉〈~r,−| . (9.4.13)

Estados na representacao |~r, ǫ〉

Qualquer estado |Ψ〉 em E pode ser expandido na base |~r, ǫ〉, usando a relacao de fecho

|Ψ〉 =∑

ǫ

d3~r|~r, ǫ〉〈~r, ǫ|Ψ〉 ≡∑

ǫ

d3~r|~r, ǫ〉Ψǫ(~r) . (9.4.14)

Page 293: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.4 Descricao nao relativista de partıculas de spin 12

277

Vemos assim que para caracterizar completamente o estado de um electrao e necessario

especificar duas funcoes espaciais:

Ψ+(~r) = 〈~r,+|Ψ〉 , Ψ−(~r) = 〈~r,−|Ψ〉 , (9.4.15)

que podem ser escritas na forma de um spinor de dois componentes ou 2-spinor :

[Ψ](~r) =

Ψ+(~r)

Ψ−(~r)

. (9.4.16)

O bra 〈Ψ| associado ao ket |Ψ〉 e o adjunto de (9.4.14)

〈Ψ| =∑

ǫ

d3~r〈Ψ|~r, ǫ〉〈~r, ǫ| ≡∑

ǫ

d3~rΨ∗ǫ〈~r, ǫ| , (9.4.17)

que pode ser representado na forma de um spinor que e adjunto de (9.4.16)

[Ψ]†(~r) =(

Ψ∗+(~r),Ψ∗

−(~r))

. (9.4.18)

O produto escalar 〈Ψ|Φ〉 e representado por

〈Ψ|Φ〉 =∑

ǫ

d3~r〈Ψ|~r, ǫ〉〈~r, ǫ|Φ〉 =

d3~r[

Ψ∗+(~r)Φ+(~r) + Ψ∗

−(~r)Φ−(~r)]

=

d3~r[Ψ]†(~r)[Φ](~r) .

(9.4.19)

Logo a condicao de normalizacao e

〈Ψ|Ψ〉 =∫

d3~r[Ψ]†(~r)[Ψ](~r) =

d3~r[

|Ψ+(~r)|2 + |Ψ−(~r)|2]

= 1 . (9.4.20)

Um caso particular de estados de E sao estados obtidos pelo produto tensorial de um estado

de E~r com outro de ES, isto e

|Ψ〉 = |Φ〉 ⊗ |χ〉 , (9.4.21)

com

|Φ〉 =

d3~rΦ(~r)|~r〉 ∈ E~r , |χ〉 = c+|+〉+ c−|−〉 ∈ ES . (9.4.22)

Nesse caso as funcoes de onda orbitais e de spin separam

[Ψ](~r) = Φ(~r)

c+

c−

, (9.4.23)

tal como as relacoes de normalizacao

1 = 〈Ψ|Ψ〉 = 〈Φ|Φ〉〈χ|χ〉 = (|c+|2 + |c−|2)∫

d3~r|Φ(~r)|2 . (9.4.24)

Page 294: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

278 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

Operadores na representacao |~r, ǫ〉

Consideremos a accao de um operador linear A num ket |Ψ〉 ∈ E

A|Ψ〉 = |Ψ′〉 . (9.4.25)

Este operador tem uma representacao matricial que actua em 2-spinors

A[Ψ](~r) = [Ψ′](~r) , (9.4.26)

onde os elementos de matriz que representam A serao, em geral, operadores diferenciais

que actuam na variavel ~r. Consideremos os varios casos possıveis:

• Operadores de spin: estes actuam apenas no ındice ǫ da base |~r, ǫ〉. Um exemplo e um

dos operadores em escada (9.4.6):

S+ =~

2(σx + iσy) = ~

0 1

0 0

. (9.4.27)

• Operadores orbitais: estes deixam invariante o ındice ǫ pelo que as suas matrizes associ-

adas sao proporcionais a matriz identidade. Dois exemplos sao os operadores:

X =

x 0

0 x

, Px = −i~

∂/∂x 0

0 ∂/∂x

. (9.4.28)

• Operadores mistos: os operadores mais gerais a actuar em E serao representados por

matrizes de 2× 2 cujos elementos sao operadores diferencias relativamente a variavel

~r. Um exemplo e um produto de um operador orbital com um operador de spin

LzSz =~

2

−i~∂/∂ϕ 0

0 i~∂/∂ϕ

; (9.4.29)

mas mais geralmente teremos combinacoes lineares de produtos de operadores orbitais

com operadores de spin; por exemplo

~S · ~P =

~

2

(

σxPx + σyPy + σzPz

)

= −i~2

2

∂/∂z ∂/∂x − i∂/∂y∂/∂x + i∂/∂y −∂/∂z

.

(9.4.30)

Page 295: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.4 Descricao nao relativista de partıculas de spin 12

279

Notamos ainda que o elemento de matriz de um operador e dado por

〈Ψ|A|Φ〉 =

d3~r[Ψ]†(~r)A[Φ](~r) . (9.4.31)

Se, alternativamente, tivessemos considerado o C.C.O.C.=Px, Py, Pz, S2, Sz, terıamos

a representacao |~p, ǫ〉, em que cada vector |Ψ〉 ∈ E e o 2-spinor

[Ψ](~p) =

Ψ+(~p)

Ψ−(~p)

, (9.4.32)

com

Ψ+(~p) = 〈~p,+|Ψ〉 , Ψ−(~p) = 〈~p,−|Ψ〉 . (9.4.33)

Notando que

〈~r, ǫ|~p, ǫ′〉 = 〈~r|~p〉〈ǫ|ǫ′〉 =1

(2π~)3/2ei~p·~r/~δǫǫ′ , (9.4.34)

concluımos que Ψ+(~p) e Ψ−(~p) sao transformadas de Fourier de Ψ+(~r) e Ψ−(~r), respecti-

vamente:

Ψǫ(~p) = 〈~p, ǫ|Ψ〉 =∑

ǫ′

d3~r〈~p, ǫ|~r, ǫ′〉〈~r, ǫ′|Ψ〉

=1

(2π~)3/2

d3~re−i~p·~r/~Ψǫ(~r) .

(9.4.35)

Finalmente, notamos que os postulados do capıtulo 4 se aplicam naturalmente neste for-

malismo. Por exemplo, a probabilidade d3P(~r,+) de encontrar um electrao num volume

infinitesimal d3~r em torno do ponto ~r com o spin para cima, Sz = +~/2, e

d3P(~r,+) = |〈~r,+|Ψ〉|2d3~r = |Ψ+(~r)|2d3~r , (9.4.36)

enquanto que a probabilidade d3P(~r) de encontrar um electrao num volume infinitesimal

d3~r em torno de ~r, qualquer que seja o spin, e

d3P(~r) = (|Ψ+(~r)|2 + |Ψ−(~r)|2)d3~r . (9.4.37)

Operador de rotacao para uma partıcula de spin 1/2

Uma partıcula de spin 1/2 pode possuir, para alem do seu momento angular intrınseco ~S,

um momento angular orbital ~L. O seu momento angular total sera

~J = ~L+ ~S . (9.4.38)

Page 296: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

280 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

Como se comporta a funcao de onda de uma partıcula de spin 1/2 sob a accao de uma

rotacao? O operador de rotacao a actuar no espaco de estados orbitais E~r toma a forma,

R~u(α) = e−iα~L·~u/~ , (9.4.39)

em que a rotacao e em torno de um eixo definido pelo versor ~u e de um angulo α. Natu-

ralmente, o operador de rotacao que actua no espaco de estados E tera a forma

R~u(α) = e−iα ~J ·~u/~ . (9.4.40)

Como~L so actua em E~r e

~S so actua em ES, podemos escrever R~u(α) na forma de um

produto tensorial

R~u(α) = R(~r)~u (α)⊗R(S)

~u (α) , (9.4.41)

onde

R(~r)~u (α) = e−iα~L·~u/~ , R(S)

~u (α) = e−iα~S·~u/~ , (9.4.42)

sao os operadores de rotacao que actuam em E~r e ES respectivamente. Deste modo, se a

partıcula de spin 1/2 estiver num estado que seja um produto tensorial, do tipo (9.4.21),

o seu estado apos a rotacao sera

|Ψ′〉 = R~u(α)|Ψ〉 = [R(~r)~u (α)|Φ〉]⊗ [R(S)

~u (α)|χ〉] . (9.4.43)

Claro que R(~r)~u (2π) = 1 pois esta e uma rotacao orbital; mas por (9.1.47), R(S)

~u (2π) = −1;

logo

R~u(2π) = R(~r)~u (2π)⊗R(S)

~u (2π) = −1 . (9.4.44)

Esta e uma famosa propriedade de uma partıcula de spin 1/2: uma tal partıcula necessita

de dar duas voltas para voltar ao mesmo estado, i.e ser descrita pelo mesmo spinor; de

facto

R~u(4π) = R(~r)~u (4π)⊗R(S)

~u (4π) = 1 . (9.4.45)

A periodicidade de 4π dos fermioes de spin 1/2 foi observada directamente em experiencias

de interferencia com neutroes lentos (S.A.Warner et al, Phys. Rev. Lett. 35 (1975) 1053.)

Page 297: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.4 Descricao nao relativista de partıculas de spin 12

281

Note-se, no entanto, que uma observavel nao muda de sinal pela accao de uma rotacao de

2π:

A′ = R~u(2π)AR~u(2π)† = A . (9.4.46)

O comportamento global de uma partıcula de spin 1/2 sob a accao de uma rotacao

pode ser visto do seguinte modo: o estado |Ψ〉 e representado pelo 2-spinor [Ψ](~r) com

componentes

Ψǫ(~r) = 〈~r, ǫ|Ψ〉 , (9.4.47)

sob a accao de uma rotacao |Ψ′〉 = R|Ψ〉, onde R = R(~r)⊗R(S), obtemos um novo 2-spinor,

cujas componentes sao

Ψ′ǫ(~r) = 〈~r, ǫ|Ψ′〉 = 〈~r, ǫ|R|Ψ〉 =

ǫ′

d3~r′〈~r, ǫ|R|~r′, ǫ′〉〈~r′, ǫ′|Ψ〉 ; (9.4.48)

mas

〈~r, ǫ|R|~r′, ǫ′〉 = 〈~r|R(~r)|~r′〉〈ǫ|R(S)|ǫ′〉 ≡ 〈R−1~r|~r′〉R(S)ǫǫ′ = δ(R−1~r − ~r′)R(S)

ǫǫ′ . (9.4.49)

Logo

Ψ′ǫ(~r) =

ǫ′

R(S)ǫǫ′ Ψǫ′(R−1~r) . (9.4.50)

Explicitamente, em notacao tensorial temos

Ψ′+(~r)

Ψ′−(~r)

=

R(S)++ R

(S)+−

R(S)−+ R

(S)−−

Ψ+(R−1~r)

Ψ−(R−1~r)

. (9.4.51)

Note-se a analogia com o caso de spin 1.

Exemplo: Para ilustrar a fısica das partıculas com spin 1/2 vamos considerar um

problema de difusao um dimensional do tipo do capıtulo 3, mas adicionando um campo

magnetico, tal como representado na figura 9.3. Uma partıcula de spin 1/2, massa m, sem

carga e com razao giromagnetica g incide no potencial, proveniente de x = −∞. Para alem

do salto de potencial existe na regiao II um campo magnetico ~B = B0ez. Logo, o operador

Hamiltoniano para o sistema, escrito na forma (9.3.4) e

H =P 2

2m+ V (X)− ~µ · ~B =

P 2

2m+ θ(x)

(

V0 + ωSz

)

, (9.4.52)

Page 298: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

282 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

~B = 0 ~B = B0ez

~µ = gµB~S~

V0

I II

V(x)

x0

E

Figura 9.3: Um salto de potencial com campo magnetico na regiao II.

onde ω = −gµBB0/~ e θ(x) e a funcao de Heaviside, que toma valores

θ(x) ≡

0 , x < 0

1 , x > 0.

Podemos tomar como C.C.O.C.=H, Py, Pz, Sz e a base de estados para o sistema,

que sao estados estacionarios, sendo

|Φ±E,py,pz

〉 = |Φ±E〉 ⊗ |py〉 ⊗ |pz〉 ⊗ |±〉 . (9.4.53)

A equacao de Schrodinger

H|Φ±E,py,pz

〉 = E|Φ±E,py,pz

〉 ,

reduz-se a(

P 2x

2m+p2

y + p2z

2m+ θ(x)

(

V0 ±ω~

2

)

)

|Φ±E〉 = E|Φ±

E〉 .

Projectando na representacao |x〉, 〈x|Φ±E〉 = Φ±

E(x) e assumindo py = pz = 0 obtemos[

− ~2

2m

d2

dx2+ θ(x)

(

V0 ±~ω

2

)]

Φ±E(x) = EΦ±

E(x) . (9.4.54)

A inclusao do spin, tornada visıvel pela presenca do campo magnetico, da origem a um

potencial efectivo diferente para cada um dos dois modos da partıcula, isto e Vefe =

V0 ± ~ω/2, para os modos |+〉 e |−〉, respectivamente. Esta e a licao generica a reter: o

potencial efectivo pode ser diferente para feixes com polarizacoes diferentes. A partir daqui

podemos calcular o factor de transmissao e reflexao, para cada um dos dois modos, usando

os metodos do capıtulo 3.

Page 299: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.5 Adicao de momento angular 283

9.5 Adicao de momento angular

Tendo estabelecido que uma partıcula quantica pode ter um momento angular intrınseco,

para alem do momento angular orbital, ambos quantificados, coloca-se a questao de saber

quais sao os valores possıveis para o seu momento angular total. O mesmo se pode per-

guntar relativamente a um sistema fısico constituıdo por dois sub-sistemas (por exemplo,

um sistema de duas partıculas), cada um possuindo momento angular. E esta a questao

que vamos agora considerar. 7

Analisemos, por exemplo, um sistema de duas partıculas, que se identificarao por ındices

1 e 2. Designamos por ~J1 e ~J2 os respectivos momentos angulares e seja

~J = ~J1 + ~J2 ,

o momento angular total do sistema, com componentes (Jx, Jy, Jz). Admitimos que se

conhece, no espaco de estados do sistema i, Ei, i = 1, 2, a base padrao |ki, Ji,Mi〉constituıda por vectores proprios comuns a J2

i e a Jiz :

J2i |ki, Ji,Mi〉 = Ji(Ji + 1)~2 |ki, Ji,Mi〉 , (9.5.1)

Jiz |ki, Ji,Mi〉 = Mi~ |ki, Ji,Mi〉 , (9.5.2)

Ji± |ki, Ji,Mi〉 = ~√

Ji(Ji + 1)−Mi(Mi ± 1) |ki, Ji,Mi ± 1〉 , (9.5.3)

onde ki representa o conjunto de numeros quanticos adicionais necessarios a especificacao

completa do estado do sistema.

O espaco de estados do sistema total, E , e o produto tensorial de E1 e E2:

E = E1 ⊗ E2 . (9.5.4)

Uma base neste espaco e obtida fazendo o produto tensorial das bases de E1 e de E2:

| k1, k2; J1, J2;M1,M2〉 = | k1, J1,M1〉 ⊗ | k2, J2,M2〉 , (9.5.5)

7Esta seccao foi escrita com a colaboracao da Prof. Fatima Mota.

Page 300: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

284 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

que e uma base propria comum aos operadores J21 , J

22 , J1z, J2z. Um outro C.C.O.C. em

E e

J21 , J

22 , J

2, Jz , (9.5.6)

e podemos escolher uma base propria comum a estas observaveis:

|k, J1, J2; J,M〉 . (9.5.7)

A questao que se poe e a de determinar esta base em termos da base conhecida (9.5.5).

O problema e tanto mais relevante quando se sabe que, genericamente, num sistema de

partıculas com interaccao apenas o momento angular total e uma constante de movimento,

isto e, apenas o momento angular total comutara com o Hamiltoniano. Consequentemente,

os estados estacionarios (e a evolucao do sistema) podem ser determinados se se conhecer

a base (9.5.7).

Mesmo num sistema de uma so partıcula, surge genericamente um acoplamento entre o

momento angular intrınseco e o orbital, o acoplamento spin-orbita, ja discutido na seccao

9.2, proporcional a ~L · ~S. Na presenca deste termo apenas ~J ≡ ~L + ~S comuta com o

Hamiltoniano do sistema, pelo que os estados estacionarios deverao ser rotulados pelo

valor proprio de J e nao dos momentos angulares individuais, como sera visto, para o

atomo de Hidrogenio, na seccao 11.1.4.

Enunciamos e provamos agora o teorema de adicao de dois momentos angulares.

Teorema de adicao de dois momentos angulares:

No espaco E gerado pelos vectores |k; J1, J2;M1,M2〉 (k, J1, J2, fixos; M1,M2 variaveis),que tem dimensao (2J1 + 1)(2J2 + 1):

• Os valores possıveis de J sao:

J1 + J2, J1 + J2 − 1, J1 + J2 − 2, . . . |J1 − J2| . (9.5.8)

• A cada valor de J correspondem 2J+1 vectores proprios |J,M〉 do momento angulartotal.

Demonstracao:

Page 301: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.5 Adicao de momento angular 285

A demonstracao do teorema tem por base tres observacoes:

(1) O numero quantico M toma valores J1+J2, J1+J2−1, J1+J2−2, . . . ,−J1−J2. De

facto o ket | k1; J1, J2;M1,M2〉 e ket proprio das observaveis J1z, J2z e de Jz. Em particular:

Jz|k; J1, J2;M1,M2〉 =(

J1z + J2z

)

|k; J1, J2;M1,M2〉

= ~ (M1 +M2) |k; J1, J2;M1,M2〉 .

Logo M = M1 + M2. Como Mi toma todos os valores entre −Ji e Ji, M toma todos os

valores entre −(J1+J2) e J1+J2, o que demonstra a afirmacao. Sem perda de generalidade,

no desenvolvimento que se segue, considerar-se-a J1 ≥ J2.

(2) A degenerescencia dos valores de M , g(M), e:

g(M) = g(−M)

0 , |M | > J1 + J2 ,

J1 + J2 + 1− |M | , J1 + J2 ≥ |M | ≥ |J1 − J2| ,

2J2 + 1 , |J1 − J2| ≥ |M | ≥ 0 .

Para deteminar g(M) pode proceder-se como se segue. Num diagrama bidimensional,

associa-se a cada ket |k; J1, J2;M1,M2〉 um ponto cuja abcissa e M1 e cuja ordenada e M2.

Na figura 9.4 mostra-se o caso especıfico de J1 = 2 e J2 = 1. Sendo M = M1 +M2 todos

os pontos do diagrama que estao sobre rectas de declive -1 tem o mesmo M . O numero

desses pontos e g(M). Analisem-se os diferentes valores de M :

• M = J1 + J2 = 3 e nao degenerado. Portanto

g(J1 + J2) = 1 . (9.5.9)

• M = J1 + J2 − 1 = 2 e duplamente degenerado. Portanto:

g(J1 + J2 − 1) = 2 . (9.5.10)

• O grau de degenerescencia cresce entao de 1 cada vez que M decresce de 1, ate se

atingir o vertice inferior direito do diagrama (M1 = J1,M2 = −J2), isto eM = J1−J2.

A degenerescencia de M e maxima para este ponto e vale:

g(J1 − J2) = 2J2 + 1 . (9.5.11)

Page 302: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

286 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

m2

(0,0)

m1

(1,0) (2,0)(-1,0)(-2,0)

(-2,-1) (-1,-1) (0,-1) (1,-1) (2,-1)

(-2,1) (-1,1) (0,1) (1,1) (2,1)

Figura 9.4: Analise da degenerescencia da componente azimutal do momento angular total.

• Para valores de M < J1−J2 a degenerescencia de M mantem-se constante e igual ao

seu valor maximo ate que a linha atravessa o vertice superior esquerdo do diagrama

(M1 = −J1,M2 = J2), isto e M = −J1 + J2:

g(M) = 2J2 + 1 , para − (J1 − J2) ≤ M ≤ J1 − J2 . (9.5.12)

• Finalmente para valores de M inferiores a −(J1 − J2), g(M) decresce de 1 cada vez

que M diminui de 1, ate atingir novamente o valor 1 quando M = −(J1 +J2) (vertice

inferior esquerdo do diagrama). Ou seja:

g(−M) = g(M) . (9.5.13)

(3) Para J1 e J2 fixos, os valores proprios de J2 correspondem a

J = J1 + J2, J1 + J2 − 1, J1 + J2 − 2, . . . , |J1 − J2|, (9.5.14)

e a cada um destes valores corresponde um unico subespaco invariante E(J), isto e, um

multipleto de valores de M .8 Designe-se por p(J) o numero de multipletos associados a um

dado valor J . Os valores de p(J) e de g(M) estao relacionados de uma forma simples:

g(M) = p(J = |M |) + p(J = |M |+ 1) + p(J = |M |+ 2) + . . . . (9.5.15)

8No presente contexto, um multipleto corresponde a um conjunto de estados que se transformam entresi numa rotacao. Mais geralmente, o multipleto de estados numa determinada representacao de um grupode Lie sao estados que se transformam entre si pela accao desse grupo.

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9.5 Adicao de momento angular 287

Invertendo (9.5.15) obtem-se:

p(M) = g(M = J) − g(M = J + 1) (9.5.16)

= g(M = −J) − g(M = −J − 1) (9.5.17)

Usando os resultados da observacao (2) obtem-se sucessivamente:

• p(J) = 0 para J > J1 + J2, pois g(M) = 0 se |M | > J1 + J2.

• Usando (9.5.9) e (9.5.10) obtem-se:

p(J = J1 + J2) = g(M = J1 + J2) = 1 ,

p(J = J1 + J2 − 1) = g(M = J1 + J2 − 1)− g(M = J1 + J2) = 1 .

Por iteraccao obtem-se todos os valores de p(J):

p(J = J1 + J2 − 2) = 1 , . . . , p(J = J1 − J2) = 1 .

• Finalmente: p(J) = 0 para J < J1 − J2.

Concluimos que a cada valor possıvel de J esta associado apenas um multipleto e como

tal 2J + 1 vectores proprios do momento angular total. (q.e.d.)

Matematicamente podemos escrever que o espaco vectorial obtido como produto tenso-

rial (9.5.4) se decompoe na soma directa de espacos vectoriais que tem como base os varios

multipletos, ou seja, na soma directa de varias representacoes irredutıveis do momento

angular:

E(J1)⊗ E(J2) = E(J1 + J2)⊕ E(J1 + J2 − 1)⊕ . . .⊕ E(|J1 − J2|+ 1)⊕ E(|J1 − J2|) .

9.5.1 Calculo dos vectores proprios comuns a J2 e a Jz

Os vectores |J,M〉 (rigorosamente dever-se-ia escrever |J1, J2, J,M〉, mas na pratica usamos

a primeira notacao) podem-se escrever como combinacoes lineares dos vectores da base

inicial |J1, J2;M1,M2〉:

|J,M〉 =

J1∑

M1=−J1

J2∑

M2=−J2

|J1, J2;M1,M2〉 〈J1, J2;M1,M2|J,M〉 . (9.5.18)

Page 304: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

288 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

Os coeficientes 〈J1, J2;M1,M2|J,M〉 desta expansao sao os coeficientes de Clebsch-Gordan.

Nao e possıvel dar uma expressao geral destes coeficientes, mas eles podem ser determinados

seguindo o metodo que a seguir se desenvolve para o caso particular de momentos angulares

1/2 e atendendo a uma serie de convencoes de fase (por exemplo, os coeficientes de Clebsch-

Gordan sao reais).

O caso particular de dois spins 1/2

Como exemplo consideremos um sistema de duas partıculas de spin 1/2. De acordo com

os resultados anteriores, o momento angular total do sistema sera S = 1 ou S = 0.

E(S1 = 1/2)⊗ E(S2 = 1/2) = E(S = 1) ⊕ E(S = 0) (9.5.19)

Teremos portanto dois multipletos: um estado tripleto (dado existirem tres valores de M

para S = 1) e um estado singleto (um unico M para S = 0).

⋆ O estado tripleto (subespaco E(S = 1)): Este subespaco, tridimensional, e gerado pela

base propria |1, 1〉, |1, 0〉, |1,−1〉. E imediato escrever-se, apos uma escolha de fase:

|1, 1〉 = |+,+〉 . (9.5.20)

Os outros estados do tripleto sao obtidos por aplicacao do operador de escada S−:

|1, 0〉 =1

~√

2S− |1, 1〉 (9.5.21)

=1

~√

2(S1− + S2−) |1, 1〉 (9.5.22)

=1√2

[|+,−〉 + | −,+〉] , (9.5.23)

e ainda,

|1,−1〉 =1

~√

2S− |1, 0〉 (9.5.24)

= |−,−〉 . (9.5.25)

Page 305: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.5 Adicao de momento angular 289

⋆ O estado singleto (subespaco E(S = 0)): O unico vector |0, 0〉 deste subespaco e determi-

nado, a menos de um factor constante de fase, usando-se a condicao de ortogonalidade

relativamente aos outros vectores |1,M〉, ja determinados. |0, 0〉 e necessariamente

uma combinacao linear dos vectores |+,−〉 e |−,+〉:

|0, 0〉 = α|+,−〉+ β|−,+〉 . (9.5.26)

A condicao de normalizacao implica que:

〈0, 0|0, 0〉 = |α|2 + |β|2 = 1 . (9.5.27)

A condicao de ortogonalidade a |1, 0〉 (|0, 0〉 e obviamente ortogonal a |1, 1〉 e a |1,−1〉)implica que:

〈0, 0|1, 0〉 =1√2(α+ β) = 0 . (9.5.28)

De (9.5.26) e de (9.5.27) conclui-se que:

α = −β =1√2eiχ , (9.5.29)

onde χ e um numero real. Escolhendo χ = 09 donde:

|0, 0〉 = 1√2

[|+,−〉 − |−,+〉] . (9.5.30)

Caso geral de dois momentos angulares

De acordo com o teorema de adicao do dois momentos angulares:

E(J1)⊗E(J2) = E(J = J1+J2) ⊕ E(J = J1+J2−1) ⊕ . . . ⊕ E(J = |J1−J2|) . (9.5.31)

Para determinar os vectores |J,M〉 que geram os diferentes subespacos segue-se o metodo

exposto no paragrafo anterior. Em especıfico:

i) Considera-se o subespaco de maior multiplicidade, isto e, o maior multipleto, que cor-

responde a J = J1 + J2. Aqui o vector |J, J〉 e facilmente reconhecido:

|J = J1 + J2,M = J1 + J2〉 = |J1, J2;M1 = J1,M2 = J2〉 (9.5.32)

9Por convencao 〈J1, J2; J1, J − J1|J, J〉 sao reais e positivos, 〈J1, J2; M1, J −M1|J, J〉 sao reais e o seusinal e (−1)J1−M1 .

Page 306: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

290 Teoria Geral do Momento Angular e Spin

Os outros vectores deste subespaco sao determinados por aplicacao dos operadores

de escada.

ii) Os vectores de base dos outros subespacos sao determinados escrevendo as combinacoes

lineares de vectores |J1, J2;M1,M2〉 adequadas e usando as condicoes de ortogonali-

dade, as condicoes de normalizacao e as convencoes de fase.

Propriedades dos coeficientes de Clebsch-Gordan

Como se referiu, a determinacao dos coeficientes de Clebsch-Gordan obedece a determi-

nadas convencoes. Existem tabelas destes coeficientes. Importa no entanto referir algumas

propriedades interessantes destes coeficientes. Em particular:

(i) Regras de seleccao: De acordo com o que se referiu no ponto (2) da demonstracao do

teorema de adicao de momento angular, os coeficientes de Clebsch-Gordon sao nulos

se nao se verificarem simultaneamente as duas condicoes:

|J1 − J2| ≤ J ≤ J1 + J2 , M = M1 +M2 .

A desigualdade e conhecida como a desigualdade triangular ja que tem implıcito que

um triangulo pode ser construıdo com lados de comprimentos J1, J2 e J . Estes tres

numeros desempenham papeis identicos; a desigualdade pode ser reescrita sob as

formas equivalentes:

|J − J1| ≤ J2 ≤ J + J1 , ou |J − J2| ≤ J1 ≤ J + J2 .

(ii) Relacoes de ortogonalidade:∑

M1,M2

〈J1, J2;M1,M2|J,M〉 〈J1, J2;M1,M2|J ′,M ′〉 = δJJ ′δMM ′ ,

J,M

〈J1, J2;M1,M2|J,M〉 〈J1, J2;M′

1,M′

2|J,M〉 = δM1M′1δM2M

′2.

(9.5.33)

(iii) Relacoes de recorrencia:√

J(J + 1)−M(M + 1)〈J1, J2;M1,M2|J,M + 1〉 =

J1(J1 + 1)−M1(M1 − 1)〈J1, J2;M1 − 1,M2|J,M 〉

+√

J2(J2 + 1)−M2(M2 − 1)〈J1, J2;M1,M2 − 1|J,M〉 ,

(9.5.34)

Page 307: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

9.6 Sumario 291

J(J + 1)−M(M − 1)〈J1, J2;M1,M2|J,M − 1〉 =

J1(J1 + 1)−M1(M1 + 1)〈J1, J2;M1 + 1,M2|J,M〉

+√

J2(J2 + 1)−M2(M2 + 1)〈J1, J2;M1,M2 + 1|J,M〉 .

(9.5.35)

9.6 Sumario

Neste capıtulo comecamos por discutir as representacoes da algebra do momento angular,

descobrindo que existem em maior numero do que as que correspondem ao momento angu-

lar orbital. As representacoes extra correspondem a spin semi-inteiro. Vimos seguidamente

que estas representacoes sao necessarias para descrever certos resultados experimentais,

como a estrutura fina, o efeito Zeeman anomalo e a experiencia de Stern-Gerlach. Em

particular, estas experiencias requerem que se descreva o electrao como uma partıcula de

spin 1/2. Dada esta necessidade, Pauli introduziu certos postulados adicionais na mecanica

quantica nao relativista, para descrever o spin das partıculas, que enunciamos. Estudamos

em detalhe o formalismo quantico para o caso das partıculas de spin 1/2, como o electrao,

em que o espaco de estados de spin tem dimensao 2. Consideramos o teorema de adicao do

momento angular e descobrimos quais os valores possıveis para o momento angular total

de um sistema com varios momentos angulares individuais. Na transformacao entre a base

do momento angular total e dos momentos angulares individuais aparecem os coeficientes

de Clebsch-Gordan, que estudamos em detalhe no caso de um sistema de duas partıculas

de spin 1/2.

Page 308: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro
Page 309: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

CAPITULO 10

Teoria da Difusao

Nos capıtulos anteriores estabelecemos metodos que nos permitem calcular a funcao de

onda dado o potencial. O conhecimento da funcao de onda permite-nos entao calcular

quantidades fısicas, como o espectro de estados ligados ou o factor de transmissao. Estas

sao quantidades relacionaveis com a experimentacao. Portanto, tendo um modelo teorico

do potencial fazemos previsoes que podem ser comparadas com a experiencia.

Muitas vezes, em fısica, o problema em mao e o inverso do descrito anteriormente.

Temos resultados experimentais e pretendemos obter um modelo teorico. Por exemplo,

um tipo de experiencias frequente em fısica, especialmente em fısica das altas energias,

consiste em fazer incidir um feixe de partıculas - que denominamos por ′′(1)′′ - num alvo

composto por outras partıculas - que denominamos por ′′(2)′′ - e estudar a colisao resultante.

Genericamente mede-se o estado final do sistema apos a colisao, isto e, o tipo de partıculas

resultantes e as suas caracterısticas, como direccao de emissao, energia, etc. Mas o objectivo

fundamental do estudo e determinar as interaccoes que ocorreram entre as varias partıculas

que entraram no processo de colisao.

Os fenomenos observados na colisao, ditos reaccoes variam em complexidade:

• Nos casos mais simples o estado inicial e final do sistema sao compostos pelas mesmas

Page 310: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

294 Teoria da Difusao

partıculas (1) e (2):

(1) + (2) −→ (1) + (2) .

Estas reaccoes sao denominadas reaccoes de difusao, (“scattering” em ingles).

• Em casos mais gerais nao e assim. As partıculas (1) e (2) podem ser compostas por

outras mais elementares (como nucleos sao compostos por nucleoes e nucleoes por

quarks), que se podem redistribuir durante a colisao, originando novas partıculas

compostas, diferentes das partıculas iniciais:

(1) + (2) −→ (3) + (4) + (5) + . . . .

Estas reaccoes sao denominadas reaccoes com rearranjo.

• Notemos ainda que a altas energias existe a possibilidade relativista de “materializacao”

de parte da energia, originando novas partıculas no estado final.

No nosso estudo vamo-nos restringir a difusao. Na maior parte deste capıtulo vamos

considerar ainda que esta difusao e elastica, isto e, que para alem de as partıculas iniciais

e finais serem as mesmas, os seus estados internos nao se modificam durante a colisao.

Isto significa, em particular, que nao ha emissao ou absorcao de energia por estes estados

internos. Na seccao 10.4 sera considerada a difusao inelastica.

Se o nosso problema de colisao caisse no ambito da mecanica classica, o nosso objectivo

seria determinar os desvios das trajectorias das partıculas incidentes (1) devido a forca

exercida pelas partıculas alvo (2). Mas o problema em que estamos interessados ocorre a

escala atomica ou nuclear, caindo no ambito da mecanica quantica. Assim devemos estudar

a evolucao da funcao de onda associada as partıculas incidentes (1) devida a influencia das

interaccoes com as partıculas alvo (2). A funcao de onda ira ‘difundir-se’, justificando o

nome do processo.

No nosso estudo iremos usar algumas hipoteses simplificativas:

• Consideraremos que as partıculas (1) e (2) nao tem spin. Esta hipotese tem como ob-

jectivo simplificar a teoria e nao deve ser interpretada como implicando que o spin

Page 311: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

295

nao tem importancia em fenomenos de difusao. Pelo contrario, se no Hamiltoniano

houver termos dependentes de spin, diferentes estados de spin difundir-se-ao difer-

entemente; no final sera necessario pesar a contribuicao dos diferentes estados de

spin. Este estudo sera considerado em detalhe no capıtulo 12, onde estudaremos

partıculas identicas e consideraremos problemas de difusao com spin.

• Nao levaremos em consideracao uma possıvel estrutura interna das partıculas (1) e (2).

O formalismo que iremos desenvolver ate a seccao 10.4 nao sera portanto aplicavel a

fenomenos de difusao inelastica onde parte da energia cinetica de (1) e absorvida, no

estado final pelos graus de liberdade internos de (1) e (2); sera apenas para difusao

elastica. Na seccao 10.4 consideraremos brevemente difusao inelastica.

• Assumiremos que o alvo e suficientemente fino para nos permitir negligenciar processos

de difusao multiplos, em que uma partıcula incidente e difundida varias vezes antes

de abandonar o alvo.

• Negligenciaremos qualquer possibilidade de coerencia entre as ondas difundidas pelas

diferentes partıculas que constituem o alvo. Esta simplificacao e justificada quando

a dispersao dos pacotes de ondas associados as partıculas incidentes (1) e pequena

comparada com as distancias tıpicas das partıculas do alvo. Ou seja, concentrar-

nos-emos em processos elementares de difusao de uma partıcula incidente (1), por

uma partıcula do alvo (2). Negligenciando estes efeitos de coerencia, o fluxo de

partıculas detectadas e simplesmente a soma dos fluxos difundidos por cada uma das

N partıculas do alvo, isto e, N vezes o fluxo difundido por cada uma das partıculas

do alvo. Note-se que esta aproximacao exclui fenomenos interessantes, como difusao

coerente de um cristal - difraccao de Bragg.

• Assumiremos que a interaccao entre as partıculas (1) e (2) pode ser descrita por uma

energia potencial V (~r1 − ~r2) que depende apenas da posicao relativa ~r = ~r1 − ~r2das partıculas. Utilizando o referencial do centro de massa, o problema reduz-se ao

estudo da difusao de uma partıcula devido ao potencial V (~r). Esta partıcula tem

Page 312: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

296 Teoria da Difusao

massa µ, que e a massa reduzida

1

µ=

1

m1

+1

m2

, (10.0.1)

onde m1 e m2 sao as massas de (1) e de (2).

10.1 Formalismo para descrever processos de difusao

10.1.1 Definicao da seccao eficaz de difusao

Seja Oz a direccao das partıculas incidentes, de massa µ. O potencial V (~r) esta local-

izado a volta da origem, O - figura 10.1. Seja Fi o fluxo de partıculas no feixe incidente,

isto e, o numero de partıculas que, por unidade de tempo, atravessam uma superfıcie de

area unitaria perpendicular a Oz na regiao com z → −∞. Assumimos que este fluxo e

suficientemente pequeno para negligenciar as interaccoes entre as partıculas do feixe. Um

detector e colocado longe da regiao onde o potencial e efectivo, numa direccao definida

pelos angulos polar θ e azimutal φ, com a abertura voltada para o centro de difusao O e

compreendendo um angulo solido dΩ. Podemos assim contar o numero de partıculas dn,

difundidas por unidade de tempo para dentro do angulo solido dΩ, em torno da direccao

definida por (θ, φ). E de esperar que dn seja proporcional a dΩ e tambem a Fi; logo1

dn = σ(θ, φ)FidΩ , (10.1.1)

onde o coeficiente de proporcionalidade σ(θ, φ) e denominado seccao eficaz diferencial de

difusao na direccao (θ, φ). Dimensionalmente, a equacao anterior e

1

T= [σ(θ, φ)]

1

TL2⇔ [σ(θ, φ)] = L2 . (10.1.2)

Ou seja, a seccao eficaz diferencial de difusao tem as dimensoes de uma area. Frequente-

mente, σ(θ, φ) e medida em termos de ‘barns’ 2

1Note que por vezes sao usadas diferentes notacoes na literatura; o numero de partıculas difundidas porunidade de tempo para dentro do angulo solido dΩ e por vezes denotado dn/dt e a seccao eficaz diferencialde difusao na direccao (θ, φ) por dσ(θ, φ)/dΩ.

2O termo “barn” como unidade de area para seccoes eficazes surge durante o esforco de guerra norte-americano para o desenvolvimento da bomba atomica, durante trabalho feito na Universidade de Purdue

Page 313: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.1 Formalismo para descrever processos de difusao 297

Fi

feixe incidente

Zona onde o potencial difundeFluxo

zO

Detector

V(r)

θ

Figura 10.1: Representacao dos varios elementos que entram num processo de difusao.

e seus sub-multiplos, onde

1 barn ≡ 10−24 cm2 .

De um modo natural define-se a seccao eficaz total de difusao σ, como

σ ≡∫

σ(θ, φ)dΩ . (10.1.3)

num projecto precursor do projecto Manhattan - o famoso projecto em Los Alamos onde seriam construidasas primeiras bombas. Como reportado na edicao de Julho de 1972 da “Physics Today”, por altura deDezembro de 1942 os fısicos Marshall Holloway e Charles P. Baker da Universidade de Cornell, duranteum jantar, atiravam ideias para denominar a unidade para a seccao eficaz nuclear tıpica. Na sequencia deuma associacao de ideias bem humurada sugeriram o “barn”. Nas suas palavras: “The tradition of naming

a unit after some great man closely associated with the field ran into difficulties since no such person could

be brought to mind. Failing in this, the names Oppenheimer and Bethe were tried, since these men had

suggested and made possible the work on the problem with which the Purdue project was concerned. The

”Oppenheimer” was discarded because of its length, although in retrospect an ”Oppy” or ”Oppie” would

seem to be short enough. The ”Bethe” was thought to lend itself to confusion because of the widespread

use of the Greek letter. Since John Manley was directing the work at Purdue, his name was tried, but the

”Manley” was thought to be too long. The ”John” was considered, but was discarded because of the use

of the term for purposes other than as the name of a person. The rural background of one of the authors

then led to the bridging of the gap between the ”John” and the ”barn”. This immediately seemed good

and further it was pointed out that a cross section of 10-24 cm2 for nuclear processes was really as big

as a barn. Such was the birth of the ”barn”.” Claro que a necessidade de uma nova unidade foi forcadaaos fısicos nucleares pela necessidade de comunicar telefonicamente com outros sobre topicos altamentesecretos. O nome “pegou” e a unidade “barn” foi adoptada em Los Alamos, tornando-se o seu significadosecreto. Os dois autores da proposta descreveram a sua sugestao num relatorio de 13 de Setembro de 1944e daqui resultou o relatorio de Los Alamos ”Origin of the Term ‘barn’”(LAMS523) de 5 de Marco de 1947.O significado foi “desclassificado” em 4 de Agosto de 1948.

Page 314: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

298 Teoria da Difusao

Note-se que, na definicao de σ(θ, φ), dn contabiliza apenas as partıculas difundidas. O

fluxo destas partıculas que atingem o detector e inversamente proporcional ao quadrado

da distancia entre O e o detector. Se se colocar o detector em θ = 0, misturar-se-ao a

estas as partıculas transmitidas, que terao a mesma forma das do feixe incidente, pelo que

σ(0, φ) nao e obtido directamente, mas por extrapolacao de σ(θ, φ) para θ pequeno.

10.1.2 Estados estacionarios de difusao

Para descrevermos, em Mecanica Quantica, a difusao de uma partıcula incidente devido

a um potencial V (~r) e necessario estudar a evolucao temporal do pacote de ondas que

descreve a partıcula. Assumimos conhecer o pacote de ondas para t → −∞ quando a

partıcula esta na regiao negativa do eixo Oz, inafectada pelo potencial V (~r). A evolucao

subsequente do pacote de ondas e trivialmente estabelecida se expressarmos o pacote de

ondas como uma sobreposicao de estados estacionarios do Hamiltoniano do problema

H =~p2

2µ+ V (~r) . (10.1.4)

Por isso, e tal como no capıtulo 3, em vez de estudarmos pacotes de ondas, vamos

concentrar-nos nos proprios estados estacionarios.

A equacao de Schrodinger independente do tempo para o Hamiltoniano anterior e:(

− ~2

2µ∆ + V (~r)

)

Φ(~r) = EΦ(~r) . (10.1.5)

Consideremos apenas energias positivas, E, iguais a energia cinetica da partıcula incidente

antes de entrar na zona de influencia do potencial

E =~2k2

2µ, (10.1.6)

onde k e o modulo do vector de onda ~k que descreve a partıcula quando e livre. Definindo

V (~r) ≡ ~2

2µU(~r) , (10.1.7)

reescrevemos a equacao de Schrodinger como

[∆ + k2 − U(~r)]Φ(~r) = 0 . (10.1.8)

Page 315: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.1 Formalismo para descrever processos de difusao 299

Para cada energia, isto e, para cada k, existe um numero infinito de solucoes desta equacao,

dependendo das condicoes fronteira; o espectro de energias e infinitamente degenerado.

Mas tal como nos problemas de potenciais constantes por pedacos do capıtulo 3 impuse-

mos restricoes de caracter fısico as solucoes (como normalizabilidade da funcao de onda

que excluia funcoes com crescimento assimptotico exponencial, ou a existencia de apenas

uma onda transmitida no lado oposto ao da onda incidente), tambem aqui impomos re-

stricoes fısicas as solucoes que descrevem um processo de difusao. As funcoes de onda que

obedecem a essas condicoes, denotadas vdifk (~r), representam os estados estacionarios de

difusao. Devem ter as seguintes duas propriedades:

1) Para valores grandes negativos de t, a partıcula incidente e livre pois o potencial e

negligenciavel. Logo a funcao de onda que descreve o estado estacionario de difusao

deve conter um termo da forma eikz, que descreve a onda incidente

vinck (~r) ∼ eikz . (10.1.9)

2) Quando o pacote de ondas atinge a zona onde o potencial e efectivo, a sua estrutura

pode ser drasticamente alterada. Mas para valores grandes e positivos de t esperamos

que os estados estacionarios sejam compostos por uma onda difundida. Para r →∞,

U(~r)→ 0 e como tal a onda difundida obedece a

(∆ + k2)vdifk ≃ 0 . (10.1.10)

Se esta onda fosse isotropica, isto e se tivesse apenas dependencia radial, esta equacao

ficaria, em coordenadas esfericas,

(

1

r2

d

drr2 d

dr+ k2

)

vdifk (r) = 0 , (10.1.11)

que se verifica facilmente ter solucoes do tipo

e±ikr

r. (10.1.12)

Page 316: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

300 Teoria da Difusao

Escolhendo o sinal positivo, de modo a representar uma onda que se propague para fora,

e considerando a possibilidade de anisotropia, tomamos a funcao de onda associada ao

estado estacionario de difusao, para ~r →∞, como tendo a forma

vdifk (~r)

~r→∞−→ eikz + fk(θ, φ)eikr

r. (10.1.13)

E na funcao fk(θ, φ), denominada amplitude de difusao, que surge toda a dependencia

desta solucao assimptotica no potencial. Por exemplo, se V = 0, fk(θ, φ) = 0. Pode-se

demonstrar que a equacao (10.1.8) tem uma unica solucao que obedece a (10.1.13).

Concluimos esta seccao com duas notas:

• A equacao (10.1.10) e singular em r = 0; assim, a solucao (10.1.12) so tem que verificar

a equacao para r 6= 0. Veremos na seccao 10.2.1 que, mais correctamente,

(∆ + k2)e±ikr

r∝ δ(~r) . (10.1.14)

• O pacote de ondas que representa o estado da partıcula pode ser expandido em termos

dos estados estacionarios do Hamiltoniano (que nao sao ondas planas); a sua funcao

de onda tera a forma

Ψ(t, ~r) =

∫ +∞

0

dk g(k)vdifk (~r)e−iEkt/~ , Ek =

~2k2

2µ. (10.1.15)

10.1.3 Relacao entre amplitude e seccao eficaz de difusao

Como ja discutimos anteriormente, num problema fısico, uma partıcula quantica sera de-

scrita por um pacote de ondas. Para calcular a seccao eficaz de difusao deverıamos consid-

erar a difusao desse pacote de ondas incidente pelo potencial V (~r). Mas, mais uma vez de-

vido a linearidade da equacao de Schrodinger, podemos tratar apenas estados estacionarios

de difusao. Podemos pensar nesses estados como descrevendo uma corrente estacionaria

de um fluido de probabilidade e calculamos entao a seccao eficaz da corrente incidente e

difundida. O metodo e analogo ao usado na barreira quadrada do capıtulo 3, onde a razao

entre a corrente transmitida (ou reflectida) e a corrente incidente da-nos o coeficiente de

Page 317: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.1 Formalismo para descrever processos de difusao 301

transmissao (ou reflexao). Assim iremos calcular as contribuicoes da onda incidente e da

onda difundida de um estado estacionario de difusao para a corrente de probabilidade.

Recordemos que o vector densidade de corrente de probabilidade (4.4.53), se pode

escrever, para um estado estacionario

~J(~r) =i~

2µ[Φ(~r)∇Φ(~r)∗ − Φ(~r)∗∇Φ(~r)] =

1

µRe

(

Φ∗(~r)~

i∇Φ(~r)

)

. (10.1.16)

Calculemos o vector densidade de corrente de probabilidade para:

• Onda incidente/transmitida eikz. Neste caso so existe componente segundo z

J iz(~r) =

1

µRe

(

e−ikz ~

iikeikz

)

=k~

µ, (10.1.17)

que nao e mais do que a intensidade da funcao de onda incidente Ii, (3.2.18).

• Onda difundida fk(θ, φ)eikr/r. Notamos primeiro que em coordenadas esfericas

∇ ≡(

∂r,1

r

∂θ,

1

r sin θ

∂φ

)

; (10.1.18)

logo, as componentes em coordenadas esfericas do vector densidade de corrente de

probabilidade sao:

Jdr =

1

µRe

(

f ∗k

e−ikr

r

~

i

(

− 1

r2+ik

r

)

eikrfk

)

=~k

µ

|fk(θ, φ)|2r2

, (10.1.19)

Jdθ =

1

µRe

(

f ∗k

e−ikr

r3

~

ieikr ∂

∂θfk

)

=~

µr3Re

(

−if ∗k

∂θfk

)

, (10.1.20)

Jdφ =

~

µr3 sin θRe

(

−if ∗k

∂φfk

)

. (10.1.21)

Concluimos que, assimptoticamente, Jθ e Jφ sao negligenciaveis e a corrente difundida

e essencialmente radial.

Para relacionarmos σ(θ, φ) com fk(θ, φ) recordemos a definicao de seccao diferencial de

difusao (10.1.1). Quer o fluxo incidente de partıculas quer o fluxo difundido serao propor-

cionais as respectivas densidades de corrente de probabilidade com a mesma constante de

Page 318: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

302 Teoria da Difusao

proporcionalidade.3 Logo, obtemos para o fluxo incidente

Fi = C|J i| = C~k

µ. (10.1.22)

O numero de partıculas que atinge a abertura do detector por unidade de tempo e pro-

porcional ao fluxo do vector densidade de corrente de probabilidade difundido atraves da

superfıcie d~S da abertura do detector:

dn = C ~Jd · d~S assimptoticamente≃ C(Jd)rr2dΩ = C

~k

µ|fk(θ, φ)|2dΩ . (10.1.23)

Logo, (10.1.1) diz-nos que

σ(θ, φ) = |fk(θ, φ)|2 . (10.1.24)

Ou seja, a seccao eficaz diferencial de difusao e o quadrado do modulo da amplitude de

difusao, o que justifica o nome da ultima quantidade.

Notemos que no calculo da corrente probabilidade difundida negligenciamos a inter-

ferencia entre eikz (corrente incidente) e fk(θ, φ)eikr/r (corrente difundida). Na realidade

esta interferencia so e importante perto de θ = 0, onde de qualquer modo extrapolamos

o resultado para a seccao eficaz diferencial a partir dos valores para θ pequeno, como

comentamos anteriormente.

10.2 Equacao integral de difusao e o metodo de Born

Para demonstrar a existencia de estados estacionarios cujo comportamento assimptotico

e (10.1.13) vamos estabelecer uma equacao integral de difusao da qual tais estados serao

solucoes. Recordemos a equacao (10.1.8) que reescrevemos na forma

[∆ + k2]Φ(~r) = U(~r)Φ(~r) . (10.2.1)

Introduzimos agora a funcao de Green, G(~r), do operador ∆ + k2, definida pela equacao:

[∆ + k2]G(~r) = δ(~r) , (10.2.2)

3Da mesma maneira que o fluxo de partıculas num fluido ou numa corrente electrica e proporcional aosrespectivos vectores densidade de corrente.

Page 319: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.2 Equacao integral de difusao e o metodo de Born 303

onde δ(~r) e um delta de Dirac. Podemos tomar partido desta funcao para construir solucoes

de (10.2.1). Seja Φ0(~r) uma solucao da equacao (10.2.1) com o lado direito igual a zero,

isto e

[∆ + k2]Φ0(~r) = 0 . (10.2.3)

A funcao

Φ(~r) = Φ0(~r) +

d3~r′G(~r − ~r′)U(~r′)Φ(~r′) , (10.2.4)

e entao tambem solucao de (10.2.1). Para demonstrar este facto actuamos com o operador

(∆ + k2) em ambos os lados da equacao (10.2.4); obtemos

(∆ + k2)Φ(~r) = (∆ + k2)Φ0(~r) +

d3~r′U(~r′)Φ(~r′)(∆ + k2)G(~r − ~r′) , (10.2.5)

onde usamos o facto de que (∆ + k2) actua na variavel ~r e nao ~r′, e como tal pode ser

colocado dentro do integral. Usando agora (10.2.2) e (10.2.3) obtemos

(∆ + k2)Φ(~r) =

d3~r′U(~r′)Φ(~r′)δ(~r − ~r′) = U(~r)Φ(~r) , (10.2.6)

o que demonstra que (10.2.4) e solucao de (10.2.1). Reciprocamente pode-se demonstrar

que qualquer solucao de (10.2.1) se pode apresentar na forma (10.2.4). Isto e intuitivo se

pensarmos em (10.2.1) como uma equacao diferencial homogenea - lado esquerdo - com

uma fonte - termo do lado direito; pensamos entao em (10.2.4) como a soma da solucao

geral da equacao homogenea, Φ0, com uma solucao particular que considera o termo de

fonte.

A equacao integral (10.2.4) e denominada equacao integral de difusao. A sua principal

vantagem relativamente a equacao diferencial (10.2.1) e que, escolhendo Φ0(~r) e G(~r) apro-

priadamente, podemos obter, sem mais trabalho, Φ(~r) com o comportamento assimptotico

desejado. Portanto a equacao integral (10.2.4) torna-se equivalente a equacao diferencial

(10.2.1) mais a condicao assimptotica (10.1.13). E exactamente esse resultado que vamos

agora estabelecer.

Page 320: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

304 Teoria da Difusao

10.2.1 Escolha da funcao de Green e de Φ0

Comecemos por discutir as funcoes de Green. Com este proposito enunciamos, sem prova,

o seguinte resultado

(

1

r

)

= −4πδ(~r) , (10.2.7)

onde ∆ e o laplaciano em tres dimensoes, r a coordenada esferica radial e δ(~r) o delta de

Dirac em tres dimensoes.4 Considerando este resultado e a equacao de definicao da funcao

de Green, (10.2.2), concluimos que, perto de r = 0,

G(~r)r→0≃ − 1

4πr. (10.2.8)

Por outro lado ja vimos, na seccao 10.1.2, que para ~r 6= 0,

(∆ + k2)e±ikr

r= 0 . (10.2.9)

Logo, tomamos as funcoes de Green,

G±(~r) = − 1

e±ikr

r, (10.2.10)

onde G+ e denominada funcao de Green ‘outgoing’ e G− e denominada funcao de Green

‘incoming’. Equivalentemente estamos a estabelecer o resultado

(

∆ + k2) e±ikr

r= −4πδ(~r) . (10.2.11)

4Podemos motivar este resultado (o que nao constitui uma prova!) pelo seguinte raciocınio. Consider-amos a equacao de Poisson para o campo gravıtico com uma massa pontual M , descrita por um delta deDirac:

∆φ(~r) = 4πGMδ(~r) ⇔ 1

r2

d

drr2 d

drφ = 4πGMδ(~r) .

Integramos ambos numa esfera de raio R. Do lado esquerdo usamos coordenadas esfericas e do lado direitocoordenadas cartesianas:

∫ R

0

drr2 1

r2

d

drr2 d

drφ = 4πGM

dx

dy

dzδ(x)δ(y)δ(z) ,

logo

R2 d

dRφ = GM ⇔ φ(R) = −GM

R+ constante .

Colocando esta solucao na primeira equacao temos

(

−GM

r+ constante

)

= 4πGMδ(~r) ⇔ ∆

(

1

r

)

= −4πδ(~r) ,

que e a equacao (10.2.7).

Page 321: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.2 Equacao integral de difusao e o metodo de Born 305

u

r

r’

r r’

PO

L

M

Figura 10.2: Representacao de um ponto assimptoticamente longe da zona de influenciade um potencial.

O comportamento assimptotico que desejamos obter (10.1.13) sugere que escolhamos

Φ0 = eikz , (10.2.12)

e a funcao de Green ‘outgoing’, G(~r) = G+(~r). Isto e, tomamos os estados estacionarios

de difusao na forma (10.2.4) com estas escolhas:

vdifk (~r) = eikz +

d3~r′G+(~r − ~r′)U(~r′)vdifk (~r′) . (10.2.13)

Vamos entao demonstrar que estes estados estacionarios tem o comportamento assimptotico

correcto. Para isso consideramos um potencial cuja zona de influencia, centrada em ~r = 0,

tem uma escala linear L - figura 10.2. Consideramos um ponto longe desta zona de in-

fluencia, M , para o qual |~r| ≫ L. Considerando o vector de posicao de um outro ponto, ~r′

temos que

|~r−~r′| =√

(~r − ~r′) · (~r − ~r′) =

r2 − 2~r · ~r′ + (r′)2 = r

1− 2~r′ · ~ur

+

(

r′

r

)2

, (10.2.14)

onde r = |~r|, r′ = |~r′| e ~u e o versor na direccao de ~r, ~r = r~u. Especializemos para o caso

em que ~r′ e a posicao de um ponto arbitrario, P , na zona de influencia do potencial. Para

todos estes pontos verifica-se que |~r′| < L≪ |~r|; logo expandimos a expressao anterior em

potencias de r′/r, obtendo

|~r − ~r′| ≃ r − ~r′ · ~u . (10.2.15)

Page 322: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

306 Teoria da Difusao

Nestas condicoes obtemos a expressao assimptotica

G+(~r − ~r′) = − 1

eik|~r−~r′|

|~r − ~r′|≃ − 1

eikr

re−ik~u·~r′ . (10.2.16)

Substituindo no estado de difusao (10.2.13) obtemos o comportamento assimptotico

vdifk (~r)

r→∞≃ eikz − eikr

4πr

d3~r′e−ik~u·~r′U(~r′)vdifk (~r′) . (10.2.17)

Este e, de facto, o comportamento assimptotico (10.1.13), dado que o integral ja nao de-

pende da distancia r, mas apenas dos angulos θ e φ, atraves de ~u. Concluimos deste

modo que os estados definidos pela equacao integral (10.2.13) tem o comportamento as-

simptotico correcto para serem estados estacionarios de difusao. Mais ainda, comparando

com (10.1.13) reconhecemos a amplitude de difusao como sendo

fk(θ, φ) = − 1

d3~r′e−ik~u·~r′U(~r′)vdifk (~r′) . (10.2.18)

10.2.2 A aproximacao de Born

Vamos agora estabelecer uma solucao aproximada da equacao integral de difusao para os

estados estacionarios de difusao, e como tal para a amplitude de difusao e seccao eficaz

diferencial de difusao. Comecamos por escrever

eikz = ei~ki·~r , (10.2.19)

onde ~ki e o vector de onda incidente. Em termos de ~ki, os estados estacionarios de difusao

(10.2.13) ficam:

vdifk (~r) = ei~ki·~r +

d3~r′G+(~r − ~r′)U(~r′)vdifk (~r′) . (10.2.20)

Facamos uma mudanca de notacao: ~r → ~r′ e ~r′ → ~r′′; logo

vdifk (~r′) = ei~ki·~r′ +

d3 ~r′′G+(~r′ − ~r′′)U(~r′′)vdifk (~r′′) . (10.2.21)

Seguidamente inserimos (10.2.21) em (10.2.20) e obtemos

vdifk (~r) = ei~ki·~r +

d3~r′G+(~r − ~r′)U(~r′)ei~ki·~r′

+

d3~r′G+(~r − ~r′)U(~r′)

d3 ~r′′G+(~r′ − ~r′′)U(~r′′)vdifk (~r′′) .

(10.2.22)

Page 323: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.2 Equacao integral de difusao e o metodo de Born 307

Note-se que agora conhecemos os dois primeiros termos do lado direito. Apenas descon-

hecemos o terceiro, pois inclui a funcao desconhecida vdifk . Podemos repetir novamente

o procedimento, substituindo em (10.2.20) ~r → ~r′′ e ~r′ → ~r′′′. Substituindo a expressao

resultante em (10.2.22) obtemos

vdifk (~r) = ei~ki·~r +

d3~r′G+(~r − ~r′)U(~r′)ei~ki·~r′

+

d3~r′G+(~r − ~r′)U(~r′)

d3 ~r′′G+(~r′ − ~r′′)U(~r′′)ei~ki· ~r′′

+

d3~r′G+(~r − ~r′)U(~r′)

d3 ~r′′G+(~r′ − ~r′′)U(~r′′)

d3 ~r′′′G+(~r′′ − ~r′′′)U( ~r′′′)vdifk ( ~r′′′) .

(10.2.23)

Agora, os tres primeiros termos do lado direito sao conhecidos e apenas o quarto descon-

hecido. Podemos repetir o processo quantas vezes desejarmos, de modo a ficarmos com os

n primeiros termos do lado direito conhecidos e apenas o termo n + 1 desconhecido. Este

metodo, denominado expansao de Born pode ser usado para construir a funcao de onda

dos estados estacionarios de difusao, desde que o potencial seja fraco. O ponto principal

desta expansao e que cada novo termo introduziu mais uma potencia do potencial U(~r). O

significado de o potencial ser fraco e de que este novo termo devera ser pequeno. Sendo L a

escala tıpica do potencial, e U = 2µV/~2 a sua magnitude tıpica, o significado quantitativo

de “o potencial ser fraco” e√U =

√2µV

~≪ 1

L. (10.2.24)

Isto e a escala de energia associada a magnitude do potencial e muito menor do que a escala

de energia associada ao seu comprimento. Logo, se o potencial for fraco, a expansao de

Born e uma expansao perturbativa; isto e, cada termo e menor do que o anterior, pelo que

podemos truncar a expansao num determinado ponto e negligenciar o ultimo termo, e como

tal calcular o lado direito da equacao. Se substituirmos a expansao de Born para vdifk (~r′)

em (10.2.18), obtemos a expansao de Born para a amplitude de difusao. A aproximacao

de Born e truncar a expansao de Born considerando apenas os primeiros dois termos, isto

e

vdifk (~r′) = ei~ki·~r′ , (10.2.25)

Page 324: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

308 Teoria da Difusao

r

r’

r

r’r’’

Figura 10.3: Esquerda: Na aproximacao de Born contabilizamos apenas a contribuicaoda onda incidente e de ondas difundidas uma vez na zona onde o potencial e efectivo.Direita: As aproximacoes seguintes levam em conta multiplas difusoes, que podem sernegligenciadas, caso o potencial seja fraco.

pelo que (10.2.18) fica

fBornk (θ, φ) = − 1

d3~r′e−ik~u·~r′U(~r′)ei~ki·~r′ . (10.2.26)

Denotando o vector de onda difundido ~kd ≡ k~u e o vector de onda transferido ~q ≡ ~kd −~ki,

reescrevemos este resultado como

fBornk (θ, φ) = − 1

d3~r′e−i~q·~r′U(~r′) = − 2µ

4π~2

d3~r′e−i~q·~r′V (~r′) , (10.2.27)

onde usamos (10.1.7). Finalmente, usando (10.1.24), obtemos para a seccao eficaz diferen-

cial de difusao na aproximacao de Born

σBornk (θ, φ) =

µ2

4π2~4

d3~re−i~q·~rV (~r)

2

. (10.2.28)

Concluimos, portanto, que na aproximacao de Born, a seccao eficaz diferencial de difusao

esta muito simplesmente relacionada com a transformada de Fourier do potencial. O vector

de onda transferido ~q, depende do modulo de ~ki e ~kd (que e o mesmo - k) e da direccao

de difusao (θ, φ). Para uma dada direccao de difusao, a seccao eficaz de Born varia com

k, ou seja com a energia do feixe incidente. Por outro lado, para uma dada energia σBorn

varia com (θ, φ). Concluimos que estudando as variacoes de σBorn com θ, φ ou ainda com

a energia incidente, deduzimos informacao sobre o potencial V (~r).

10.2.3 Interpretacao da aproximacao de Born

Recordemos a equacao (10.2.20). Podemos pensar na funcao G+(~r−~r′) como representando

a amplitude, no ponto ~r, da onda emitida por uma fonte pontual em ~r′. Este ponto de

Page 325: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.2 Equacao integral de difusao e o metodo de Born 309

vista e corroborado pela expressao (10.2.16). Tomando a aproximacao de Born (10.2.25),

(10.2.20) diz-nos que a onda difundida em ~r e a soma da onda incidente com um numero

infinito de ondas provenientes de fontes secundarias; estas fontes secundarias existem em

todos os ~r′ onde U(~r′ 6= 0) - figura 10.3 esquerda. Os termos seguintes da expansao de

Born levam em conta novas fontes secundarias que sao elas proprias excitadas por ondas

emitidas por fontes secundarias - figura 10.3 direita. Podemos assim interpretar o facto de

a expansao de Born ser perturbativa, quando o potencial e fraco, como significando que

podemos negligenciar a influencia de fontes secundarias umas nas outras.

Nota: Os processos de difusao multipla considerados na expansao de Born nada tem

a ver com os processos de difusao multipla que dissemos ir negligenciar no princıpio deste

capıtulo. No primeiro caso estamos a falar pela difusao multipla da partıcula incidente por

uma partıcula alvo; no segundo na difusao multipla da partıcula incidente por diferentes

partıculas do alvo.

10.2.4 A aproximacao de Born para potenciais centrais

No caso de o potencial difusor ser central, que inclui muitos casos de interesse fısico,

podemos escrever uma formula mais usavel para a amplitude de difusao e consequentemente

para a seccao eficaz de difusao. Esta formula e estabelecida usando a seguinte propriedade

de transformadas de Fourier tres dimensionais:

Lema: Seja f(~r) uma funcao tres dimensional com transformada de Fourier

f(~q) =1

(2π)3/2

d3~rf(~r)e−i~q·~r . (10.2.29)

Se f(~r) = f(r), isto e, a funcao depende apenas do modulo de ~r, r, entao:

i) f depende apenas do modulo de ~q, q;

ii) f(q) pode ser calculada pela expressao:

f(q) =2√2π q

∫ +∞

0

r sin qrf(r)dr . (10.2.30)

Page 326: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

310 Teoria da Difusao

Demonstracao:

i) Consideremos f(~q′), onde ~q′ = R~q e R e uma rotacao arbitraria. Logo

f(~q′) =1

(2π)3/2

d3~rf(~r)e−i~q′·~r . (10.2.31)

Aplicamos a mesma rotacao a variavel de integracao, ~r′ = R~r. Logo

f(~q′) =1

(2π)3/2

d3~r′f(~r′)e−i~q′·~r′ . (10.2.32)

Como o elemento de volume e produto escalar sao invariantes por uma rotacao

d3~r = d3~r′ , ~q · ~r = ~q′ · ~r′ , (10.2.33)

e como, por hipotese, f(~r) = f(~r′), pois a funcao so depende do modulo, concluimos

que

f(~q) = f(~q′) . (10.2.34)

Logo f depende apenas do modulo de ~q.

ii) Podemos, por isso, escolher uma direccao arbitraria de ~q, para calcular a transformada

de Fourier (10.2.29). Seja ~q = qez; (10.2.29) fica:

f(q) =1

(2π)3/2

∫ 2π

0

∫ +∞

0

r2f(r)

∫ π

0

dθ sin θe−iqr cos θdr . (10.2.35)

Fazendo os integrais angulares obtemos

f(q) =1√2π

∫ +∞

0

r2f(r)

iqre−iqr cos θ|θ=π

θ=0dr =1√2π

∫ +∞

0

2rf(r)

qsin (qr)dr . (10.2.36)

(q.e.d.)

Como a amplitude de difusao, na aproximacao de Born, e dada por uma transformada

de Fourier (10.2.27), podemos para o caso de potenciais centrais V (~r) = V (r), usar este

lema. Usando (10.2.29) e (10.2.30) obtemos

fBornk (θ) = − 2µ

q~2

∫ +∞

0

r sin (qr)V (r)dr . (10.2.37)

Page 327: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.2 Equacao integral de difusao e o metodo de Born 311

E esta expressao que usamos na pratica. Note-se que nestes casos a amplitude de difusao

fica independente do angulo azimutal. De facto, toda a dependencia angular esta contida

no vector de onda transferido, ~q, que entra na expressao apenas em modulo q = |~q|. Para

incidencia segundo o eixo Oz, o vector de onda transferido e

~q = ~kd − ~ki = k~r

r− kez , (10.2.38)

onde ez e um versor unitario na direccao z; calculamos entao facilmente que

q2 = k2

(

1− 2z

r+ 1

)

= 2k2(1− cos θ) = 4k2 sin2 θ

2, (10.2.39)

o que demonstra que |~q| depende apenas, de facto, do angulo polar θ. Note-se que a

independencia de φ resulta das simetrias do sistema. De facto tanto o feixe incidente como

o potencial difusor sao independentes do angulo azimutal.

Consideremos dois exemplos explıcitos de calculo de seccao eficaz diferencial de difusao

usando (10.2.37).

Poco de potencial esferico

Como primeiro exemplo consideramos um poco de potencial esferico

V (r) =

−V0 , r < R

0 , r > R. (10.2.40)

Este e um potencial contınuo por pedacos onde e particularmente simples calcular a am-

plitude de difusao. Note, em primeiro lugar, que a condicao de validade da aproximacao

de Born (10.2.24) e √2µV0

~≪ 1

R. (10.2.41)

A expressao geral (10.2.37) fica

fBornk (θ) =

2µV0

q~2

∫ R

0

r sin (qr)dr =2µV0

q3~2(sin qR− qR cos qR) . (10.2.42)

Como tal, obtemos para a seccao eficaz diferencial de difusao, na aproximacao de Born

σBorn(θ) =R2

(qR)6

(

4µ2V 20 R

4

~4

)

(sin qR− qR cos qR)2 , (10.2.43)

Page 328: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

312 Teoria da Difusao

0.11

0.1

0.105

0.095

0.09

theta

1.5 3210 2.50.5

Figura 10.4: Seccao eficaz de difusao em funcao do angulo de difusao θ para o potencial(10.2.40) na aproximacao de Born. Estao representados tres valores de qR, sendo que amedida que a energia da onda enviada diminui (e como tal tambem qR), a seccao se tornacada vez mais constante (i.e isotropica).

onde q = 2k| sin θ/2|. Esta seccao eficaz encontra-se representada graficamente na figura

10.4. Esta seccao eficaz tem um limite particularmente simples se, para alem da condicao

de validade da aproximacao de Born (10.2.41) assumirmos baixas energias

k ≪ 1

R(⇔ qR≪ 1) . (10.2.44)

Isto e, a escala de energia das ondas difundidas e muito menor que a escala de energia

definida pelo alcance do potencial. Neste caso, podemos expandir as funcoes trigonometricas

em serie de Taylor e tomar a primeira contribuicao nao nula. Obtemos

σBorn(θ)baixa energia≃ 4µ2V 2

0 R6

9~4. (10.2.45)

A seccao eficaz diferencial nao tem dependencia angular, nesta aproximacao, de acordo

com o exibido na figura 10.4. A seccao eficaz total e

σBorn baixa energia≃ 16π

9

µ2V 20 R

6

~4. (10.2.46)

Iremos recuperar este resultado usando o metodo das ondas parciais (formula (10.3.97)),

do qual extrairemos uma maior interpretacao fısica.

Page 329: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.2 Equacao integral de difusao e o metodo de Born 313

Potencial de Yukawa

Como segundo exemplo calculamos a seccao eficaz diferencial de difusao para um potencial

do tipo

V (~r) = V0e−αr

r, (10.2.47)

onde V0 e α sao constantes reais e α > 0. O potencial sera atractivo (repulsivo) se V0 < 0

(V0 > 0). A magnitude do potencial e caracterizada por |V0|; o seu alcance por

r0 =1

α; (10.2.48)

pois, para distancias muito maiores do que 1/α, o potencial e praticamente nulo - figura

10.5. Este potencial e designado por potencial de Yukawa, em homenagem a Hideki Yukawa

(1907-1981), que o introduziu em 1935 para descrever as forcas nucleares, cujo alcance e

da ordem do Fermi (10−15 m). Para explicar a origem deste potencial, Yukawa introduziu

uma nova partıcula - o mesao π - cuja existencia foi, de facto, descoberta em 1947 por

Cecil Powell (1903-1969). Esta partıcula, que era vista como a mediadora da forca nuclear,

possuıa massa e essa era a razao do curto alcance do potencial. Por estas descobertas

Yukawa ganhou o premio Nobel da Fısica em 1949 e Powell em 1950. Contudo, a teoria

de Yukawa foi posteriormente ultrapassada pela Cromodinamica Quantica, como descricao

da forca nuclear forte. Note-se que para α = 0 o potencial (10.2.47) se torna o potencial

de Coulomb, pelo que o potencial de Coulomb se pode considerar um potencial de Yukawa

com alcance infinito.

Se assumirmos que |V0| e suficientemente pequeno para a aproximacao de Born poder

ser usada, isto e (10.2.24)√

2µ|V0|~

≪ α , (10.2.49)

e observando que o potencial e central, temos, por (10.2.37),

fBornk (θ, φ) = −2µV0

~2q

∫ +∞

0

sin (qr)e−αrdr = − 2µV0

~2q2i

∫ +∞

0

e(iq−α)r−e−(α+iq)rdr , (10.2.50)

que agora se pode integrar facilmente para obter

fBornk (θ, φ) = −2µV0

~2

1

q2 + α2. (10.2.51)

Page 330: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

314 Teoria da Difusao

r

10864200

-0.2

-0.4

-0.6

-0.8

-1

Figura 10.5: Potencial de Yukawa com α = 1 versus potencial de Coulomb com a mesmamagnitude. Claramente o potencial de Yukawa tem um alcance efectivamente finito, en-quanto que o potencial de Coulomb tem um alcance infinito.

Usando (10.2.39) para expressar q em funcao do angulo θ, a seccao eficaz diferencial de

difusao para o potencial de Yukawa na aproximacao de Born fica

σBorn(θ) = |fBornk (θ, φ)|2 =

(

4µ2V 20

α2~4

)[

1 +4k2 sin2(θ/2)

α2

]−2

. (10.2.52)

Este resultado esta representado na figura 10.6. Comentarios ao resultado:

• Esta seccao eficaz e independente do angulo azimutal, come seria de esperar dadas as

simetrias do problema: o potencial e central e o feixe e paralelo a Oz, pelo que existe

simetria azimutal.

• Mas a seccao eficaz depende do angulo polar. Em particular, para energia (k) fixa, e

maior para θ = 0 (partıculas que seguem em frente) do que para θ = π (partıculas

rechacadas).

• A seccao eficaz diminui com o aumento de energia.

• O sinal de V0 e irrelevante, na aproximacao de Born.

• A seccao eficaz total e

σBorn =

σBorn(θ)dΩ =4µ2V 2

0

α2~4

[α2 + 4k2]. (10.2.53)

Page 331: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.2 Equacao integral de difusao e o metodo de Born 315

1

0.6

0.8

theta

0.4

320 2.51.5

0.2

0.5 1

Figura 10.6: Seccao eficaz de difusao em funcao do angulo de difusao θ para o potencial(10.2.47) na aproximacao de Born. Estao representados tres valores de q/α, sendo que amedida que a energia da onda enviada diminui (e como tal tambem q/α), a seccao se tornacada vez mais constante (i.e isotropica).

Ja comentamos anteriormente que o potencial de Coulomb pode ser visto como o caso

limite do potencial de Yukawa em que o alcance e infinito; isto e tomando

α = 0 , V0 = Z1Z2e2 , e2 =

q2

4πǫ0, (10.2.54)

onde q e a carga do electrao e Z1q e Z2q sao as cargas das duas partıculas envolvidas

na interaccao, (10.2.47) reduz-se ao potencial de Coulomb. Tomando estes valores em

(10.2.52), obtemos a seccao eficaz diferencial de difusao

σBorn(Coulomb)(θ) =

4µ2

~4

Z21Z

22e

4

16k4 sin4 θ/2=

Z21Z

22e

4

16E2 sin4 θ/2, (10.2.55)

onde usamos (10.1.6). Esta e a famosa formula de Rutherford que descreve a seccao eficaz

para o potencial de Coulomb. E curioso que tenhamos obtido a formula correcta neste caso,

dado que a teoria que desenvolvemos nao e aplicavel, a priori, ao potencial de Coulomb,

devido ao alcance infinito (que implica que a condicao (10.2.49) nao e obedecida). O

resultado encontra-se representado na figura 10.7.

Page 332: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

316 Teoria da Difusao

150

100

50

200

0

theta

32.5210.5 1.5

250

Figura 10.7: Seccao eficaz de difusao em funcao do angulo de difusao θ para o potencialde Coulomb na aproximacao de Born. Repare-se que embora Rutherford tenha detectadoque algumas partıculas α completamente rechacadas - i.e. com θ = π/2-, a probabilidadede isso acontecer e pequenıssima.

10.3 Metodo das ondas parciais para a difusao por

um potencial central

No caso particular de o potencial difusor ser um potencial central, podemos diagonalizar

simultaneamente os operadores H , L2 e Lz, tal como discutido na seccao 6.3. Isto e, existem

estados estacionarios com momento angular bem definido, aos quais, no contexto da teoria

da difusao, chamamos ondas parciais e denotamos por Φk,ℓ,m(~r), ou ainda, na notacao de

Dirac, |Φk,ℓ,m〉. Os valores proprios dos operadores acima mencionados sao, nestes estados:

H|Φk,ℓ,m〉 =~

2k2

2µ|Φk,ℓ,m〉 , L2|Φk,ℓ,m〉 = ℓ(ℓ+ 1)~2|Φk,ℓ,m〉 , Lz|Φk,ℓ,m〉 = m~|Φk,ℓ,m〉 .

(10.3.1)

A dependencia angular destas ondas parciais e sempre dada por harmonicos esfericos

Y mℓ (θ, φ); o potencial V (r) so influencia a parte radial.

Nesta seccao iremos comecar por estudar estados estacionarios com momento angular

bem definido para uma partıcula livre. Denominamos estes estados por ondas esfericas

livres e denotamo-los por Φ0k,ℓ,m(~r), ou ainda, na notacao de Dirac, |Φ0

k,ℓ,m〉. Veremos

Page 333: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.3 Metodo das ondas parciais para a difusao por um potencial central 317

que, assimptoticamente, a dependencia radial destas ondas esfericas livres sera dada pela

sobreposicao de uma onda ‘incoming’ e−ikr/r com uma onda ‘outgoing’ eikr/r, tendo as

duas ondas uma diferenca de fase bem definida.

No caso das ondas parciais para um potencial V (r) que e assimptoticamente negli-

genciavel, esperamos um comportamento semelhante: assimptoticamente a dependencia

radial devera ainda ser dada pela sobreposicao das ondas ‘incoming’ e ‘outgoing’. Mas

neste caso, a diferenca de fase entre as duas ondas e diferente daquela que caracteriza as

ondas esfericas livres: o potencial V (r) introduz uma diferenca de fase adicional ou des-

fasamento, δℓ. Esta quantidade e a unica diferenca entre o comportamento assimptotico

de Φ0k,ℓ,m(~r) e Φk,ℓ,m(~r). Logo, se soubermos:

1) Para uma dada energia, a diferenca de fase adicional δℓ para todos os ℓ;

2) Expressar os estados estacionarios de difusao vdifk (~r) como uma combinacao linear das

ondas parciais Φk,ℓ,m(~r);

saberemos caracterizar o comportamento assimptotico dos estados estacionarios de difusao

e como tal extrair a amplitude de difusao e a seccao eficaz diferencial de difusao. E esta

tecnica que vamos estabelecer nesta seccao.

10.3.1 Ondas esfericas versus ondas planas para uma partıculalivre

Em mecanica classica, uma partıcula livre de massa µ tem um movimento rectilıneo e

uniforme. O seu momento ~p, energia E = ~p 2/2µ e momento angular relativamente a

origem do sistema coordenado, ~L = ~r × ~p, sao constantes do movimento (|~L| = |~p|b, onde

b e o parametro de impacto).

Em mecanica quantica, os operadores~L =

~R × ~

P e~P nao comutam, pelo que nao

podemos classificar os estados fısicos de uma partıcula livre simultaneamente pelo momento

angular e pelo momento linear. Portanto, em mecanica quantica, temos (pelo menos) duas

opcoes para o C.C.O.C. que descreve uma partıcula livre:

• C.C.O.C.=Px, Py, Pz. Neste caso os estados proprios sao ondas planas.

Page 334: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

318 Teoria da Difusao

• C.C.O.C.=H0, Lz, L2. Neste caso os estados proprios sao ondas esfericas livres.

Consideremos com mais detalhe estas duas possibilidades.

Ondas planas

Estes estados formam a representacao |~p〉 estudada na seccao 4.4.2. Obedecem a

Pi|~p〉 = pi|~p〉 , H0|~p〉 =~P

2

2µ|~p〉 =

~p2

2µ|~p〉 . (10.3.2)

Notemos ainda que a projeccao das ondas planas em estados proprios do operador posicao

e dada por (4.4.23)

〈~r|~p〉 =

(

1

2π~

)3/2

ei~p·~r/~ . (10.3.3)

Em termos do vector de onda ~k = ~p/~, definimos os estados

|~k〉 ≡ ~3/2|~p〉 , (10.3.4)

em termos dos quais as relacoes anteriores ficam

Pi|~k〉 = ~ki|~k〉 , H0|~k〉 =~k2

~2

2µ|~k〉 , (10.3.5)

e

〈~r|~k〉 =

(

1

)3/2

ei~k·~r . (10.3.6)

Ondas esfericas livres

Pretendemos encontrar as funcoes proprias que diagonalizam simultaneamente H0 =~P

2

/2µ,

L2 e Lz. De acordo com a seccao 6.3, resolvemos a equacao de Schrodinger independente

do tempo com o ansatz

Φ0k,ℓ,m(~r) = R0

k,ℓ(r)Ymℓ (θ, φ) , (10.3.7)

e obtemos (6.3.12) com V (r) = 0,

[

− ~2

2µr2

d

dr

(

r2 d

dr

)

+ℓ(ℓ+ 1)~2

2µr2

]

R0k,ℓ(r) = ER0

k,ℓ(r) . (10.3.8)

Page 335: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.3 Metodo das ondas parciais para a difusao por um potencial central 319

Note-se que como o valor mınimo do potencial e zero (de facto e sempre zero!) nao pode

haver estados estacionarios com E < 0; definimos entao

k =

√2µE

~⇔ E =

~2k2

2µ. (10.3.9)

Esta equacao pode ser reescrita como[

r2 d2

dr2+ 2r

d

dr+ k2r2 − ℓ(ℓ+ 1)

]

R0k,ℓ(r) = 0 , (10.3.10)

que e conhecida como a equacao de Bessel esferica5; e uma equacao que pode ser transfor-

mada numa equacao de Bessel com ordem semi-inteira. As suas solucoes sao bem conheci-

das e denominam-se por funcoes de Bessel esfericas. Aqui iremos construir as solucoes desta

equacao usando um metodo algebrico, semelhante ao usado na construcao dos harmonicos

esfericos.

10.3.2 Deducao da forma explıcita das ondas esfericas livres

Comecemos por considerar, tal como na seccao 6.4, solucoes de (10.3.8) da forma

R0k,ℓ =

u0k,ℓ

r; (10.3.11)

a equacao (10.3.8) fica entao[

d2

dr2− ℓ(ℓ+ 1)

r2+ k2

]

u0k,ℓ(r) = 0 . (10.3.12)

Esta equacao e suplementada pela condicao

u0k,ℓ(r = 0) = 0 , (10.3.13)

que e necessaria para que as ondas esfericas livres nao sejam (todas) divergentes em r = 0

(se assim fosse qualquer estado estacionario seria divergente em r = 0, o que nao e o caso).

Assimptoticamente, a equacao (10.3.12) fica[

d2

dr2+ k2

]

u0k,ℓ(r) ≃ 0 ⇒ u0

k,ℓ(r) ≃ Aeikr + A′e−ikr , (10.3.14)

5Ver, por exemplo, G.B.Arfken e H.J.Webber, Mathematical Methods for Physicists, seccao 11.7, Quartaedicao.

Page 336: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

320 Teoria da Difusao

e como tal

Φ0k,ℓ,m(~r) ≃ Aeikr + A′e−ikr

rY m

ℓ (θ, φ) , (10.3.15)

ou seja, a parte radial da onda esferica livre e, assimptoticamente, a sobreposicao de uma

onda ‘incoming’ com uma onda ‘outgoing’. A diferenca de fase destas duas ondas esta

contida nos coeficientes A e A′; mas para os determinarmos teremos de saber mais do que

a solucao assimptotica da equacao, pois teremos de usar a condicao fronteira (10.3.13).

Para isso vamos calcular as solucoes exactas usando um metodo algebrico.

Comecamos por definir o operador

P+ = Px + iPy . (10.3.16)

As relacoes de comutacao deste operador com os operadores do C.C.O.C sao

[H0, P+] = 0 , [Lz, P+] = ~P+ , [L2, P+] = 2~(P+Lz − PzL+) + 2~2P+ . (10.3.17)

Exercıcio: Demonstre estas relacoes usando as relacoes de comutacao canonicas.

Usando os operadores L+ e P+ podemos construir novos estados estacionarios a custa

de antigos. Em primeiro lugar, recordemos a accao de L± nos harmonicos esfericos, dada

por (6.2.35); logo

L±|Φ0k,ℓ,m〉 ∝ |Φ0

k,ℓ,m±1〉 . (10.3.18)

Isto e L±|Φ0k,ℓ,m〉 e ainda um estado proprio de H0, L

2, Lz com valores proprios rotulados

por (k, ℓ,m±1). Utilizando as relacoes de comutacao (10.3.17) estabelecemos tambem que

• P+|Φ0k,ℓ,m〉 e ainda estado proprio de H0, com valor proprio rotulado por k. De facto

H0P+|Φ0k,ℓ,m〉 = P+H0|Φ0

k,ℓ,m〉 =~2k2

2µP+|Φ0

k,ℓ,m〉 . (10.3.19)

• P+|Φ0k,ℓ,m〉 e ainda estado proprio de Lz, com valor proprio rotulado por m+1. De facto

LzP+|Φ0k,ℓ,m〉 = (P+Lz + ~P+)|Φ0

k,ℓ,m〉 = (m+ 1)~P+|Φ0k,ℓ,m〉 . (10.3.20)

Page 337: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.3 Metodo das ondas parciais para a difusao por um potencial central 321

• P+|Φ0k,ℓ,m〉 nao e, em geral, estado proprio de L2; mas se m = ℓ, entao P+|Φ0

k,ℓ,ℓ〉 e estado

proprio de L2 com valor proprio rotulado por ℓ+ 1. De facto

L2P+|Φ0k,ℓ,ℓ〉 = (P+L

2+2~(P+Lz−PzL+)+2~2P+)|Φ0

k,ℓ,ℓ〉 = (ℓ+1)(ℓ+2)~2P+|Φ0k,ℓ,ℓ〉 .

(10.3.21)

Logo concluimos que

P+|Φ0k,ℓ,ℓ〉 ∝ |Φ0

k,ℓ+1,ℓ+1〉 . (10.3.22)

O nosso procedimento vai ser: Primeiro calcular as ondas esfericas livres com ℓ = m = 0

resolvendo a equacao (10.3.12) e segundo calcular as restantes usando (10.3.18) e (10.3.22).

• Primeiro, a solucao da equacao (10.3.12) com ℓ = m = 0 e obedecendo a condicao

(10.3.13) e

u0k,0(r) = ak sin kr ⇒ Φ0

k,0,0(~r) =u0

k,0(r)

rY 0

0 =ak sin kr√

4πr. (10.3.23)

As constantes ak podem ser obtidas pela condicao de ortonormalizacao

δ(k − k′) =

d3~r(

Φ0k,0,0

)∗Φ0

k′,0,0 = (ak)∗ak′

∫ +∞

0

dr sin kr sin k′r . (10.3.24)

Escrevendo os senos em termos de exponenciais imaginarias e duplicando o intervalo de

integracao temos

δ(k − k′) =(ak)

∗ak′

4

∫ +∞

−∞

(

ei(k−k′)r − ei(k+k′)r)

dr =(ak)

∗ak′

42π(δ(k − k′)− δ(k + k′)) .

(10.3.25)

Como tanto k como k′ sao positivos, o segundo delta de Dirac nunca contribui. Concluimos

que ak =√

2/π, pelo que podemos escrever as ondas esfericas livres com ℓ = m = 0 como

Φ0k,0,0(~r) =

2k2

π

sin kr

kr

1√4π

. (10.3.26)

• Segundo, notamos que o operador P+ actua, na representacao |~x〉 como

P+ = −i~(

∂x+ i

∂y

)

. (10.3.27)

Page 338: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

322 Teoria da Difusao

A sua accao numa funcao puramente radial e

P+f(r) = −i~(x

r+ i

y

r

) d

drf(r) = −i~ sin θeiφ d

drf(r) . (10.3.28)

Logo, actuando com este operador em (10.3.26) obtemos

Φ0k,1,1(~r) ∝ P+Φ0

k,0,0(~r) ∝ P+sin kr

kr∝ sin θeiφ

(

cos kr

kr− sin kr

(kr)2

)

∝ Y 11 (θ, φ)

(

cos kr

kr− sin kr

(kr)2

)

.

(10.3.29)

Aplicando L− a esta onda esferica livre calculamos Φ0k,1,0 e Φ0

k,1,−1, que tem a mesma

dependencia radial e dependencia angular dada pelos harmonicos esfericos respectivos.

Para calcular as ondas esfericas livres com ℓ > 1, notamos que

[P+, X + iY ] = 0 . (10.3.30)

Logo

Φ0k,2,2(~r) ∝ P 2

+Φ0k,0,0(~r) ∝ P+

x+ iy

r

d

dr

sin kr

kr∝ (x+ iy)P+

1

r

d

dr

sin kr

kr

∝ (x+ iy)2

(

1

r

d

dr

)2sin kr

kr.

(10.3.31)

Em geral

Φ0k,ℓ,ℓ(~r) ∝ (x+ iy)ℓ

(

1

r

d

dr

)ℓsin kr

kr, (10.3.32)

onde notamos que a dependencia angular e

(x+ iy)ℓ = rℓ sinℓ θeiℓφ ∝ rℓY ℓℓ (θ, φ) . (10.3.33)

Se definirmos

jℓ(ρ) ≡ ρℓ

(

−1

ρ

d

)ℓsin ρ

ρ, (10.3.34)

que sao as funcoes de Bessel esfericas de ordem l,6 podemos escrever

Φ0k,ℓ,m(~r) =

2k2

πjℓ(kr)Y

mℓ (θ, φ) , (10.3.35)

6A formula (10.3.34) designa-se por Formula de Rayleigh; veja, por exemplo 10.1.25 de ‘Handbook of

Mathematical Functions’, Ed. M. Abramowitz and I. Stegun, Dover, Ninth Printing.

Page 339: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.3 Metodo das ondas parciais para a difusao por um potencial central 323

1

0.6

-0.2

0.8

0.4

r

30251550

0.2

20100

0.2

0.1

-0.1

0.15

0.05

r

3025155

-0.05

0

20100

Figura 10.8: Parte radial das funcoes de Bessel esfericas (10.3.34). Esquerda: ℓ = 0 e ℓ = 1(zero na origem); direita ℓ = 4 e ℓ = 5 (comeca a oscilar mais a direita).

onde a constante de normalizacao e escolhida de modo a verificar

〈Φ0k,ℓ,m|Φ0

k′,ℓ′,m′〉 =

d3~r(

Φ0k,ℓ,m

)∗Φ0

k′,ℓ′,m′ = δ(k − k′)δℓℓ′δmm′ . (10.3.36)

Estas funcoes formam uma base do espaco de estados (isto e uma base do espaco de funcoes

de quadrado somavel em R3), o que e manifesto na relacao de fecho

∫ +∞

0

dk

+∞∑

ℓ=0

ℓ∑

m=−ℓ

|Φ0k,ℓ,m〉〈Φ0

k,ℓ,m| = 1 , (10.3.37)

ou, equivalentemente

∫ +∞

0

dk

+∞∑

ℓ=0

ℓ∑

m=−ℓ

Φ0k,ℓ,m(~r)Φ0

k,ℓ,m(~r′) = δ(~r − ~r′) . (10.3.38)

Na figura 10.8 encontram-se os graficos da parte radial das funcoes de Bessel esfericas para

varios ℓ’s.

10.3.3 Propriedades das ondas esfericas livres

As ondas esfericas livres (10.3.35) tem uma dependencia angular totalmente definida pelos

numeros quanticos ℓ e m, que determinam o correspondente harmonico esferico Y mℓ , e

Page 340: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

324 Teoria da Difusao

como tal independente da energia. Utiliza-se, por vezes, a notacao dos espectroscopistas

mencionada na seccao 6.4, no caso das ondas esfericas livres: onda s (ℓ = 0), onda p

(ℓ = 1), etc. Assim dizemos que a onda s esferica livre e sempre isotropica.

A dependencia radial fica clara nas figuras 10.8. Analisemos, analiticamente, os casos

limite:

Perto da origem

Neste caso podemos escrever:

jℓ(ρ) ≡ (−1)ℓρℓ

(

1

ρ

d

)ℓsin ρ

ρ= (−1)ℓρℓ

(

1

ρ

d

)ℓ +∞∑

p=0

(−1)p ρ2p

(2p+ 1)!

= (−1)ℓρℓ

(

1

ρ

d

)ℓ−1 +∞∑

p=0

(−1)p 2p

(2p+ 1)!ρ2p−2

= (−1)ℓρℓ+∞∑

p=0

(−1)p 2p(2p− 2)(2p− 4) . . . [2p− 2(ℓ− 1)]

(2p+ 1)!ρ2p−2ℓ .

(10.3.39)

Os termos com p = 0, 1, . . . , ℓ− 1 sao zero na soma. O primeiro termo que contribui, que

e o mais importante perto da origem, e

jℓ(ρ)ρ→0≃ (−1)ℓρℓ(−1)ℓ 2ℓ(2ℓ− 2)(2ℓ− 4) . . . 2

(2ℓ+ 1)!=

2ℓ(2ℓ− 2)(2ℓ− 4) . . . 2

(2ℓ+ 1)!ρℓ ≡ ρℓ

(2ℓ+ 1)!!,

(10.3.40)

onde definimos

N !! = N(N − 2)(N − 4) . . . . (10.3.41)

Concluimos pois que todas as funcoes de Bessel esfericas tendem para zero na origem,

excepto a onda s (ℓ = 0), de acordo com as figuras 10.8.

Consideremos ainda a densidade de probabilidade de uma partıcula que se encontre no

estado Φ0k,ℓ,m. A probabilidade de encontrar a partıcula no angulo solido dΩ0 em torno da

direccao (θ0, φ0) e entre r e r + dr e proporcional a

r2j2ℓ (kr)|Y m

ℓ (θ0, φ0)|2drdΩ0 . (10.3.42)

Logo, a funcao radial de interesse para a densidade de probabilidade e j2ℓ (ρ)ρ

2. Esta

funcao encontra-se representada na figura 10.9 para varios ℓ’s. Perto da origem esta funcao

Page 341: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.3 Metodo das ondas parciais para a difusao por um potencial central 325

1

0.6

0.8

0.4

0

rho

15

0.2

0 5 10 20

1.4

1

0.2

1.2

0.8

0

rho

15105

0.4

0.6

200

Figura 10.9: Representacao da funcao ρ2j2ℓ (r). Esquerda: ℓ = 0 (e exactamente o sin2 ρ)

e ℓ = 1 (comeca a oscilar mais a direita); direita ℓ = 4 e ℓ = 5 (comeca a oscilar mais adireita).

comporta-se como ρ2ℓ+2/(2ℓ+ 1)!!. Logo quanto maior for ℓ mais lento sera o crescimento

desta funcao perto de ρ = 0. A probabilidade de encontrar a partıcula para r suficiente-

mente pequeno e, assim, negligenciavel; estimamos que para

ρ <√

ℓ(ℓ+ 1) ⇔ r <

ℓ(ℓ+ 1)

k=|L||~p| , (10.3.43)

a probabilidade de encontrar a partıcula seja praticamente nula. Este valor e qualitativa-

mente justificado pela figura 10.9. Facamos uma analogia classica para uma justificacao

mais quantitativa. Se considerarmos uma partıcula classica livre no plano xy, tera equacoes

do movimento

x = x0 + vxt

y = y0 + vyt⇒ D2(t) = x2+y2 = x2

0+y20 +(v2

x+v2y)t

2+2(x0vx+y0vy)t , (10.3.44)

onde D2(t) e o quadrado da distancia a origem. Extremizando esta funcao calculamos o

parametro de impacto, b (distancia mınima a origem):

D2min =

(x0vy − y0vx)2

v2x + v2

y

⇒ b = |Dmin| =|L||~p| , (10.3.45)

Page 342: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

326 Teoria da Difusao

que e a versao classica de (10.3.43). Assim, a partıcula quantica no estado |Φ0k,ℓ,m〉 e

praticamente inafectada pelo que acontece dentro de uma esfera com raio

bℓ(k) =

ℓ(ℓ+ 1)

k. (10.3.46)

Comportamento assimptotico

jℓ(ρ) ≡ (−1)ℓρℓ

(

1

ρ

d

)ℓsin ρ

ρ= (−1)ℓρℓ

(

1

ρ

d

)ℓ−1(cos ρ

ρ2− sin ρ

ρ3

)

ρ→∞≃ (−1)ℓρℓ

(

1

ρ

d

)ℓ−1cos ρ

ρ2.

(10.3.47)

Aplicando outra derivada, o termo dominante sera a derivada do cosseno

jℓ(ρ)ρ→∞≃ (−1)ℓρℓ

(

1

ρ

d

)ℓ−2 − sin ρ

ρ3. (10.3.48)

Concluimos que, de um modo geral, o termo assimptoticamente dominante vira de aplicar

todas as derivadas a funcao trigonometrica (e nao as potencias de ρ)

jℓ(ρ)ρ→∞≃ (−1)ℓρℓ 1

ρℓ

1

ρ

(

d

)ℓ

sin ρ =(−1)ℓ

ρ

(

d

)ℓ

sin ρ . (10.3.49)

Notando que podemos escrever(

d

)ℓ

sin ρ = (−1)ℓ sin

(

ρ− ℓπ

2

)

. (10.3.50)

Logo,

jℓ(ρ)ρ→∞≃ sin

(

ρ− ℓπ2

)

ρ. (10.3.51)

Assim sendo, as ondas esfericas livres (10.3.35) ficam, assimptoticamente,

Φ0k,ℓ,m

ρ→∞≃√

2k2

π

sin(kr − ℓπ/2)

krY m

ℓ (θ, φ) =

2k2

πY m

ℓ (θ, φ)eikre−iℓπ/2 − e−ikreiℓπ/2

2ikr.

(10.3.52)

Este comportamento assimptotico corresponde a sobreposicao de uma onda ‘incoming’

(e−ikr/r) com uma onda ‘outgoing’ (eikr/r), com uma diferenca de fase

∆ϕ = ϕincoming − ϕoutgoing =ℓπ

2−(

−ℓπ2

)

= πℓ . (10.3.53)

Ou seja, as componentes ‘incoming’ e ‘outgoing’ das ondas esfericas livres com ℓ par (ℓ

ımpar) estao em fase (oposicao de fase). Tal como antecipado no inıcio desta seccao, a

diferenca de fase e bem definida e funcao do numero quantico ℓ.

Page 343: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.3 Metodo das ondas parciais para a difusao por um potencial central 327

Expansao de uma onda plana em termos de ondas esfericas livres

Estudamos duas ‘bases’ distintas do espaco de funcoes de quadrado somavel em R3 que

sao bases proprias de H0: ondas planas, |~k〉 = |kx, ky, kz〉, e ondas esfericas livres, |Φ0k,ℓ,m〉.

Dado serem bases e possıvel expandir qualquer ket de uma base em termos dos kets da

outra base.

Consideremos o ket |0, 0, k〉, que representa a onda plana eikz; de facto

〈~r|0, 0, k〉 = 1

(2π)3/2eikz . (10.3.54)

Este e um estado proprio de H0 com momento (~p = ~~k) e energia (E = ~2k2/2µ) bem

definidos. Para alem disso, como

eikz = eikr cos θ , (10.3.55)

e independente da coordenada φ, na representacao |~r〉, o ket |0, 0, k〉 e tambem um estado

proprio de Lz (Lz = −i~∂/∂φ), com valor proprio 0:

Lz|0, 0, k〉 = 0 . (10.3.56)

Usando a relacao de fecho (10.3.37), podemos escrever

|0, 0, k〉 =

∫ +∞

0

dk′+∞∑

ℓ=0

ℓ∑

m=−ℓ

|Φ0k′,ℓ,m〉〈Φ0

k′,ℓ,m|0, 0, k〉 . (10.3.57)

Para m 6= 0, |0, 0, k〉 e |Φ0k′,ℓ,m〉 sao dois vectores proprios de um operador hermıtico (Lz),

com valores proprios diferentes. Logo sao ortogonais. Sao tambem 2 vectores proprios

de H0 - tambem hermıtico - com valores proprios diferentes caso k 6= k′; logo ortogonais.

Podemos pois escrever que

〈Φ0k′,ℓ,m|0, 0, k〉 ∝ δm0δ(k − k′) , (10.3.58)

e como tal

|0, 0, k〉 =+∞∑

ℓ=0

ck,ℓ|Φ0k,ℓ,0〉 , (10.3.59)

Page 344: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

328 Teoria da Difusao

ou, na representacao |~r〉,

eikz

(2π)3/2=

+∞∑

ℓ=0

ck,ℓ

2k2

πjℓ(kr)Y

0ℓ (θ) . (10.3.60)

Os coeficientes ck,ℓ podem ser calculados explicitamente, obtendo-se7

ck,ℓ = iℓ√

2ℓ+ 1

4πk2. (10.3.61)

Logo

eikz =+∞∑

ℓ=0

iℓ√

4π(2ℓ+ 1)jℓ(kr)Y0ℓ (θ) . (10.3.62)

Note-se que, assimptoticamente, usando (10.3.51), (10.3.52) temos a expressao

eikz r→∞≃+∞∑

ℓ=0

iℓ√

4π(2ℓ+ 1)eikre−iℓπ/2 − e−ikreiℓπ/2

2ikrY 0

ℓ (θ) . (10.3.63)

10.3.4 Ondas parciais num potencial V (r)

Vamos agora introduzir um potencial central arbitrario V (r). O ponto principal e que para

qualquer V (r) com suporte compacto a forma assimptotica das ondas parciais sera identica

a das ondas esfericas livres, apenas mudando o desfasamento entre a onda ‘incoming’ e a

onda ‘outgoing’.

Consideremos novamente a equacao de Schrodinger tres dimensional. Para a resolver-

mos em termos de ondas parciais tomamos um ansatz analogo a (10.3.7) com (10.3.11),

Φk,ℓ,m =uk,ℓ(r)

rY m

ℓ (θ, φ) , (10.3.64)

onde uk,ℓ(r) e solucao da generalizacao de (10.3.12), isto e

[

d2

dr2− ℓ(ℓ+ 1)

r2+ k2 − 2µV (r)

~2

]

uk,ℓ(r) = 0 , (10.3.65)

com a condicao (10.3.13)

uk,ℓ(r = 0) = 0 . (10.3.66)

7Este calculo sera efectuado nas aulas teorico-praticas.

Page 345: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.3 Metodo das ondas parciais para a difusao por um potencial central 329

Note-se que isto nao e mais do que a equacao de Schrodinger para um problema em uma

dimensao, onde a partıcula de massa µ esta sob a accao do potencial

Veff(r) =

V (r) +ℓ(ℓ+ 1)~2

2µr2, r > 0

+∞ , r < 0

; (10.3.67)

esta perspectiva um dimensional justifica a utilizacao da condicao fronteira (10.3.66). As-

sumindo que o potencial e assimptoticamente negligenciavel, (10.3.65) fica, assimptotica-

mente[

d2

dr2+ k2

]

uk,ℓ(r)r→∞≃ 0 , (10.3.68)

com solucao geral

uk,ℓ(r)r→∞≃ Aeikr + A′e−ikr . (10.3.69)

Podemos pensar nesta solucao, na perspectiva do potencial efectivo um dimensional: existe

uma onda incidente de r = +∞ (e−ikr) e uma onda reflectida (eikr). Como nao pode haver

onda transmitida para r < 0 - dado que o potencial e infinito nessa regiao - a corrente

reflectida tem que ser igual a transmitida, pelo que concluimos que

|A| = |A′| ⇒ uk,ℓ(r)r→∞≃ |A|

[

eikreϕr + e−ikreϕi]

⇔ uk,ℓ(r)r→∞≃ C sin(kr + βℓ) .

(10.3.70)

A fase βℓ vai ser determinada pela condicao fronteira na origem (10.3.66). No caso das

ondas esfericas livres (V (r) = 0), vimos em (10.3.51) que βℓ = −ℓπ/2; tomando este valor

como referencia escrevemos

uk,ℓ(r)r→∞≃ C sin

(

kr − ℓπ

2+ δℓ

)

, (10.3.71)

onde δℓ, que em geral sera funcao da energia e como tal de k, e a diferenca de fase adicional

ou desfasamento para as ondas parciais.

Concluimos que as ondas parciais terao a forma assimptotica

Φk,ℓ,m(~r)r→∞≃ C sin

(

kr − ℓπ2

+ δℓ)

rY m

ℓ (θ, φ)

= CY mℓ (θ, φ)

eikre−i(ℓπ/2−δℓ) − e−ikrei(ℓπ/2−δℓ)

2ir,

(10.3.72)

Page 346: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

330 Teoria da Difusao

e vemos que as ondas parciais sao ainda a sobreposicao de uma onda “incoming” com uma

onda “outgoing” com uma diferenca de fase

∆ϕ = ϕincoming − ϕoutgoing = ℓπ − 2δℓ . (10.3.73)

Portanto, o potencial originou a diferenca de fase adicional −2δℓ relativamente ao que

aconteceria na ausencia de potencial. Este factor traduz o efeito total do potencial numa

partıcula com momento angular ℓ.

E conveniente definir uma nova funcao de onda Φk,ℓ,m(~r) proporcional, assimptotica-

mente, a (10.3.72), do seguinte modo:

• Φk,ℓ,m(~r) = eiδℓΦk,ℓ,m(~r); esta redefinicao por uma fase global e irrelevante fisicamente e

e conveniente porque fazendo-o podemos pensar no processo de difusao, na presenca

do potencial, da seguinte maneira: a onda incidente de r = +∞ e a mesma do

que aquela considerada na ausencia de potencial, mas a onda reflectida tem a fase

adicional 2δℓ.

• Tomamos a constante C = 1/k em (10.3.72). Esta escolha nada tem de fısico. E apenas

uma questao de conveniencia como veremos em baixo. Logo

Φk,ℓ,m(~r)r→∞∼ −Y m

ℓ (θ, φ)e−ikreiℓπ/2 − eikre−iℓπ/2e2iδℓ

2ikr. (10.3.74)

Recordemos que as ondas esfericas livres Φ0k,ℓ,m praticamente nao penetram na regiao

com r <√

ℓ(ℓ+ 1)/k, como visto na seccao anterior. Se considerarmos um potencial

com alcance finito - digamos r0 - tal que V (r) = 0 para r > r0, necessitamos apenas de

considerar a diferenca de fase adicional δℓ para ℓ < ℓM , onde

ℓM(ℓM + 1) ≃ r0k . (10.3.75)

Isto e, para potenciais com alcance finito, existe, para cada energia, um ℓ maximo e

as unicas diferencas de fase adicionais que necessitamos de calcular acontecerao para as

primeiras ondas parciais (s, p, . . .).

Page 347: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.3 Metodo das ondas parciais para a difusao por um potencial central 331

Seccao eficaz diferencial de difusao em termos de δℓ

Como toda a informacao sobre o potencial V (r) fica contida, assimptoticamente, em δℓ,

deveremos ser capazes de calcular σ(θ, φ) em termos de δℓ. Para isso escrevemos os estados

estacionarios de difusao em termos das ondas parciais. Tendo em conta as simetrias do

problema (onda incidente segundo Oz e potencial central), as unicas ondas parciais que

respeitam esta simetria sao Φk,ℓ,0(~r). Logo

vdifk (~r) =

+∞∑

ℓ=0

cℓΦk,ℓ,0(~r) . (10.3.76)

Para estes serem estados estacionarios de difusao, tem que ter o comportamento as-

simptotico correcto. Isso e verificado se escolhermos os coeficientes cℓ apropriadamente:

Lema: A forma de cℓ para (10.3.76) ser um estado estacionario de difusao e8

cℓ = iℓ√

4π(2ℓ+ 1) . (10.3.77)

Demonstracao: Introduzindo (10.3.77) em (10.3.76) temos

vdifk (~r) =

+∞∑

ℓ=0

iℓ√

4π(2ℓ+ 1)Φk,ℓ,0(~r) ; (10.3.78)

usando a forma assimptotica (10.3.74),

vdifk (~r)

r→∞≃ −+∞∑

ℓ=0

iℓ√

4π(2ℓ+ 1)Y 0ℓ (θ)

e−ikreiℓπ/2 − eikre−iℓπ/2e2iδℓ

2irk, (10.3.79)

ou ainda, escrevendo

e2iδℓ = 1 + 2ieiδℓ sin δℓ , (10.3.80)

temos

vdifk (~r)

r→∞≃ −+∞∑

ℓ=0

iℓ√

4π(2ℓ+ 1)Y 0ℓ (θ)

[

e−ikreiℓπ/2 − eikre−iℓπ/2

2irk− e−iℓπ/2eiδℓ sin δℓ

k

eikr

r

]

.

(10.3.81)

8Para obter (10.3.74) usamos C = 1/k em (10.3.72); caso tivessemos usado outro valor alteraria a formade (10.3.77), mas o resultado final (10.3.83) seria inalterado.

Page 348: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

332 Teoria da Difusao

Comparando com (10.3.63) concluimos que o primeiro termo e a forma assimptotica de

eikz; logo

vdifk (~r)

r→∞≃ eikz ++∞∑

ℓ=0

iℓ√

4π(2ℓ+ 1)Y 0ℓ (θ)

e−iℓπ/2eiδℓ sin δℓk

eikr

r. (10.3.82)

Esta e, de facto a forma assimptotica correcta para um estado estacionario de difusao,

(10.1.13). Concluimos ainda que a expressao para a amplitude de difusao em termos das

diferencas de fase adicionais, δℓ, toma a forma

fk(θ) =1

k

+∞∑

ℓ=0

4π(2ℓ+ 1)eiδℓ sin δℓY0ℓ (θ) , (10.3.83)

onde usamos que e−iℓπ/2 = (−i)ℓ. (q.e.d.)

A seccao eficaz diferencial de difusao e, portanto,

σ(θ) = |fk(θ)|2 =

1

k

+∞∑

ℓ=0

4π(2ℓ+ 1)eiδℓ sin δℓY0ℓ (θ)

2

. (10.3.84)

Note-se, em particular, que a contribuicao da onda s para a seccao eficaz diferencial de

difusao e independente de θ e toma a forma

σonda s =sin2 δ0k2

. (10.3.85)

A seccao eficaz total de difusao e simples de calcular usando a ortonormalizacao dos

harmonicos esfericos, com resultado

σ =

dΩσ(θ) =4π

k2

+∞∑

ℓ=0

(2ℓ+ 1) sin2 δℓ . (10.3.86)

Em particular, a contribuicao da onda s para a seccao eficaz total e

σonda sparcial = 4π

sin2 δ0k2

; (10.3.87)

as contribuicoes de ondas especıficas para a seccao eficaz total, sao denominadas seccoes

eficazes de difusao parciais.

Comentarios:

Page 349: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.3 Metodo das ondas parciais para a difusao por um potencial central 333

• Nao ha contribuicoes provenientes de interferencias entre diferentes ℓ’s para σ;

• Cada ℓ pode dar uma contribuicao maxima de 4π(2ℓ+ 1)/k2 para σ;

• Para calcular σ sera em princıpio necessario saber δℓ para todos os ℓ. Ha duas situacoes

possıveis:

i) Se V (r) e conhecido isto implica resolver a equacao radial para cada ℓ. Frequente-

mente isto tem de ser feito numericamente. Na pratica o metodo das ondas

parciais so e atractivo se δℓ tiver que ser calculado apenas para um numero sufi-

cientemente pequeno de ℓ’s. Este sera o caso para potenciais de alcance finito L,

discutido anteriormente, se considerarmos a difusao de modos de baixa energia:

k ≪ 1

L. (10.3.88)

Para estes modos, apenas os desfasamentos com ℓ mais baixo terao de ser cal-

culados. Em particular para energias suficientemente baixas, apenas a onda s

devera ser considerada, pelo que a seccao eficaz de difusao sera bem aproximada

por (10.3.85);

ii) Se V (r) for desconhecido, tentaremos reproduzir a curva experimental usando

um pequeno numero de δℓ’s, isto e, usando apenas ℓ = 1, 2, . . . , ℓmaximo. A

dependencia em θ ira sugerir que ℓ’s necessitamos de considerar. Por exemplo,

se σ for independente de θ, so necessitamos de considerar ℓ = 0 - dado que

Y 00 e independente de θ. Pelo mesmo raciocınio se σ for dependente de θ,

necessitamos de considerar ℓ’s diferentes de zero. Depois de estabelecermos

quais os ℓ’s necessarios para reproduzir os resultados experimentais, procuramos

potenciais que reproduzam os δℓ necessarios.

Exemplo: Poco de potencial esferico

Como exemplo de aplicacao do metodo das ondas parciais consideramos o poco de potencial

esferico (10.2.40), ja considerado na aproximacao de Born. No metodo das ondas parciais

Page 350: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

334 Teoria da Difusao

temos de calcular os desfasamentos δℓ para todos os ℓ. Para isso temos de resolver a equacao

(10.3.65) para o potencial (10.2.40), com a condicao fronteira (10.3.66); isto e resolver[

d2

dr2− ℓ(ℓ+ 1)

r2+ k2 +

2µV0

~2

]

uk,ℓ(r) = 0 , r < R

[

d2

dr2− ℓ(ℓ+ 1)

r2+ k2

]

uk,ℓ(r) = 0 , r > R

. (10.3.89)

Se kR≪ 1, apenas a onda s (ℓ = 0) e relevante e neste caso as equacoes sao particularmente

simples de resolver. De facto, o problema reduz-se a resolver a equacao de Schrodinger um

dimensional num potencial contınuo por pedacos (capıtulo 3). As solucoes para uk,0(r) sao:

uk,0(r) =

Aeik′r + A′e−ik′r , r < R

A1eikr + A′

1e−ikr , r > R ,

(10.3.90)

onde

k′ =

2µ(V0 + E)

~.

Impondo a condicao fronteira (10.3.66) (que corresponde a continuidade da funcao de onda

na descontinuidade infinita do potencial em r = 0) e a continuidade da funcao de onda

uk,0(r) e da sua derivada em r = R, obtemos

A′ = −A , A1 = e−ikR

(

k′

kcos k′R + i sin k′R

)

A , A′1 = eikR

(

−k′

kcos k′R + i sin k′R

)

A .

(10.3.91)

Concluimos que a funcao de onda tem a forma

uk,0(r) =

2iA sin k′r , r < R

2iA

[

k′

kcos k′R sin k(r − R) + sin k′R cos k(r −R)

]

, r > R .

(10.3.92)

Para lermos o desfasamento, escrevemos a parte assimptotica da solucao (r > R) na forma

(10.3.71), com ℓ = 0, isto e

uk,0(r) = 2Ai sin(kr + δ0) , r > R . (10.3.93)

Expandindo este seno como o seno de uma soma (escrevendo sin[(kr − kR) + (δ0 + kR)])

e igualando a (10.3.92) obtemos

δ0 = arctan

(

k

k′tan k′R

)

− kR . (10.3.94)

Page 351: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.3 Metodo das ondas parciais para a difusao por um potencial central 335

Usando (10.3.87) obtemos para a seccao eficaz parcial de difusao

σonda sparcial =

k2sin

(

arctan

(

k

k′tan k′R

)

− kR)2

. (10.3.95)

A seccao eficaz parcial sera uma boa aproximacao a seccao eficaz total no limite de baixas

energias, kR≪ 1 (note-se que esta e a condicao (10.2.44). Neste limite podemos aproximar

(desde que k′R 6= nπ/2)

arctan

(

kR

k′Rtan k′R

)

≃ kR

k′Rtan k′R .

Se a energia da partıcula difundida for baixa, nao so relativamente ao alcance do potencial,

mas tambem relativamente a sua magnitude E ≪ V0, podemos aproximar

k′ ≃ k0 =

√2µV0

~.

Logo

δ0 ≃ kR

(

tan k0R

k0R− 1

)

,

e

σonda sparcial ≃ 4πR2

(

tan k0R

k0R− 1

)2

. (10.3.96)

Para compararamos com o resultado obtido na aproximacao de Born, temos de considerar

a aproximacao que esta sempre presente na aproximacao de Born, isto e, que o potencial

e fraco. Neste caso, k0R ≪ 1 (note-se que esta e a condicao (10.2.41)). Usando tanx ≃x+ x3/3, para x≪ 1 obtemos

σonda sparcial ≃ 4πR2 (k0R)4

9=

16π

9

µ2V 20 R

6

~4, (10.3.97)

em concordancia com o resultado (10.2.46) obtido na aproximacao de Born.

Alguns comentarios:

• Na aproximacao de Born, o potencial e considerado suficientemente fraco. Para alem

disso podemos, ou nao, considerar uma aproximacao de baixas energias. Por con-

traste, no metodo das ondas parciais, ao aproximarmos a seccao eficaz total de difusao

pela seccao eficaz parcial da onda s estamos a assumir uma aproximacao de baixas

Page 352: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

336 Teoria da Difusao

energias. Para alem disso podemos, ou nao, considerar uma aproximacao de poten-

cial fraco. Claro que so obtemos um acordo entre os dois metodos se considerarmos

ambas as aproximacoes nos dois casos.

• Por (10.3.96) vemos que, a seccao eficaz aumenta com a profundidade do poco V0 e

diverge para tan k0R = π/2. Esta e a profundidade para a qual o poco admite o

primeiro estado ligado (Problema 4, Folha de Problemas 4, Mecanica Quantica I). Se

continuarmos a aumentar a profundidade do poco a seccao eficaz diminui ate zero,

valor que e obtido para tan k0R = k0R. Aumentando a profundidade do poco a seccao

eficaz oscila entre 0 e∞, divergindo sempre que a profundidade do poco permite um

novo estado ligado.

10.4 Difusao Inelastica

Ate agora lidamos neste capıtulo unicamente com difusao elastica. Porem, existem fenomenos

onde parte da energia do feixe incidente e absorvida, no estado final, pelos graus de liber-

dade internos das diferentes partıculas iniciais ou das partıculas alvo. Se estamos essencial-

mente interessados na parte da difusao elastica, descrevemos esta absorcao globalmente, i.e.

sem entrar nos detalhes das reaccoes de absorcao. O metodo das ondas parciais fornece-nos

o enquadramento adequado para uma descricao fenomenologica da absorcao. Comecemos

por discutir, conceptualmente, a modificacao do metodo de modo a incluir o fenomeno de

absorcao.

O metodo das ondas parciais e usado para potenciais centrais. Por isso vamos as-

sumir que as interaccoes que conduzem a absorcao sao tambem invariantes por rotacao. O

metodo baseia-se no calculo de desfasamentos entre as ondas ‘incoming’ e ‘outgoing’, do

tipo e2iδℓ , de acordo com (10.3.74). Como o modulo deste factor e 1, as amplitudes das

ondas ‘incoming’ e ‘outgoing’ sao iguais, pelo que a corrente de probabilidade que entra

e igual a que sai. Isto sugere que, se permitirmos que o desfasamento tenha uma parte

imaginaria, de modo a que

|e2iδℓ | < 1 , (10.4.1)

Page 353: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.4 Difusao Inelastica 337

teremos uma corrente de probabilidade a sair menor do que aquela que entrou, para a

onda parcial ℓ. Este facto manifesta o desaparecimento de algumas partıculas e como tal

um fenomeno de absorcao. Com este princıpio iremos deduzir expressoes para as seccoes

eficazes de difusao e absorcao.

Note que a descricao que aqui e dada e fenomenologica; esconde uma realidade de

processos complexos que levam as absorcoes aqui descritas.

10.4.1 Seccoes eficazes de difusao elastica e de absorcao

Denotemos

e2iδℓ ≡ ηℓ . (10.4.2)

Impomos que |ηℓ| ≤ 1, de modo a descrever difusao elastica (se |ηℓ| = 1) ou difusao com

absorcao (se |ηℓ| < 1). Reescrevemos (10.3.79) como

vdifk (~r)

r→∞≃+∞∑

ℓ=0

iℓ√

4π(2ℓ+ 1)Y 0ℓ (θ)

eikre−iℓπ/2(ηℓ − 1) + eikre−iℓπ/2 − e−ikreiℓπ/2

2irk,

(10.4.3)

ou, usando (10.3.63)

vdifk (~r)

r→∞≃ eikz +

+∞∑

ℓ=0

4π(2ℓ+ 1)Y 0ℓ (θ)

(ηℓ − 1)

2ik

eikr

r, (10.4.4)

de onde lemos que a amplitude de difusao e

fk(θ) =1

k

+∞∑

ℓ=0

4π(2ℓ+ 1)Y 0ℓ (θ)

ηℓ − 1

2i. (10.4.5)

Logo, a seccao eficaz diferencial de difusao, que agora denominamos seccao eficaz de difusao

elastica e denotamos σel e

σel(θ) =1

k2

+∞∑

ℓ=0

4π(2ℓ+ 1)Y 0ℓ (θ)

ηℓ − 1

2i

2

. (10.4.6)

Consequentemente, a seccao eficaz total de difusao elastica e

σel =

σel(θ)dΩ =π

k2

+∞∑

ℓ=0

(2ℓ+ 1)|ηℓ − 1|2 . (10.4.7)

Page 354: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

338 Teoria da Difusao

Note que a absorcao sera maxima se ηℓ = 0. Mas mesmo nesse caso a onda ℓ contribui

para a seccao de difusao elastica! Ou seja, mesmo uma regiao de interaccao que seja um

absorvedor perfeito produz difusao elastica. Este e um fenomeno puramente quantico,

denominado de difusao por sombras.

Analogamente ao que foi feito na seccao (10.1.1) para a seccao eficaz diferencial de

difusao, definimos a seccao eficaz de absorcao, σabs, como sendo a razao entre o numero de

partıculas absorvidas por unidade de tempo dnabs e o fluxo incidente Fi:

dnabs = σabsFi . (10.4.8)

Para calcular esta seccao eficaz e suficiente calcular a probabilidade total, ∆P, que desa-

parece por unidade de tempo. Esta probabilidade e, por sua vez, obtida da corrente ~J ,

associada com a funcao de onda (10.4.3): ∆P e a diferenca entre o fluxo de ondas que

entram e o das ondas que saem numa esfera de raio elevado R0; ou seja e menos o fluxo

total atraves dessa esfera:

∆P = −∫

S2

~J · d~S = −∫

r=R0

Jrr2dΩ , (10.4.9)

pois apenas a componente radial Jr contribui. Usando (10.1.16), temos

Jr = Re

[

(vdifk )∗(~r)

~

∂rvdif

k (~r)

]

. (10.4.10)

Como a derivada radial nao altera a dependencia angular e usando a ortogonalidade dos

harmonicos esfericos obtemos

∆P = −+∞∑

r=R0

J (ℓ)r r2dΩ , (10.4.11)

onde

J (ℓ)r

r→+∞≃ −~k

µ

(2ℓ+ 1)π

k2r2(1− |ηℓ|2)|Y 0

ℓ (θ)|2 , (10.4.12)

e como tal

∆P =~k

µ

π

k2

+∞∑

(2ℓ+ 1)(1− |ηℓ|2) . (10.4.13)

Page 355: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.4 Difusao Inelastica 339

A seccao eficaz de absorcao e a probabilidade ∆P a dividir pela corrente incidente ~k/µ,

σabs =π

k2

+∞∑

(2ℓ+ 1)(1− |ηℓ|2) . (10.4.14)

Note-se que σabs = 0 se todos os |ηℓ| = 1 como seria de esperar quando todos os desfasa-

mentos forem puramente reais. Pelo contrario, se |ηℓ| = 0 a contribuicao da onda ℓ para

σabs e maxima.

10.4.2 Seccao eficaz total e o teorema optico

A seccao eficaz total e definida como a soma de todas as seccoes eficazes (integradas

sobre todo o espaco caso sejam seccoes eficazes diferenciais). Corresponde ao numero de

partıculas que, por unidade de tempo, participam numa das reaccoes possıveis (i.e sao

difundidas ou absorvidas), dividido pelo fluxo incidente. Logo

σtotal = σel + σabs , (10.4.15)

ou usando (10.4.7) e (10.4.14),

σtotal =π

k2

+∞∑

(2ℓ+ 1)[

1− |ηℓ|2 + |ηℓ − 1|2]

k2

+∞∑

(2ℓ+ 1) [1−Re ηℓ] . (10.4.16)

Usando (10.4.5) e ainda o facto que os harmonicos esfericos envolvidos sao, para angulo

polar igual a zero:

Y 0ℓ (θ = 0) =

2ℓ+ 1

4π, (10.4.17)

obtemos

Im fk(θ = 0) =1

2k

+∞∑

(2ℓ+ 1)Re (1− ηℓ) , (10.4.18)

ou, comparando com (10.4.16)

σtotal =4π

kIm fk(θ = 0) . (10.4.19)

Este resultado e designado por Teorema optico. E uma relacao entre a seccao eficaz total

e a parte imaginaria da amplitude de difusao elastica na direccao frontal (θ = 0). Note-se

Page 356: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

340 Teoria da Difusao

que no caso em que nao ha absorcao σtotal = σel e o teorema reduz-se a uma relacao entre

a amplitude de difusao na direccao frontal e a seccao eficaz total de difusao. Que uma

tal relacao exista e bastante natural. Para o compreender recordemos a forma dos estados

estacionarios de difusao (10.1.13)

vdifk (~r)

~r→∞−→ eikr cos θ + fk(θ, φ)eikr

r; (10.4.20)

A onda transmitida na direccao frontal e

vdifk (r, θ = 0, φ)

~r→∞−→ eikr + fk(θ = 0, φ)eikr

r; (10.4.21)

que nao e mais do que uma sobreposicao entre a onda incidente eikr e a onda difundida na

direccao frontal fk(θ = 0, φ)eikr/r. A ultima e determinada pela amplitude de difusao na

direccao frontal. A onda transmitida e atenuada (relativamente a onda incidente), devido

as partıculas difundidas em todas as direccoes do espaco. Logo a sobreposicao entre a

onda difundida na direccao frontal e a onda incidente tem de ter a informacao sobre as

partıculas difundidas em todas as outras direccoes. Logo e natural que exista uma relacao

entre fk(θ = 0, φ) e σtotal.

10.5 Sumario

Neste capıtulo estudamos reaccoes de difusao. As quantidades fundamentais do formalismo

sao a amplitude de difusao, fk(θ, φ), e as seccoes eficazes (diferencial e total) de difusao

σ(θ, φ) e σ. Todo o formalismo pode ser discutido em termos dos estados estacionarios

de difusao (quando o potencial e indepentente do tempo, que e o caso aqui considerado),

que sao as funcoes de onda do problema com o comportamento assimptotico correcto. Por

consideracoes genericas obtivemos a relacao (10.1.24):

σ(θ, φ) = |fk(θ, φ)|2 .

Esta equacao traduz a relacao entre a quantidade directamente relacionavel com a ex-

periencia σ(θ, φ) e a quantidade derivavel da teoria, fk(θ, φ). Estudamos seguidamente

dois metodos teoricos para calcular a amplitude de difusao.

Page 357: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

10.5 Sumario 341

No primeiro metodo - metodo de Born - comecamos por estabelecer a equacao integral

de difusao para obter os estados estacionarios de difusao. Estabelecemos a expansao de

Born e a aproximacao de Born que nos permitiu obter uma formula aproximada, utilizavel,

para calcular a amplitude de difusao (e como tal a seccao eficaz de difusao) para um

determinado potencial (10.2.27):

fBornk (θ, φ) = − µ

2π~2

d3~re−i~q·~rV (~r) , q ≡ 2k sinθ

2.

A formula e valida para potenciais fracos de acordo com o criterio (10.2.24). Como exemplo

calculamos a seccao eficaz de difusao para um poco de potencial esferico e para o potencial

de Yukawa. Para este ultimo caso recuperamos, no limite de alcance infinito, a formula de

Rutherford.

No segundo metodo - metodo das ondas parciais -, valido apenas para potenciais com

simetria esferica, comecamos por estudar em detalhe as ondas esfericas livres e estabelece-

mos que as ondas parciais num potencial central arbitrario diferem, assimptoticamente, das

ondas esfericas livres apenas por um desfasamento. Obtivemos uma expressao exacta para

a amplitude de difusao (10.3.83) em termos destes desfasamentos, causadas pelo potencial

difusor:

fk(θ) =1

k

+∞∑

ℓ=0

4π(2ℓ+ 1)eiδℓ sin δℓY0ℓ (θ) .

Embora a formula seja exacta, para ser utilizavel temos que assumir uma aproximacao de

baixas energias (10.3.88), de modo a que seja apenas necessario saber os desfasamentos das

ondas com ℓ mais baixo. Como aplicacao do metodo consideramos novamente um poco de

potencial esferico e recuperamos, no limite de baixas energias e potencial fraco o resultado

da aproximacao de Born.

Finalmente consideramos brevemente a difusao inelastica. Definimos a seccao eficaz de

absorcao, obtivemos uma expressao para o seu calculo e derivamos o teorema optico.

Page 358: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro
Page 359: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

CAPITULO 11

Metodos perturbativos independentes e dependentes

do tempo

Na seccao 9.2 discutimos qualitativamente que, para descrever a estrutura fina do espectro

do atomo de hidrogenio, e necessario levar em consideracao varias correccoes ao Hamilto-

niano do problema de Coulomb, estudado no capıtulo 6. Considerando tais correccoes, o

problema do atomo de hidrogenio deixa de ser exactamente soluvel e portanto e necessario

considerarmos metodos de resolucao aproximada. Sendo que tais correccoes sao pequenas

e natural considerarmos um metodo perturbativo.

Neste capıtulo consideramos sistemas fısicos cujo Hamiltoniano pode ser visto como

uma soma de dois termos. Um primeiro termo pode ser considerado exactamente, isto e,

o seu espectro e funcoes proprias podem ser calculados analiticamente. O segundo termo

nao e, genericamente, diagonalizado pelas funcoes proprias do primeiro termo, e o como tal

o Hamiltoniano total nao pode ser resolvido exactamente. No entanto, o segundo termo

pode ser considerado muito menor do que o primeiro e como tal o Hamiltoniano total pode

ser resolvido atraves de uma expansao perturbativa, que podera ser truncada na ordem

desejada obtendo-se o espectro e funcoes proprias do Hamiltoniano total com uma precisao

que sera tanto maior quanto maior for a ordem considerada.

Comecamos por considerar o calculo de estados estacionarios de sistemas descritos por

Page 360: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

344 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

Hamiltonianos independentes do tempo. Seguidamente estudaremos Hamiltonianos cujas

perturbacoes sao dependentes do tempo.

11.1 Teoria das perturbacoes estacionarias

Consideramos o Hamiltoniano

H = H0 + W , (11.1.1)

onde H0 e o Hamiltoniano nao perturbado e W e o Hamiltoniano da perturbacao. O facto

de W ser uma perturbacao significa que a sua contribuicao para os valores proprios e os

vectores proprios de H e muito menor do que a contribuicao de H0; esquematicamente

escrevemos

|W | ≪ |H0| , (11.1.2)

mas o sentido preciso deste criterio sera esclarecido posteriormente. Para tornar explıcita

a analise perturbativa, escrevemos W ≡ λV , onde λ≪ 1.

Assumimos que conhecemos a forma exacta dos valores proprios e estados proprios de

H0, sendo o seu espectro E0p discreto:

H0|φip〉 = E0

p |φip〉 , (11.1.3)

onde i = 1, . . . , dp e um ındice no sub-espaco degenerado das energias, e |φip〉 constitui

uma base ortonormalizada de estados proprios

〈φip|φi′

p′〉 = δii′δpp′ ,∑

p

dp∑

i=1

|φip〉〈φi

p| = 1 . (11.1.4)

Com este formalismo, podemos calcular solucoes aproximadas da equacao de valores

proprios

H(λ)|Ψ(λ)〉 = E(λ)|Ψ(λ)〉 , (11.1.5)

onde H = H0 + λV , usando uma expansao perturbativa em λ. Para este fim, assumimos

que tanto o valor proprio E(λ), como o vector proprio, |Ψ(λ)〉, admitem uma expansao em

Page 361: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.1 Teoria das perturbacoes estacionarias 345

potencias de λ, da forma, respectivamente,

E(λ) = ǫ0 + λǫ1 + λ2ǫ2 + . . . =

+∞∑

n=0

λnǫn , (11.1.6)

|Ψ(λ)〉 = |0〉+ λ|1〉+ λ2|2〉+ . . . =

+∞∑

n=0

λn|n〉 . (11.1.7)

Substituindo estas expansoes em (11.1.5) obtemos

(H0 + λV )

(

+∞∑

n=0

λn|n〉)

=

(

+∞∑

n=0

λnǫn

)(

+∞∑

m=0

λm|m〉)

. (11.1.8)

Igualando as potencias de λ obtemos um conjunto infinito de equacoes:

• Ordem 0 :

H0|0〉 = ǫ0|0〉 . (11.1.9)

Este ordem corresponde ao sistema sem perturbacao.

• Ordem 1 :(

H0 − ǫ0)

|1〉+(

V − ǫ1)

|0〉 = 0 ; (11.1.10)

• Ordem 2 :(

H0 − ǫ0)

|2〉+(

V − ǫ1)

|1〉 − ǫ2|0〉 = 0 ; (11.1.11)

• Ordem n:

(

H0 − ǫ0)

|n〉+(

V − ǫ1)

|n− 1〉 − ǫ2|n− 2〉 − . . .− ǫn|0〉 = 0 . (11.1.12)

No que se segue estudaremos as correccao ao espectro e funcoes proprias ate segunda ordem

em λ.

Para determinarmos a funcao de onda numa dada ordem em λ, recordamos que a

equacao de valores proprios (11.1.5) determina a funcao de onda a menos de uma constante.

Esta constante pode ser escolhida de modo a que:

i) a funcao de onda esteja normalizada, 〈Ψ(λ)|Ψ(λ)〉 = 1;

Page 362: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

346 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

ii) como fica ainda a liberdade residual de escolher a fase da funcao de onda, tomamos

esta fase de modo a que 〈0|Ψ(λ)〉 seja real em qualquer ordem da expansao em λ.

Com estas duas condicoes temos:

• Ordem 0 : Dado que nesta ordem |Ψ(λ)〉 = |0〉 as duas condicoes traduzem-se em 〈0|0〉 =1; isto e, o estado |0〉 esta normalizado;

• Ordem 1 : Nesta ordem |Ψ(λ)〉 = |0〉 + λ|1〉; a normalizacao da funcao de onda, nesta

ordem, significa

1 = (〈0|+ λ〈1|) (|0〉+ λ|1〉) = 〈0|0〉+ λ (〈0|1〉+ 〈1|0〉) +O(λ2) ; (11.1.13)

usando o resultado de ordem zero, obtemos

〈0|1〉 = −〈0|1〉∗ ,

ou seja, 〈0|1〉 e um imaginario puro. Por outro lado, a condicao ii) implica que

〈0|Ψ(λ)〉 = 〈0|0〉+ λ〈0|1〉 = 1 + λ〈0|1〉

seja real, ou seja 〈0|1〉 tem de ser real. Logo

〈0|1〉 = 〈1|0〉 = 0 . (11.1.14)

• Ordem 2 : Por um raciocınio analogo conclui-se que

〈0|2〉 = 〈2|0〉 = −1

2〈1|1〉 . (11.1.15)

• Ordem n: Analogamente conclui-se que

〈0|n〉 = 〈n|0〉 = −1

2[〈n− 1|1〉+ 〈n− 2|2〉+ . . .+ 〈2|n− 2〉+ 〈1|n− 1〉] . (11.1.16)

Para considerarmos em detalhe o efeito da perturabacao W no espectro e vectores

proprios de H0 consideremos separadamente os nıveis de H0 degenerado e nao degenerados.

Page 363: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.1 Teoria das perturbacoes estacionarias 347

11.1.1 Perturbacao de um nıvel nao degenerado

Consideramos um nıvel nao degenerado de H0, com valor proprio E0n e vector proprio asso-

ciado |φn〉. Vamos calcular o valor proprio de H , En(λ), e a funcao propria correspondente,

|Ψn(λ)〉, ate segunda ordem em λ; ou seja, vamos calcular ǫ0, ǫ1, ǫ2 e |0〉, |1〉, |2〉.

Ordem 0

Em ordem 0, En(λ) = ǫ0 e |Ψn(λ)〉 = |0〉, isto e, ignoramos a perturbacao. A energia e

estado correspondem aos de H0

ǫ0 = E0n , |0〉 = |φn〉 . (11.1.17)

Ordem 1

Em ordem 1, En(λ) = ǫ0 + λǫ1 e |Ψn(λ)〉 = |0〉 + λ|1〉. Para calcular ǫ1 projectamos a

equacao (11.1.10) em 〈φn| = 〈0|:

〈φn|(

H0 − ǫ0)

|1〉+ 〈φn|(

V − ǫ1)

|0〉 = 0 ;

dado que H0|φn〉 = ǫ0|φn〉, o primeiro termo e zero; como |0〉 = |φn〉 esta normalizado

concluimos que

ǫ1 = 〈φn|V |φn〉 . (11.1.18)

Logo, em primeira ordem

En(λ) = E0n + 〈φn|W |φn〉+O(λ2) . (11.1.19)

A correccao de primeira ordem a energia de um nıvel nao degenerado |φn〉 e dada pelo

valor esperado da perturbacao nesse mesmo estado nao perturbado |φn〉.Para calcularmos o estado em primeira ordem em λ projectamos (11.1.10) em todos os

outros estados proprios de H0 (que nao |φn〉), |φip〉. Note-se que os outros nıveis p 6= n

podem ser degenerados, pelo que mantemos o ındice i. Obtemos

〈φip|(

H0 − ǫ0)

|1〉+ 〈φip|(

V − ǫ1)

|0〉 = 0 ;

Page 364: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

348 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

Como |φn〉 e |φip〉 para n 6= p sao estados proprios associados a valores proprios distintos,

〈φip|φn〉 = 0; usando ainda que H0|φi

p〉 = E0p |φi

p〉 obtemos

〈φip|1〉 =

〈φip|V |φn〉

E0n −E0

p

, p 6= n . (11.1.20)

Como 〈φn|1〉 = 0, por (11.1.14) temos todos os coeficientes da projeccao de |1〉 na base de

funcoes proprias de H0. Logo

|1〉 =∑

p

dp∑

i=1

|φip〉〈φi

p|1〉 =∑

p 6=n

dp∑

i=1

〈φip|V |φn〉

E0n −E0

p

|φip〉 . (11.1.21)

Consequentemente, em primeira ordem em λ, o estado proprio de H e

|Ψn(λ)〉 = |φn〉+∑

p 6=n

dp∑

i=1

〈φip|W |φn〉E0

n −E0p

|φip〉+O(λ2) . (11.1.22)

A correccao de primeira ordem ao estado proprio |φn〉 de H0 e uma mistura de todos os

outros estados proprios de H0, |φip〉. A contribuicao de um determinado estado |φi

p〉para esta mistura e tanto maior quanto: i) maior for o elemento de matriz da perturbacao

entre este estado e o estado nao perturbado; ii) mais proxima da energia do estado nao

perturbado for a energia deste estado.

Podemos agora precisar o criterio (11.1.2) relativo a validade do metodo perturbativo:

1) Por (11.1.19) requeremos que os elementos diagonais da perturbacao sejam muito

menores que os elementos diagonais de H0 correspondentes

|〈φn|W |φn〉| ≪ |E0n| ; (11.1.23)

2) Por (11.1.22) requeremos que os elementos nao diagonais da perturbacao sejam muito

menores que as diferencas entre os valores proprios de H0 correspondentes aos estados

em questao

|〈φip|W |φn〉| ≪ |E0

n −E0p | . (11.1.24)

Page 365: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.1 Teoria das perturbacoes estacionarias 349

Ordem 2

Em ordem 2, En(λ) = ǫ0 + λǫ1 + λ2ǫ2 e |Ψn(λ)〉 = |0〉 + λ|1〉 + λ2|2〉. Para calcular ǫ2

projectamos a equacao (11.1.11) em 〈φn| = 〈0|:

〈φn|(

H0 − ǫ0)

|2〉+ 〈φn|(

V − ǫ1)

|1〉 − ǫ2〈φn|0〉 = 0 . (11.1.25)

Tal como em ordem 1, o primeiro termo e zero; por (11.1.14), 〈φn|1〉 = 0 e usando 〈φn|0〉 = 1

temos1

ǫ2 = 〈φn|V |1〉(11.1.21)

=∑

p 6=n

dp∑

i=1

|〈φip|V |φn〉|2E0

n − E0p

, (11.1.26)

Logo, em segunda ordem em λ:

En(λ) = E0n + 〈φn|W |φn〉+

p 6=n

dp∑

i=1

|〈φip|W |φn〉|2E0

n − E0p

+O(λ3) . (11.1.27)

Nesta ordem, a contribuicao do estado |φip〉 para o valor proprio da energia do estado nao

perturbado |φn〉, devida a perturbacao W , e tanto maior quanto: i) maior for o acoplamento

〈φip|W |φn〉; ii) mais proximas forem as energias E0

p e E0n. Quanto maiores forem estas

contribuicoes mais os estados |φn〉 e |φip〉 se repelem.

Para calcularmos o estado em segunda ordem em λ projectamos (11.1.11) em todos os

outros estados proprios de H0 (que nao |φn〉), |φip〉. Obtemos

〈φip|(

H0 − ǫ0)

|2〉+ 〈φip|(

V − ǫ1)

|1〉+ ǫ2〈φip|0〉 = 0 ;

Como |φn〉 e |φip〉 para n 6= p sao estados proprios associados a valores proprios distintos,

〈φip|φn〉 = 0 e o ultimo termo e zero; usando ainda que H0|φi

p〉 = E0p |φi

p〉 obtemos

〈φip|2〉 =

〈φip|(

V − ǫ1)

|1〉E0

n − E0p

, n 6= p . (11.1.28)

Expandindo |2〉 na base propria de H0,

|2〉 =∑

p

dp∑

i=1

〈φip|2〉|φi

p〉 =∑

p 6=n

dp∑

i=1

〈φip|2〉|φi

p〉+ 〈φn|2〉|φn〉 ,

1Note-se que, para conhecer a energia em segunda ordem necessitamos do estado em primeira ordem.Genericamente, para conhecermos a energia em ordem n necessitamos do estado ate ordem n− 1.

Page 366: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

350 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

e usando (11.1.28) e a relacao (11.1.15) temos

|2〉 =∑

p 6=n

dp∑

i=1

〈φip|(

V − ǫ1)

|1〉E0

n − E0p

|φip〉 −

〈1|1〉2|φn〉 . (11.1.29)

Usando agora (11.1.21) e (11.1.18), obtemos uma relacao explıcita para |2〉 em funcao de

elementos de matriz da perturbacao na base |φim〉:

|2〉 =∑

p 6=n

dp∑

i=1

m6=n

dm∑

j=1

〈φip|V |φj

m〉E0

n − E0p

〈φjm|V |φn〉

E0n − E0

m

|φip〉 −

p 6=n

dp∑

i=1

〈φip|V |φn〉〈φn|V |φn〉

(E0n − E0

p)2

|φip〉

−1

2

p 6=n

dp∑

i=1

|〈φip|V |φn〉|2

(E0n − E0

p)2|φn〉

.

(11.1.30)

Logo, em segunda ordem em λ, o estado proprio de H e

|Ψn(λ)〉 =

(

1− 1

2

p 6=n

dp∑

i=1

|〈φip|W |φn〉|2

(E0n − E0

p)2

)

|φn〉

+∑

p 6=n

dp∑

i=1

〈φip|W |φn〉E0

n − E0p

(

1− 〈φn|W |φn〉E0

n − E0p

)

|φip〉

+∑

p 6=n

dp∑

i=1

m6=n

dm∑

j=1

〈φip|W |φj

m〉E0

n − E0p

〈φjm|W |φn〉E0

n − E0m

|φip〉+O(λ3) .

(11.1.31)

Ordem de grandeza do erro numa aproximacao de primeira ordem

Se decidirmos truncar a expansao de En(λ) e |Ψ(λ)〉 em primeira ordem em λ, podemos

ter uma ideia do erro envolvido no calculo majorando o termo da energia de ordem 2.

Seja E0m a energia mais proxima de E0

n no espectro de H0. Denotemos ∆E ≡ |E0n−E0

m|.Logo

|E0n −E0

p | ≥ ∆E , ∀p 6=n . (11.1.32)

Podemos assim majorar o termo ǫ2 usando a expressao (11.1.26):

|ǫ2| ≤1

∆E

p 6=n

dp∑

i=1

|〈φip|V |φn〉|2 =

1

∆E〈φn|V

[

p 6=n

dp∑

i=1

|φip〉〈φi

p|]

V |φn〉

=1

∆E〈φn|V

[

1− |φn〉〈φn|]

V |φn〉 =1

∆E

[

〈φn|V 2|φn〉 −(

〈φn|V |φn〉)2]

.

(11.1.33)

Page 367: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.1 Teoria das perturbacoes estacionarias 351

Logo

|λ2ǫ2| ≤(∆W )2

∆E, (11.1.34)

onde ∆W e o desvio padrao da perturbacao no estado nao perturbado. Logo, em ordem

1, a correccao a energia e o valor medio da perturbacao no estado nao perturbado e o erro

e estimado usando o desvio padrao da perturbacao nesse mesmo estado.

11.1.2 Perturbacao a um nıvel degenerado

Consideremos agora um nıvel degenerado de H0, com valor proprio E0n e grau de de-

generescencia dn, 1 < dn < +∞. Seja E0n o sub-espaco vectorial gerado pelos vectores

proprios de H0 associados a E0n, |φi

n〉. Neste caso vamos limitar a nossa analise a primeira

ordem nos valores proprios e ordem zero nos vectores proprios.

Ordem 0

Em ordem 0, En(λ) = ǫ0 e |Ψn(λ)〉 = |0〉. Claramente

ǫ0 = E0n , |0〉 =

dn∑

i=1

ci|φin〉 , onde

dn∑

i=1

|ci|2 = 1 . (11.1.35)

Note-se que existe uma indefinicao na escolha de |0〉, devida a degenerescencia do nıvel

em analise. Essa indefinicao sera levantada em ordens superiores, caso a degenerescencia

tambem o seja.

Ordem 1

Em ordem 1, En(λ) = ǫ0+λǫ1 e |Ψn(λ)〉 = |0〉+λ|1〉. Para calcular ǫ1 e simultaneamente |0〉,projectamos a equacao (11.1.10) em 〈φi

n|. Por uma analise analoga ao caso nao degenerado

obtemos

〈φin|V |0〉 = ǫ1〈φi

n|0〉 . (11.1.36)

Inserindo a relacao de fecho,

p

dp∑

j=1

〈φin|V |φj

p〉〈φjp|0〉 = ǫ1〈φi

n|0〉 . (11.1.37)

Page 368: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

352 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

Por (11.1.35), o termo 〈φjp|0〉 so e diferente de zero para p = n; logo

dn∑

j=1

〈φin|V |φj

n〉〈φjn|0〉 = ǫ1〈φi

n|0〉 . (11.1.38)

Escrevendo os elementos de matriz 〈φin|V |φj

n〉 ≡ V ijn e usando (11.1.35), esta equacao

reescreve-se

V ijn cj = ǫ1ci ⇔ Vn|0〉 = ǫ1|0〉 . (11.1.39)

Isto e, para calcular os valores proprios em ordem 1 e simultaneamente o vector proprio em

ordem zero, de H(λ), correspondentes a perturbacao de um nıvel degenerado E0n, temos

de diagonalizar a perturbacao V no sub-espaco E0n associado a E0

n. Cada estado em E0n

pode ter uma correccao diferente na energia por accao da perturbacao; isto e, em primeira

ordem

En,j(λ) = E0n + λǫj1 , j = 1, . . . , f (1)

n ≤ dn , (11.1.40)

onde os varios ǫj1 sao obtidos resolvendo a equacao caracterıstica (11.1.39), correspondendo

o ındice j ao numero de solucoes distintas, num total de (em primeira ordem) f(1)n , que

necessariamente nao ira exceder a dimensao do sub-espaco vectorial degenerado, dn.

Relativamente ao vector proprio |0〉, existem duas possibilidades:

• Se a perturbacao levantar totalmente a degenerescencia de E0n em primeira ordem, i.e.

f(1)n = dn, o vector proprio |0〉 e unicamente determinado pela equacao caracterıstica

(11.1.39). Neste caso existe um unico vector proprio de H(λ) em ordem zero com

valor proprio E0n + λǫj1 em ordem 1.

• Se a perturbacao nao levantar totalmente a degenerescencia de E0n em primeira ordem,

i.e. f(1)n < dn, o vector proprio |0〉 nao e unicamente determinado pela equacao

caracterıstica (11.1.39); para cada energia E0n +λǫj1, em primeira ordem, |0〉 pertence

a um espaco vectorial cuja dimensao e a degenerescencia E0n + λǫj1 em ordem 1.

11.1.3 Perturbacoes X, X2 e X3 a um potencial harmonico

Vamos agora ilustrar o formalismo estudado considerando perturbacoes do tipo X, X2 e X3

num potencial harmonico um dimensional. No primeiro e segundo caso, o problema com a

Page 369: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.1 Teoria das perturbacoes estacionarias 353

perturbacao e ainda exactamente soluvel, pelo que podemos testar o metodo perturbativo

comparando-o com a solucao exacta. O terceiro caso nao tem solucao exacta, mas e de

interesse pratico, pois um termo do tipo X3 e o primeiro termo nao harmonico na expansao

de Taylor de um potencial arbitrario em torno de um ponto estacionario. Note que o

espectro de H0 sera nao degenerado.

Perturbacao por um potencial linear

Seja H0 o Hamiltoniano do oscilador harmonico em uma dimensao (5.1.1)

H0 =P 2

2m+mω2

2X2 . (11.1.41)

O seu espectro e

E0n =

(

n+1

2

)

~ω, n ∈ N0 , (11.1.42)

e o conjunto de funcoes proprias normalizadas e denotado, tal como no capıtulo 5, |Φn〉.Consideramos a perturbacao

W = λ√m~ω3X . (11.1.43)

Analisemos primeiro a solucao exacta. O Hamiltoniano total H(λ) = H0 + W pode ser

escrito

H(λ) =P 2

2m+mω2

2

(

X + λ

~

mω1

)2

− λ2ω~

21 . (11.1.44)

Concluimos imediatamente que o espectro de H e

En(λ) =

(

n +1− λ2

2

)

~ω, n ∈ N0 . (11.1.45)

Para calcularmos as novas funcoes proprias notamos que o efeito da perturbacao consiste,

para alem da adicao de uma energia ao Hamiltoniano, numa translacao

X → X + λ

~

mω1 .

O Hamiltoniano H(λ) e ainda um problema harmonico canonico (a menos da soma de

uma energia) quando interpretado em termos da posicao transladada, dado que o operador

momento pode ainda ser interpretado como o momento canonico conjugado da posicao

Page 370: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

354 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

transladada. Recordamos que o operador translacao foi definido no Problema 8 da folha

de problemas 5, como sendo T∆x, com accao

T∆xf(x) = f(x+ ∆x) , (11.1.46)

e com representacao

T∆x = ei∆xP/~ . (11.1.47)

Usando ∆x = λ√

~/mω e, de (5.1.4), P = −i√

mω~/2(a − a†), obtemos, em termos de

operadores de criacao e destruicao

T∆x = eλ(a−a†)/√

2 . (11.1.48)

Logo, as funcoes proprias de H(λ), |Ψn(λ)〉, podem ser obtidas pela accao da translacao

em |Φn〉:|Ψn(λ)〉 = eλ(a−a†)/

√2|Φn〉 , (11.1.49)

ou, usando (5.1.30), (5.1.31) e expandindo a exponencial em serie de Taylor,

|Ψn(λ)〉 = |Φn〉+ λ

n

2|Φn−1〉 − λ

n + 1

2|Φn+1〉+O(λ2) . (11.1.50)

Vamos agora usar a teoria de perturbacoes estacionarias para reproduzir os resultados

(11.1.45) e (11.1.50). Comecamos por escrever a perturbacao W em termos dos operadores

de destruicao e criacao, usando (5.1.4):

X =

~

2mω(a+ a†) ⇒ W = λ

~ω√2(a + a†) . (11.1.51)

Claramente, a perturbacao mistura o estado |Φn〉 apenas com |Φn−1〉 e |Φn+1〉; os unicos

elementos de matriz da perturbacao nao nulos sao

〈Φn+1|W |Φn〉 = λ~ω

n+ 1

2, 〈Φn−1|W |Φn〉 = λ~ω

n

2. (11.1.52)

Logo, usando (11.1.27), En(λ) em ordem 2 e

En(λ) = ~ω

(

n+1

2

)

− λ2 ~ω

2+O(λ3) . (11.1.53)

Page 371: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.1 Teoria das perturbacoes estacionarias 355

Nesta ordem obtemos o resultado exacto (11.1.45); pode-se demonstrar que todos os termos

de ordem superior a 2 sao de facto zero. Usando (11.1.22) obtemos

|Ψn(λ)〉 = |Φn〉+ λ

n

2|Φn−1〉 − λ

n+ 1

2|Φn+1〉+O(λ2) , (11.1.54)

em acordo com (11.1.50) nesta ordem.

Perturbacao por um potencial quadratico

Perturbamos agora (11.1.41) por um potencial quadratico

W = λmω2

2X2 . (11.1.55)

Obviamente, o Hamiltoniano total e o de um oscilador harmonico canonico com frequencia

ω√

1 + λ. Como tal, o espectro de energias e

En(λ) = ~ω

(

n+1

2

)(

1 +λ

2− λ2

8+ . . .

)

. (11.1.56)

Podemos tambem relacionar os operadores de criacao e destruicao na presenca da per-

turbacao e na ausencia da perturbacao. Como a relacao entre eles e complexa, vamos

restringir a nossa analise ao espectro. Para usarmos a teoria de perturbacoes escrevemos

a perturbacao em termos de operadores de criacao e destruicao,

W = λ~ω

4

(

(a†)2 + aa† + a†a+ (a)2)

, (11.1.57)

de onde se conclui que os elementos de matriz nao nulos sao

〈Φn|W |Φn〉 =λ~ω

2

(

n+1

2

)

,

〈Φn+2|W |Φn〉 =λ~ω

4

(n+ 1) (n+ 2) , 〈Φn−2|W |Φn〉 =λ~ω

4

n (n− 1) .

(11.1.58)

Logo, usando (11.1.27), En(λ) em ordem 2 e

En(λ) = ~ω

(

n +1

2

)

+λ~ω

2

(

n+1

2

)

−(

λ~ω

4

)2(n+ 1)(n+ 2)

2~ω+

(

λ~ω

4

)2n(n− 1)

2~ω

= ~ω

(

n +1

2

)(

1 +λ

2− λ2

8+ . . .

)

+O(λ3) ,

(11.1.59)

em acordo com o calculo exacto (11.1.56).

Page 372: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

356 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

Perturbacao por um potencial cubico

Perturbamos agora (11.1.41) por um potencial cubico

W = λ

m3ω5

~X3 . (11.1.60)

No problema classico, x(t) deixa de ser sinusoidal, aparecendo uma serie de harmonicos

da frequencia fundamental; o perıodo deixa de ser independente da energia e o movi-

mento deixa de ser simetrico relativamente a origem. Relativamente ao problema quantico

comecamos por exprimir a perturbacao em termos de operadores de criacao e destruicao.

Usando (11.1.51) obtemos, usando as relacoes de comutacao entre a, a† e o operador de

numero N = a†a,

W = λ~ω√

8

(

a3 + (a†)3 + 3N a† + 3(N + 1)a)

. (11.1.61)

Com esta forma e simples concluir que os unicos elementos de matriz nao nulos para a

perturbacao sao

〈Φn+3|W |Φn〉 =λω~√

8

(n+ 1)(n+ 2)(n + 3) , 〈Φn−3|W |Φn〉 =λω~√

8

n(n− 1)(n− 2) ,

〈Φn+1|W |Φn〉 =3λω~√

8(n + 1)3/2 , 〈Φn−1|W |Φn〉 =

3λω~√8n3/2 .

(11.1.62)

Usando (11.1.27), verificamos que a contribuicao de primeira ordem para En(λ) e zero;

levando em conta a contribuicao de segunda ordem obtemos

En(λ) = ~ω

(

n+1

2

)

− 15

4λ2ω~

(

n+1

2

)2

− 7

16λ2ω~ +O(λ3) . (11.1.63)

Em segunda ordem, a perturbacao diminui a energia de todos os nıveis. Quanto mais

elevado for o nıvel maior a diminuicao de energia. Note-se que, como tal, nıveis consecutivos

ja nao sao equidistantes.

Usando (11.1.22) obtemos, para os estados de H , em primeira ordem,

|Ψn(λ)〉 = |Φn〉 −λ

3

(n + 1)(n+ 2)(n+ 3)

8|Φn+3〉+

λ

3

n(n− 1)(n− 2)

8|Φn−3〉

+3λ

n3

8|Φn−1〉 − 3λ

(n+ 1)3

8|Φn+1〉+O(λ2) .

(11.1.64)

Page 373: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.1 Teoria das perturbacoes estacionarias 357

O efeito da perturbacao e misturar o estado |Φn〉 com os estados |Φn+3〉, |Φn−3〉, |Φn+1〉 e

|Φn−1〉.

11.1.4 Estrutura fina do atomo de Hidrogenio

Como aplicacao da teoria de perturbacoes estacionarias vamos estudar a estrutura fina e

hiperfina2 do atomo de Hidrogenio. Como discutido na seccao 9.2, o Hamiltoniano usado

para descrever o atomo de Hidrogenio no capıtulo 6, H0, e apenas aproximado, dado que

negligencia todos os efeitos relativistas, em particular os efeitos magneticos e de spin,

para alem de nao considerar o spin nuclear. Estes efeitos sao necessarios para explicar os

espectros observados; de facto, embora conduzam a apenas pequenas alteracoes do espectro

estudado no capıtulo 6, a enorme precisao da espectroscopia evidencia claramente estas

alteracoes. Sendo pequenas podemos usar teoria de perturbacoes para as estudar.

O Hamiltoniano de estrutura fina

O Hamiltoniano de estrutura fina pode ser obtido directamente da equacao de Dirac.

Embora esta equacao possa ser resolvida exactamente para um potencial de Coulomb,

e instrutivo considerar uma analise perturbativa, que evidencia a interpretacao fısica de

cada um dos termos no problema. O operador Hamiltoniano que descreve o atomo de

Hidrogenio, incluindo os termos responsaveis pela estrutura fina, toma a seguinte forma:

H = mec21 + H0 + Wmv + WSO + WD . (11.1.65)

Consideremos os varios termos individualmente:

• mec2 e a energia associada a massa em repouso do electrao;

• H0 e o Hamiltoniano considerado no capıtulo 6; este leva apenas em conta o termo

cinetico nao relativista e o potencial de Coulomb

H0 =P 2

2me− 1

4πǫ0

e2

r. (11.1.66)

2A estrutura hiperfina sera descrita nas aulas teorico-praticas se houver tempo para tal.

Page 374: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

358 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

Note-se, que neste termo, o facto de a massa do protao ser finita pode ser levado em

consideracao substituindo me pela massa reduzida do sistema protao-electrao µ.

• Wmv e a primeira correccao relativista ao termo cinetico:

Wmv = − P 4

8m3ec

2. (11.1.67)

Este termo e facil de obter considerando a expressao relativista para a energia

E = c√

~p2 +m2ec

2 = mec2

1 +~p2

m2ec

2= mec

2

(

1 +~p2

2m2ec

2− ~p4

8m4ec

4+ . . .

)

;

(11.1.68)

os tres primeiros termos mec2, ~p2

2mee − ~p4

8m3ec2

, correspondem a tres dos termos pre-

sentes em (11.1.65): a energia correspondente a massa em repouso, o termo cinetico

nao relativista presente em H0 e a primeira correccao relativista a energia cinetica

que resulta da variacao da massa com a velocidade. Para estimarmos a ordem de

magnitude relativa entre Wmv e H0 estimamos o ultimo pelo termo cinetico:

|Wmv||H0|

=

|~p4|8m3

ec2

|~p2|2me

∼ |~p2|

m2ec

2∼(v

c

)2

∼ α2 ≃(

1

137

)2

, (11.1.69)

onde usamos a relacao (9.2.2). Como as energias do espectro nao perturbado sao da

ordem de |H0| ∼ 10 eV , a perturbacao sera da ordem de |Wmv| ∼ 10−3 eV , o que

justifica o uso de teoria de perturbacoes.

• WSO e o acoplamento spin-orbita:

WSO =1

2m2ec

2R

dV (R)

dR

~L · ~S . (11.1.70)

A origem fısica deste termo pode ser compreendida pela seguinte analise classica:

o electrao move-se com velocidade ~v no campo electrico do protao. Logo ve um

campo magnetico que pode ser estimado pela transformacao de Lorentz do campo

electrostatico do protao ~E

~B′ ≃ − ~vc2× ~E . (11.1.71)

Page 375: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.1 Teoria das perturbacoes estacionarias 359

Como o electrao tem um dipolo magnetico que resulta do seu spin, existe uma in-

teracao do tipo

W ′SO = −~µS · ~B′ = −

(

2e

2me

~S

)

·(

− ~vc2×[

−1

e

dV

dr

~r

r

])

. (11.1.72)

Usando a definicao classica de momento angular me~v × ~r = −~L obtemos

W ′SO =

1

m2ec

2r

dV

dr~L · ~S . (11.1.73)

A menos de um factor de 1/2, este e o acoplamento spin-orbita. O factor de 1/2 e

devido a nossa estimativa do campo magnetico produzido pelo nucleo assumir um

movimento rectilıneo, o que nao acontece. O movimento nao rectilıneo origina uma

precessao do spin electronico - Precessao de Thomas ; quando levada em consideracao

o factor de 1/2 surge naturalmente.

Estimemos agora a ordem de grandeza deste termo, relativamente a H0, usando para

este ultimo o termo potencial, estimando

~L ∼ ~ , ~S ∼ ~ , r ∼ a0 =~

cmeα,

dV

dr∼ e2

4πǫ0a20

,

temos

|WSO||H0|

=

e2~2

8πǫ0m2ec2a3

0

e2

4πǫ0a0

∼ ~2

m2ec

2a20

∼ α2 . (11.1.74)

Este termo e, portanto, da ordem da mesma ordem de grandeza de Hmv.

• WD e o termo de Darwin:

WD =~

2

8m2ec

2∆V (R) . (11.1.75)

A origem fısica deste termo pode ser compreendida da seguinte maneira. Na equacao

de Dirac a interaccao entre o campo do nucleo e o electrao e local, isto e, o electrao e

afectado pelo potencial no ponto onde se encontra, ~r. Na aproximacao nao relativista,

no entanto, a expansao em v/c origina uma interaccao nao local, isto e, o electrao e

afectado pelo campo do protao num certo volume, centrado em ~r. Esse volume e da

Page 376: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

360 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

ordem de (~/mec)3, onde λ = ~/mc e o comprimento de onda de Compton.3 Assim,

a energia potencial nao e apenas V (~r), mas toma a forma

Energia potencial ∼∫

d3ρf(ρ)V (~r + ρ) , (11.1.76)

onde a funcao f(ρ) tem as seguintes propriedades: i) depende apenas de |ρ|, dado que

o potencial tem simetria esferica; ii) tem suporte num volume da ordem de (~/mec)3,

centrado em ρ = 0; iii)∫

d3ρf(ρ) = 1. Considerando uma expansao em serie de

Taylor, de V (~r+ ρ) e notando que o integral do termo de ordem um e nulo devido a

simetria esferica obtemos que a energia potencial fica∫

d3ρf(ρ)

(

V (~r) +ρ2

2∆V (~r) + . . .

)

. (11.1.77)

O primeiro termo e o termo potencial de H0; o segundo termo tem a forma

∆V (~r)

d3ρρ2f(ρ) ∼ ∆V (~r)(~/mec)2 ,

que, a menos de um factor numerico tem a forma do termo de Darwin.

Para estimar a ordem de grandeza do termo de Darwin relativamente a H0 notamos

que, usando (10.2.7) o termo pode ser reescrito

WD = − ~2e2

8m2ec

2(4πǫ0)∆

(

1

R

)

=~

2e2

8m2ec

2ǫ0δ(R) . (11.1.78)

O valor esperado deste operador num estado proprio de H0 e

〈WD〉 =~2e2

8m2ec

2ǫ0|Ψ(0)|2 . (11.1.79)

Imediatamente concluimos que o termo de Darwin so afecta electroes em orbitais s,

pois de acordo com os resultados do capıtulo 6 (ver por exemplo tabela na seccao

3Uma maneira de pensar neste comprimento de onda e a seguinte: tal como o comprimento de ondade de Broglie de uma partıcula de massa m e com velocidade v, λdB = ~/mv nos da a escala na qual ocaracter ondulatorio de uma partıcula quantica nao pode ser negligenciado, o comprimento de onda deCompton da mesma partıcula λC = ~/mc da-nos uma escala para a qual os efeitos relativistas nao podem,igualmente, ser negligenciados. Claramente λC < λdB. Na teoria de Dirac, a origem fısica do termo deDarwin e um fenomeno denominado zitterbewegung que consiste no facto de que o electrao nao se movesuavemente, mas sofre flutuacoes de pequena escala (da ordem de λC) extremamente rapidas; assim, aofazermos uma expansao em v/c o electrao ve efectivamente o potencial de Coulomb do nucleo espalhadopor uma vizinhanca da ordem de λC .

Page 377: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.1 Teoria das perturbacoes estacionarias 361

6.4, ou expressao (7.2.63)) estas sao as unicas para as quais Ψ(0) 6= 0. Como |Ψ(0)|2

e uma densidade de probabilidade estimamos o seu valor por |Ψ(0)|2 ∼ 1/a30. Logo

|WD||H0|

=

e2~2

8m2ec2a3

0ǫ0

p2

2me

∼ mec2α4

mec2α2∼ α2 , (11.1.80)

tal como para os termos anteriores.

A estrutura fina do nıvel N = 2

Vamos exemplificar o efeito da perturbacao a H0 dada em (11.1.65) calculando a estrutura

fina do nıvel N = 2 do atomo de Hidrogenio.4 Recordamos que o espectro deste atomo

(6.4.23) depende apenas do numero quantico principal

E0N = − ~2

2mea20

1

N2= −mec

2

2N2α2 . (11.1.81)

Assim, o nıvel 2s (N = 2, ℓ = 0) e o nıvel 2p (N = 2, ℓ = 1) tem a mesma energia, dada

por

E02 = −mec

2

8α2 . (11.1.82)

Para alem desta degenerescencia, concluimos no capıtulo 6, que o nıvel p e ele proprio

degenerado, pois o momento angular ℓ = 1 pode ter momento angular azimutal descrito

pormℓ = −1, 0, 1. Mas no capıtulo 6 foi negligenciado o spin. Considerando tambem o spin,

quer do electrao quer do protao, cado um dos 4 nıveis anteriores tem uma degenerescencia

adicional de 4. Assim, uma base para o espaco de estados de cada uma das orbitais sera:

• Orbital 2s: |N = 2, ℓ = 0, mℓ = 0, mS = ±;mI = ±〉; onde mS refere-se ao spin

electronico e mI ao spin do protao;

• Orbital 2p: |N = 2, ℓ = 1, mℓ = −1, 0, 1, mS = ±;mI = ±〉.

A degenerescencia total do nıvel N = 2 e entao 4 + 12 = 16.

De acordo com os resultados vistos na seccao 11.1 para perturbacoes de um nıvel degen-

erado, necessitamos de diagonalizar a perturbacao W neste sub-espaco 16 dimensional. Os

4Nota: Para o nıvel N = 1 a perturbacao associada a estrutura fina produz apenas uma correccaoglobal ao nıvel e nao levanta a degenerescencia. Assim e mais interessante estudar o nıvel N = 2.

Page 378: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

362 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

valores proprios nesta diagonalizacao serao as correccoes de primeira ordem das energias; os

vectores proprios correspondentes serao os vectores proprios de ordem zero. Consideremos

entao a perturbacao

Wf = Wmv + WSO + WD , (11.1.83)

que sera responsavel pela chamada “estrutura fina”. O calculo desta estrutura e facilitado

pelas duas seguintes observacoes: i) Dado que esta perturbacao nao actua no spin do protao,

este grau de liberdade pode ser ignorado para a estrutura fina. Assim sendo, a dimensao

do espaco degenerado associado a N = 2 reduz-se efectivamente a 8; ii) A perturbacao

comuta com o momento angular total, [L2, Wf ] = 0. De facto L2 comuta com Wmv pois

[L2, P 2] = 0 ⇒ [L2, P 4] = 0 ;

L2 comuta com WSO pois

[L2, f(R)] = 0 , [L2,~L] = 0 , [L2,

~S] = 0 ,

onde f(R) e uma funcao arbitraria de R; devido a primeira relacao na ultima equacao L2

comuta com WD. Logo, Wf nao mistura estados 2s com estados 2p e a matriz de 8 × 8

que representa Wf parte-se numa matriz de 2× 2 que actua nos estados 2s e uma matriz

de 6× 6 que actua nos estados 2p. De facto e facil verificar que Wf e um operador par e

como tal nao poderia misturar estados com paridade diferente, como e o caso de estados s

e estados p. Consideramos seguidamente e separadamente as representacoes matriciais de

Wf que actuam em estados 2s e estados 2p.

Estrutura fina para o nıvel 2s

Consideramos a base |N, ℓ,mℓ, mS〉 = |2, 0, 0,±〉. Wmv e WD nao actuam no grau de

liberdade de spin, mS. Logo estes operadores sao proporcionais ao operador identidade no

espaco de spin. Os coeficientes de proporcionalidade serao dados por elementos de matriz

puramente orbitais, respectivamente,

〈Wmv〉2s = − 1

8m3ec

2〈2, 0, 0|P 4|2, 0, 0〉 , 〈WD〉2s =

~2

8m2ec

2〈2, 0, 0|∆V (R)|2, 0, 0〉 .

(11.1.84)

Page 379: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.1 Teoria das perturbacoes estacionarias 363

Por outro lado, os elementos de matriz de WSO sao nulos; de facto

〈WSO〉2s ∝ 〈2, 0, 0,±|Lx,y,z|2, 0, 0,±〉 = 0 ,

pois qualquer componente do momento angular tem valor esperado nulo no harmonico

esferico com ℓ = 0 = mℓ. Assim, o efeito dos termos de estrutura fina nos estados 2s e

alterar a sua energia para

E2s = −mec2

8α2 + 〈Wmv〉2s + 〈WD〉2s . (11.1.85)

Calculemos explicitamente estes elementos de matriz. Para calcular 〈Wmv〉2s notamos que

H0 =P 2

2me+ V (R) ⇒ P 2 = 2me(H0 − V (R)) .

Logo

〈Wmv〉2s = − 4m2e

8m3ec

2〈(

H0 − V (R))2

〉2s = − 1

2mec2

[

(E02)

2 +2E0

2e2

4πǫ0〈 1R〉2s +

e4

(4πǫ0)2〈 1

R2〉2s

]

.

(11.1.86)

Para calcular os valores esperados 〈1/Rn〉2s, recordamos que a parte radial da funcao de

onda do estado 2s e (6.4.33)

f(2,0)(r) =2

(2a0)3/2

(

1− r

2a0

)

e−r/2a0 . (11.1.87)

Como tal

〈 1

Rn〉2s =

∫ +∞

0

4

(2a0)3

(

1− r

2a0

)2

e−r/a0r2

rndr =

1

4a0, n = 1 ,

1

4a20

, n = 2 .(11.1.88)

Notando que

a0 ≡4πǫ0~

2

mee2, a0α =

~

mec,

obtemos

〈Wmv〉2s = −mec2α4

2

[

1

64− 1

16+

1

4

]

= − 13

128mec

2α4 . (11.1.89)

Para calcular 〈WD〉2s recordamos (11.1.79); logo

〈WD〉2s =~

2e2

8m2ec

2ǫ0|Ψ(0)2s|2 =

~2e2

8m2ec

2ǫ0

1

4

(2a0)3=mec

2α4

16, (11.1.90)

Page 380: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

364 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

onde usamos (11.1.87) bem como o harmonico esferico Y 00 = 1/

√4π.

Finalmente podemos juntar os resultados e concluir que a energia dos estados 2s,

levando em conta a perturbacao da estrutura fina e

E2s = −mec2

(

α2

8+

5

128α4 +O(α6)

)

. (11.1.91)

Estrutura fina para o nıvel 2p

Os termos Wmv e WD nao actuam nas variaveis de spin e comutam com as varias

componentes de~L. Logo, no sub-espaco associado aos 6 nıveis 2p (ignorando o spin do

protao), os termos Wmv e WD serao proporcionais ao operador identidade neste espaco.

Para WD a constante de proporcionalidade e zero, dado que este termo tem valor esperado

nao nulo apenas em orbitais s:

〈WD〉2p = 0 . (11.1.92)

O valor de 〈Wmv〉2p pode ser calculado de um modo analogo a 〈Wmv〉2s; para este calculo

necessitamos da funcao radial para a orbital 2p que e dada por

f(2,1)(r) =1

(2a0)3/2√

3

r

a0e−r/2a0 , (11.1.93)

com a qual se conclui que

〈 1R〉2p =

1

4a0, 〈 1

R2〉2p =

1

12a20

. (11.1.94)

Usando uma formula analoga a (11.1.86) com 2s substituido por 2p obtem-se que

〈Wmv〉2p = − 7

384mec

2α4 . (11.1.95)

Consideramos agora o termo de spin-orbita. Temos de calcular elementos de matriz do

tipo

〈N = 2, ℓ = 1, s =1

2, m′

ℓ, m′S|

e2

8πǫ0m2ec

2R3

~L · ~S|N = 2, ℓ = 1, s =

1

2, mℓ, mS〉 . (11.1.96)

Nestes elementos de matriz podemos separar a parte radial, usando a representacao |~r〉:

e2

8πǫ0m2ec

2〈 1

R3〉2p〈ℓ = 1, s =

1

2, m′

ℓ, m′S|~L · ~S|ℓ = 1, s =

1

2, mℓ, mS〉 . (11.1.97)

Page 381: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.1 Teoria das perturbacoes estacionarias 365

Usando (11.1.93) conclui-se que

〈 1

R3〉2p =

1

24a30

,

de onde se conclui que os elementos de matriz sob consideracao podem ser escritos

α4

48~2mec

2〈ℓ = 1, s =1

2, m′

ℓ, m′S|~L · ~S|ℓ = 1, s =

1

2, mℓ, mS〉 . (11.1.98)

O problema reduz-se agora a diagonalizar o operador~L·~S neste espaco 6 dimensional, o que

e automaticamente conseguido se usarmos uma base diferente. A base usada em (11.1.98),

no espaco ℓ = 1, s = 1/2, e uma base propria de L2, S2, Lz e Sz. Se introduzirmos o

momento angular total (tal como na seccao 9.5)

~J =

~L+

~S , (11.1.99)

podemos introduzir a base propria dos operadores L2, S2, J2 e Jz,

|ℓ = 1, s =1

2, J,mJ〉

. (11.1.100)

A relacao entre as duas bases e dada pelos coeficientes de Clebsch-Gordon, que nos permite

traduzir entre elas sem dificuldade.

Usando as regras de adicao de momento angular, vistas na seccao 9.5, J toma dois

valores possıveis: J = 1/2 e J = 3/2, com 2 e 4 valores de mJ associados, respectivamente.

Mostramos agora que o operador~L · ~S esta diagonalizado na base (11.1.100), tendo valor

esperado diferente para diferentes valores de J . Para isso escrevemos

J2 = L2 + S2 + 2~L · ~S ⇔ ~

L · ~S =J2 − L2 − S2

2, (11.1.101)

o que demonstra que~L·~S pode ser escrito em termos de operadores que estao diagonalizados

na base (11.1.100). Daqui resulta que e muito simples calcular os valores esperados de~L · ~S

nesta base:

〈ℓ = 1, s =1

2, J =

1

2, mJ |~L · ~S|ℓ = 1, s =

1

2, J =

1

2, mJ〉 =

~2

2

(

3

4− 2− 3

4

)

= −~2 ,

(11.1.102)

Page 382: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

366 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

e

〈ℓ = 1, s =1

2, J =

3

2, mJ |~L · ~S|ℓ = 1, s =

1

2, J =

3

2, mJ〉 =

~2

2

(

15

4− 2− 3

4

)

=~2

2.

(11.1.103)

Como afirmado anteriormente a correccao a energia ira depender de J , mas nao de mJ .

Esta e uma caracterıstica generica.5 Na notacao dos espectroscopistas, introduzida na

seccao 6.4, adiciona-se por isso um sub-ındice J a notacao que tem vindo a ser usada.

Assim, para os estados 2p existem agora os nıveis 2p1/2 e 2p3/2, enquanto que os estados

2s existe apenas o nıvel 2s1/2 (tal como para o estado 1s existe apenas 1s1/2). O valor

esperado nos nıveis 2p1/2 e 2p3/2 da perturbacao WSO e:

〈WSO〉2p1/2= −α

4

48mec

2 , 〈WSO〉2p3/2=α4

96mec

2 . (11.1.106)

Juntando os resultados (11.1.92), (11.1.95) e (11.1.106) obtemos os seguintes nıveis de

energia para os estados 2p:

E2p1/2= −mec

2

(

α2

8+

7α4

384+α4

48

)

= −mec2

(

α2

8+

5α4

128+O(α6)

)

, (11.1.107)

que tem uma degenerescencia 2. Curiosamente a correccao a energia devida a Wf e a

mesma que para o nıvel 2s1/2 (11.1.91). Esta degenerescencia parece ser acidental, ao

contrario da degenerescencia em mJ que resulta da simetria esferica. No entanto, quando

se considera a quantificacao do campo electromagnetico esta degenerescencia e levantada

pelo chamado desvio de Lamb; a energia do nıvel 2s1/2 e entao aumentada, relativamente a

5De facto, a solucao exacta, obtida da equacao de Dirac, para a energia das orbitais do atomo deHidrogenio e dada por

EN,J = mec2

1 +

α2

(

N − J − 1

2+√

(J + 1

2)2 − α2

)2

−1/2

, (11.1.104)

onde se ve que existe apenas dependencia em N e J . Fazendo uma expansao em potencias de α obtem-se:

EN,J = mec2

[

1− α2

2N2− α4

2N4

(

N

J + 1

2

− 3

4

)

+O(α6)

]

. (11.1.105)

Por exemplo, tomando N = 2, J = 1/2 obtem-se (11.1.91), que coincide com (11.1.107); tomando N = 2,J = 3/2, obtem-se (11.1.108).

Page 383: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.1 Teoria das perturbacoes estacionarias 367

do nıvel 2p1/2 por uma quantidade que e cerca de dez vezes menor que a separacao entre os

nıveis 2p1/2 e 2p3/2. O desvio de Lamb foi descoberto em 1949 e teve grande importancia

no desenvolvimento da Electrodinamica Quantica.

Para o nıvel 2p3/2 obtem-se

E2p3/2= −mec

2

(

α2

8+

7α4

384− α4

96

)

= −mec2

(

α2

8+

α4

128+O(α6)

)

. (11.1.108)

Note-se que a correccao ao nıvel 2p3/2 e ligeiramente inferior a do nıvel 2p1/2, o que levanta

parcialmente a degenerescencia dos estados 2p. Como tal, se considerarmos a transicao

2p −→ 1s, que corresponde a risca α da serie de Lyman do espectro do hidrogenio (λ = 1216A), esta risca, quando analisada com uma resolucao suficiente, divide-se em duas riscas

vizinhas

2p −→ 1s

2p1/2 −→ 1s1/2

2p3/2 −→ 1s1/2

,

que estao separadas por uma energia 4mec2α4/128 - figura 11.1. O espectro do Hidrogenio

apresenta, de facto, uma estrutura fina.

Energia

2s1/2 2s1/2 2p1/2 2p1/2

−mec2“

α2

8+ 5α4

128

2p3/2 2p3/2 2p3/2 2p3/2

−mec2“

α2

8+ α4

128

|0,0,+〉 |0,0,−〉 |1,0,+〉 |1,0,−〉 |1,1,+〉 |1,1,−〉 |1,−1,+〉 |1,−1,−〉−mec2 α2

8

Figura 11.1: Nıvel N = 2 do atomo de hidrogenio. As linhas solidas representam o espectrode H0, que tem degenerescencia 8, correspondente aos 8 estados possıveis |ℓ,mℓ, ms〉 paraN = 2. As linhas a tracejado representam o espectro com as correccoes da estrutura fina.Ha um levantamento parcial da degenerescencia que passa a ser 4+4. Note que os estadoscorrigidos correspondem a combinacoes lineares dos estados nao perturbados.

Page 384: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

368 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

11.2 Teoria das Perturbacoes dependentes do tempo

O objectivo principal da teoria das perturbacoes estacionarias e a determinacao da energia

dos estados estacionarios. Contudo, existem situacoes em que essa nao e a informacao

mais importante. Consideremos, por exemplo, um estado excitado de um atomo. Sabe-

se, experimentalmente, que o sistema decai para o estado fundamental ao fim de algum

tempo. Isso significa que, na presenca do acoplamento ao campo de radiacao, o estado

excitado nao e um estado estacionario do Hamiltoniano. Habitualmente o que interessa

e determinar a probabilidade de transicao para o estado fundamental do atomo e nao os

estados estacionarios do sistema atomo mais campo electromagnetico. E o calculo deste

tipo de probabilidades que iremos descrever nesta seccao.

11.2.1 Formulacao do problema

Consideremos um sistema fısico com Hamiltoniano H0, estados estacionarios |Φn〉 e es-

pectro de energias En:H0|Φn〉 = En|Φn〉 . (11.2.109)

Assumimos que o espectro e discreto e nao degenerado, de modo a facilitar a exposicao;

tomando os estados estacionarios como normalizados temos

〈Φn|Φn′〉 = δnn′ ,∑

n

|Φn〉〈Φn| = 1 . (11.2.110)

Note-se que H0 e independente do tempo, de modo a que os estados |Φn〉 sejam realmente

estados estacionarios.

No instante t = 0, uma pequena perturbacao dependente do tempo e aplicada ao

sistema. O Hamiltoniano toma entao a forma:

H(t) = H0 + W (t) , W (t) = λV (t) , (11.2.111)

onde introduzimos a constante adimensional λ ≪ 1 e a observavel V (t), que pode ser

explicitamente dependente do tempo e e da mesma ordem de magnitude do que H0. A

perturbacao e zero para t < 0.

Page 385: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.2 Teoria das Perturbacoes dependentes do tempo 369

Assumimos que o sistema se encontra inicialmente no estado |Φi〉, que e um estado

estacionario de H0 com valor proprio Ei. Depois de aplicada a perturbacao W (t), em

t = 0, o sistema evolui, pelo que |Φi〉 deixara de ser, em geral, um estado estacionario do

Hamiltoniano perturbado. O nosso objectivo e calcular a probabilidade Pif (t), de encontrar

o sistema num outro estado estacionario de H0, |Φf〉, no instante t. Ou seja, pretendemos

estudar as transicoes entre estados estacionarios do Hamiltoniano nao perturbado, que

podem ser induzidas pela perturbacao W (t) - figura 11.2.

t = 0

H0 H0 + W (t)

|Φi〉 |Φi〉Pif (t)−→ |Φf〉

Figura 11.2: Transicao entre dois estados estacionarios de H0 induzida por uma perturbacaoW (t).

Conceptualmente o problema e simples: entre os instantes 0 e t a evolucao do sistema

e descrita pela equacao de Schrodinger

i~d

dt|Ψ(t)〉 =

[

H0 + λV (t)]

|Ψ(t)〉 ; (11.2.112)

como esta e uma equacao diferencial de primeira ordem, impondo a condicao inicial

|Ψ(t = 0)〉 = |Φi〉 , (11.2.113)

a solucao e unica. A probabilidade que pretendemos calcular e:

Pif (t) = |〈Φf |Ψ(t)〉|2 . (11.2.114)

Assim, matematicamente, o problema consiste em resolver a equacao de Schrodinger (11.2.112)

com a condicao inicial (11.2.113), o que em geral tera de ser feito perturbativamente.

11.2.2 Solucao aproximada da equacao de Schrodinger

Como o calculo de (11.2.114) envolve explicitamente os estados estacionarios de H0, vamos

utiliza-los como base, isto e, vamos expandir o estado do sistema |Ψ(t)〉 na representacao

|Φn〉,|Ψ(t)〉 =

n

cn(t)|Φn〉 , cn(t) = 〈Φn|Ψ(t)〉 . (11.2.115)

Page 386: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

370 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

Obviamente, o Hamiltoniano nao perturbado e representado nesta base por uma matriz

diagonal

〈Φn|H0|Φm〉 = Enδnm , (11.2.116)

enquanto que a observavel W (t) tem elementos de matriz

〈Φn|W (t)|Φm〉 = Wnm(t) = λVnm(t) . (11.2.117)

Introduzindo na equacao de Schrodinger (11.2.112) a relacao de fecho

i~d

dt

k

|Φk〉〈Φk|Ψ(t)〉 =∑

k

|Φk〉[

〈Φk|H0|Ψ(t)〉+ 〈Φk|λV (t)|Ψ(t)〉]

⇔ i~d

dtck(t) = Ekck(t) + λ

p

Vkp(t)cp(t) .

(11.2.118)

Estas equacoes ordinarias diferenciais de primeira ordem acopladas (pelos elementos de

matriz da perturbacao Vkp) permitem-nos determinar, perturbativamente, os coeficientes

ck(t). Vejamos como.

Primeiro observamos que se λV (t) = 0, as equacoes deixam de estar acopladas. Neste

caso a solucao e muito simples:

cn(t) = bne−iEnt/~ , (11.2.119)

onde bn sao constantes que dependem das condicoes iniciais. Por exemplo, com a condicao

(11.2.113), teremos bi = 1 e bj = 0 para j 6= i.

Se λV (t) nao for zero mas ainda assim for muito pequeno (i.e. λ≪ 1 sendo os elementos

de matriz de V (t) da ordem dos de H0), a solucao devera ser ainda proxima de (11.2.119).

Tomamos como forma para esta solucao

cn(t) = bn(t)e−iEnt/~ , (11.2.120)

e esperamos que bn(t) sejam funcoes que variam lentamente com o tempo. Inserindo

(11.2.120) em (11.2.118) obtemos

i~

(

d

dtbn(t)

)

e−iEnt/~ = λ∑

p

Vnp(t)bp(t)e−iEpt/~ . (11.2.121)

Page 387: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.2 Teoria das Perturbacoes dependentes do tempo 371

Multiplicando ambos os lados por eiEnt/~ e introduzindo a frequencia angular de Bohr :

ωnp =En −Ep

~, (11.2.122)

obtemos

i~

(

d

dtbn(t)

)

= λ∑

p

Vnp(t)bp(t)eiωnpt . (11.2.123)

Este sistema de equacoes e rigorosamente equivalente a equacao de Schrodinger, dado

que ainda nao introduzimos qualquer aproximacao. Mas como em geral nao conseguimos

encontrar uma solucao exacta de (11.2.123), teremos de recorrer a metodos de aproximacao.

Dado que λ≪ 1 fazemos uma expansao em serie de potencias para bn(t)

bn(t) = b0n(t) + λb1n(t) + λ2b2n(t) + . . . =

+∞∑

k=0

λkbkn(t) ; (11.2.124)

esperamos que esta expansao convirja rapidamente, permitindo-nos trunca-la numa dada

ordem para obter uma solucao aproximada. Substituindo esta expansao em (11.2.123)

obtemos

i~

(

d

dt

+∞∑

k=0

λkbkn(t)

)

=∑

p

Vnp(t)+∞∑

k=0

λk+1bkp(t)eiωnpt ; (11.2.125)

igualando as potencias de λ temos:

• Ordem λ0:

i~d

dtb0n(t) = 0 . (11.2.126)

Isto e, b0n nao depende do tempo. Este e o resultado esperado para λ = 0;

• Ordem λk, k ≥ 1:

i~d

dtbkn(t) =

p

Vnp(t)eiωnptbk−1

p . (11.2.127)

Obtemos, pois, uma relacao de recorrencia: inserindo a solucao de ordem zero em

(11.2.127), obtemos a solucao de primeira ordem, que por sua vez inserida no lado

direito de (11.2.127) origina a relacao de segunda ordem, etc.

Page 388: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

372 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

Examinemos em detalhe a solucao ate primeira ordem. Assumimos, tal como referido

anteriormente, que para t < 0 o sistema se encontra no estado |Φi〉. Em t = 0 existe uma

descontinuidade no Hamiltoniano, pois

H = H0t=0−→ H = H0 + λV (t) ;

mas dado que a descontinuidade e finita, a funcao de onda e contınua em t = 0. A condicao

inicial e

bn(t = 0) = δni ⇒

b0n(t = 0) = δni ,

bkn(t = 0) = 0 , k ≥ 1 .(11.2.128)

A equacao (11.2.126) implica que

b0n(t) = δni , t ≥ 0 , (11.2.129)

o que determina a solucao de ordem zero. Introduzindo esta solucao em (11.2.127) com

k = 1 temos

i~d

dtb1n(t) =

p

Vnp(t)eiωnptδpi = Vni(t)e

iωnit . (11.2.130)

Levando em conta a condicao inicial b1n(t = 0) = 0, obtemos

b1n(t) =1

i~

∫ t

0

Vni(t′)eiωnit

dt′ . (11.2.131)

Logo, o estado do sistema em primeira ordem em λ e

|Ψ(t)〉 =

|Φi〉 , t < 0 ,

(

δni +λ

i~

n

[∫ t

0

Vni(t′)eiωnit′dt′

]

e−iEnt/~ +O(λ2)

)

|Φn〉 , t ≥ 0 .

(11.2.132)

Note que a funcao de onda esta normalizada apenas em primeira ordem em λ. A per-

turbacao mistura |Φi〉 com todos os outros estados proprios de H0, |Φn〉, para os quais

Vni 6= 0. A probabilidade de transicao para um estado final |Φf〉 e dada por

Pif (t) = |〈Φf |Ψ(t)〉|2 = |〈Φf |∑

n

cn(t)|Φn〉|2 = |cf(t)|2(11.2.120)

= |bf(t)|2 . (11.2.133)

Page 389: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.2 Teoria das Perturbacoes dependentes do tempo 373

Queremos considerar uma transicao induzida pela perturbacao W (t); logo consideramos o

estado final diferente do inicial. Em primeira ordem

bf (t) = 0 +λ

i~

∫ t

0

Vfi(t′)eiωfit

dt′ +O(λ2) , (11.2.134)

e como tal

Pif (t) =1

~2

∫ t

0

Wfi(t′)eiωfit

dt′∣

2

, i 6= f . (11.2.135)

Alguns comentarios:

• Para t fixo e considerando Pif como funcao de Ef , a probabilidade de transicao e pro-

porcional ao quadrado do modulo da transformada de Fourier da perturbacao (a

semelhanca do que acontece com a aproximacao de Born (10.2.28));

• A probabilidade de transicao e zero, nesta ordem, se Wfi(t′) = 0, ∀t′ ∈ [0, t];

• A aproximacao de primeira ordem resulta de substituir na equacao de Schrodinger

(11.2.123), bp(t) pelos seus valores em t = 0. E natural que esta seja uma boa

aproximacao para t pequeno, mas para t grande em princıpio teremos de considerar

termos de ordem λ2, λ3, etc, que deverao ser importantes.

11.2.3 Aplicacao a uma perturbacao sinusoidal ou constante

Como aplicacao do formalismo desenvolvido na seccao anterior consideramos uma per-

turbacao com uma das seguintes formas:

V (t) = V sinωt ∨ V (t) = V cosωt , (11.2.136)

onde V e uma observavel independente do tempo e ω e uma frequencia angular constante.

Este tipo de perturbacao e a que se encontra, por exemplo, na interaccao de uma onda

electromagnetica monocromatica de frequencia ω com um sistema fısico. Neste caso, Pif (t)

representara a probabilidade de transicao |Φi〉 −→ |Φf 〉 induzida pela radiacao incidente.

Algo ingenuamente poderıamos ser levados a pensar que esta transicao seria possıvel se

e so se ω = ±ωfi. Isto e, que Pif para t fixo e como funcao de ω teria dois picos (tipo

Page 390: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

374 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

delta de Dirac) em ω = ±ωfi, sendo zero para outros ω. Contudo, devido ao princıpio da

incerteza a situacao e um pouco diferente, como agora demonstramos.

Na base dos estados estacionarios do Hamiltoniano nao perturbado, podemos escrever

os elementos de matriz da primeira perturbacao em (11.2.136) como

〈Φf |V (t)|Φi〉 = 〈Φf |V |Φi〉 sinωt ≡ Vfi sinωt = Vfieiωt − e−iωt

2i. (11.2.137)

Substituindo na formula geral (11.2.131)

b1f(t) =1

i~

∫ t

0

Vfiei(ωfi+ω)t′ − ei(ωfi−ω)t′

2idt′ = −Vfi

2i~

(

ei(ωfi+ω)t − 1

ωfi + ω− ei(ωfi−ω)t − 1

ωfi − ω

)

.

(11.2.138)

Usando (11.2.133), temos em primeira ordem

Pif (t) = |bf (t)|2 = λ2|b1f (t)|2 , (11.2.139)

que no caso em estudo depende tambem do parametro da perturbacao ω, pelo que escreve-

mos

Pif (t, ω) =|Wfi|24~2

1− ei(ωfi+ω)t

ωfi + ω∓ 1− ei(ωfi−ω)t

ωfi − ω

2

. (11.2.140)

O sinal inferior refere-se ao resultado do mesmo calculo usando a segunda perturbacao

(V (t) = V cosωt) em (11.2.136), em vez da primeira. Para uso posterior consideramos

essa perturbacao (i.e o cos) no limite ω = 0 em que obtemos uma perturbacao constante,

para a qual, o resultado e

Pif (t) =|Wfi|2ω2

fi~2|1− eiωfit|2 =

|Wfi|2~2

sin2 ωfit

2(ωfi

2

)2 . (11.2.141)

Vamos agora considerar dois casos distintos:

1) Quando ambos os estados |Φi〉 e |Φf〉 pertencem a um espectro discreto;

2) Quando |Φf 〉 pertence a um contınuo de estados finais.

No primeiro caso Pif representa uma probabilidade, enquanto que no segundo representa

uma densidade de probabilidade.

Page 391: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.2 Teoria das Perturbacoes dependentes do tempo 375

1) Perturbacao sinusoidal que acopla dois estados discretos: um fenomeno deressonancia

Fixemos o tempo t, de modo a considerarmos a probabilidade Pif(t, ω) como funcao apenas

da frequencia ω. A analise de (11.2.140) envolve analisarmos os termos

A± =1− ei(ωfi±ω)t

ωfi ± ω= −iei(ωfi±ω)t/2 sin

(

(ωfi ± ω) t2

)

(ωfi ± ω)/2. (11.2.142)

Se ω ≃ ±ωfi, o denominador de A∓ fica aproximadamente zero. Se simultaneamente t

for suficientemente elevado, o argumento do seno no numerador de A∓ nao e aproximada-

mente zero. Nestas condicoes esperamos que A∓ domine em (11.2.140) sobre A±; o primeiro

e o ultimo designam-se por, respectivamente, termo ressonante e termo anti-ressonante.

Estabelecemos desde ja, o seguinte criterio quantitativo que comentaremos graficamente

em baixo: se

i) |ω ∓ ωfi| ≪ |ωfi| , ii) 1≪ t|ωfi| , (11.2.143)

podemos negligenciar A± em (11.2.140); obtemos entao:

Pif (t, ω) ≃ |Wfi|24~2

(

sin(

(ωfi ∓ ω) t2

)

(ωfi ∓ ω)/2

)2

. (11.2.144)

Para t fixo representamos Pif (t, ω) em funcao de ω na figura 11.3, para ω ≃ ωfi. Note-

se o fenomeno de ressonancia para Pif (t, ω) quando ω = ωfi. Para ω ≃ −ωfi existe um

fenomeno semelhante de ressonancia em ω = −ωfi, sendo o grafico respectivo o simetrico

relativamente ao eixo w = 0 da figura 11.3.

Podemos compreender graficamente o significado das aproximacoes i) e ii) (11.2.143):

i) significa que estamos a considerar o grafico de Pif(t, ω) na regiao em que ω esta proxima

do pico (logo proxima de ωfi); ii) significa que as zonas do grafico de (11.2.140) em que

A+ e A− dominam estao bem separadas; isto e

2|ωfi| ≫ ∆ω ⇔ |ωfi| ≫2π

t⇔ |ωfi|t≫ 1 .

Fisicamente, esta condicao significa que temos de esperar tempo suficiente para o sistema

perceber que a perturbacao e sinusoidal.

Page 392: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

376 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

Figura 11.3: Probabilidade de transicao Pif(t, ω) em funcao de ω para t fixo. Existe umfenomeno de ressonancia quando ω = ωfi. A curva apresenta um “padrao de difraccao”.Pif (t, ω) tem zeros em ωfi−ω = 2nπ/t; logo, a largura da ressonancia, ∆ω, estimada comoa distancia entre os dois zeros de Pif (t, ω) que rodeiam o maximo e ∆ω = 4π/t (Extraıdode Cohen et al, ‘Quantum Mechanics ’).

Notemos a diferente interpretacao fısica das duas ressonancias de Pif . A ressonancia

em ω = ωfi corresponde a um processo com Ef > Ei, ou seja a excitacao do sistema pela

absorcao de um fotao enquanto que a ressonancia em ω = −ωfi corresponde a um processo

com Ef < Ei, ou seja o decaimento do sistema pela emissao de um fotao - figura 11.4.

Ei

Ef

γ

|Φi〉

|Φf 〉

Ei

Ef

|Φi〉

|Φf〉

γ

Figura 11.4: As ressonancias para ω = ±ωfi tem interpretacoes de absorcao (ω = ωfi) -esquerda - ou emissao (ω = −ωfi) - direita - de um fotao.

Comentarios:

• Pif (t, ω) tem maximos em ω = ±ωif , correspondendo a absorcao/emissao de fotoes

Page 393: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.2 Teoria das Perturbacoes dependentes do tempo 377

com a frequencia de Bohr; mas as ressonancias tem largura, ∆ω, estimada como a

distancia entre os dois zeros de Pif(t, ω) que rodeiam o maximo. Esta largura pode

ser entendida como uma manifestacao da relacao de incerteza para tempo e energia.

Se tentassemos medir a diferenca de energia Ef − Ei = ~ωfi, aplicando uma onda

electromagnetica, variando ω e tentando encontrar a ressonancia, obteriamos uma

incerteza na energia:

∆E = ~∆ω ≃ ~4π

t⇒ ∆E∆t & ~ ,

para uma perturbacao que actuou um tempo ∆t. Logo, para medir a diferenca de

energia Ef −Ei com incerteza nula ∆E = 0, teriamos de deixar actuar a perturbacao

durante um tempo infinito.

• No final da seccao anterior comentamos que a aproximacao de primeira ordem deixara

de ser valida para t grande. No entanto, neste exemplo requeremos que t seja sufi-

cientemente grande na aproximacao que usamos, o que podera parecer incompatıvel.

De facto, que t nao podera ser demasiado grande e manifesto em que (de (11.2.144)

usando limx→0 sin x/x)

Pif (t;ω = ωfi) =|Wfi|2t2

4~2

t→+∞−→ +∞ ;

em particular a probabilidade torna-se maior do que 1, o que nao faz sentido. Neces-

sitamos por isso de impor|Wfi|t

~≪ 1 ;

o estudo das proximas ordens perturbativas revela que esta condicao e, de facto,

necessaria, se bem que nao suficiente, para garantir a validade da analise de primeira

ordem aqui feita.

• Analisando o grafico da figura 11.3 vemos que a altura da ressonancia depende de Wfi.

Se a perturbacao tiver elementos de matriz Wfi diferentes para diferentes linhas

espectrais, podemos compreender porque e que algumas linhas espectrais sao mais

Page 394: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

378 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

intensas do que outras. Esta era uma lacuna importante na teoria de Bohr (capıtulo

2), que a Mecanica Quantica resolve.

• No caso de uma perturbacao constante, Pif (t, ω) e dado por (11.2.141) que tem uma

ressonancia para ω = 0 - figura 11.5, de modo a conservar a energia do sistema.

Note-se que a largura da ressonancia e a mesma que antes, mas a altura e 4 vezes

superior, devido a interferencia construtiva entre termo ressonante e anti-ressonante.

Figura 11.5: Pif(t, ω) para t constante como funcao de ω (Extraıdo de Cohen et al, ‘Quan-tum Mechanics ’).

2) Acoplamento entre estados de um espectro contınuo

Se a energia Ef pertencer a uma zona contınua do espectro de H0, temos de interpretar

|〈Φf |Ψ〉|2 como uma densidade de probabilidade. A probabilidade fısica e obtida integrando

esta densidade de probabilidade sobre uma conjunto de estados finais. Esta integracao

introduz uma medida, denominada densidade de estados finais ρ(E), como explicamos

com o seguinte exemplo.

Consideramos o problema da difusao de uma partıcula sem spin, de massa m por um

potencial W (~r). No instante t, o estado |Ψ(t)〉 pode ser expandido na representacao |~p〉,correspondendo a estados com momento bem definido ~p, energia E = ~p2/2m e funcao de

Page 395: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.2 Teoria das Perturbacoes dependentes do tempo 379

onda espacial

〈~r|~p〉 =

(

1

2π~

)3/2

ei~p·~r/~ .

Se o estado |Ψ(t)〉 estiver normalizado, a densidade de probabilidade associada ao momento

~p e

d3P(~p) = |〈~p|Ψ(t)〉|2d3~p .

Conceptualmente podemos, numa experiencia, programar um detector para dar sinal quando

a partıcula difundida tiver um momento ~pf . Mas na pratica, o detector tera uma abertura

finita e o seu filtro de energia nao sera perfeito; dara sinal sempre que o momento da

partıcula difundida estiver num angulo solido δΩf , em torno de ~pf e a sua energia num

intervalo δEf centrada em ~p2f/2m. Seja Df o domınio no espaco de momentos definido por

estas condicoes. A probabilidade de obter um sinal do detector e

δP(~pf , t) =

~p∈Df

|〈~p|Ψ(t)〉|2d3~p .

Mudamos a variavel de integracao de momento para energia:

d3~p = p2dpdΩ ≡ ρ(E)dEdΩ ,

onde, genericamente, ρ(E) e a densidade de estados finais. No exemplo que estamos a

considerar,

E =p2

2m⇒ dp =

m

2EdE ; (11.2.145)

logo identificando p2dp ≡ ρ(E)dE lemos

ρ(E) = p2 dp

dE=√

2Em3 . (11.2.146)

Em termos de um integral na energia, a probabilidade de o detector dar sinal e

δP(~pf , t) =

Ω∈δΩf ,E∈δEf

|〈~p|Ψ(t)〉|2ρ(E)dΩdE . (11.2.147)

A densidade de estados funciona pois como uma medida de integracao.

Consideramos agora o caso geral. Tomamos um contınuo de estados estacionarios de

H0, rotulados por um conjunto de numeros quanticos que denotamos por α. Estes estados

Page 396: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

380 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

obedecem a

〈α|α′〉 = δ(α− α′) .

A probabilidade de encontrar o sistema num dado grupo de estados finais, denominado

Df , com um conjunto de valores de α centrados a volta de αf e

δP(αf , t) =

α∈Df

dα|〈α|Ψ(t)〉|2 . (11.2.148)

Tal como no exemplo anterior, mudamos de variavel de integracao para a energia, o que

introduz uma medida de integracao ρ(β,E), que e uma densidade de estados finais que

pode depender de outros numeros quanticos que designamos genericamente por β (que

existirao caso H0 nao constitua, per se, o C.C.O.C.):

dα = ρ(β,E)dβdE .

Mudando da base |α〉 para a base |β,E〉 e sendo o domınio Df caracterizado, na nova

base, por β ∈ δβf e E ∈ δEf , a probabilidade (11.2.148) fica

δP(αf , t) =

β∈δβf ,E∈δEf

dβdEρ(β,E)|〈β,E|Ψ(t)〉|2 . (11.2.149)

Usando esta expressao vamos agora deduzir um importante resultado para a probabilidade

de transicao por unidade de tempo, denominado Regra de Ouro de Fermi.

Consideramos que o sistema se encontra num estado proprio |Φi〉 de H0. Vimos an-

teriormente que para o caso de uma perturbacao constante a probabilidade de transicao

|Φi〉 −→ |Φf 〉 e (11.2.141):

Pif (t) =|Wfi|2

~2

sin2 ωfit

2(ωfi

2

)2 , (11.2.150)

que reescrevemos na forma

|〈Φf |Ψ(t)〉|2 =|〈Φf |W |Φi〉|2

~2F (t, ωfi) . (11.2.151)

O calculo que nos levou a esta formula permanece valido se em vez de calcular 〈Φf |Ψ(t)〉tivessemos calculado 〈β,E|Ψ(t)〉, onde |β,E〉 pertence a um contınuo de estados finais;

neste caso o resultado e reescrito

|〈β,E|Ψ(t)〉|2 =|〈β,E|W |Φi〉|2

~2F

(

t,E − Ei

~

)

. (11.2.152)

Page 397: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.2 Teoria das Perturbacoes dependentes do tempo 381

Usando (11.2.149) obtemos, para a probabilidade de transicao de |Φi〉 para um conjunto

de estados num domınio em torno do estado com energia Ef e outros numeros quanticos

βf (isto e αf )

δP(Φi, αf , t) =1

~2

β∈δβf ,E∈δEf

dβdEρ(β,E)|〈β,E|W |Φi〉|2F(

t,E −Ei

~

)

. (11.2.153)

Analisemos a funcao

F

(

t,E −Ei

~

)

≡ sin2(

E−Ei

2~t)

(

E−Ei

2~

)2 ,

para t fixo em funcao de ωfi. Para t suficientemente grande, esta funcao pode ser aproxi-

mada por um delta de Dirac, centrado em E = Ei. De facto, uma das funcoes que aproxima

um delta de Dirac e:

δǫ(x) = ǫsin2 x

ǫ

x2, δ(x) = lim

ǫ→0

δǫ(x)

π.

Na figura 11.6 representamos δǫ(x) para diferentes valores de ǫ.

Figura 11.6: δǫ(x) para ǫ = 1, 0.5, 0.25, respectivamente.

Tomando ǫ = 1/t, x = (E −Ei)/2~, temos

δ

(

E −Ei

2~

)

= limt→∞

1

sin2(

E−Ei

2~t)

(

E−Ei

2~

)2 = limt→∞

1

tπF

(

t,E − Ei

~

)

.

Logo, para t elevado

F

(

t,E −Ei

~

)

≃ tπδ

(

E − Ei

2~

)

.

Page 398: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

382 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

Usando ainda que para a funcao delta de Dirac

δ(cx) =1

|c|δ(x) ,

obtemos, para t elevado,

F

(

t,E − Ei

~

)

≃ 2~tπδ(E − Ei) . (11.2.154)

Vamos concentrar-nos numa perturbacao constante e consideramos as seguintes aprox-

imacoes:

• t e suficientemente elevado para (11.2.154) ser uma boa aproximacao;

• t e suficientemente pequeno para o tratamento perturbativo de primeira ordem ser boa

aproximacao; isto significa que os coeficientes bnf (t) nao variam demasiado rapida-

mente com t; concretamente, se considerarmos b1f (t), temos, por (11.2.131) e para

uma perturbacao constante

b1f (t) =Vfi

i~

∫ t

0

eiωfit′

dt′ = −2iVfi

ωfieiωfit/2 sin

ωfit

2. (11.2.155)

Para esta quantidade nao variar “demasiado rapidamente” tomamos

ωfit

2≪ 1 ⇔ Ef −Ei ≪

2~

t, (11.2.156)

que corresponde a frequencia de Bohr pequena. Assim, depois de fixar t suficiente-

mente grande para (11.2.154) ser uma boa aproximacao tomamos Ef suficientemente

proximo de Ei.

• No pequeno intervalo de estados finais que resulta das condicoes da alınea anterior,

assumimos que δβf e pequeno, pelo que a integracao em β e desnecessaria.

Sob tais condicoes, (11.2.153) fica

δP(Φi, αf , t) =

δβf2πt~|〈βf , Ef = Ei|W |Φi〉|2ρ(βf , Ef = Ei) , se Ei ∈ δEf ,

0 , se Ei /∈ δEf .

(11.2.157)

Page 399: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.2 Teoria das Perturbacoes dependentes do tempo 383

Ou seja, a perturbacao constante so pode induzir transicoes entre nıveis com a mesma

energia, a menos de uma largura δEf igual a 2π~/t (estimada como a distancia entre zeros

consecutivos de F (t, (E −Ei)/~)), que resulta da incerteza tempo/energia.

Como a probabilidade aumenta linearmente com o tempo6, a probabilidade de transicao

por unidade de tempo e constante. A densidade de probabilidade de transicao, por unidade

de tempo e por unidade da variavel βf e:

p(Φi, αf ) =d

dt

δP(Φi, αf , t)

δβf=

~|〈βf , Ef = Ei|W |Φi〉|2ρ(βf , Ef = Ei) . (11.2.158)

Esta e a Regra de Ouro de Fermi (ou, mais correctamente Fermi-Dirac, pois foi Dirac quem

fez grande parte do trabalho que levou a esta regra). Mais esquematicamente

pi→f =2π

~|Wfi|2ρf . (11.2.159)

Note-se que esta regra se aplica a perturbacoes independentes do tempo, embora seja

derivada usando o formalismo de teoria de perturbacoes dependentes do tempo.

Existem muitas aplicacoes de importancia da regra de ouro de Fermi nesta forma; mas

a regra pode ser generalizada para perturbacoes dependentes do tempo. Por exemplo,

se em vez de termos considerado a perturbacao constante tivessemos considerado uma

perturbacao sinusoidal (11.2.136), que acopla |Φi〉 a um contınuo de estados |βf , Ef 〉, com

energias proximas de Ei + ~ω, terıamos obtido

p(Φi, αf) =π

2~|〈βf , Ef = Ei + ~ω|W |Φi〉|2ρ(βf , Ef = Ei + ~ω) . (11.2.160)

Entre as aplicacoes da regra de ouro de Fermi encontram-se os calculos de seccao eficaz

de difusao e probabilidades de decaimento (como o decaimento beta). Como exemplo de

aplicacao consideramos de seguida um calculo de difusao.

Exemplo: Derivacao da aproximacao de Born para a seccao eficaz de difusao pela

regra de ouro de Fermi.

6O que sera valido apenas para tempos pequenos e e o resultado esperado para uma perturbacaoconstante.

Page 400: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

384 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

Consideramos a difusao de uma partıcula por um potencial W , cujos elementos de

matriz, na representacao |~r〉 sao dados por

〈~r|W |~r′〉 = W (~r)δ(~r − ~r′) .

Assumimos que o estado inicial do sistema e um estado proprio do momento:

|Ψ(t = 0)〉 = |~pi〉 . (11.2.161)

Vamos calcular a probabilidade de transicao desta partıcula (i.e a difusao pelo potencial)

para estados com momento ~p em torno de ~pf (|~pi| = |~pf |) por unidade de tempo e de angulo

solido. Pela regra de ouro de Fermi (11.2.158)

p(~pi, ~pf) =2π

~|〈~pf |W |~pi〉|2ρ(Ef = Ei) ;

usamos

〈~pf |W |~pi〉 =

∫ ∫

d~rd~r′〈~pf |~r〉〈~r|W |~r′〉〈~r′|~pi〉

=

∫ ∫

d~rd~r′(

1

2π~

)3/2

e−i~pf ·~r/~W (~r)δ(~r − ~r′)(

1

2π~

)3/2

ei~pi·~r′/~

=

(

1

2π~

)3 ∫

d~rei(~pi−~pf )·~r/~W (~r) ;

e levando em consideracao (11.2.146) obtemos

p(~pi, ~pf) =2π

~(2π~)6

d~rei(~pi−~pf )·~r/~W (~r)

2

m√

2mE . (11.2.162)

A seccao eficaz diferencial de difusao foi definida por (10.1.1)

dn = σ(θ, φ)FidΩ , (11.2.163)

e portanto

σ(θ, φ) =dn

FidΩ, [σ] = L2 ,

que corresponde um “numero de partıculas detectadas por unidade de tempo, fluxo inci-

dente e angulo solido”. Comparando com

p(~pi, ~pf) , [p] =1

T,

Page 401: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.2 Teoria das Perturbacoes dependentes do tempo 385

que corresponde a uma “probabilidade de transicao por unidade de tempo e angulo solido”,

concluimos que para identificar p(~pi, ~pf) com σ(θ, φ) necessitamos de dividir a primeira

quantidade por um “fluxo”. O candidato natural e o vector densidade de corrente de

probabilidade ~Ji para as partıculas incidentes:

~Ji(~r) =1

mRe

(

Φ∗(~r)~

i∇Φ(~r)

)

, [ ~J ] = [Fluxo] =1

TL2. (11.2.164)

Para

Φ(~r) =

(

1

2π~

)3/2

ei~pi·~r/~ ,

obtemos

~Ji =~pi

m(2π~)3⇒ | ~Ji| =

1

m(2π~)3

2Eim .

Assimp(~pi, ~pf)

| ~Ji|=

m2

4π2~4

d3~rei(~pi−~pf )·~r/~W (~r)

2

, (11.2.165)

que coincide com a formula para σ(θ, φ) na aproximacao de Born (10.2.28).

11.2.4 Probabilidade de transicao via operador de evolucao

A probabilidade de transicao (11.2.135), pode ser obtida por um outro metodo que tem

a vantagem de se tornar mais simples em ordens superiores a primeira. A razao e que

este outro metodo emprega uma tecnica de diagramas, bastante intuitivos, para construir

as amplitudes de transicao em cada ordem. O metodo em questao, que iremos agora

estudar, usa o operador de evolucao U(t, t0), introduzido na seccao 4.5.3, para deduzir a

probabilidade de transicao Pif (t). Este metodo levara naturalmente a uma interpretacao

grafica da serie perturbativa, no espırito dos diagramas de Feynman usados em Teoria

Quantica de Campo. Com este objectivo comecaremos por discutir as varias representacoes

da Mecanica Quantica.

As representacoes de Schrodinger, Heisenberg e Interaccao

O formalismo com que temos estudado a Mecanica Quantica contem:

• Operadores (observaveis) genericamente independentes do tempo: R, P , etc.

Page 402: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

386 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

• Um estado genericamente dependente do tempo, |Ψ(t)〉, que nesta seccao denotamos

|ΨS(t)〉.

A evolucao do sistema esta inteiramente contida na evolucao do estado |ΨS(t)〉 e e deter-

minada pela equacao de Schrodinger; por isso este formalismo e denominado representacao

de Schrodinger.

O operador de evolucao U(t, t0) depende do tempo e podemos usa-lo para construir um

formalismo em que:

• Operadores (observaveis) serao dependentes do tempo;

• O estado sera independente do tempo, sendo denotado por |ΨH〉;

Este formalismo e denominado representacao de Heisenberg. A unitariedade do operador

de evolucao garante que as previsoes da Mecanica Quantica (probabilidades e valores es-

perados) feitas nas duas representacoes sao perfeitamente equivalentes. Para confirmarmos

que assim e consideremos, mais explicitamente, a relacao entre os dois formalismos.

Por definicao, o operador de evolucao relaciona o estado do sistema em dois instantes

diferentes do seguinte modo:

|ΨS(t)〉 = U(t, t0)|ΨS(t0)〉 . (11.2.166)

O estado na representacao de Heisenberg e introduzido como

|ΨH〉 ≡ |ΨS(t0)〉 = U †(t, t0)|ΨS(t)〉 , (11.2.167)

onde usamos a unitariedade do operador de evolucao. Isto e, o estado na representacao de

Heisenberg e o estado inicial na representacao de Schrodinger e como tal e independente

do tempo.

Consideramos agora um operador generico na representacao de Schrodinger, que podera

ou nao depender do tempo e que denotamos por AS(t). O seu valor esperado no estado

|ΨS(t)〉 e dado por

〈A〉(t) = 〈ΨS(t)|AS(t)|ΨS(t)〉 = 〈ΨS(t0)|U †(t, t0)AS(t)U(t, t0)|ΨS(t0)〉 . (11.2.168)

Page 403: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.2 Teoria das Perturbacoes dependentes do tempo 387

Na representacao de Heisenberg, a mesma observavel sera representada pelo operador

AH(t), e o seu valor esperado sera

〈A〉(t) = 〈ΨH|AH(t)|ΨH〉 . (11.2.169)

Requerendo que (11.2.168) e (11.2.169) sejam equivalentes obtemos

AH(t) = U †(t, t0)AS(t)U(t, t0) , (11.2.170)

que genericamente depende do tempo, mesmo que AS nao dependa.

Calculemos agora a evolucao temporal de um operador na representacao de Heisenberg.

Como calculo preliminar derivamos (11.2.166) em ordem ao tempo

i~d

dt|ΨS(t)〉 =

(

i~d

dtU(t, t0)

)

|ΨS(t0)〉 , (11.2.171)

dado que |ΨS(t0)〉 nao depende do tempo; substituindo o lado esquerdo pelo uso da equacao

de Schrodinger na forma

i~d

dt|ΨS(t)〉 = HS(t)U(t, t0)|ΨS(t0)〉 , (11.2.172)

obtem-sed

dtU(t, t0) =

1

i~HS(t)U(t, t0) . (11.2.173)

A equacao adjunta ed

dtU †(t, t0) = − 1

i~U †(t, t0)HS(t) . (11.2.174)

Derivamos agora (11.2.170) em ordem ao tempo; usando (11.2.173) e (11.2.174) obtemos

d

dtAH(t) =

− 1

i~U †(t, t0)HS(t)AS(t)U(t, t0) + U †(t, t0)

dAS(t)

dtU(t, t0) +

1

i~U †(t, t0)AS(t)HS(t)U(t, t0) ;

(11.2.175)

Introduzindo 1 = U(t, t0)U†(t, t0) no primeiro e terceiro termo do lado direito entre os

operadores AS e HS obtemos:

i~d

dtAH(t) =

[

AH(t), HH(t)]

+ i~

(

dAS(t)

dt

)

H

. (11.2.176)

Page 404: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

388 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

Esta e a equacao de evolucao na representacao de Heisenberg. Do mesmo modo que,

na representacao de Schrodinger, toda a informacao sobre a evolucao do sistema (con-

tida em |ΨS(t)〉) e dada pela equacao de Schrodinger, na representacao de Heisenberg,

toda a informacao sobre a evolucao do sistema (contida em AH(t)) e dada pela equacao

(11.2.176).7 Note-se a semelhanca formal entre (11.2.176) e (1.3.28); na representacao

de Schrodinger uma tal semelhanca existe apenas para a evolucao dos valores medios de

observaveis (4.4.59).

Existe uma terceira representacao, que e introduzida para lidar com perturbacoes a um

sistema cuja solucao exacta e conhecida: a representacao de interaccao. Consideremos o

Hamiltoniano:

H = H0(t) + W (t) . (11.2.177)

Seja U0(t, t0) o operador de evolucao do Hamiltoniano nao perturbado H0(t); isto e, se

W (t) = 0, entao

|ΨS(t)〉 = U0(t, t0)|ΨS(t0)〉 . (11.2.178)

Seja U(t, t0) o operador de evolucao do Hamiltoniano total; entao

|ΨS(t)〉 = U(t, t0)|ΨS(t0)〉 . (11.2.179)

Definimos o estado do sistema na representacao de interaccao |ΨI(t)〉 como

|ΨS(t)〉 = U0(t, t0)|ΨI(t)〉 ⇔ |ΨI(t)〉 = U †0 (t, t0)|ΨS(t)〉 , (11.2.180)

em que t0 e o instante em que a perturbacao comecou a actuar. Note-se a semelhanca com

(11.2.167), substituindo U ↔ U0, o que nos leva a concluir que se o Hamiltoniano fosse

apenas o Hamiltoniano no perturbado, o estado de interaccao coincidiria com o estado de

Heisenberg e seria constante. Para verificarmos isto calculemos a evolucao do estado na

representacao de interaccao:

i~d

dt|ΨI(t)〉 =

(

i~d

dtU †

0(t, t0)

)

|ΨS(t)〉+ U †0(t, t0)

(

i~d

dt|ΨS(t)〉

)

. (11.2.181)

7Historicamente, as duas representacoes aparecem no mesmo ano, 1925, com a equacao de Schrodingere a mecanica matricial de Heisenberg. A equivalencia foi provada por Schrodinger em Marco de 1926 noartigo ‘Uber das Verhaltnis der Heisenberg-Born-Jordanschen Quantenmechanik zu der meinen’.

Page 405: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.2 Teoria das Perturbacoes dependentes do tempo 389

Usando o analogo de (11.2.174) para U0,

i~d

dtU †

0(t, t0) = −U †0 (t, t0)H0(t) , (11.2.182)

no primeiro termo do lado direito e a equacao de Schrodinger

i~d

dt|ΨS(t)〉 = (H0(t) + W (t))|ΨS(t)〉 , (11.2.183)

para o segundo termo, (11.2.181) toma a forma:

i~d

dt|ΨI(t)〉 = U †

0(t, t0)W (t)U0(t, t0)|ΨI(t)〉 ≡ WI(t)|ΨI(t)〉 . (11.2.184)

Note-se que a relacao de WI com W , i.e. da perturbacao na representacao de interaccao

e na representacao de Schrodinger e semelhante a relacao dos operadores na representacao

de Heisenberg e de Schrodinger (11.2.170), mais uma vez substituindo U ↔ U0. Esta e a

equacao de evolucao na representacao de interaccao. Se W = 0, entao |ΨI(t)〉 = constante;

por (11.2.180)

|ΨS(t)〉 = U0(t, t0)|ΨI(t)〉 , (11.2.185)

pelo que podemos interpretar o estado constante no tempo como |ΨI(t)〉 = |ΨS(t0)〉 =

|ΨH〉; logo interpretamos o estado de interaccao como a evolucao de |ΨS(t0)〉 devida so-

mente a perturbacao, como ilustrado na figura 11.7.

|ΨS(t0)〉

H0

|ΨI(t)〉W (t)

U0(t, t0)|ΨS(t0)〉

Figura 11.7: Evolucao do estado |ΨS(t0)〉, separando as contribuicoes do Hamiltonianonao perturbado H0 e da perturbacao W (t). Se W (t) ≪ H0 esperamos que a evolucao de|ΨI(t)〉 seja muito mais lenta do que a de U0(t, t0)|ΨS(t0)〉.

Podemos integrar, formalmente, a equacao (11.2.184), obtendo

|ΨI(t)〉 = |ΨI(t0)〉+1

i~

∫ t

t0

dt′WI(t′)|ΨI(t

′)〉 ; (11.2.186)

Page 406: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

390 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

onde |ΨI(t0)〉 = |ΨS(t0)〉. Substituindo esta equacao nela propria repetidamente obtemos:

|ΨI(t)〉 =

(

1 +1

i~

∫ t

t0

dt′WI(t′) +

1

(i~)2

∫ t

t0

dt′WI(t′)

∫ t′

t0

dt′′WI(t′′) + . . .

)

|ΨI(t0)〉 ,

(11.2.187)

ou

|ΨI(t)〉 = UI(t, t0)|ΨI(t0)〉 , (11.2.188)

que define o operador de evolucao na representacao de interaccao. Usando (11.2.180) temos

|ΨI(t)〉 = U †0(t, t0)|ΨS(t)〉 = U †

0(t, t0)U(t, t0)|ΨS(t0)〉 = U †0(t, t0)U(t, t0)|ΨI(t0)〉 ;

(11.2.189)

comparando com (11.2.187) deduzimos que

UI(t, t0) = U †0(t, t0)U(t, t0) . (11.2.190)

Esta relacao permite-nos mostrar que UI(t, t0) tem as propriedades adequadas para poder

ser considerado um operador de evolucao. De facto, usando que U0(t, t0) e U(t, t0) sao

operadores de evolucao demonstra-se que:

a) UI(t0, t0) = 1;

b) U †I (t, t0)UI(t, t0) = UI(t, t0)U

†I (t, t0) = 1;

c) UI(t, t′) = UI(t, t

′′)UI(t′′, t′).

Derivamos agora uma expansao perturbativa para o operador de evolucao total. Recorde-

mos a definicao do operador de evolucao UI(t, t0) dada em (11.2.187):

UI(t, t0) = 1 +1

i~

∫ t

t0

dt′WI(t′) +

1

(i~)2

∫ t

t0

dt′WI(t′)

∫ t′

t0

dt′′WI(t′′) + . . . ; (11.2.191)

usando (11.2.190) para o lado esquerdo da equacao, a definicao de WI(t) dada em (11.2.184),

WI(t) = U †0 (t, t0)W (t)U0(t, t0) , (11.2.192)

Page 407: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.2 Teoria das Perturbacoes dependentes do tempo 391

para o lado direito e multiplicando (11.2.191) por U0(t, t0) obtemos

U(t, t0) = U0(t, t0) +1

i~

∫ t

t0

dt′U0(t, t0)U†0(t

′, t0)W (t′)U0(t′, t0)

+1

(i~)2

∫ t

t0

dt′∫ t′

t0

dt′′U0(t, t0)U†0(t

′, t0)W (t′)U0(t′, t0)U

†0(t

′′, t0)W (t′′)U0(t′′, t0) + . . . ;

(11.2.193)

notando que

U †0(t

′, t0) = U0(t0, t′) , (11.2.194)

logo

U0(t, t0)U†0(t

′, t0) = U0(t, t0)U0(t0, t′) = U0(t, t

′) , (11.2.195)

e de um modo semelhante para outras combinacoes analogas, (11.2.193) toma a forma final

U(t, t0) = U0(t, t0) ++∞∑

n=1

U (n)(t, t0) , (11.2.196)

onde definimos

U (n)(t, t0) =1

(i~)n

∫ t

t0

dt1

∫ t1

t0

dt2 . . .

∫ tn−1

t0

dtnU0(t, t1)W (t1)U0(t1, t2)W (t2) . . . W (tn)U0(tn, t0) ,

(11.2.197)

onde t > t1 > . . . > tn−1.

Consideremos agora a probabilidade de transicao no instante t, tal como discutida na

seccao 11.2.1, entre os estados estacionarios |Φi〉 e |Φf〉 de um Hamiltoniano H0 indepen-

dente do tempo, devido a uma perturbacao W (t), ligada em t = 0; em termos do operador

de evolucao ela pode ser escrita da forma

Pif(t) = |〈Φf |U(t, 0)|Φi〉|2 = |〈Φf |U0(t, 0) ++∞∑

n=1

U (n)(t, 0)|Φi〉|2 . (11.2.198)

Em ordem zero necessitamos dos elementos de matriz:

〈Φf |U0(t, 0)|Φi〉 = 〈Φf |e−itH0/~|Φi〉 = e−iE0i t/~δif , (11.2.199)

Page 408: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

392 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

onde E0n e o valor proprio de H0 associado ao estado proprio |Φn〉. Em ordem um necessi-

tamos dos elementos de matriz:

〈Φf |U (1)(t, 0)|Φi〉 = 〈Φf |1

i~

∫ t

0

dt1U0(t, t1)W (t1)U0(t1, 0)|Φi〉

=1

i~

∫ t

0

dt1e−iE0

f (t−t1)/~Wfi(t1)e−iE0

i (t−0)/~ ,

(11.2.200)

onde denotamos 〈Φf |W (t1)|Φi〉 = Wfi(t1). Os elementos de matriz de ordem dois sao

calculados de maneira semelhante, sendo necessario introduzir a relacao de fecho. Obtem-

se:

〈Φf |U (2)(t, 0)|Φi〉 =

k

(i~)2

∫ t

0

dt1

∫ t1

0

dt2e−iE0

f (t−t1)/~Wfk(t1)e−iE0

k(t1−t2)/~Wki(t2)e−iE0

i (t2−0)/~ .

(11.2.201)

Podemos agora interpretar os termos nas varias ordens:

• Termo de ordem zero: corresponde ao sistema nao perturbado; o operador de evolucao

e apenas exp (−iE0i (t− 0)/~);

• Termo de ordem um: o sistema evolui de t = 0→ t1 por accao de exp (−iE0i (t1 − 0)/~);

em t1 actua a perturbacao que transforma |Φi〉 → |Φf〉; seguidamente o sistema

evolui de t1 → t por accao de exp (−iE0f (t− t1)/~). Integramos sobre todos os t1 de

modo a que a perturbacao possa actuar em qualquer instante;

• Termo de ordem dois: o sistema evolui de t = 0→ t2 por accao de exp (−iE0i (t2 − 0)/~);

em t2 actua a perturbacao que transforma |Φi〉 → |Φk〉 que e um estado intermedio ar-

bitrario; seguidamente o sistema evolui de t2 → t1 por accao de exp (−iE0k(t1 − t2)/~);

em t1 actua a perturbacao que transforma |Φk〉 → |Φf 〉; seguidamente o sistema

evolui de t1 → t por accao de exp (−iE0f (t− t1)/~). Integramos sobre todos os t1, t2

de modo a que as perturbacoes possam actuar em qualquer instante; somamos sobre

todos os estados intermedios de modo que o estado final possa ser atingido usando

qualquer estado intermedio.

Cada termo nesta serie perturbativa pode ser representado por um diagrama. Os tres

primeiros estao representados na figura 11.8. Aos diagramas associamos as seguintes regras:

Page 409: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.2 Teoria das Perturbacoes dependentes do tempo 393

t = 0

|Φi〉 = |Φf〉

t

t = 0

|Φi〉

|Φf〉

W (t1)

t

t1

t = 0

W (t1)

W (t2)

|Φi〉

|Φk〉

|Φf〉t

t1

t2

Ordem 1Ordem 0 Ordem 2

Figura 11.8: Diagramas de ‘Feynman’ que ilustram o processo de ordem zero, um e doispara a teoria de perturbacoes dependentes do tempo.

⋆ O diagrama le-se de baixo para cima (ordem temporal) correspondendo a leitura dos

elementos de matriz correspondentes (11.2.199), (11.2.200) e (11.2.201) da direita

para a esquerda;

⋆ a cada linha recta do diagrama, que une os pontos ti → ti+1 e que traduz a evolucao do

sistema no tempo sob a accao de H0 no estado |Φk〉, atribui-se o factor de

e−iE0k(ti+1−ti)/~ ; (11.2.202)

⋆ A cada vertice do diagrama (correspondente a um instante ti) atribui-se um factor de

1

i~

∫ ti−i

0

dtiWab(ti) , (11.2.203)

onde os indices a, b se referem ao estado |Φa〉 - que se encontra imediatamente no

passado do vertice - e |Φb〉 - que se encontra imediatamente no futuro do vertice;

⋆ Soma-se sobre todos os estados intermedios |Φk〉.

Com estas regras, que tem o mesmo espırito das regras de Feynman usadas em teoria

quantica de campo, podemos reconstruir a expressao analıtica de um termo perturba-

tivo dado o respectivo diagrama. Como exemplo consideramos o termo de ordem tres,

Page 410: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

394 Metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo

|Φl〉

W (t3)

t

t = 0

W (t1)

W (t2)

|Φi〉

|Φk〉

|Φf 〉t3

t1

t2

Ordem 3

Figura 11.9: Diagrama de ‘Feynman’ que ilustra o processo de ordem tres para a teoria deperturbacoes dependentes do tempo.

representado na figura 11.9. A amplitude deste processo, isto e o elemento de matriz

〈Φf |U (3)(t, 0)|Φi〉, reconstruida usando a figura 11.9 e as regras anteriores e:

1

(i~)3

k,l

∫ t

t0

dt1

∫ t1

t0

dt2

∫ t2

t0

dt3e−iE0

f (t−t3)/~Wfl(t3)e−iE0

l (t3−t2)/~×

×Wlk(t2)e−iE0

k(t2−t1)/~Wki(t1)e−iE0

i (t1−t0)/~ ,

(11.2.204)

onde t > t3 > t2 > t1 > t0. A estrutura dos termos seguintes e agora bastante obvia.

Usando as formulas para as amplitudes e simples calcular a probabilidade de transicao.

Para a transicao |Φi〉 e |Φf〉, i 6= f , obtem-se, em primeira ordem,

Pif(t) = |〈Φf |U (1)(t, 0)|Φi〉|2 =1

~2

e−iE0f t/~

∫ t

0

dt1e−i(E0

i −E0f )t1/~Wfi(t1)

2

=1

~2

∫ t

0

dt1eiωfit1Wfi(t1)

2

,

(11.2.205)

onde usamos a frequencia angular de Bohr (11.2.122), que e exactamente o resultado

(11.2.135).

Page 411: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

11.3 Sumario 395

11.3 Sumario

Neste capıtulo estudamos metodos perturbativos independentes e dependentes do tempo,

de modo a podermos considerar problemas que nao admitem solucao exacta. A princi-

pal hipotese e que o Hamiltoniano se decompoe num Hamiltoniano que pode ser resolvido

exactamente H0 e numa perturbacao W , que e “pequena”. Para o caso de perturbacoes

estacionarias, o formalismo considera separadamente as perturbacoes a nıveis nao degen-

erados e degenerados. Como aplicacao do primeiro caso estudamos varias perturbacoes a

um oscilador harmonico em uma dimensao. Como aplicacao do segundo caso calculamos

a estrutura fina do atomo de Hidrogenio. Para perturbacoes dependentes do tempo, estu-

damos como calcular a probabilidade de transicoes entre estados proprios de H0 induzidas

pela perturbacao. Como aplicacao estudamos as ressonancias induzidas por pertubacoes

sinusoidais e a regra de Ouro de Fermi, que usamos para deduzir novamente a seccao eficaz

na aproximacao de Born. Finalmente estudamos um outro metodo, baseado no operador

de evolucao e na representacao de interaccao, para derivar probabilidades de transicao em

teoria de perturbacoes dependentes do tempo. Este metodo introduz uma componente

diagramatica que torna mais intuitiva a construcao das amplitudes de transicao.

Page 412: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro
Page 413: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

CAPITULO 12

Sistemas de partıculas identicas

Os postulados do capıtulo 4 para a Mecanica Quantica nao relativista foram suplementa-

dos, no capıtulo 10, por um conjunto de outros postulados referentes ao spin. O conjunto

resultante de postulados e, ainda assim, insuficiente quando tratamos sistemas com varias

partıculas identicas, levando a ambiguidades nas previsoes fısicas. Para eliminar tais am-

biguidades introduzimos, neste capıtulo um novo postulado, relativo a descricao quantica

de sistemas de partıculas identicas.

12.1 Origem do Problema: a degenerescencia de troca

Duas partıculas sao ditas identicas se todas as suas propriedades intrınsecas - massa, carga,

spin, etc - sao exactamente iguais, sendo por isso impossıvel distinguir uma da outra. Todos

os protoes ou todos os electroes sao, por exemplo, partıculas identicas.

Consideremos um problema de colisao entre duas partıculas identicas, rotuladas por

(1) e (2), no referencial de centro de massa, conforme a figura 12.1. Consideremos que

um aparelho de medida, D, detecta uma das partıculas numa determinada direccao apos

a colisao. A partıcula detectada no aparelho de medida D foi, claro esta, a partıcula (1)

ou a partıcula (2):

Page 414: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

398 Sistemas de partıculas identicas

Figura 12.1: Descricao classica de um problema de colisao entre duas partıculas identicas.A partıcula detectada pode ser identificada como sendo a partıcula (1) ou a partıcula (2)(Extraıdo de Cohen et al, ‘Quantum Mechanics ’).

• Classicamente nao existe nenhuma ambiguidade; sabendo as condicoes iniciais sabemos

se as trajectorias efectuadas correspondem ao caso a) ou ao caso b) descrito na figura

12.1, e logo se a partıcula detectada foi (1) ou (2).

• Quanticamente existe uma ambiguidade, porque os pactotes de onda se irao misturar

e as partıculas perderao irreversivelmente qualquer caracterıstica que as distinga -

Figura 12.2.

Figura 12.2: Descricao quantica de um problema de colisao entre duas partıculas identicas.A partıcula detectada nao pode ser identificada como sendo a partıcula (1) ou a partıcula(2) (Extraıdo de Cohen et al, ‘Quantum Mechanics ’).

A conclusao e que, quanticamente, nao existe nenhuma maneira de dizer se a partıcula

detectada foi a partıcula (1) ou a partıcula (2). Para compreender como esta ambiguidade

Page 415: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.1 Origem do Problema: a degenerescencia de troca 399

introduz ambiguidades fısicas na descricao quantica de um sistema de partıculas identicas

consideramos o seguinte exemplo.

Suponhamos que temos um sistema com duas partıculas de spin 1/2 identicas. Descreve-

mos matematicamente o sistema rotulando as partıculas como partıcula (1) e partıcula (2);

os graus de liberdade de spin sao descritos pelo ket

|ǫ1, ǫ2〉 ,

onde ǫi = ±1, i = 1, 2, se refere ao valor proprio da observavel de spin Siz, da partıcula i,

que e igual a ǫi~/2. Imaginemos que medimos estas observaveis e obtemos como resultado

+~/2 para uma delas e −~/2 para a outra. Em princıpio esta medicao deveria determinar

completamente o estado de spin do sistema. Mas devido a natureza identica das partıculas

os kets

|+−〉 , e | −+〉 ,

parecem igualmente apropriados, a priori, para descrever o sistema. Existe, neste sentido

uma degenerescencia de troca. Mais geralmente, qualquer combinacao linear normalizada

α|+−〉 + β| −+〉 , |α|2 + |β|2 = 1 , (12.1.1)

poderia descrever matematicamene este sistema, dado que respeita a condicao de a com-

ponente Sz do spin de uma das partıculas ser ~/2 e a mesma componente do spin da outra

partıcula ser −~/2, sendo irrelevante qual e qual. E esta degenerescencia de estados que

constitui a degenerescencia de troca, que e a afirmacao que “num sistema de partıculas

identicas, uma medicao completa de cada uma das partıculas nao permite a determinacao

de um unico ket para descrever o sistema”. Assim, no nosso exemplo, apesar de termos

medido individualmente o spin de cada uma das partıculas sabemos apenas que o estado do

sistema e dado por (12.1.1), com α e β indeterminados. Ora, para a descricao da Mecanica

Quantica nao ser ambigua, nenhuma previsao de quantidades fısicas pode depender das

constantes α e β. Mas podemos demonstrar facilmente que nao e assim. Calculemos, por

exemplo, a probabilidade de encontrar as componentes Sx do spin de ambas as partıculas

com valor +~/2.

Page 416: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

400 Sistemas de partıculas identicas

Primeiro notamos que na base propria de Sz, Sx tem a forma (9.2.18)

Sx =~

2

0 1

1 0

.

E facil verificar que os seus vectores proprios (normalizados) sao

|+〉x =1√2

(|+〉+ |−〉) , |−〉x =1√2

(|+〉 − |−〉) , (12.1.2)

com valores proprios

Sx|±〉x = ±~

2|±〉x .

Para responder a questao de qual a probabilidade de encontrar as componentes Sx dos

spins de ambas as partıculas iguais a ~/2, invertemos (12.1.2)

|+〉 =1√2

(|+〉x + |−〉x) , |−〉 =1√2

(|+〉x − |−〉x) , (12.1.3)

de modo a escrever (12.1.1) em termos dos estados proprios da componente Sx do spin

α|+−〉 + β| −+〉 = α|+〉 ⊗ |−〉+ β|−〉 ⊗ |+〉

= α|+〉x + |−〉x√

2⊗ |+〉x − |−〉x√

2+ β|+〉x − |−〉x√

2⊗ |+〉x + |−〉x√

2

=α + β

2|+〉x ⊗ |+〉x −

α+ β

2|−〉x ⊗ |−〉x −

α− β2|+〉x ⊗ |−〉x −

β − α2|−〉x ⊗ |+〉x .

(12.1.4)

Logo, a probabilidade pedida e igual a∣

α + β

2

2

,

que depende dos coeficientes α e β e como tal temos uma ambiguidade fısica. Dificuldades

analogas - resultantes da degenerescencia de troca - aparecem no estudo de todos os sistema

com um numero arbitrario de partıculas identicas N , N > 1.

12.2 Operadores de permutacao

Antes de enunciar o postulado adicional da Mecanica Quantica que nos permite remover

as ambiguidades resultantes da degenerescencia de troca, iremos estudar certos operadores

que permutam as varias partıculas de um sistema e simplificam os calculos e raciocınios

que se seguirao.

Page 417: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.2 Operadores de permutacao 401

12.2.1 Sistema de duas partıculas

Consideremos um sistema constituido por duas partıculas, nao necessariamente identicas

(de modo a evitar as ambiguidades fısicas discutidas anteriormente), mas com espacos de

estados isomorficos. Em particular terao o mesmo spin. Por exemplo, um protao - partıcula

(1) - e um electrao - partıcula (2).

Escolhemos a base |ui〉 para o espaco de estados da partıcula (1), E(1); como este e

isomorfico a E(2), |ui〉 e tambem uma base para este espaco. O espaco de estados total,

E , tem uma base obtida pelo produto tensorial

|1 : ui〉 ⊗ |2 : uj〉 = |1 : ui; 2 : uj〉 .

Note-se que a ordem por que se fez o produto tensorial nao e importante, isto e

|1 : ui; 2 : uj〉 = |2 : uj; 1 : ui〉 ,

o que e importante e qual o estado associado a cada partıcula:

|1 : ui; 2 : uj〉 6= |1 : uj; 2 : ui〉 , para i 6= j .

O operador de permutacao P21 e definido como o operador linear cuja accao nesta base e

dada por:

P21|1 : ui; 2 : uj〉 = |2 : ui; 1 : uj〉 = |1 : uj; 2 : ui〉 .

Sabendo esta accao e facil concluir qual a accao em qualquer ket, bastando expandi-lo

nesta base. Em termos das componentes da funcao de onda de uma partıcula com spin e

graus de liberdade orbitais,

Ψǫ,ǫ′(~r, ~r′) = 〈1 : ~r, ǫ; 2 : ~r′, ǫ′|Ψ〉 ,

a accao do operador de permutacao e

Ψǫ,ǫ′(~r, ~r′)

P21−→ Ψǫ′,ǫ(~r′, ~r) .

Consideremos algumas propriedades do operador de permutacao:

Page 418: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

402 Sistemas de partıculas identicas

• E igual ao seu inverso (obvio pela definicao):

P 221 = 1 ;

• E hermıtico:

P21 = P †21 ;

para o demonstramos notamos que (assumimos que a base |ui〉 esta ortonormal-

izada)

〈1 : ui′; 2 : uj′|P21|1 : ui; 2 : uj〉 = δi′jδj′i .

Por outro lado, os mesmos elementos de matriz para o operador P †21 sao

〈1 : ui′; 2 : uj′|P †21|1 : ui; 2 : uj〉 = 〈1 : ui; 2 : uj|P21|1 : ui′; 2 : uj′〉∗

= (δj′iδi′j)∗ = δj′iδi′j ,

o que mostra que os elementos de matriz dos dois operadores sao iguais e prova que

P21 e hermıtico.

• Das duas propriedades anteriores resulta que P21 e unitario:

P21P†21 = P21P21 = 1 .

• Por ser hermıtico os valores proprios de P21 sao reais; como, para alem disso, o seu

quadrado e a unidade, os valores proprios de P21 terao de ser λ = ±1. Asssociados a

cada um destes valores proprios temos um tipo distinto de vectores proprios:

⋆ λ = 1; os vectores proprios associados chamam-se simetricos e denotam-se |ΨS〉:

P21|ΨS〉 = |ΨS〉.

⋆ λ = −1; os vectores proprios associados chamam-se anti-simetricos e denotam-se

|ΨA〉:P21|ΨA〉 = −|ΨA〉.

Page 419: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.2 Operadores de permutacao 403

Dado um estado arbitrario, podemos definir dois operadores cuja accao nesse estado

origina, um estado proprio de P21, com valor proprio, respectivamente +1 ou −1. Estes

operadores chamam-se o simetrizador, S, e o anti-simetrizador, A e sao definidos pelas

expressoes:

S =1

2

(

1 + P21

)

, A =1

2

(

1− P21

)

. (12.2.1)

Estes operadores tem as seguintes propriedades, todas elas podendo ser facilmente verifi-

cadas a partir das definicoes (12.2.1):

• Ambos sao operadores de projeccao:

S2 = S , A2 = A ;

• Ambos sao operadores hermıticos:

S = S† , A = A† ;

• S e A projectam em espacos ortogonais e suplementares

SA = AS = 0 , S + A = 1 .

• Como antecipado em cima, a accao destes operadores num estado arbitrario |Ψ〉 de Eproduz estados proprios do operador de permutacao:

P21S|Ψ〉 = S|Ψ〉 , P21A|Ψ〉 = −A|Ψ〉 ,

o que justifica a denominacao dos operadores.

Consideremos agora a transformacao de observaveis pela accao do operador de per-

mutacao. Seja B(1) uma observavel definida em E(1). Como e observavel os seus vectores

proprios constituem uma base de E(1). Sem perda de generalidade assumimos que a base

|ui〉 corresponde a base propria de B(1), com valores proprios bi. Consideramos a

accao do operador P21B(1)P †21 num ket de E arbitrario:

P21B(1)P †21|1 : ui; 2 : uj〉 = P21B(1)|1 : uj; 2 : ui〉 = bjP21|1 : uj; 2 : ui〉 = bj |1 : ui; 2 : uj〉 .

Page 420: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

404 Sistemas de partıculas identicas

Por outro lado, se considerarmos a accao da observavel analoga em E(2), denotada B(2),

no mesmo ket, temos

B(2)|1 : ui; 2 : uj〉 = bj |1 : ui; 2 : uj〉 .

Como o ket e arbitrario concluimos que

P21B(1)P †21 = B(2) .

Por um metodo analogo pode-se mostrar que

• P21B(2)P †21 = B(1);

• P21(B(1) + C(2))P †21 = B(2) + C(1);

• P21B(1)C(2)P †21 = B(2)C(1), que pode ser facilmente deduzido introduzindo o operador

1 = P †21P21 entre B(1) e C(2).

Generalizando para qualquer observavel O(1, 2), em E , que pode ser expressa em termos

de observaveis B(1) e C(2), temos

P21O(1, 2)P †21 = O(2, 1) , (12.2.2)

que e a mesma observavel trocando 1↔ 2.

Uma observavel e dita simetrica se

OS(2, 1) = OS(1, 2) .

Para uma observavel simetrica, (12.2.2) fica

P21OS(1, 2)P †21 = OS(2, 1) = OS(1, 2) ⇒ P21OS(1, 2) = OS(1, 2)P21 ,

de onde concluimos que

[OS(1, 2), P21] = 0 ,

ou seja, as observaveis simetricas comutam com o operador de permutacao.

Page 421: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.2 Operadores de permutacao 405

12.2.2 Sistema de tres partıculas e generalizacao para N partıculas

Consideramos agora a generalizacao para N partıculas dos conceitos da subseccao anterior.

Para isso comecamos por considerar explicitamente o caso com N = 3 que introduz a

estrutura do caso geral. Tomamos a base do espaco de estados de tres partıculas, com

espacos de estados individuais isomorficos, como sendo

|1 : ui; 2 : uj; 3 : uk〉 , (12.2.3)

e definimos os 3! = 6 operadores de permutacao que nela actuam:

P123 , P231 , P312 , P321 , P132 , P213 . (12.2.4)

A accao destes operadores na base pode ser sumarizada como

Pnpq|1 : ui; 2 : uj; 3 : uk〉 = |n : ui; p : uj; q : uk〉 .

Logo P123 = 1. A accao em qualquer ket e facilmente escrita expandindo-o na base (12.2.3).

Os N ! operadores num sistema de N partıculas sao definidos analogamente.

Consideremos algumas propriedades dos operadores de permutacao num sistema de N

partıculas, exemplificando com o caso de N = 3:

• O conjunto de operadores de permutacao, com a multiplicacao usual de operadores,

constitui um grupo. Verifiquemos os axiomas de grupo (apresentados na seccao 9.1):

⋆ O produto de dois operadores de permutacao e ainda um operador de permutacao;

por exemplo

P312P132 = P321 ; (12.2.5)

Para calcular o produto do lado esquerdo tome-se o seguinte algoritmo:

1) P132

1→ 1

2→ 3

3→ 2

, 2) P312

1→ 3

3→ 2

2→ 1

, 3) P312P132

1→ 3

2→ 2

3→ 1

. (12.2.6)

Logo a accao de P312P132 e a mesma que a acao de P321, como antecipado.

Page 422: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

406 Sistemas de partıculas identicas

⋆ O produto de permutacoes e associativo; por exemplo

P312P132P231 = P312P321 = P213 ,

enquanto que associando as duas permutacoes que actuam em segundo e terceiro

lugar,(

P312P132

)

P231 = P321P231 = P213 ,

obtemos de facto o mesmo resultado.

⋆ Existe um operador identidade, que e P123;

⋆ Cada permutacao tem uma permutacao inversa

(

P231

)−1

= P312 ,

(

P123

)−1

= P123 ,(

P321

)−1

= P321 ,(

P213

)−1

= P213 ,(

P132

)−1

= P132 .

Obviamente as transposicoes (a definir de seguida) e a identidade sao inversos de si

mesmos, como exibido na segunda linha.

Notemos que o grupo nao e abeliano. Por exemplo se trocarmos a ordem do produto

em (12.2.5) obtemos

P132P312 = P213 6= P321 ,

ou seja, as permutacoes, genericamente, nao comutam entre si.

• Definimos transposicao como uma permutacao que troca duas partıculas e deixa as

restantes invariantes. Para N = 3, das seis permutacoes (12.2.4) tres sao trans-

posicoes

P321 , P132 , P213 . (12.2.7)

Em geral, das N ! permutacoes num sistema de N partıculas teremos N(N − 1)/2

transposicoes. Transposicoes sao analogas a permutacao P21 que definimos num

sistema de duas partıculas. Em particular sao operadores hermıticos e unitarios.

Page 423: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.2 Operadores de permutacao 407

Qualquer permutacao pode ser escrita como um produto de transposicoes. Mas esta

“decomposicao” nao e unica. Por exemplo

P312 = P132P213 = P321P132 = P321P213P132P321 ;

no entanto o numero de transposicoes cujo produto origina P312 e sempre par. De

um modo semelhante, a permutacao P321, que e ela propria uma transposicao, nao

tem uma decomposicao unica, por exemplo pode ser tambem decomposta como

P321 = P132P213P132 ,

mas o numero de transposicoes cujo produto origina P321 e sempre ımpar. Por

esta razao, as permutacoes P123, P231, P312 sao chamadas permutacoes pares e as per-

mutacoes P321, P132, P213 sao chamadas permutacoes ımpares. No caso com N = 3

todas as permutacoes ımpares sao transposicoes. Genericamente, para um sistema de

N partıculas, definimos permutacoes pares (ımpares) como aquelas que so se podem

escrever como produtos de um numero par (ımpar) de transposicoes. Notemos ainda

que para qualquer N ha tantas permutacoes pares como ımpares.

• Operadores de permutacao sao sempre unitarios, pois podem ser escritos como produtos

de operadores unitarios, que sao as transposicoes. De facto notemos que se dois

operadores sao unitarios o seu produto e ainda unitario:

se AA† = 1 , BB† = 1 , ⇒ (AB)(AB)† = ABB†A† = 1 .

• Operadores de permutacao nao sao sempre hermıticos, pois, embora se escrevam como

produtos de operadores hermıticos (transposicoes), estes nao comutam entre si, con-

forme (4.2.31).

• O adjunto de uma permutacao, que e igual ao seu inverso dado serem operadores

unitarios, tem a mesma paridade da permutacao, pois escreve-se a custa das mesmas

transposicoes, mas em ordem contraria.

Page 424: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

408 Sistemas de partıculas identicas

Consideramos agora a construcao, para um sistema de N partıculas, dos vectores

proprios simetricos e anti-simetricos, e tambem a do simetrizador e do anti-simetrizador.

Comecamos por notar que, como os operadores de permutacao nao comutam entre

si, nao e possıvel arranjar uma base propria comum a todos eles. Contudo existem, ainda

assim, certos estados que sao estados proprios comuns a todos os operadores de permutacao

Pα. Num sistema de N partıculas estes estados sao de dois tipos:

• Estados completamente simetricos

Pα|ΨS〉 = |ΨS〉 ,

que sao vectores proprios de todas as permutacoes com valor proprio +1;

• Estados completamente anti-simetricos

Pα|ΨA〉 = ǫα|ΨA〉 ,

que sao vectores proprios de todas as permutacoes par (ımpar) com valor proprio +1

(−1). Logo ǫα = (−1)Paridade de Pα.

Tanto o espaco dos kets completamente simetricos ES como o espaco dos kets completa-

mente anti-simetricos EA sao sub-espacos do espaco de estados total E ; mas ao contrario

do caso N = 2, em geral

E 6= ES ⊕ EA ,

isto e, nem todos os estados podem ser escritos como combinacao linear de um estado

totalmente simetrico e um estado totalmente anti-simetrico.

O simetrizador e o anti-simetrizador para um sistema de N partıculas sao os operadores

de projeccao em ES e EA, definidos como

S =1

N !

α

Pα , A =1

N !

α

ǫαPα . (12.2.8)

Consideremos as suas propriedades:

Page 425: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.2 Operadores de permutacao 409

• Sao ambos hermıticos

S = S† , A = A† .

Esta propriedade pode ser verificada da seguinte maneira. Existe uma correspondencia

biunıvoca entre as permutacoes e as suas inversas; a permutacao inversa tem a mesma

paridade da permutacao; logo as somas (12.2.8) podem ser escritas

S =1

2N !

α

(

Pα + (Pα)−1)

, A =1

2N !

α

ǫα

(

Pα + (Pα)−1)

.

Como todas as permutacoes sao operadores unitarios, P †α = (Pα)−1 e como tal

(

Pα + (Pα)−1)

e hermıtico. Como acabamos de escrever S e A como uma soma

de operadores hermıticos, mostramos que sao hermıticos.

• Se Pα′ for uma permutacao arbitraria

Pα′S = SPα′ = S

Pα′A = APα′ = ǫα′A⇒

Pα′S|Ψ〉 = S|Ψ〉Pα′A|Ψ〉 = ǫα′A|Ψ〉

. (12.2.9)

• Sao operadores de projeccao:

S = S2 , A = A2 ,

em espacos ortogonais

SA = AS = 0 ,

mas, como ja referido anteriormente, para N > 2, os espacos ES e EA nao sao suple-

mentares - Figura 12.3 - i.e.

S + A 6= 1 .

Note-se que a dimensao de ES mais a de EA depende de N e da dimensao de |ui〉.

Podemos agora considerar a transformacao de observaveis pela accao dos operadores de per-

mutacao. Escrevendo o operador de permutacao como produtos de transposicoes, podemos

argumentar de um modo semelhante ao caso N = 2. Em particular observaveis comple-

tamente simetricas na troca dos ındices 1, . . . , N , OS(1, . . . , N), comutam com todos os

operadores de permutacao

[OS(1, . . . , N), Pα] = 0 . (12.2.10)

Page 426: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

410 Sistemas de partıculas identicas

N=2 N>2

ES ES

EA EA

E E

Figura 12.3: Representacao esquematica do espaco de estados total, E e dos espacos deestados simetricos ES e anti-simetricos EA, para duas partıculas identicas, em que saosuplementares e para N > 2, em que nao sao. Note-se que a figura da esquerda naosignifica que qualquer estado de E pertenca a ES ou a EA; significa que qualquer estado deE pode ser escrito como combinacao linear de estados de ES e EA.

12.3 O postulado de simetrizacao

Vamos agora introduzir o postulado que vai levantar a degenerescencia de troca e resolver as

ambiguidades fısicas vistas em sistemas de partıculas identicas. O postulado, denominado

postulado de simetrizacao, pode ser enunciado do seguinte modo:

“Quando um sistema inclui varias partıculas identicas, somente certos kets do seu

espaco de estados podem descrever estados fısicos. Os kets fısicos sao, dependendo da

natureza das partıculas identicas, ou completamente simetricos ou completamente anti-

simetricos, com respeito a permutacao destas partıculas. As partıculas para as quais os

kets fısicos sao simetricos (anti-simetricos) chamam-se bosoes (fermioes).

Este postulado limita o espaco de estados num sistema de partıculas identicas. Em vez

de ser o produto tensorial dos espacos de estados das partıculas individuais E (como e para

partıculas distintas), e apenas um sub-espaco de E , respectivamente ES ou EA para bosoes

ou fermioes.

Todas as partıculas conhecidas1 actualmente obedecem a seguinte regra:

Partıculas com spin semi-inteiro sao fermioes (electrao, protao,. . . ); partıculas com

spin inteiro sao bosoes (fotao, mesoes,. . . ).

1Este facto, resulta de as partıculas elementares conhecidas obedecerem a esta regra. Contudo, existempartıculas auxiliares (nao sao reais) mas usadas na descricao matematica da teoria quantica de campo,denominadas ghosts que nao obedecem ao Teorema Spin-Estatıstica.

Page 427: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.3 O postulado de simetrizacao 411

Esta regra, denominada “Teorema Spin-Estatıstica”, pode ser provada em Teoria Quantica

de Campo, usando hipoteses muito gerais.2 Mas nao e impossıvel que:

• Um bosao/fermiao com spin semi-inteiro/inteiro possa ser descoberto;

• Haja kets fısicos com simetrias mais complexas do que as que sao consideradas pelo

postulado anterior.

Notemos ainda que este postulado nao se aplica em uma e duas dimensoes espaciais;

em duas dimensoes, em particular, existem outras (quasi)partıculas, denominadas “anioes”

(anyons), que se tornaram uteis na descricao de alguns sistemas, como folhas de grafite,

ou no tratamento do efeito Hall quantico.3

12.3.1 Levantamento da degenerescencia de troca

Vejamos agora como o postulado anterior pode resolver as ambiguidades fısicas discutidas.

Para isso, notamos que a degenerescencia de troca pode ser enunciada da seguinte forma:

“Seja |u〉 um ket que descreve matematicamente um estado fısico bem definido de

um sistema contendo N partıculas identicas. O ket Pα|u〉, para qualquer operador de

permutacao Pα, descreve o estado fısico tao bem quanto |u〉. Se o sub-espaco Eu gerado

por |u〉 e todas as suas permutacoes tiver dimensao maior do que 1, existe degenerescencia

de troca. Em geral, a dimensao de Eu podera ir de 1 a N !.”

Com o postulado adicional, o ket fısico tem de pertencer a ES ou a EA. A degenerescencia

de troca sera levantada se demonstrarmos que Eu contem um unico ket de ES ou, caso as

partıculas identicas sejam fermioes, um unico ket de EA. Para demonstrarmos que assim

e, recordamos (12.2.9)

S = SPα , A = ǫαAPα ,

2O trabalho original foi feito por W.Pauli: “The Connection Between Spin and Statistics”, Phys. Rev.58 (1940) 716-722.

3A existencia destas representacoes foi originalmente discutida em J.M.Leinaas e J.Myrheim, “On thetheory of identical particles”, Il Nuovo Cimento, 37B (1977) 1; agradeco ao Prof. Joao Lopes dos Santospor me ter chamado a atencao para este artigo.

Page 428: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

412 Sistemas de partıculas identicas

que implicam

S|u〉 = SPα|u〉 , A|u〉 = ǫαAPα|u〉 .

Ou seja, a projeccao em ES ou EA de todos os kets de Eu e a mesma, a menos de um sinal

que nao tem relevancia fısica, o que levanta a degenerescencia de troca.

Deste modo, pelo postulado de simetrizacao, o ket fısico que descreve o estado fısico do

sistema de um sistema de N partıculas identicas e construido da seguinte maneira:

i) Numere-se as partıculas arbitrariamente e construa-se o ket |u〉 correspondendo ao es-

tado fısico considerado com os numeros quanticos de cada partıcula determinados.

ii) Aplique-se S ou A a |u〉, dependendo de as partıculas identicas serem bosoes ou

fermioes.

iii) Normalize-se o ket obtido.

Consideremos alguns exemplos:

1) Sistema de duas partıculas identicas:

Num sistema de duas partıculas identicas sabe-se que uma esta no estado |φ〉 e outra no

estado |χ〉 (normalizados). Apliquemos as regras anteriores:

i) Rotulamos a que esta no estado |φ〉/|χ〉 por (1)/(2). Logo construimos o ket

|u〉 = |1 : φ; 2 : χ〉 .

ii) Se sao bosoes simetrizamos:

S|u〉 =1

2

(

1 + P21

)

|u〉 = 1

2(|1 : φ; 2 : χ〉+ |1 : χ; 2 : φ〉) .

Se sao fermioes anti-simetrizamos:

A|u〉 =1

2

(

1− P21

)

|u〉 =1

2(|1 : φ; 2 : χ〉 − |1 : χ; 2 : φ〉) .

iii) Normalizamos; ha que considerar duas hipoteses:

Page 429: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.3 O postulado de simetrizacao 413

⋆ Se os dois estados fısicos |φ〉 e |ψ〉 sao distintos, podemos assumir que 〈φ|χ〉 = 0;

obtemos o ket fısico4

|φ, χ〉 = 1√2

[|1 : φ; 2 : χ〉+ ǫ|1 : χ; 2 : φ〉] ,

onde ǫ = +1,−1, para bosoes e fermioes, respectivamente.

⋆ Se os dois estados fısicos sao o mesmo |φ〉 = |χ〉 entao temos, para bosoes

S|u〉 = |1 : φ; 2 : φ〉 ,

o que quer dizer que se as partıculas identicas sao bosoes e estao no mesmo

estado o ket simetrizado e o mesmo que o ket inicial |u〉 = S|u〉; para fermioes

A|u〉 = 0 ,

o que quer dizer que nao existe nenhum ket em EA que descreve dois fermioes

no mesmo estado individual |φ〉. Um tal estado e excluido pelo postulado de

simetrizacao. Acabamos assim, de estabelecer, para um caso particular, o

Princıpio de exclusao de Pauli:

“Dois fermioes identicos nao podem estar no mesmo estado individual.”

2) Sistema de tres partıculas identicas:

Num sistema de tres partıculas identicas sabe-se que uma esta no estado |φ〉, outra no

estado |χ〉 e outra no estado |w〉 (normalizados). Apliquemos as regras anteriores:

i) Rotulamos a que esta no estado |φ〉/|χ〉/|w〉 por (1)/(2)/(3). Logo construimos o ket

|u〉 = |1 : φ; 2 : χ; 3 : w〉 .4Assumimos, por simplicidade que |φ〉 e |χ〉 sao estados proprios de uma observavel (com espectro nao

degenerado) associados a valores proprios distintos.

Page 430: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

414 Sistemas de partıculas identicas

ii) Se sao bosoes simetrizamos:

S|u〉 = 1

3!

α

Pα|u〉 =1

3!(|1 : φ; 2 : χ; 3 : w〉+ |1 : w; 2 : φ; 3 : χ〉+ |1 : χ; 2 : w; 3 : φ〉

+|1 : φ; 2 : w; 3 : χ〉+ |1 : χ; 2 : φ; 3 : w〉+ |1 : w; 2 : χ; 3 : φ〉) ;

(12.3.1)

Se sao fermioes anti-simetrizamos:

A|u〉 =1

3!

α

ǫαPα|u〉 ,

notando que os sinais sao exactamente os dados por um determinante, escrevemos

A|u〉 = 1

3!

|1 : φ〉 |1 : χ〉 |1 : w〉|2 : φ〉 |2 : χ〉 |2 : w〉|3 : φ〉 |3 : χ〉 |3 : w〉

, (12.3.2)

que e chamado o determinante de Slater.5

iii) Normalizamos; ha que considerar tres hipoteses:

⋆ Se todos os estados fısicos |φ〉, |χ〉 e |w〉 sao distintos, podemos assumir ortogonali-

dade entre todos; obtemos os ket fısicos (12.3.1) ou (12.3.2) com 1/3! substituido

por 1/√

3!.

⋆ Se dois dos estados fısicos sao iguais, por exemplo |φ〉 = |χ〉, entao temos, para

bosoes

|φ;φ;w〉 = 1√3

[|1 : φ; 2 : φ; 3 : w〉+ |1 : φ; 2 : w; 3 : φ〉+ |1 : w; 2 : φ; 3 : φ〉] ,

enquanto que para fermioes, o facto de dois estados serem iguais significa que

existem duas colunas iguais no determinante de Slater, que como tal e zero.

Deste modo, nao existe qualquer estado em EA que descreva esta situacao. Esta

e mais uma manifestacao do princıpio de exclusao de Pauli.

5Esta tecnica de usar um determinante foi introduzida por J.C.Slater em “The Theory of ComplexSpectra”, Phys. Rev. 34 (1929) 1293.

Page 431: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.3 O postulado de simetrizacao 415

⋆ Se os tres estados fısicos sao iguais, entao temos, para bosoes

|φ;φ;φ〉 = |1 : φ; 2 : φ; 3 : φ〉 ,

enquanto que para os fermioes a funcao de onda e zero.

3) Sistema de N partıculas identicas:

Genericamente a situacao e semelhante aos casos anteriores. Para bosoes existe sempre um

estado simetrico, mesmo que varias partıculas estejam no mesmo estado individual. Para

fermioes nao pode haver repeticao do estado individual.

Existe uma outra representacao de kets fısicos que introduz o conceito de numero de

ocupacao. Consideremos um sistema de N partıculas identicas. Tomando uma base |ui〉para o espaco de estados de uma partıcula, construimos a base

|1 : ui; 2 : uj; . . . ;N : up〉 , (12.3.3)

para o espaco de estados E . No entanto, a base do espaco de estados fısicos ES ou EA

e construida actuando com o simetrizador ou o anti-simetrizador na base anterior, o que

torna irrelevante qual a numeracao da partıcula que se encontra num estado |ui〉. O que e

realmente relevante e quantas partıculas se encontram em cada estado, ou seja o numero

de ocupacao de cada estado. Este numero corresponde a quantas vezes cada estado aparece

num ket da forma (12.3.3). Isso leva-nos a introduzir a notacao, para kets fısicos

|n1, . . . , nk, . . .〉 ,

onde o numero de entradas no ket corresponde ao numero de estados possıveis, isto e a

dimensao do espaco de estados de uma partıcula; ni e o numero de ocupacao do estado |ui〉.Subentende-se que este ket corresponde a um ket simetrizado ou anti-simetrizado quando

expresso na base (12.3.3). Obviamente

i

ni = N ,

e para os fermioes ni = 0, 1.

Page 432: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

416 Sistemas de partıculas identicas

12.3.2 Observaveis e evolucao temporal

O postulado de simetrizacao restringe os kets fısicos num sistema de partıculas identicas

aos que sao totalmente simetricos ou totalmente anti-simetricos na troca de duas quaisquer

partıculas. Quais as restricoes que devemos impor as observaveis?

Em geral, dado que nenhuma propriedade fısica e modificada quando os papeis das N

partıculas sao permutados, estas N partıculas devem entrar simetricamente em qualquer

observavel passıvel de ser medida, tanto para fermioes como para bosoes. Matematica-

mente, requeremos que as observaveis fısicas, O, sejam invariantes quando as partıculas

sao permutadas, isto e, devem ser operadores simetricos, e como tal de acordo com (12.2.10)

devem comutar com os operadores de permutacao:

[O, Pα] = 0 , ∀Pα . (12.3.4)

Por exemplo;

• Num sistema de duas partıculas, a observavel

~R1 − ~

R2 ,

nao e simetrica, e como tal nao e fısica. A observavel fısica que reflecte a distancia

entre as duas partıculas e

(~R1 − ~

R2)2 = |~R1 − ~R2| .

• O operador Hamiltoniano que descreve o atomo de Helio devera ser escrito, em primeira

aproximacao, como

H(1, 2) =P 2

1

2me

+P 2

2

2me

+1

4πǫ0

(

−2e2

R1

− 2e2

R2

+e2

|R1 − R2|

)

.

• O momento angular orbital total num sistema de tres partıculas identicas sera:

~L =

~L1 +

~L2 +

~L3 .

Page 433: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.4 Consequencias do postulado de simetrizacao 417

Note-se que o significado de (12.3.4) e tambem que a accao de uma observavel fısica num

ket fısico nao retira o ket fısico de ES ou EA. Isto e verdade, em particular para o operador

Hamiltoniano, que devera ser uma observavel fısica. Como este operador e o responsavel

pela evoluacao temporal do sistema, atraves da equacao de Schrodinger, esta evolucao

nao devera retirar o ket fısico do espaco vectorial ES ou EA. Isto atesta a consistencia do

formalismo.

Note-se ainda que as observaveis fısicas estarao definidas, a partida, no espaco de

estados total E , podendo por isso ter mais vectores proprios (e correspondentes valores

proprios) do que aqueles que tem em ES ou EA. Neste sentido, o efeito do postulado

de simetrizacao podera ser eliminar alguns dos valores proprios de uma observavel fısica,

restrigindo os valores proprios fısicos aos que tem vectores proprios associados em ES ou

EA.

12.4 Consequencias do postulado de simetrizacao

12.4.1 Diferencas entre bosoes e fermioes

No enunciado do postulado de simetrizacao, a diferenca entre bosoes e fermioes e “apenas”

um sinal. Esta diferenca de sinal tem, no entanto, consequencias notaveis, que sao mani-

festacoes do princıpio de exclusao de Pauli, para fermioes, e da ausencia de um princıpio

semelhante para bosoes. Consideremos duas.

Estado fundamental de um sistema de partıculas identicas independentes

Dado que o Hamiltoniano e uma observavel fısica tem de ser uma observavel simetrica,

num sistema de partıculas identicas. Vamos assumir que estas sao independentes, isto e

nao se encontram acopladas. Se assim e, o Hamiltoniano pode ser decomposto da seguinte

forma:

H(1, 2, . . . , N) = h(1) + h(2) + . . .+ h(N) .

Note-se que os varios Hamiltonianos individuais sao iguais (a menos do ındice de partıcula),

de modo a garantir que o operador Hamiltoniano seja simetrico. Consideremos a base

Page 434: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

418 Sistemas de partıculas identicas

propria de h(j):

h(j)|φn〉 = en|φn〉 , |φn〉 ∈ E(j) .

Assumimos, por simplicidade, que o espectro e discreto e nao degenerado e ordenamos os

vectores proprios de modo a que e1 < e2 < e3 < . . ..

• Se as partıculas sao bosoes, o estado fundamental e

|φ(S)1,1,...,1〉 = |1 : φ1; 2 : φ1; . . . ;N : φ1〉 ,

que ja esta simetrizado, sendo a energia correspondente

E1,1,...,1 = Ne1 .

• Se as partıculas sao fermioes, o estado fundamental e

|φ(A)1,2,...,N〉 =

1√N !

|1 : φ1〉 . . . |1 : φN〉. . . . . . . . .

|N : φ1〉 . . . |N : φN〉

,

sendo a energia correspondente

E1,2,...,N = e1 + e2 + . . .+ eN .

A maior energia individual eN que se encontra no estado fundamental e denominada

energia de Fermi.

Estatıstica Quantica

Em mecanica estatıstica classica (estatıstica de Maxwell-Boltzmann), as N partıculas do

sistema sao tratadas como se tivessem diferentes naturezas, mesmo que sejam identicas.

Dois estados microscopicos, sao considerados distintos se as N partıculas forem identicas,

mas a permutacao diferente. Daqui resulta que, em equilıbrio termico a temperatura T , o

numero medio de partıculas com energia Ei e dado por

ni = Ne−βEi

j e−βEj

,

Page 435: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.4 Consequencias do postulado de simetrizacao 419

onde a soma e sobre todos os estados microscopicos do sistema e β = 1/KBT . Este

resultado e aplicavel sempre que a temperatura seja suficientemente alta e a densidade

suficientemente baixa para os efeitos quanticos serem negligenciaveis (isto e nao haver

sobreposicao apreciavel das funcoes de onda das partıculas individuais).

Em mecanica estatıstica quantica o postulado de simetrizacao tem de ser considerado:

• Bosoes obedecem a estatıstica de Bose-Einstein; o numero medio de bosoes num estado

com energia Ei, e dado por

ni =1

eα+βEi − 1,

onde α e determinado pela restricao

N =∑

j

1

eα+βEj − 1. (12.4.1)

Para bosoes sem massa (como o fotao), α = 0. Note-se que esta estatıstica permite

que ni seja muito elevado.

• Fermioes obedecem a estatıstica de Fermi-Dirac; o numero medio de fermioes num estado

com energia Ei, e dado por

ni =1

eα+βEi + 1,

onde α e determinado pela restricao (12.4.1). Note-se que esta estatıstica limita ni a

0 ≤ ni ≤ 1, em concordancia com o princıpio de exclusao de Pauli.

Estas diferentes estatısticas podem ser observadas a baixas temperaturas. Bosoes identicos

tendem a acumular-se no estado de menor energia - condensacao de Bose-Einstein. Para

o 4He, este fenomeno origina a superfluidez. Para o 3He, que e um fermiao, o mesmo

fenomeno nao se verifica. A razao de o 3He ser um fermiao e do 4He ser um bosao e

consequencia do teorema de adicao do momento angular.

Note-se que se tentarmos sobrepor fermioes no mesmo estado quantico, existira uma

forca efectiva que contrariara esta tentativa de sobreposicao, originando a chamada pressao

de Fermi. Esta pressao desempenha um papel importante na evolucao estelar. Quando a

pressao de radiacao deixa de conseguir equilibrar uma estrela, a estrela colapsa. Se a estrela

Page 436: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

420 Sistemas de partıculas identicas

tiver menos de 1.44 massas solares (limite de Chandrasekhar), a pressao de Fermi devida

aos electroes (degenerescencia electronica) evita que o colapso gravitacional continue. Para

estrelas com massa superior ao limite de Chandrasekhar, existe energia gravitacional sufi-

ciente para forcar os electroes e os protoes a combinarem-se em neutroes, formando uma

estrela de neutroes. A pressao de Fermi devida aos neutroes pode entao travar o colapso

gravitacional, se a massa da estrela for inferior a 2− 3 massas solares. Para massas muito

superiores a esta nao se conhece nenhum efeito que consiga travar o colapso gravitacional.

A estrela evoluira, em princıpio, para um buraco negro.

12.4.2 Efeitos de interferencia

A simetrizacao/anti-simetrizacao origina termos de interferencia no calculo de probabili-

dades. Para vermos este fenomeno consideramos um sistema de duas partıculas identicas,

uma no estado |φ〉 e outra no estado |χ〉, ortogonais. O estado fısico e

|φ;χ〉 =1√2

[

1 + ǫP21

]

|1 : φ; 2 : χ〉 ,

onde ǫ = +1,−1 para bosoes e fermioes respectivamente.

Queremos medir a grandeza fısica B, associada as observaveis B(1) e B(2). Seja bi o

espectro de B,

B|ui〉 = bi|ui〉 ,

que tomamos como sendo discreto e nao degenerado, por simplicidade. Podemos per-

guntar qual e a probabilidade de encontrar os valores bn e bn′ (diferentes) numa medicao

da grandeza fısica B das duas partıculas. Para respondermos, consideramos o ket fısico

associado a este resultado, que e

|un; un′〉 =1√2

[

1 + ǫP21

]

|1 : un; 2 : un′〉 .

Page 437: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.4 Consequencias do postulado de simetrizacao 421

Logo, a amplitude de probabilidade e

A(bn, bn′) = 〈un; un′|φ;χ〉 =1

2〈1 : un; 2 : un′|(1 + ǫP †

21)(1 + ǫP21)|1 : φ; 2 : χ〉

= 〈1 : un; 2 : un′|(1 + ǫP21)|1 : φ; 2 : χ〉

= 〈1 : un; 2 : un′|1 : φ; 2 : χ〉+ ǫ〈1 : un; 2 : un′|1 : χ; 2 : φ〉

= 〈un|φ〉〈un′|χ〉+ ǫ〈un|χ〉〈un′|φ〉 .

Podemos interpretar o resultado para a amplitude de probabilidade do seguinte modo.

Associamos os dois kets que descrevem o estado fısico |φ〉 e |χ〉 aos dois bras que descrevem

o resultado pretendido 〈un| e 〈un′| das duas maneiras possıveis - figura 12.4.

〈un|

〈un′|

|φ〉

|χ〉

〈un|

〈un′|

|φ〉

|χ〉

a) b)

Figura 12.4: Associacao dos dois kets que descrevem o estado fısico |φ〉 e |χ〉 aos dois brasque descrevem o resultado pretendido 〈un| e 〈un′|. O termo a) e denominado termo directo;o termo b) e denominado termo de troca.

Cada uma das duas maneiras origina uma amplitude de probabilidade e estas duas

amplitudes interferem com sinal diferente para bosoes e fermioes, originando probabilidades

P(bn, bn′) = |A(bn, bn′)|2 ,

diferentes. Explicitamente

P(bn, bn′) = |〈un|φ〉〈un′|χ〉+ ǫ〈un′|φ〉〈un|χ〉|2 . (12.4.2)

Notemos, por contraste, o resultado que seria obtido em Mecanica Quantica se as partıculas

nao fossem identicas. Consideramos que o estado fısico que descreve o sistema das duas

partıculas distinguıveis e

|1 : φ; 2 : χ〉 .

Page 438: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

422 Sistemas de partıculas identicas

Fazemos uma medicao que, embora as partıculas sejam distinguiveis, nos da uma pro-

priedade fısica que nao distingue entre elas (por exemplo, temos um electrao e um protao

e medimos o spin). Logo os dois estados

|1 : un; 2 : un′〉 , |1 : un′; 2 : un〉 ,

descrevem o mesmo resultado da medicao. A probabilidade de obtermos os resultados bn

e bn′ e dada pela soma das probabilidades de o sistema estar nos estados |1 : un; 2 : un′〉 e

|1 : un′; 2 : un〉:

P ′(bn, bn′) = |〈1 : un; 2 : un′|1 : φ; 2 : χ〉|2 + |〈1 : un′; 2 : un|1 : φ; 2 : χ〉|2

= |〈un|φ〉〈un′|χ〉|2 + |〈un′|φ〉〈un|χ〉|2 .(12.4.3)

Note-se a ausencia do termo de interferencia, cujo sinal depende de as partıculas identicas

serem bosoes ou fermioes. Este termo manifesta a diferenca nas previsoes fısicas da

Mecanica Quantica dependendo se as partıculas sao identicas - resultado (12.4.2) - ou

distinguıveis - resultado (12.4.3).

Oz

a)

O

z

n

b)

Figura 12.5: Processo de colisao de partıculas identicas no referencial de centro de massa.Assumimos que tanto o estado inicial, a), como o estado final, b), sao estados proprios domomento, associados as direccoes z e n, respectivamente.

Para ilustrarmos o significado fısico dos termos directo e de troca, consideramos um

exemplo mais concreto: a colisao elastica de duas partıculas identicas no referencial de

centro de massa. Assumimos que o estado fısico que representa o estado inicial e

|Ψi〉 =1√2(1 + ǫP21)|1 : pez; 2 : −pez〉 ,

enquanto que o estado final e descrito por

|Ψf〉 =1√2(1 + ǫP21)|1 : pn; 2 : −pn〉 ,

Page 439: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.4 Consequencias do postulado de simetrizacao 423

conforme a figura 12.5. O estado final relaciona-se com o estado inicial atraves do operador

de evolucao (4.5.36)

|Ψ(t1)〉 = U(t1, t0)|Ψi〉 .

Como o Hamiltoniano comuta com P21, tambem o operador de evolucao o fara

[U(t, t′), P21] = 0 .

Assim, a amplitude de probabilidade para o processo descrito e:

〈Ψf |Ψ(t1)〉 =1

2〈1 : pn; 2 : −pn|(1 + ǫP †

21)U(t1, t0)(1 + ǫP21)|1 : pez; 2 : −pez〉 ,

que, usando

(1 + ǫP †21)U(t1, t0)(1 + ǫP21) = (1 + ǫP †

21)(1 + ǫP21)U(t1, t0) = 2(1 + ǫP †21)U(t1, t0) ;

pode ser reescrita

〈Ψf |Ψ(t1)〉 = 〈1 : pn; 2 : −pn|U(t1, t0)|1 : pez; 2 : −pez〉

+ǫ〈1 : −pn; 2 : pn|U(t1, t0)|1 : pez; 2 : −pez〉 .

Podemos pensar graficamente nestes dois termos como estando associados aos processos

descritos na figura 12.6. Qual termo associamos a qual grafico e irrelevante. O que importa

e que temos de somar ou subtrair as respectivas amplitudes de probabilidade para bosoes

ou fermioes, respectivamente.

z

n

z

n

b)a)

Figura 12.6: Representacao diagramatica dos dois processos cujas amplitudes tem de serconsideradas no calculo da probabilidade do processo descrito na figura 12.5. Um diagramacorresponde ao termo directo, por exemplo a), e outro ao termo de troca, por exemplo b).

Page 440: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

424 Sistemas de partıculas identicas

Fechamos esta subseccao comentando que ha situacoes em que podemos na pratica

ignorar o postulado de simetrizacao e trabalhar com a funcao de onda para partıculas

identicas, como se fossem partıculas distinguıveis. Consideremos dois exemplos.

1) Se as partıculas identicas tiverem funcoes de onda espaciais com uma sobreposicao

negligenciavel, os problemas vistos no inıcio deste capıtulo nao devem ocorrer, pois

as partıculas nao se misturarao e nao perderemos o “rasto” de cada uma delas. Em

termos matematicos, sejam U1 e U2 as regioes do espaco onde a funcao de onda

das partıculas, que rotulamos como (1) e (2), tem suporte. Se perguntarmos qual

a probabilidade de encontrarmos uma partıcula num sub-espaco da regiao U1, e a

outra num sub-espaco da regiao U2, apenas um dos termos - o termo directo, por

exemplo -, ira contribuir. O termo de troca sera nulo pois corresponde a projectar a

funcao de onda da partıcula (1)/(2) num sub-espaco de U2/U1, onde nao tem suporte.

A resposta obtida para a densidade de probabilidade sera a mesma do que se nao

simetrizarmos/anti-simetrizarmos a funcao de onda das partıculas identicas.

2) Se as duas partıculas se encontrarem em estados ortogonais de spin, e o Hamiltoniano

de interaccao nao actuar nas variaveis de spin, o spin funciona como um numero

quantico conservado que efectivamente distingue as partıculas.

12.4.3 Difusao de duas partıculas identicas com spin

A difusao, tal como foi tratada no capıtulo 10, assumia uma clara separacao entre a

partıcula difundida e a partıcula difusora (modelada por um potencial difusor). O calculo

da seccao eficaz de difusao baseava-se na leitura da amplitude de difusao, atraves da forma

assimptotica dos estados estacionarios de difusao (10.1.13).

No caso de estudarmos difusao de duas partıculas identicas, e impossıvel distinguir entre

a partıcula incidente e a partıcula difundida. Consequentemente, no referencial de centro

de massa, tem-se duas ondas planas incidentes identicas, em rota de colisao: eikz, e−ikz. A

funcao de onda total que descreve o processo de difusao e e obtida pela resolucao da equacao

de Schrodinger, devera ser simetrica (para bosoes) ou anti-simetrica (para fermioes) na

Page 441: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.4 Consequencias do postulado de simetrizacao 425

troca das partıculas ~r1 ↔ ~r2. Esta troca, no referencial de centro de massa, corresponde a

r ↔ r , θ ↔ π − θ , z = r cos θ ↔ −z. (12.4.4)

Logo, num sistema de partıculas identicas, a parte orbital da funcao de onda que descreve

os estados estacionarios de difusao tera a forma assimptotica

(

vdifk

)

S,A(~r)

~r→∞−→ eikz ± e−ikz + (f(θ)± f(π − θ)) eikr

r, (12.4.5)

e nao (10.1.13), onde S,A se referem respectivamente ao sinal ‘+’ e ‘−’ de modo a que

a funcao de onda seja simetrica e anti-simetrica, respectivamente, na troca das duas

partıculas. Note que o sinal desta equacao nao e determinado pela natureza das partıculas

ser bosonica ou fermionica. De facto o postulado de simetrizacao requer que a funcao de

onda total, |Ψ〉, seja simetrica ou anti-simetrica na troca de duas partıculas e nao a funcao

de onda orbital |vdifk 〉. Assim, para compreendermos qual o sinal a utilizar na funcao de

onda orbital temos de considerar a funcao de onda total que tera para alem da parte orbital

uma parte de spin. Como exemplo consideremos a difusao de dois fermioes de spin 1/2.

Vimos na seccao 9.5.1 que o momento angular total e a respectiva funcao de onda de spin,

|S〉, serao:

S = 1 (estado tripleto simetrico) , |S〉S =

|1, 1〉 = |+,+〉|1, 0〉 = (|+,−〉+ |−,+〉)/

√2

|1,−1〉 = |−,−〉S = 0 (estado singleto anti− simetrico) , |S〉A = |0, 0〉 = (|+,−〉 − |−,+〉)/

√2 .

(12.4.6)

Consideramos agora os dois casos possıveis:

⋆ Se o sistema estiver polarizado, isto e num estado de momento angular total bem definido

(|S〉S ou |S〉A), a sua funcao de onda de spin sera simetrica ou anti-simetrica, respec-

tivamente. Como a funcao de onda total devera ser anti-simetrica (as partıculas sao

fermioes) teremos de escolher a funcao de onda orbital anti-simetrica ou simetrica

respectivamente:

|Ψ〉 = |vdifk 〉A ⊗ |S〉S ou |Ψ〉 = |vdif

k 〉S ⊗ |S〉A . (12.4.7)

Page 442: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

426 Sistemas de partıculas identicas

Portanto, para um feixe polarizado com S = 1 a seccao eficaz diferencial de difusao,

dada pelo quadrado do modulo da amplitude de difusao, sera:

σ(θ, φ)A = |f(θ)− f(π − θ)|2 , (12.4.8)

enquanto que para S = 0 sera

σ(θ, φ)S = |f(θ) + f(π − θ)|2 . (12.4.9)

⋆ Se o sistema nao estiver polarizado, isto e estiver numa sobreposicao de estado de mo-

mento angular total bem definido, a seccao eficaz diferencial do processo e obtida

calculando uma media de σ(θ, φ)A e σ(θ, φ)S, onde o peso de cada uma e dada pelo

numero de estados de spin que a ela estao associados. Na pratica estamos a consid-

erar todos os estados de spin equiprovaveis. No nosso caso temos tres estados com

S = 1 e um estado com S = 0. Portanto a seccao sera dada por

σ(θ, φ) =3

4σ(θ, φ)A +

1

4σ(θ, φ)S . (12.4.10)

O caso geral e agora simples de concluir. Se o spin de cada uma das partıculas for s havera

2s + 1 valores possıveis para o momento angular total S (S = 2s, 2s − 1, . . . , 0); todos

os estados no multipleto correspondente a cada S terao a mesma simetria (simetricos ou

anti-simetricos na troca de duas partıculas). A funcao de onda orbital e escolhida com a

simetria apropriada de modo a que a funcao de onda total seja simetrica (anti-simetrica)

se as partıculas forem bosoes (fermioes):

⋆ Se o sistema estiver polarizado no estado com momento angular total S e as partıculas

forem fermioes (bosoes) entao a seccao eficaz diferencial e dada por

σ(θ, φ)A = |f(θ)− f(π − θ)|2 , (12.4.11)

se o multipleto com momento angular total S for simetrico (anti-simetrico) ou

σ(θ, φ)S = |f(θ) + f(π − θ)|2 , (12.4.12)

se o multipleto com momento angular total S for anti-simetrico (simetrico).

Page 443: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.4 Consequencias do postulado de simetrizacao 427

⋆ Se o sistema nao estiver polarizado temos

σ(θ, φ) =s + 1

2s+ 1σ(θ, φ)A +

s

2s+ 1σ(θ, φ)S , (12.4.13)

para fermioes e

σ(θ, φ) =s + 1

2s+ 1σ(θ, φ)S +

s

2s+ 1σ(θ, φ)A , (12.4.14)

para bosoes, dado que genericamente teremos (2s + 1)2 estados de spin dos quais

s(2s+ 1) serao anti-simetricos e (s+ 1)(2s+ 1) serao simetricos.

Exemplo: Considere a difusao neutrao-neutrao a baixa energia, tomando o potencial

de interaccao

V (r) = ~σ1 · ~σ2V0e−αr

r, (12.4.15)

onde α, V0 sao constantes positivas e σi a matriz de Pauli para o neutrao i = 1, 2. Pre-

tendemos calcular a seccao eficaz de difusao supondo que os feixes dos neutroes nao estao

polarizados, na primeira aproximacao de Born. Comecamos por escrever o operador de

spin total do sistema

~S = ~s1 + ~s2 =

~

2(~σ1 + ~σ2) , (12.4.16)

dado serem partıculas de spin 1/2. Logo

~σ1 · ~σ2 =2

~2

(

S2 − s21 − s2

2

)

=

1 , se S = 1

−3 , se S = 0. (12.4.17)

Logo, para feixes polarizados o potencial e efectivamente

V (r) =

V0e−αr

r, se S = 1

−3V0e−αr

r, se S = 0

. (12.4.18)

A amplitude de difusao para cada um destes potenciais na primeira aproximacao de Born

e, usando (10.2.51) e (10.2.39)

fBornk (θ, φ) =

−2µV0

~2

1

4k2 sin2 θ2

+ α2, se S = 1

6µV0

~2

1

4k2 sin2 θ2

+ α2, se S = 0

. (12.4.19)

Page 444: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

428 Sistemas de partıculas identicas

A seccao eficaz diferencial de difusao e dada por (12.4.10) usando (12.4.8) e (12.4.9)

σ(θ, φ) =3

4|fS=1

k (θ)− fS=1k (π − θ)|2 +

1

4|fS=0

k (θ) + fS=0k (π − θ)|2 , (12.4.20)

ou

σ(θ, φ) =3

4

−2µV0

~2

(

1

4k2 sin2 θ2

+ α2− 1

4k2 cos2 θ2

+ α2

)∣

2

+1

4

6µV0

~2

(

1

4k2 sin2 θ2

+ α2+

1

4k2 cos2 θ2

+ α2

)∣

2

.

(12.4.21)

12.5 Atomos com varios electroes - A tabela periodica

No capıtulo 6 estudamos o atomo de Hidrogenio, considerando apenas o termo cinetico e

a interaccao de Coulomb entre o electrao e o protao. O problema e exactamente soluvel

e obtivemos o espectro e as funcoes de onda analiticamente. Este estudo foi refinado no

capıtulo 11, em que consideramos as primeiras correccoes relativistas e em particular o spin,

para perceber e calcular perturbativamente a estrutura fina. Ao considerarmos atomos com

varios electroes, o problema, mesmo considerando apenas a interaccao de Coulomb, deixa

de ser exactamente soluvel. A razao e que existe uma interaccao repulsiva de Coulomb

entre os varios electroes, que faz com que os electroes deixem de sentir um potencial central.

Para um atomo com numero atomico Z, o Hamiltoniano sera:

H =

Z∑

i=1

P 2i

2me− 1

4πǫ0

Z∑

i=1

Ze2

Ri

+1

4πǫ0

i<j

e2

|Ri − Rj |, (12.5.1)

onde o ultimo termo (que corresponde, de facto, a Z(Z − 1)/2 termos) descreve as in-

teraccoes entre os electroes do atomo. Note-se que o Hamiltoniano e uma observavel

simetrica, como requerido para uma observavel fısica. Podiamos sugerir um tratamento

perturbativo para este Hamiltoniano, considerando o terceiro termo em (12.5.1) como uma

perturbacao aos outros dois, que podem ser resolvidos exactamente. Estimando tanto Ri

como |Ri − Rj | pelo raio de Bohr, a razao entre o terceiro e segundo termos em (12.5.1) e

Z(Z − 1)/2

Z2,

Page 445: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.5 Atomos com varios electroes - A tabela periodica 429

que varia entre 1/4 para Z = 2 e 1/2 para Z elevado. Claramente um tratamento pertur-

bativo nao sera uma boa aproximacao.

Existe, no entanto uma aproximacao que pode ser usada para tratar este problema: a

aproximacao de campo central. Esta aproximacao consiste em considerar que cada electrao

sente um potencial efectivo central, Vc(Ri), que leva em conta, nao so o potencial atractivo

do nucleo mas tambem o potencial repulsivo dos outros electroes. Uma intuicao classica

revela que o potencial dos outros electroes depende, ele proprio, da localizacao do electrao

que consideramos; para alem disso, se o electrao considerado estiver muito proximo de

outro electrao e a posicao relativa nao for radial, o potencial central sera uma aproximacao

pobre. Contudo, em mecanica quantica, onde os electroes se encontram delocalizados, esta

aproximacao parece ser mais justificada. Assim consideramos o Hamiltoniano do problema

(12.5.1) na forma seguinte:

H = H0 + W ,

onde

H0 =

Z∑

i=1

(

P 2i

2me+ Vc(Ri)

)

, W = − 1

4πǫ0

Z∑

i=1

Ze2

Ri

+1

4πǫ0

i<j

e2

|Ri − Rj |−

Z∑

i=1

Vc(Ri) .

Se o potencial Vc(Ri) for escolhido apropriadamente, W pode ser considerado uma per-

turbacao a H0, que por sua vez corresponde a Z copias de um Hamiltoniano efectivo para

uma partıcula dado por

Hefe =P 2

i

2me+ Vc(R) . (12.5.2)

A aproximacao de campo central consiste em escolher apropriadamente Vc(R), negligenciar

W e resolver Hefe. O ponto crucial e a escolha de Vc(R), que e um problema complexo e

nao sera aqui tratado. A ideia e procurar uma solucao auto-consistente, isto e:

i) A escolha do potencial Vc(R) tem que garantir que W e uma perturbacao;

ii) A funcao de onda dos outros Z − 1 electroes e calculada usando Vc(R); estas funcoes

de onda tem de ser consistentes com o proprio potencial, no sentido que tem de

reproduzir a densidade de carga que produz Vc(R).

Page 446: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

430 Sistemas de partıculas identicas

Se bem que a determinacao exacta de Vc(R) seja um problema complexo, a sua forma

para pequenas e longas distancias pode ser vislumbrada de um modo simples.

• Para r pequeno, o electrao considerado encontra-se dentro da nuvem electronica dos

outros electroes, sentindo por isso, apenas o potencial nuclear; assim, o potencial

sera

Vc(r) ≃ −1

4πǫ0

Ze2

r;

• Para r grande, o electrao considerado encontra-se fora da nuvem electronica dos outros

electroes; efectivamente os Z − 1 electroes anulam Z − 1 cargas positivas do nucleo,

pelo que o potencial sera

Vc(r) ≃ −1

4πǫ0

e2

r.

Para valores intermedios, Vc(r) interpola entre estes dois comportamentos, de um modo

mais ou menos complicado, dependendo do atomo - figura 12.7. Note-se que estes dois

potenciais coincidem para o Hidrogenio.

Figura 12.7: A tracejado representam-se os potenciais correspondentes as aproximacoeslonge e perto do nucleo. A cheio representa-se um potencial que interpola entre os dois(Extraıdo de Cohen et al, ‘Quantum Mechanics ’).

Page 447: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.5 Atomos com varios electroes - A tabela periodica 431

12.5.1 Nıveis de energia

Estas consideracoes qualitativas, permitem-nos inferir, qualitativamente, a estrutura do

espectro de energias do Hamiltoniano (12.5.2):

i) Dado que o potencial efectivo e central, as funcoes de onda devem ser caracterizadas

por um numero quantico principal N e um numero quantico angular ℓ, tal como no

caso do atomo de Hidrogenio. Mas, enquanto que no caso do Hidrogenio, ha uma

degenerescencia acidental (que pode ser ligada a uma simetria escondida do potencial

1/r que alarga o grupo de simetria do problema para SO(4) e nao SO(3)) que permite

aos valores proprios do Hamiltoniano so dependerem de N , aqui esperamos que os

nıveis de energia dependam de N e ℓ, ou seja, EN,ℓ. Tal como no Hidrogenio, o

numero quantico principal e introduzido a custa de um inteiro n0, que surge quando

resolvemos a equacao radial, e por isso

ℓ ≤ N − 1 .

ii) Esperamos que a energia aumente com N , para ℓ fixo:

EN ′,ℓ > EN,ℓ , N ′ > N .

iii) Esperamos que a energia aumente com ℓ, para N fixo:

EN,ℓ′ > EN,ℓ , ℓ′ > ℓ .

De facto, quanto maior o momento angular, para N fixo, esperamos que a funcao de

onda esteja localizada mais longe do nucleo, correspondendo portanto a um estado

menos ligado.

iv) Existe uma degenerescencia de 2(2ℓ + 1) de cada nıvel de energia; o factor (2ℓ + 1) e

devido a invariancia de rotacao (que torna o modulo da funcao de onda e a energia

independentes de mℓ) e o factor de 2 e devido ao spin.

Verifica-se de facto que a hierarquia de energia e muito semelhante para todos os atomos,

embora os valores absolutos dependam de Z. A figura 12.8 representa essa hierarquia.

Contraste-se o comportamento com o do atomo de Hidrogenio - Figura 6.4.

Page 448: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

432 Sistemas de partıculas identicas

Figura 12.8: Hierarquia energetica das varias camadas para um potencial central do tiporepresentado na figura 12.7. Note-se que para N fixo (na figura representado como n), aenergia aumenta com ℓ. Entre parentises encontra-se a degenerescencia de cada nıvel. Entrechavetas encontram-se nıveis muito proximos cuja disposicao relativa depende do atomo. Adireita de cada camada encontram-se os sımbolos quımicos dos atomos cuja ultima camadaocupada (no estado fundamental) e essa (Extraıdo de Cohen et al, ‘Quantum Mechanics ’).

12.5.2 Configuracoes electronicas e princıpio da exclusao de Pauli

Como os electroes sao fermioes, obedecem ao princıpio de exclusao de Pauli. Assim, depois

de resolvermos o Hamiltoniano (12.5.2) construimos, na aproximacao de campo central, as

funcoes de onda de um atomo com numero atomico Z atraves do determinante de Slater,

construido com as funcoes de onda de (12.5.2). O estado fundamental do atomo e assim

obtido quando os Z electroes ocupam as orbitais de menor energia de um modo compatıvel

Page 449: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.5 Atomos com varios electroes - A tabela periodica 433

com o princıpio de exclusao de Pauli.

Cada nıvel energetico EN,ℓ tem degenerescencia 2(2ℓ + 1) e o conjunto de estados in-

dividuais associados a essa mesma energia chama-se uma “shell” ou camada. A lista

das camadas ocupadas com os respectivos numeros de ocupacao chama-se a configuracao

electronica do atomo. O conhecimento desta configuracao electronica permite-nos inter-

pretar as propriedades fısicas e quımicas de um atomo.

A configuracao electronica de um determinado atomo e obtida enchendo as varias ca-

madas, comecando no nıvel de menor energia, 1s, e seguindo a ordem crescente de energia

(i.e. pela ordem apresentada na figura 12.8), ate esgotar os Z electroes:

Z = 1; O atomo de Hidrogenio, no seu estado fundamental, tem o seu unico electrao no

nıvel 1s:

H : 1s ;

Note-se que para o Hidrogenio, a energia nao depende de ℓ, pelo que devemos usar a

figura 6.4 e nao a figura 12.8.

Z = 2; O atomo de Helio, no seu estado fundamental, tem os seus dois electroes no nıvel

1s:

He : 1s2 ;

ou seja os dois electroes tem spins opostos;

Z = 3; O atomo de Lıtio, no seu estado fundamental, tem dois electroes no nıvel 1s e o

terceiro no nıvel 2s:

Li : 1s2, 2s ;

Z = 4; O atomo de Berılio, no seu estado fundamental, tem dois electroes no nıvel 1s e

dois no nıvel 2s:

Be : 1s2, 2s2 ;

Para Z > 4 comeca-se a encher a camada 2p, que pode comportar 6 electroes, correspon-

dendo aos estados fundamentais dos elementos Boro, Carbono, Azoto, Oxigenio, Fluor e

Page 450: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

434 Sistemas de partıculas identicas

Neon. Para Z = 11, 12, enche-se o nıvel 3s, correspondendo aos estados fundamentais do

Sodio e Magnesio, etc. Assim, obtem-se as configuracoes electronicas de todos os atomos,

que, em ultima analise, explicam a tabela periodica de Mandeleev - Figura 12.9.

Figura 12.9: Uma tabela periodica dos elementos.

Note-se que nıveis muito proximos (aqueles dentro de chavetas na figura 12.8), podem

ser enchidos de uma maneira irregular. Por exemplo, na figura 12.8 a camada 4s e repre-

Page 451: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

12.6 Sumario 435

sentada como tendo menos energia que a camada 3d. No entanto, o Cromio (Z = 34) tem

5 electroes na camada 3d e a camada 4s incompleta. Irregularidades semelhantes aparecem

para o Cobre (Z = 29), Niobium (Z = 41), etc.

Apesar das subtilezas, algumas caracterısticas sao bastante intuitivas. Por exemplo a

energia de ionizacao para o Helio e 24.6 eV, ligeiramente menos do que o dobro do valor

do Hidrogenio, porque, apesar de existir uma forca atractiva entre os electroes e o nucleo

que e o dobro daquela que existe no Hidrogenio, existe tambem uma forca repulsiva entre

os dois electroes que diminui a energia de ligacao.

Um comentario final prende-se com o momento angular dos atomos. Pode-se mostrar

que numa camada completa, o momento angular total e zero, tal como o momento angular

orbital e o momento angular de spin. Assim, o momento angular de um atomo e totalmente

devido aos seus electroes exteriores. Por exemplo, o momento angular total do helio, no seu

estado fundamental e zero, tal como para todos os gases raros, enquanto que o momento

angular total do Lıtio e 1/2, devido a um electrao desemparelhado numa orbital s, tal

como para todos os metais alcalinos.

12.6 Sumario

Neste capıtulo estudamos a descricao quantica de sistemas com varias partıculas identicas.

Comecamos por observar que existe uma degenerescencia de funcoes de onda que podem

descrever o sistema depois de termos feito uma medicao do mesmo tao completa quanto

possıvel. Essa “degenerescencia de troca” introduz ambiguidades nas previsoes fısicas. Tais

ambiguidades podem ser levantadas introduzindo o postulado de simetrizacao, que postula

que os estados fısicos podem ter dois tipos, bosoes e fermioes, correspondendo a funcoes

de onda totalmente simetricas ou totalmente anti-simetricas na troca de duas quaisquer

partıculas. As funcoes de onda fısicas sao construidas com os operadores simetrizador

e anti-simetrizador, definidos a custa dos operadores de permutacao, que estudamos em

detalhe. Estudamos ainda as diferencas fısicas entre bosoes e fermioes, a principal das

quais e o princıpio de exclusao de Pauli para os fermioes, inexistente para bosoes. A

Page 452: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

436 Sistemas de partıculas identicas

existencia deste princıpio em sistemas de fermioes e responsavel pela existencia da energia

de Fermi e pela ausencia de um fenomeno do tipo da condensacao de Bose-Einstein. Ele

esta ainda na origem das diferentes estatısticas para bosoes e fermioes (Bose-Einstein e

Fermi-Dirac). Mostramos como os termos directo e de troca tem interferencias diferentes

para fermioes e bosoes. Terminamos fazendo algumas consideracoes sobre a estrutura

dos atomos com varios electroes. Descrevemos qualitativamente a aproximacao de campo

central, que nos permite resolver o problema e apresentamos a estrutura dos nıveis de

energia. Juntamente com o princıpio de exclusao de Pauli, esta estrutura permitiu-nos

descrever a configuracao electronica dos atomos, que, por sua vez, permite compreender a

estrutura da tabela periodica dos elementos - figura 12.9.

Page 453: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

CAPITULO 13

Introducao a Mecanica Quantica Relativista

A teoria quantica que construimos ate agora e uma teoria nao relativista. A equacao

de onda de Schrodinger nao possui invariancia de Lorentz, dado ter sido construida com

base na relacao de dispersao nao relativista (3.0.2). Neste capıtulo vamos introduzir duas

equacoes de onda invariantes por transformacoes de Lorentz, i.e. covariantes, de modo a

obedecer aos princıpios da relatividade restrita: a equacao de Klein-Gordon e a equacao

de Dirac. A covariancia e necessaria para poder aplicar a teoria quantica a partıculas com

energia elevada. Note-se que nao e necessario (felizmente!) fazer a teoria totalmente covari-

ante, i.e. compatıvel com os princıpios da relatividade geral, pois a interaccao gravıtica e

negligenciavel nos fenomenos atomicos de interesse para o estudo aqui efectuado. Veremos

que, das duas equacoes, apenas uma - a de Dirac - descreve partıculas com spin e como tal

e a equacao relativista apropriada para descrever o electrao.

13.1 A teoria de Klein-Gordon

A equacao de Schrodinger (3.0.6) foi construıda no capıtulo 3 a partir da relacao nao

relativista entre a energia e o momento (3.0.2). Como visto na seccao 4.4.2 essa construcao

Page 454: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

438 Introducao a Mecanica Quantica Relativista

pode ser vista como resultando da associacao a energia e ao momento dos operadores:

E → i~∂

∂t, ~p→ −i~∇ . (13.1.1)

Se procuramos uma equacao fundamental da Mecanica Quantica Relativista e natural fazer

esta mesma associacao na relacao relativista entre a energia e o momento, que e:

E2 = m20c

4 + p2c2 ⇔ pµpµ = m2

0c2 , (13.1.2)

onde m0 e a massa em repouso da partıcula, c e a velocidade da luz, p2 = ~p ·~p e o quadrado

do 3-momento e pµ e o 4-vector momento:

pµ =

(

E

c, ~p

)

⇔ pµ =

(

E

c,−~p

)

, (13.1.3)

onde, em conformidade com a maioria da literatura sobre Mecanica Quantica Relativista

e Teoria Quantica de Campo, usamos a metrica de Minkowski com assinatura ‘maioritari-

amente negativa’

ds2 = ηµνdxµdxν = (dx0)2 − δijdxidxj ; (13.1.4)

o 4-vector posicao espaco-temporal e:

xµ = (x0, ~x) = (ct, ~x) . (13.1.5)

Usando (13.1.1) em (13.1.3) obtemos que

pµ =

(

E

c,−~p

)

→ i~

(

1

c

∂t,∇)

= i~∂

∂xµ, (13.1.6)

ou

pµ → i~∂µ , (13.1.7)

que e a associacao de operadores (13.1.1) em notacao manifestamente covariante por trans-

formacoes de Lorentz (i.e relativista). Usando esta associacao em (13.1.2) obtemos a

equacao de Klein-Gordon:1

2Φ(xµ) = −(m0c

~

)2

Φ(xµ) ; (13.1.8)

1Esta equacao foi descoberta independentemente e praticamente simultaneamente pelo fısico suecoOskar Klein (1894 - 1977), Z.f.Phys. 37 (1926) 895, e pelo fısico alemao Walter Gordon (1893-1940),

Page 455: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

13.2 Os problemas com a teoria de Klein-Gordon 439

denotamos o operador D’Alambertiano por 2

2 = ∂µ∂µ =

1

c2∂2

∂t2−∆ , (13.1.9)

e ∆ e o operador Laplaciano. Estes operadores sao a segunda derivada covariante num

espaco Lorentziano e Euclidiano respectivamente. Tem uma expressao covariante, isto e

valida para um sistema de coordenadas arbitrario e num espaco arbitrario, que e dada pela

metrica gµν nesse espaco e nesse sistema de coordenadas:

∆,2 . . . =1√

|g|∂µ

(

gµν√

|g|∂ν . . .)

, (13.1.10)

onde |g| e o modulo do determinante da metrica e ‘. . .’ representa a funcao escalar onde

estes operadores actuam.

13.2 Os problemas com a teoria de Klein-Gordon

A equacao (13.1.8) e de facto uma equacao invariante por transformacoes de Lorentz, ao

contrario da equacao de Schrodinger. Mas dadas as diferencas fısicas entre a Mecanica nao

relativista e a Mecanica relativista colocam-se duas questoes:

i) Sera que podemos ainda interpretar as solucoes da equacao de Klein-Gordon Φ(xµ)

como uma funcao de onda, que descreve uma amplitude de probabilidade, do mesmo

modo que fazemos na Mecanica Quantica nao relativista?

ii) Sera que esta e a equacao relativista correcta para descrever o electrao?

Z.f.Phys. 40 (1926) 117. Contudo, a historia parece ser algo mais interessante (ver S.Weinberg, Quantum

Field Theory, Vol I, Sec. 1.1). Em 1926 Schrodinger publicou quatro artigos sobre a mecanica ondulatoria,em que deriva a ‘sua’ equacao, mostra equivalencia com a mecanica matricial e so mais tarde, no quartoartigo, apresenta a equacao de onda relativista. Contudo, apesar de ter publicado primeiro a equacao quetem o seu nome e e nao relativista, Schrodinger tera derivado inicialmente a equacao relativista (13.1.8).Mas ao calcular o espectro do atomo de hidrogenio, Schrodinger observou que a equacao relativista davao resultado errado para a estrutura fina do atomo de hidrogenio. No limite nao relativista, no entanto,a equacao (de Klein-Gordon) reduzia-se a uma equacao que Schrodinger se apercebeu ser util (a eq. deSchrodinger) e que foi a eq. inicialmente publicada por ele, apesar de saber que era o limite nao relativistade uma eq. incorrecta! Quando, mais tarde, Schrodinger publicou a eq. relativista (Ann. Phys. 81 (1926)109), esta ja havia sido redescoberta por Klein e Gordon.

Page 456: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

440 Introducao a Mecanica Quantica Relativista

13.2.1 Energias negativas

Para respondermos a questao i) consideremos, em primeiro lugar, os estados da equacao de

Klein-Gordon analogos aos estados estacionarios da equacao de Schrodinger. Separando

variaveis:

Φ(xµ) = T (t)φ(~x) , (13.2.1)

a equacao de Klein-Gordon fica:

− 1

c21

T (t)

d2T (t)

dt2+

1

φ∆φ(~x) =

(m0c

~

)2

; (13.2.2)

pelo argumento habitual esta equcao separa-se em duas:

− 1

c21

T (t)

d2T (t)

dt2=ω2

c2,

1

φ∆φ(~x) = −k2 , (13.2.3)

onde introduzimos as constantes ω2 e k2, que obedecem a relacao de dispersao:

ω2 = k2c2 +m2

0c4

~2⇒ ω± = ±

k2c2 +m2

0c4

~2. (13.2.4)

A solucao geral da primeira equacao em (13.2.3) e

T (t) = c+e−iω+t + c−e

−iω−t , (13.2.5)

enquanto que a segunda equacao pode ser escrita como

−∆φ(~x) = k2φ(~x) , (13.2.6)

que e exactamente a forma da equacao de Schrodinger livre e independente do tempo.

A diferenca fundamental e que no tratamento nao relativista o vector de onda de uma

partıcula livre relaciona-se com a frequencia por:

k2 =p2

~2=

2mE

~2=

2mω

~⇔ ω =

~k2

2m. (13.2.7)

e, em particular existe apenas uma frequencia para cada vector de onda. No caso relativista,

k2 relaciona-se com a frequencia pela relacao de dispersao (13.2.4) e, em particular, existem

duas frequencias possıveis para cada k2, correspondendo a um modo de energia positiva e

Page 457: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

13.2 Os problemas com a teoria de Klein-Gordon 441

outro de energia negativa. A existencia de dois modos para cada comprimento de onda e

uma consequencia directa da equacao de Klein-Gordon ser de segunda ordem na derivada

temporal. Assim, escrevemos a solucao como

Φ(xµ) = Φ+(xµ) + Φ−(xµ) , Φ±(xµ) = φ(~x)e−iω±t , (13.2.8)

onde Φ+(xµ) (Φ−(xµ)) correspondem ao modo com energia positiva (negativa), como pode

ser verificado pela accao do operador (13.1.1).

A existencia de modos com energia negativa pode ser problematica, se nao existir um

limite inferior para as energias negativas. Para ilustrar este ponto considermos a equacao

de Klein-Gordon num intervalo. Isto e, requeremos que φ(x) seja nao nulo somente em

0 < x < a, anulando-se, por continuidade nos extremos. Esta situacao e o analogo a

um poco de potencial de profundidade infinita para a eq. de KG. A solucao tem a forma

(13.2.8) com

φ(x) = A sin(knx) , kn =nπ

a, n ∈ N , (13.2.9)

onde A e uma constante de normalizacao. Por (13.2.4),

ω± = ±√

n2π2c2

a2+m2

0c4

~2. (13.2.10)

Logo, a energia nao esta limitada inferiormente; ω− torna-se arbitrariamente grande e neg-

ativo para n grande. Isto implica que somente a teoria livre e consistente. Se introduzirmos

interaccoes que permitam a partıcula saltar de um nıvel energetico para outro, poderemos

extrair uma energia arbitrariamente grande do sistema quando a partıcula de Klein-Gordon

saltar para nıveis de energia arbitrariamente grande e negativa. A existencia de tais nıveis

e uma razao para considerarmos que a equacao de Klein-Gordon nao e adequada para

descrever quanticamente uma partıcula relativista com interaccoes.

13.2.2 Probabilidades negativas

A interpretacao das solucoes da equacao de Schrodinger como amplitudes de probabilidade

foi legitimada por existir um produto escalar. Para sermos concretos consideremos funcoes

Page 458: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

442 Introducao a Mecanica Quantica Relativista

de onda em R3; esse produto escalar toma a forma (4.1.6)

(φ, ψ) =

d3~xφ∗(~x)ψ(~x) . (13.2.11)

Este produto e:

i) positivo (cf. seccao 4.1.1), permitindo como tal definir uma norma positiva,

||ψ||2 =

d3~xψ∗(~x)ψ(~x) , (13.2.12)

associada a uma densidade de probabilidade positiva:

P(~x) = ψ∗(~x)ψ(~x) ≥ 0 , ∀~x ; (13.2.13)

ii) globalmente conservado na evolucao do sistema, dada a hermiticiade do operador

Hamiltoniano (cf. seccao 4.4.4):

d

dt(φ, ψ) = 0 . (13.2.14)

Note que conservacao local de probabilidade e expressa pela equacao de continuidade

(4.4.55)∂

∂tP(~x, t) +∇ · ~J(~x, t) = 0 , (13.2.15)

onde o vector densidade de corrente de probabilidade e (4.4.53).

Para a equacao de Klein-Gordon podemos introduzir um 4-vector densidade de corrente

conservado, definido por

Jµ(xα) = i [Φ∗(xα)∂µΦ(xα)− Φ(xα)∂µΦ∗(xα)] . (13.2.16)

A equacao de Klein-Gordon garante que ele e conservado:

∂µJµ = 0 . (13.2.17)

De facto

∂µJµ = i [∂µΦ∗(xα)∂µΦ(xα) + Φ∗(xα)∂µ∂µΦ(xα)− ∂µΦ(xα)∂µΦ∗(xα)− Φ(xα)∂µ∂µΦ∗(xα)]

= i [Φ∗(xα)2Φ(xα)− Φ(xα)2Φ∗(xα)](13.1.8)

= i[

−Φ∗(xα)(

m0c~

)2Φ(xµ) + Φ(xα)

(

m0c~

)2Φ∗(xµ)

]

= 0 .

(13.2.18)

Page 459: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

13.2 Os problemas com a teoria de Klein-Gordon 443

A equacao (13.2.17) e uma versao covariante da equacao de continuidade (13.2.15). Por

isso usamos a componente temporal do co-vector Jµ para definir um novo produto escalar :

(Φ,Φ) ≡∫

d3~xJ0(xα) = i

d3~x

Φ∗(xα)∂Φ(xα)

∂x0− Φ(xα)

∂Φ∗(xα)

∂x0

, (13.2.19)

ou, generalizando para campos diferentes e usando x0 = ct

(Φ,Ψ) ≡ i

c

d3~x

Φ∗(xα)∂Ψ(xα)

∂t−Ψ(xα)

∂Φ∗(xα)

∂t

. (13.2.20)

Note-se que este produto escalar pressupoe uma foliacao particular do espaco-tempo: foi

escolhida um certa famılia de hiper-superfıcies espaciais onde se integra. Este produto e

i) Conservadod

dt(Φ,Ψ) = 0 ; (13.2.21)

de facto

d

dt(Φ,Ψ) =

i

c

d3~x

Φ∗(xα)∂2Ψ(xα)

∂t2−Ψ(xα)

∂2Φ∗(xα)

∂t2

(13.1.8)= ic

d3~x Φ∗(xα)∆Ψ(xα)−Ψ(xα)∆Φ∗(xα) = 0 ,

(13.2.22)

onde a ultima igualdade e verificada integrando por partes e negligenciando o termo

fronteira (assume-se que o campo se anula no infinito).

ii) Mas nao e positivo:

Fazendo o produto escalar entre modos de energia positiva (energia negativa) (13.2.8)

obtemos

(Φ±,Φ±) =2ω±c

d3~xφ∗(~x)φ(~x) , (13.2.23)

que e claramente positivo (negativo): modos de energia negativa tem norma negativa.

Deste modo o produto escalar conservado nao nos permite pensar numa solucao generica

da equacao de Klein-Gordon como descrevendo uma amplitude de probabilidade, dado que

a densidade de probabilidade correspondente poderia ser negativa. A existencia de tais

normas negativas revela que a interpretacao de Born nao pode ser extrapolada para as

‘funcoes de onda de Klein-Gordon’. A Mecanica Quantica nao relativista nao encontra

paralelo na teoria de Klein-Gordon.

Page 460: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

444 Introducao a Mecanica Quantica Relativista

13.2.3 Inexistencia de spin

No capıtulo 1 vimos que a forca de Lorentz que actua numa partıcula carregada,2

~F = q

(

~E +~v

c× ~B

)

, (13.2.24)

pode ser reproduzida no formalismo Hamiltoniano tomando

H =(~p− q ~A/c)2

2m+ qφ . (13.2.25)

Como discutido nessa altura vimos que a interaccao com o campo magnetico e efectiva-

mente considerada pela substituicao (designada por acoplamento minimal)

~p −→ ~p− q

c~A . (13.2.26)

Notamos aqui que a interaccao com o campo electrico e tambem efectivamente considerada

pela substituicao

E → E − qφ ; (13.2.27)

as duas ultimas equacoes correspondem as componentes espaciais e temporal, respectiva-

mente, da seguinte equacao covariante:

pµ =

(

E

c, ~p

)

→(

E − qφc

, ~p− q

c~A

)

= pµ − q

cAµ , (13.2.28)

onde definimos o 4-vector potencial electromagnetico como

~Aµ = (φ, ~A) ⇔ ~Aµ = (φ,− ~A) . (13.2.29)

As substituicoes (13.2.26) e (13.2.27) transformam a relacao relativista para a energia em

(E − qφ)2 = m20c

4 + (c~p− q ~A)2 ⇔(

pµ − q

cAµ)2

= m20c

2 . (13.2.30)

A equacao de Klein-Gordon minimalmente acoplada a um campo electromagnetico, e

obtida pela associacao (13.1.7) na ultima equacao, obtendo-se

(

i~∂µ −q

cAµ

)(

i~∂µ − q

cAµ)

Φ(xα) = m20c

2Φ(xα) . (13.2.31)

2Neste capıtulo vamos usar unidades electromagneticas diferentes das usadas no capıtulo 1, de modoa que os campos electrico e magnetico fiquem com as mesmas dimensoes; isto corresponde a transformar~B → ~B/c em (1.1.7) e ~A→ ~A/c em (1.3.20).

Page 461: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

13.2 Os problemas com a teoria de Klein-Gordon 445

Potencial de Coulomb

Para testar se o electrao do atomo de Hidrogenio e apropriadamente descrito pela equacao

de Klein-Gordon (13.2.31), vamos resolver esta equacao para o potencial de Coulomb.

Tomamos

Aµ =

(

e

4πǫ0r,~0

)

, q = −e , m0 = me , (13.2.32)

onde e e a carga do electrao (em modulo) e procuramos os estados estacionarios da equacao

de Klein Gordon usando o seguinte ansatz:

Φ(xµ) = F (r)Y mℓ (θ, φ)e−iEt/~ . (13.2.33)

A equacao (13.2.31) fica

[(

i~

c

∂t+

e2

4πǫ0cr

)(

i~

c

∂t+

e2

4πǫ0cr

)

+ ~2∆−m2

ec2

]

F (r)Y mℓ (θ, φ)e−iEt/~ = 0 ,

(13.2.34)

ou, usando

∆ =1

r2

∂r

(

r2 ∂

∂r

)

− L2

r2~2, (13.2.35)

obtemos[

(

E

c+α~

r

)2

+~2

r2

d

dr

(

r2 d

dr

)

− ~2ℓ(ℓ+ 1)

r2−m2

ec2

]

F (r) = 0 , (13.2.36)

onde introduzimos a constante de estrutura fina α, dada por (2.2.4). Escrevendo

F (r) =R(r)

r, (13.2.37)

a equacao fica

−r2 d2

dr2R(r) =

E2 −m2ec

4

~2c2r2 +

2Eα

c~r −

(

ℓ(ℓ+ 1)− α2)

R(r) . (13.2.38)

Notemos que, em primeira aproximacao em v/c,

E2 −m2ec

4 =

(

mec2

1− (v/c)2

)2

−m2ec

4 ≃ m2ev

2c2 = 2meEcc2 , E ≃ mec

2 , (13.2.39)

Page 462: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

446 Introducao a Mecanica Quantica Relativista

onde Ec e a expressao habitual para a energia cinetica nao relativista; negligenciando ainda

o termo em α2 em (13.2.38), esta equacao reduz-se a

−r2 d2

dr2R(r) ≃

2meEc

~2r2 +

mee2

2πǫ0~2r − (ℓ(ℓ+ 1))

R(r) , (13.2.40)

que coincide com a equacao (6.4.3) que descreve o atomo de Hidrogenio (sem spin) na

mecanica quantica nao relativista. Portanto, no limite nao relativista, a equacao de Klein-

Gordon acoplada a um campo electromagnetico dara o espectro correcto para o atomo de

hidrogenio (6.4.18). Contudo este resultado so e valido em primeira ordem em α e vimos

no capıtulo 11 as primeiras correccoes que originam a estrutura fina. Se a equacao de

Klein-Gordon for a equacao correcta para descrever o electrao do atomo de Hidrogenio,

essas correccoes deverao emergir naturalmente da solucao de (13.2.38). E simples obter a

solucao exacta desta equacao usando os resultados do capıtulo 6: tal como para (6.4.3),

transformamos (13.2.38) na equacao de Whittaker (6.4.4) fazendo

z2

4=m2

ec4 −E2

~2c2r2 ⇔ z =

2

~c

m2ec

4 − E2r , (13.2.41)

que e a relacao analoga a (6.4.15) e

k =Eα

m2ec

4 −E2, m =

(

ℓ+1

2

)2

− α2 , (13.2.42)

que sao as relacoes analogas a (6.4.16). Como visto em detalhe na seccao 6.4, para que a

funcao de Whittaker convirja quando z → +∞, tem de existir um inteiro n0 tal que

n0 +m− k + 1/2 = 0 , n0 ∈ N0 . (13.2.43)

Esta condicao fica, com as identificacoes anteriores

n0 +

(

ℓ+1

2

)2

− α2 − Eα√

m2ec

4 −E2+

1

2= 0 , (13.2.44)

que, introduzindo o numero quantico principal N ≡ n0 + ℓ+ 1 e resolvendo para a energia

fica

EN,ℓ = mec2

1 +α2

(

N − ℓ− 12

+√

(

ℓ+ 12

)2 − α2

)2

−1/2

. (13.2.45)

Page 463: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

13.2 Os problemas com a teoria de Klein-Gordon 447

Este e o espectro de energias exacto obtido da equacao de Klein-Gordon acoplada ao

potencial de Coulomb; depende de dois numeros quanticos, N e ℓ que sao os numeros

quanticos principal e de momento angular habituais. Podemos agora verificar que este

espectro nao explica correctamente a estrutura fina do atomo de Hidrogenio. Fazendo uma

expansao de (13.2.45) em potencias de α obtem-se:

EN,ℓ = mec2

[

1− α2

2N2− α4

2N4

(

N

ℓ + 12

− 3

4

)

+O(α6)

]

. (13.2.46)

O primeiro termo e a energia associada a massa em repouso do electrao; o segundo termo e

o espectro de energias obtido no capıtulo 6 para o atomo de Hidrogenio (6.4.18); o terceiro

termo deveria ser o termo de estrutura fina. Para o nıvel N = 2 este termo separa as

orbitais 2s e 2p, que passam a ter energia (ate ordem α4)

E2,0 = −mec2

(

α2

8+

13α4

128

)

, E2,1 = −mec2

(

α2

8+

7α4

384

)

, (13.2.47)

que estao portanto separadas por

E2,1 − E2,0 =8

3

4mec2α4

128. (13.2.48)

Como discutido na seccao 11.1.4 a separacao observada experimentalmente (e correcta-

mente explicada pela teoria perturbativa) e de apenas 4mec2α4/128. Portanto a equacao

de Klein-Gordon nao explica correctamente a estrutura fina. Logo a equacao de Klein-

Gordon nao descreve correctamente a fısica do electrao do atomo de Hidrogenio.

A razao e que a funcao de onda de Klein-Gordon nao contem graus de liberdade de spin,

que e fundamental para obter a estrutura fina correcta. De facto, como visto na seccao

9.4, a descricao (nao relativista) de partıculas de spin 1/2 envolve 2-spinores que contem

duas funcoes de onda espaciais, cada uma descrevendo a amplitude de probabilidade de um

estado de spin. A equacao de Klein-Gordon so possui uma funcao espacial, pelo que nao

possui os graus de liberdade necessarios para descrever o spin e como tal para descrever

apropriadamente o electrao.

Page 464: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

448 Introducao a Mecanica Quantica Relativista

13.3 A teoria de Dirac

Paul Dirac sugeriu, em 1928, uma equacao relativista para o electrao, que naturalmente

introduzia o seu spin, explicando correctamente a sua interaccao com campos electro-

magneticos, e que tinha um produto escalar positivo associado. A intuicao de Dirac foi

que os problemas da equacao de Klein-Gordon, nomeadadamente as probabilidades e en-

ergias negativas, estariam associados a esta equacao ser de segunda ordem nas derivadas

temporais. Dirac tentou, por isso, factorizar a equacao de Klein-Gordon para obter uma

equacao de primeira ordem na derivada temporal e relativista. Dirac tentou factorizar a

expressao da energia relativista (13.1.2) escrevendo-a da seguinte forma:

pµpµ −m2

0c2 = 0 ⇔ (γµpµ +m0c)(γ

νpν −m0c) = 0 , (13.3.1)

o que e verdade se o objecto γµ obedecer a seguinte propriedade:

γ(µγν) ≡ 1

2(γµγν + γνγµ) = ηµν . (13.3.2)

Se as componentes de γµ forem numeros e manifestamente impossıvel resolver estas equacoes.

Por exemplo teriamos de resolver simultaneamente

(γ0)2 = 1 , (γ1)2 = −1 , γ0γ1 = 0 . (13.3.3)

A grande (enormıssima!) intuicao de Dirac foi sugerir que as componentes de γµ poderiam

ser matrizes. Como matrizes genericamente nao comutam, a factorizacao (13.3.1) seria

verdadeira se

γµ, γν = 2ηµν , (13.3.4)

onde definimos o Anti-comutador

A,B ≡ AB +BA . (13.3.5)

As relacoes de anti-comutacao (13.3.4) definem uma algebra denominada algebra de Clifford

e as matrizes ‘gama’ sao designadas por matrizes de Dirac. Usando a associacao (13.1.7),

obtemos uma equacao de primeira ordem igualando a zero qualquer um dos factores em

Page 465: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

13.3 A teoria de Dirac 449

(13.3.1), a actuar numa funcao de onda Ψ(~x), que sera um vector coluna no mesmo espaco

vectorial em que estao definidas as matrizes γµ. Escolhendo o segundo factor em (13.3.1),

que corresponde a energia positiva, obtemos a equacao de Dirac:

i~γµ∂µΨ(xα) = m0cΨ(xα) . (13.3.6)

As matrizes γµ

Para estudar detalhadamente a equacao de Dirac temos de ter uma forma explıcita para

as matrizes γµ, µ = 0, 1, 2, 3. Em primeiro lugar podemos perguntar qual sera a dimensao

destas matrizes. Para cada dimensao espaco-temporal, existe uma dimensao mınima para

a representacao da algebra de Clifford; em quatro dimensoes a representacao minimal da

algebra de Clifford tem dimensao quatro que e a dimensao das matrizes γµ. Ha varias

escolhas diferentes (ditas representacoes) para estas matrizes. Aqui iremos usar a seguinte

representacao:

γ0 =

1 0

0 −1

, γi =

0 σi

−σi 0

, (13.3.7)

onde σi sao as matrizes de Pauli (9.1.36) e 1 e a matriz identidade em duas dimensoes.

A ‘funcao de onda de Dirac’ Ψ(xα), sera, portanto, representada por um vector coluna

quatro dimensional que e um spinor de quatro componentes ou 4-spinor :

Ψ(xα) =

[Ψ] (xα)

[χ] (xα)

=

Ψ1(xα)

Ψ2(xα)

χ1(xα)

χ2(xα)

, (13.3.8)

onde [Ψ]a(xα), a = 1, 2 representam dois 2-spinores, na notacao da seccao (9.4.1). Se no

caso da equacao de Klein-Gordon tinhamos graus de liberdade insuficientes para descrever

uma partıcula com spin 1/2, aparentemente, na equacao de Dirac temos demasiados graus

de liberdade para tal!...

Exercıcio: Verifique que as matrizes de Dirac (13.3.7) obedecem a algebra de Clifford

(13.3.4).

Page 466: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

450 Introducao a Mecanica Quantica Relativista

13.3.1 Os sucessos da equacao de Dirac

Vamos agora enumerar, sem demonstrar, os sucessos da teoria de Dirac.

i) E possıvel definir um produto escalar, que e invariante por transformacoes de Lorentz,

conservado e definido positivo; a norma de uma funcao de onda de Dirac e

(Ψ,Ψ) =

d3~xΨ†Ψ =

d3~x(

|Ψ1(xα)|2 + |Ψ2(x

α)|2 + |χ1(xα)|2 + |χ2(x

α)|2)

,

(13.3.9)

que generaliza para 4-spinores a forma da norma para 2-spinors (9.4.20).

ii) No limite nao relativista, a teoria de Dirac reduz-se a teoria de Pauli, com o factor

giromagnetico correcto para o electrao, g = 2. Para obter este resultado e necessario

acoplar a equacao de Dirac a um campo electromagnetico, o que e feito pelo acopla-

mento minimal (13.2.28). Obetem-se a equacao de Dirac na presenca de um campo

electromagnetico descrito pelo 4-potencial Aµ:

i~γµ

(

∂µ +iq

c~Aµ

)

Ψ(xα) = m0cΨ(xα) . (13.3.10)

Especializando para o electrao q = −e. Uma manipulacao desta equacao com, a

aproximacao

p0c ≃ m0c2 +H , (13.3.11)

onde H ≪ m0c2 leva ao resultado, considerando apenas campo magnetico

HΨ(xα) ≃

(~p+ e ~A/c)2

2m0

+e~

2m0c~σ · ~B

, (13.3.12)

que e o Hamiltoniano de Pauli (9.3.4) (com a diferente convencao para os campos elec-

tromagneticos e q = −e) na ausencia de campo electrico, com a razao giromagnetica

correcta.

iii) Na presenca de um campo de Coulomb, a solucao exacta para o espectro de energias

Page 467: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

13.3 A teoria de Dirac 451

da equacao de Dirac e

EN,J = mec2

1 +α2

(

N − J − 12

+√

(

J + 12

)2 − α2

)2

−1/2

. (13.3.13)

Esta e a formula (11.1.104) que, como discutido na seccao (11.1.4) da os nıveis correc-

tos para a estrutura fina do atomo de Hidrogenio. O numero quantico J e o numero

quantico de momento angular total (que tem de ser apropriadamente definido). Note-

se que e a mesma formula que (13.2.45) substituindo J ↔ ℓ o que demonstra que a

incapacidade da equacao de Klein-Gordon descrever a estrutura fina resulta de nao

levar em conta o spin.

A equacao de Dirac possui, tal como a equacao de Klein-Gordon, estados de energia

negativa, o que, como discutido anteriormente pode originar problemas na teoria interac-

tiva. No entanto, como a equacao de Dirac descreve fermioes, Dirac concebeu uma teoria

(do ‘mar de electroes’) em que todos estes estados de energia negativa estariam preenchi-

dos (possıveis vagas eram interpretadas como anti-partıculas, isto e, positroes). Assim, o

problema de os usar para extrair infinita energia do sistema era resolvido.

No entanto esta interpretacao, bem como a interpretacao da teoria de Dirac como

descrevendo a Mecanica Quantica Relativista de uma partıcula de spin 1/2, foi rapidamente

ultrapassada. O ponto fundamental e que a Mecanica Quantica Relativista nao deve ser

vista como a descricao de uma partıcula. A possibilidade relativista de conversao de

massa em energia torna a Mecanica Quantica Relativista necessariamente uma teoria de

muitas partıculas. Esta e a perspectiva da Teoria Quantica de Campo, onde os campos sao

promovidos a operadores (deixando de ser vistos como funcoes de onda) sujeitos a regras

de comutacao ou anti-comutacao. Este procedimento de promover os campos a operadores

com regras de comutacao/anti-comutacao e denominado, por vezes, segunda quantificacao

(pois a primeira e a quantificacao das observaveis que discutimos no capıtulo 4). Em teoria

Quantica de Campo, quer a equacao de Dirac quer a equacao de Klein-Gordon encontram

Page 468: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

452 Introducao a Mecanica Quantica Relativista

naturalmente o seu lugar, descrevendo a dinamica de sistemas de partıculas de spin 1/2 e

0 respectivamente.

13.4 Sumario

Neste capıtulo fizemos uma breve introducao ao casamento das ideias da Relatividade

Restrita com as ideias da Mecanica Quantica. Uma primeira tentativa deste matrimonio

resulta na equacao de Klein-Gordon, que tem varios problemas para ser compatibilizada

quer com as ideias da Mecanica Quantica nao Relativista, quer com a fısica do electrao.

Estes problemas podem ser resolvidos pela equacao de Dirac. No entanto, a tentativa de

extrapolar as ideias da Mecanica Quantica nao Relativista para uma Mecanica Quantica

Relativista acaba por ser naturalmente ultrapassada por uma descricao que leva em conta

muitas partıculas e nao apenas uma - a Teoria Quantica de Campo.

Page 469: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

Parte III

Topicos Avancados e Modernos

Page 470: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

CAPITULO 14

Formulacao de integrais de caminho da Mecanica

Quantica

Page 471: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

CAPITULO 15

Mecanica Quantica Super-simetrica

Page 472: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro
Page 473: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

CAPITULO 16

Introducao a teoria da Informacao Quantica

Page 474: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

Parte IV

Apendices

Page 475: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

APENDICE A

Geometria da Transformada de Legendre

A transicao do Lagrangeano para o Hamiltoniano e um exemplo de uma transformada de

Legendre, de que vamos agora fornecer uma interpretacao geometrica. Por simplicidade

vamos considerar apenas o caso com uma unica variavel dinamica.

Consideremos uma funcao diferenciavel L(v), de um variavel v. O grafico de L(v) e

uma curva contınua de todos os pontos (v,L(v)) como a representada na figura A.1. A

derivada da funcao em cada ponto e denotada

p(v) ≡ dLdv

. (A.1)

A transformada de Legendre e uma maneira de reproduzir a curva inteiramente em termos

de p, sem referencia a v; p torna-se a variavel independente cujos valores sao usados para

construir a curva. Mas tal como os valores de v sem os valores de L sao insuficientes para

construir a curva, somente os valores de p sao tambem insuficientes, pelo que necessitamos

de uma nova funcao H(p).

A funcao H(p) e construida da seguinte maneira. Consideremos a tangente a curva

L(v) no ponto v = v0. O declive da tangente e

p(v0) = p0 , (A.2)

Page 476: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

460 Geometria da Transformada de Legendre

L(v)

v0

v

y0 = L(v0)− p0v0

Figura A.1: A curva que representa um ‘Lagrangeano’ L(v) como funcao da velocidade v.A tangente a curva em v0 tem declive p0 e ordenada na origem y0 ≡ L(v0)− p0v0.

e a ordenada na origem da tangente e

y0 = L(v0)− p0v0 . (A.3)

Para um ponto arbitrario, (v,L(v)), a tangente a curva tem declive p = dL/dv e tem

ordenada na origem

y(v, p) = L(v)− pv . (A.4)

Vamos assumir que (A.1) e invertivel. Voltaremos a este ponto mais tarde. Podemos entao

obter v = v(p) de um modo unico. Definimos a funcao H(p) como

H(p) = −y(v(p), p) = pv(p)−L(v(p)) . (A.5)

O conhecimento de p e H(p) permite-nos reconstruir a curva da figura A.1. De facto, cada

combincao (p,H(p)) corresponde a uma linha de declive p e ordenada na origem H(p) no

plano (v,L). Geometricamente, a curva L(v) e o envelope destas linhas, a curva contınua

tangente a todas elas. Esta construcao e esquematizada na figura A.2. Analiticamente, a

partir do conhecimento de H(p) determinamos v = v(p)

dH(p)

dp= v + p

dv(p)

dp− dL(v(p))

dp= v(p) . (A.6)

Assumindo a invertibilidade de v = v(p) obtemos p = p(v) e como tal de (A.5) obtemos

L(v) = H(p(v))− p(v)v . (A.7)

Page 477: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

461

L(v)

v

Figura A.2: Conhecendo o declive das tangentes, p, e as suas ordenadas na origem, H(p),e possivel reconstruir a forma da curva L(v).

A semelhanca desta equacao com (A.5) e sugestiva. Tal como (p,H(p)) e a representacao

da curva L(v) no plano (v,L) pelo (declive, (menos) ordenada na origem) das tangentes

a essa curva, tambem (v,L(v)) e a representacao da curva H(p) no plano (p,H) pelas

tangentes a essa curva.

Uma nota sobre a invertibilidade de p(v). Invertibilidade significa que p(v) e injectiva.

Logo p(v) nao tem maximos ou mınimos. Dado que p(v) = dL/dv, concluimos que L(v)

nao pode ter pontos de inflexao. Por um raciocınio semelhante concluimos que tambem

H(p) nao pode ter pontos de inflexao. Em mais do que uma dimensao, invertibilidade

significa que as matrizes Hessianas

∂2L∂vi∂vj

,∂2H

∂pi∂pj, (A.8)

sao nao singulares.

Page 478: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro
Page 479: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

APENDICE B

Princıpio do tempo mınimo de Fermat

Neste apendice derivamos as leis da reflexao e refraccao ondulatorias recorrendo ao princıpio

do tempo mınimo de Fermat.

B.1 Reflexao

Consideremos dois pontos no plano xy, como na figura B.1. Consideremos um raio de luz

que une os dois pontos atraves de uma linha recta que e reflectida no eixo do x. Varias

∆ xx

y

Figura B.1: Dois pontos que distam de ∆x ao longo do eixo do x podem ser unidos poruma infinidade de trajectorias que reflectem no eixo do x. De todas essas trajectorias, aque minimiza a distancia entre os dois pontos obedece a lei da reflexao.

Page 480: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

464 Princıpio do tempo mınimo de Fermat

θ1 θ2l2

l1

∆ xx

y

Figura B.2: A trajectoria real vai obedecer a θ1 = θ2.

trajectorias possiveis estao desenhadas na figura B.1. O princıpio do tempo mınimo de

Fermat diz-nos que a trajectoria real e a que minimiza o tempo que o raio de luz demora

de um ponto ate ao outro. Como a velocidade e constante, a trajectoria real sera aquela

que minimiza a distancia.

Considermos uma trajectoria possıvel que faz angulos θ1 e θ2 com a perpendicular a

superfıcie de reflexao, conforme esquematizado na figura B.2. A distancia total percorrida

e

∆s(θ1, θ2) =l1

cos θ1+

l2cos θ2

, (B.1)

que e a quantidade que pretendemos minimizar, como funcao de θ1 e θ2, mas onde l1 e l2

sao fixos. Ou seja pertendemos calcular θ1 e θ2 de modo que

0 = d(∆s(θ1, θ2)) =sin θ1l1cos2 θ1

dθ1 +sin θ2l2cos2 θ2

dθ2 . (B.2)

A extremizacao esta sujeita a condicao de que a distancia total segundo x, ∆x e constante

∆x =sin θ1l1cos θ1

+sin θ2l2cos θ2

= constante . (B.3)

Diferenciando esta equacao obtemos

l1cos2 θ1

dθ1 +l2

cos2 θ2dθ2 = 0 , (B.4)

que, substituindo em (B.2), resulta em

sin θ1l2cos2 θ2

dθ2 =sin θ2l2cos2 θ2

dθ2 ⇔ sin θ1 = sin θ2 , (B.5)

Page 481: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

B.2 Refraccao 465

ou, como 0 < θ1, θ2 < π/2,

θ1 = θ2 , (B.6)

que e a lei da reflexao.

B.2 Refraccao

Consideramos agora dois pontos em dois meios diferentes. No meio 1, a luz move-se a

velocidade v1; no meio 2 a luz move-se a velocidade v2. Na figura B.3 mostra-se um conjunto

de trajectorias, rectilıneas em cada meio, que unem os dois pontos. A minimizacao do

tempo de viagem de um raio de luz nao corresponde neste caso a minimizacao da distancia

devido a diferente velocidade nos dois meios. A minimizacao do tempo ira corresponder a

um compromisso entre viajar o maximo de distancia possıvel no meio onde a velocidade e

maior, sem, contudo, aumentar demasiado a distancia a percorrer.

y

x

MEIO 1

MEIO 2

Figura B.3: Varias trajectorias possıveis para um raio de luz unindo dois pontos em meiosdiferentes.

Tomando uma trajectoria como aquela exibida na figura B.4, pertendemos extremizar

∆t, dado por

∆t(θ1, θ2) =∆x

v=

l1v1 cos θ1

+l2

v2 cos θ2, (B.1)

ou seja determinar θ1, θ2 de modo a que

0 = d(∆t(θ1, θ2)) =l1 sin θ1v1 cos2 θ1

dθ1 +l2 sin θ2v2 cos2 θ2

dθ2 . (B.2)

Page 482: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

466 Princıpio do tempo mınimo de Fermat

θ1

θ2

l2

l1

∆ x

y

x

MEIO 1

MEIO 2

Figura B.4: A trajectoria real vai obedecer a lei de Snell.

A extremizacao e sujeita a condicao de que a distancia segundo x, ∆x e constante,

∆x =l1 sin θ1cos θ1

+l2 sin θ2cos θ2

= constante . (B.3)

Diferenciando a ultima equacao obtemos

l1cos2 θ1

dθ1 +l2

cos2 θ2dθ2 = 0 , (B.4)

que substituindo em (B.2) resulta em

sin θ1sin θ2

=v1

v2

. (B.5)

Obtemos assim a Lei de Snell.

Page 483: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

APENDICE C

Analise de Fourier

A analise de Fourier fornece a expansao de uma funcao f(x) em termos de senos e cossenos.

Para este proposito distinguem-se dois tipos de funcoes.

C.1 Series de Fourier

Se a funcao e periodica com perıodo L ∈ R, isto e

f(x) = f(x+ L) , (C.1)

entao as funcoes sinusoidais na expansao tem de ter perıodo

kn ≡2πn

L, n ∈ N ⇒ sin

(

2πnx

L

)

= sin

(

2πn(x+ L)

L

)

, (C.2)

e analogamente para o cosseno. Funcoes sinusoidais com outros perıodos nao respeitam

a periodicidade da funcao a expandir. Neste caso, a expansao de Fourier e uma Serie de

Fourier

f(x) =a0

2+

+∞∑

n=1

[an cos(knx) + bn sin(knx)] , (C.3)

e toda a informacao acerca da funcao fica contida nos coeficientes

a0, an, bn , (C.4)

Page 484: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

468 Analise de Fourier

a que se chama o espectro de Fourier de f(x). Uma vantagem das series de Fourier

relativamente a series de Taylor e que a funcao a expandir nao necessita de ser diferenciavel

em todos os pontos; de facto pode ate ser descontinua num numero finito de pontos do

intervalo [x0, x0 + L] para qualquer x0. A condicao essencial para a existencia da serie

de Fourier e integrabilidade.1 O teorema de Fourier diz-nos como calcular os coeficientes

(C.4):

Teorema: (Fourier) Seja f(x) : R −→ R com as seguintes propriedades

i) f(x) e periodica com perıodo L;

ii) f(x) e integravel em [x0, x0 + L] (ou e uma funcao de quadrado integravel conforme

(C.20));

entao, a serie de Fourier de f(x), (C.3) onde

an =2

L

∫ x0+L

x0

f(x) cos(knx)dx , bn =2

L

∫ x0+L

x0

f(x) sin(knx)dx , (C.5)

converge para qualquer x ∈ R. Se num dado ponto, y, f(x) e contınua, a serie converge

para f(y); se e descontinua converge para a media dos limites a esquerda e a direita de

f(x).

Nao vamos aqui demonstrar o teorema de Fourier, mas vamos mostrar a compatibilidade

de (C.5) com (C.3), introduzindo (C.3) nas expressoes (C.5):

• a0:

a0 =2

L

∫ x0+L

x0

(

a0

2+

+∞∑

n=1

[an cos(knx) + bn sin(knx)]

)

dx , (C.6)

que e claramente verificada pois, para n ∈ N

∫ x0+L

x0

sin(knx)dx =

∫ x0+L

x0

cos(knx)dx = 0 . (C.7)

1Rigorosamente o teorema de Fourier e mais geral do que o exposto aqui; contudo em mecanica quanticaa propriedade essencial e integrabilidade.

Page 485: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

C.1 Series de Fourier 469

• an:

an =2

L

∫ x0+L

x0

cos(knx)

(

a0

2+

+∞∑

m=1

[am cos(kmx) + bm sin(kmx)]

)

dx

=2

L

+∞∑

m=1

∫ x0+L

x0

cos(knx) (am cos(kmx) + bm sin(kmx)) dx

. (C.8)

Assim, temos de lidar com

∫ x0+L

x0

cos(knx) cos(kmx)dx =L

2δn,m , (C.9)

onde introduzimos o delta de Kronecker, definido como

δn,m ≡

0 se n 6= m

1 se n = m, (C.10)

e∫ x0+L

x0

cos(knx) sin(kmx)dx = 0 , (C.11)

e em baixo iremos tambem necessitar de

∫ x0+L

x0

sin(knx) sin(kmx)dx =L

2δn,m . (C.12)

E agora trivial verificar (C.8).

• bn:

bn =2

L

∫ x0+L

x0

sin(knx)

(

a0

2+

+∞∑

m=1

[am cos(kmx) + bm sin(kmx)]

)

dx

=2

L

+∞∑

m=1

∫ x0+L

x0

sin(knx) (am cos(kmx) + bm sin(kmx)) dx

, (C.13)

que e facilmente verificada usando (C.11) e (C.12).

C.1.1 Representacao em termos de ondas planas

Uma outra maneira de exprimir a serie de Fourier e usando exponenciais imaginarias em

vez de senos e cossenos. A formula de Euler

eiθ = cos θ + i sin θ , (C.14)

Page 486: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

470 Analise de Fourier

permite-nos escrever as funcoes sinusoidais como

cos(knx) =1

2

(

eiknx + e−iknx)

, sin(knx) =1

2i

(

eiknx − e−iknx)

. (C.15)

Podemos entao reexpressar (C.3) como

f(x) =+∞∑

n=−∞cne

iknx , (C.16)

onde o espectro de Fourier e agora descrito pelos coeficientes cn, que em geral sao com-

plexos, e estao relacionados com a0, an, bn do seguinte modo

cn =

an − ibn2

para n ∈ N

a0

2para n = 0

a−n + ib−n

2para − n ∈ N

. (C.17)

Nesta representacao da serie de Fourier, cada coeficiente no espectro de Fourier, cn, aparece

associado a uma onda plana eiknx. Note-se, para uso futuro, que o equivalente as relacoes

(C.9), (C.11), (C.12), e, na linguagem de ondas planas, simplesmente

∫ x0+L

x0

dxei(kn−km) = Lδn,m , n,m ∈ Z . (C.18)

Note-se ainda que o espectro de Fourier e calculado nesta linguagem pela relacao

cn =1

L

∫ x0+L

x0

f(x)e−iknxdx . (C.19)

C.1.2 O Espaco de Hilbert e a Igualdade de Bessel-Parseval

Em Mecanica Quantica f(x) ira geralmente representar uma funcao de onda, denotada por

Ψ(x), que e em geral complexa; para ser normalizavel no intervalo [a, b] a funcao de onda

tem de obedecer a

‖Ψ‖2 ≡∫ b

a

|Ψ(x)|2dx <∞ , (C.20)

o que equivale a dizer que e uma funcao de quadrado somavel. O conjunto de todas

as funcoes de quadrado somavel em [a, b] formam o Espaco de Hilbert L2([a, b]), que e

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C.2 Integrais de Fourier e Transformadas de Fourier 471

por isso o ‘habitat’ natural das funcoes de onda fısicas que encontramos em Mecanica

Quantica. E um resultado de grande importancia para a aplicacao de series de Fourier em

Mecanica Quantica que todas as funcoes de quadrado integravel num intervalo admitem

uma expansao em serie de Fourier nesse intervalo.

A norma (ao quadrado) ‖Ψ‖2 pode ser calculada directamente do espectro de Fourier,

uma vez que este contem toda a informacao sobre a funcao. O modo como o fazer e descrito

pela Igualdade de Bessel-Parseval :

1

L

∫ x0+L

x0

dx|f(x)|2 =

+∞∑

n=−∞|cn|2 . (C.21)

A demonstracao e trivial usando (C.18). Por outro lado, usando (C.17) podemos reescrever

a igualdade de Bessel-Parseval em termos de a0, an, bn

1

L

∫ x0+L

x0

dx|f(x)|2 =|a0|2

4+

+∞∑

n=1

[

|an|2 + |bn|2]

. (C.22)

C.2 Integrais de Fourier e Transformadas de Fourier

Se a funcao f(x) nao e periodica, funcoes sinusoidais com qualquer perıodo podem ser

usadas na expansao de Fourier que passa a ser uma soma sobre todos os valores de k ∈ R

e como tal um integral de Fourier em vez de uma serie discreta. Assim, esperamos que

(C.16) seja substituido por uma expressao do tipo

f(x) =

∫ +∞

−∞c(k)eikxdx . (C.23)

De facto, tirando o limite L → ∞ das expressoes que temos para a serie de Fourier

podemos mostrar que assim e. Denotemos a funcao com perıodo L por fL(x). Notando

que kn+1 − kn = 2π/L, escolhendo x0 = −L/2 e introduzindo (C.19) em (C.16) obtemos

fL(x) =1

∞∑

n=−∞(kn+1 − kn)eiknx

∫ L/2

−L/2

fL(y)e−iknydy , (C.24)

que tem a forma de uma soma de Riemann. O limite L → ∞ equivale a kn → kn+1 e

fL(x) → f(x). Neste limite, o somatorio e promovido a um integral e kn passa a ser uma

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472 Analise de Fourier

variavel contınua, pelo que obtemos

f(x) =1

∫ +∞

−∞eikx

(∫ +∞

−∞f(y)e−ikydy

)

dk , (C.25)

ou

f(x) =1√2π

∫ +∞

−∞f(k)eikxdk , (C.26)

onde definimos

f(k) ≡ 1√2π

∫ +∞

−∞f(x)e−ikxdx . (C.27)

Claramente f(k) desempenha o papel de espectro de Fourier, que passa a ser uma variavel

contınua; ou seja, uma funcao no plano complexo que contem toda a informacao sobre f(x).

A este espectro contınuo de Fourier chama-se transformada de Fourier. Assim, existe uma

dualidade entre as duas funcoes

f(x)←→ f(k) , (C.28)

isto e sao duas descricoes diferentes do mesmo objecto.

A existencia de um integral de Fourier para uma funcao e garantida se a funcao e a sua

transformada de Fourier forem integraveis:

Teorema da Inversao de Fourier: Se f(x) for integravel e f(k) definida em (C.27)

tambem o for, entao a representacao de f(x) como um integral de Fourier (C.26) existe.

C.2.1 A formula de Parseval-Plancherel

Tal como para as series de Fourier e de esperar que do espectro de Fourier, que neste caso

e a transformada de Fourier, se possa deduzir a norma da funcao. A formula analoga a

formula de Bessel-Parseval,(C.21), e chamada formula de Parseval-Plancherel (por vezes

tambem denominada teorema de Fourier-Plancherel):∫ +∞

−∞|f(x)|2dx =

∫ +∞

−∞|f(k)|2dk . (C.29)

Exemplo A1: Consideremos a funcao

f(x) =

1 se |x| < a

0 se |x| > a, a > 0 (C.30)

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C.2 Integrais de Fourier e Transformadas de Fourier 473

cuja transformada de Fourier e

f(k) ≡ 1√2π

∫ +∞

−∞f(x)e−ikxdx =

1√2π

∫ a

−a

e−ikxdx =

2

π

sin ka

k. (C.31)

Para verificarmos a formula de Parseval-Plancherel temos de calcular tanto a norma de

f(x) como a norma de f(k) no espaco de Fourier. A primeira e elementar∫ +∞

−∞|f(x)|2dx = 2a . (C.32)

A segunda fica∫ +∞

−∞|f(k)|2dk =

2

π

∫ +∞

−∞

sin2(ka)

k2dk . (C.33)

A funcao sin2x/x2 (tal como sinx/x) nao tem uma primitiva que se possa escrever como

um numero finito de funcoes elementares. Mas utilizando o teorema dos resıduos em analise

complexa mostra-se que∫ +∞

−∞

sin2 x

x2dx = π , (C.34)

resultado com o qual se prova que (C.33) e igual a (C.32). De outro ponto de vista, usando

o teorema de Parseval-Plancherel fornece um metodo alternativo aos metodos complexos

de calcular o integral (C.34).

Exemplo A2: Consideremos a funcao Gaussiana

f(x) = e−x2/2a2

, (C.35)

cuja transformada de Fourier e

f(k) ≡ 1√2π

∫ +∞

−∞f(x)e−ikxdx =

e−k2a2/2

√2π

∫ +∞

−∞e−(x+ika2)2/2a2

dx , (C.36)

ou, usando o resultado basico em integracao de Gaussianas∫ +∞

−∞e−αx2

dx =

π

α, α > 0 , (C.37)

obtemos

f(k) = ae−k2a2/2 . (C.38)

O resultado a reter e que a transformada de Fourier de uma Gaussiana e ainda uma

Gaussiana. Mas note que tanto o coeficiente como o expoente se alteram. Usando (C.37)

e muito facil verificar a formula de Parseval-Plancherel neste caso.

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474 Analise de Fourier

C.2.2 Quantidades estatısticas e a relacao de incerteza

Em estatıstica define-se a funcao de distribuicao de probabilidade ou densidade de proba-

bilidade, P(x), de uma variavel aleatoria, x, definida no intervalo [a, b], como sendo uma

distribuicao que obedece a

P(x) > 0 ,

∫ b

a

P(x)dx = 1 . (C.39)

Definem-se tambem

• Valor esperado de x, ou valor medio de x

〈x〉 ≡∫ b

a

xP(x)dx ; (C.40)

• Analogamente, para uma funcao de x, h(x), define-se o valor esperado de h(x)

〈h(x)〉 ≡∫ b

a

h(x)P(x)dx ; (C.41)

• A variancia ou dispersao e definida como

σx ≡ 〈(x− 〈x〉)2〉 =

∫ b

a

(x− 〈x〉)2P(x)dx

=

∫ b

a

(x2 − 2x〈x〉+ 〈x〉2)P(x)dx = 〈x2〉 − 〈x〉2; (C.42)

• O desvio padrao de x e

∆x =√σx . (C.43)

Como a mecanica quantica fornece uma descricao probabilıstica dos fenomenos fısicos e

natural usar esta terminologia estatıstica. Mais concretamente, a entidade fundamental em

mecanica quantica, a funcao de onda Ψ(x) - uma solucao da equacao de Schrodinger-, e uma

amplitude de probabilidade, em geral uma funcao complexa. A densidade de probabilidade

e

P(x) =Ψ(x)Ψ(x)∗

‖Ψ‖2 , (C.44)

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C.2 Integrais de Fourier e Transformadas de Fourier 475

onde ”∗”denota conjugacao complexa, que claramente obedece a (C.39). O que a teoria

quantica produz para um dado sistema fısico sao os ‘valores esperados’ das variaveis fısicas

em jogo.

O famoso prıncipio da incerteza de Heisenberg, um dos pilares da mecanica quantica,

nao e mais do que um exemplo da seguinte propriedade das transformadas de Fourier:

Relacao de incerteza: Seja x uma variavel aleatoria definida em R, cuja distribuicao

e descrita por uma ‘funcao de onda’ Ψ(x) e pela densidade de probabilidade associada P(x).

Seja ∆x o desvio padrao de x associado a esta distribuicao. Por outro lado seja Ψ(k) a

transformada de Fourier de Ψ(x). Associemos a esta funcao de onda no espaco de Fourier

uma densidade de probabilidade Pk(k). Seja ∆k o desvio padrao de k associado a esta

distribuicao. E uma propriedade das transformadas de Fourier (em uma dimensao) que

∆x∆k ≥ 1

2. (C.45)

O significado desta relacao de incerteza e claro quando comparamos a forma de uma

Gaussiana (C.35) com a sua transformada de Fourier (C.38). Uma funcao de onda Gaus-

siana normalizada pode-se escrever

Ψ(x) =e−x2/4(∆x)2

√√2π∆x

, (C.46)

onde ∆x e o desvio padrao de x associado a respectiva densidade de probabilidade |Ψ(x)|2.De (C.35) e (C.38) lemos que

∆x = a/√

2 , ∆k = 1/√

2a , ⇒ ∆x∆k =1

2. (C.47)

Variando ‘a’ podemos fazer ∆x ou ∆k tao pequeno quanto queiramos; isto e, podemos

localizar a variavel aleatoria perto do valor medio com uma probabilidade tao proxima da

unidade quanto desejado. Mas ao localizarmos x, por exemplo, aumentamos necessaria-

mente a dispersao em k. Como discutido no capıtulo 2, fenomenos microscopicos exibem

caracterısticas quer corpusculares quer ondulatorias, mas nao ambas simultaneamente - du-

alidade onda partıcula e complementaridade. Esta realidade e incorporado no formalismo

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476 Analise de Fourier

da mecanica quantica descrevendo variaveis canonicas conjugadas - posicao e momento por

exemplo - como transformadas de Fourier uma da outra. Deste modo a incerteza associada

a complementaridade e descrita pela existencia de um limite inferior do produto de desvios

padrao de transformadas de Fourier.

Page 493: Notas Mecanica Quantica - Carlos Herdeiro

Bibliografia

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