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RDS V (2013), 4, 779-799 Notas breves sobre a socialidade e a parassocialidade * MESTRE DIOGO COSTA GONçALVES Sumário: 1. Estrutura da parassocialidade. 2. Essentialia na parassocialidade? 3. Polifun- cionalidade dos acordos parassociais. 4. Eficácia parassocial: o princípio da inimpugnabilidade. 5. Cont.: os acordos omnilaterais. 6. Sinopse: a superação da Trennungsthese. 7. Parasso- cialidade e arbitrabilidade societária. I – Não sem resistência 1 , o CSC veio admitir entre nós a figura dos acordos parassociais, definindo‑os como os “celebrados entre todos ou entre alguns sócios pelos quais estes, nessa qualidade, se obrigam a uma conduta não proibida por lei” (artigo 17.º/1). O preceito colhe a influência da AktG e do regime preconizado no artigo 35.º da 5.ª Directriz (na versão da Proposta 1983) 2 . Procede contudo a um importante desvio face ao modelo alemão, no que diz respeito à eficácia de tais acordos. II – A admissibilidade de acordos parassociais permite a convivência de dois tipos de situações jurídicas distintas atinentes à qualidade de sócio: (i) as situações de socialidade, com origem na lei e no contrato de sociedade; e (ii) as situações de parassocialidade, com origem num outro tipo contratual: os acordos parassociais 3 . * O texto que ora se publica corresponde, no essencial, à lição que será ministrada no III Curso de Pós-Graduação em Direito Empresarial, organizado pelo IDT, em 09‑Jan.‑2014. Tem, portanto, um fim eminentemente didático, tendo‑se optado por apenas fazer referência à notas bibliográficas essenciais. Agradece‑se à Sr.ª Prof.ª Doutora Rosário Palma Ramalho o amável convite para leccionar neste Curso. 1 Com referências, António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I (Parte Geral ), 3.ª ed., 2011, 700 ss. Sobre a recepção dos acordos parassociais em Portugal, veja‑se ainda Adelaide Menezes Leitão, “Acordos parassociais e corporate governance”, Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, II, 2012, 575‑589 (584 ss.). 2 António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I (Parte Geral ), 3.ª ed., 2011, 702. 3 Sem prejuízo da aplicação de disposições legais do CSC e, fundamentalmente, do CVM e do RGICSF, em relação às quais os acordos parassociais surgem como elemento da previsão normativa.

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Notas breves sobre a socialidade e a parassocialidade*

MestRe dioGo costa GonçaLves

sumário: 1. Estrutura da parassocialidade. 2. essentialia na parassocialidade? 3. Polifun-cionalidade dos acordos parassociais. 4. Eficácia parassocial: o princípio da inimpugnabilidade. 5. Cont.: os acordos omnilaterais. 6. Sinopse: a superação da trennungsthese. 7. Parasso-cialidade e arbitrabilidade societária.

i – não sem resistência1, o csc veio admitir entre nós a figura dos acordos parassociais, definindo ‑os como os “celebrados entre todos ou entre alguns sócios pelos quais estes, nessa qualidade, se obrigam a uma conduta não proibida por lei” (artigo 17.º/1).

o preceito colhe a influência da AktG e do regime preconizado no artigo 35.º da 5.ª directriz (na versão da Proposta 1983)2. Procede contudo a um importante desvio face ao modelo alemão, no que diz respeito à eficácia de tais acordos.

ii – a admissibilidade de acordos parassociais permite a convivência de dois tipos de situações jurídicas distintas atinentes à qualidade de sócio: (i) as situações de socialidade, com origem na lei e no contrato de sociedade; e (ii) as situações de parassocialidade, com origem num outro tipo contratual: os acordos parassociais3.

* o texto que ora se publica corresponde, no essencial, à lição que será ministrada no III Curso de Pós -Graduação em Direito Empresarial, organizado pelo idt, em 09 ‑Jan. ‑2014. tem, portanto, um fim eminentemente didático, tendo ‑se optado por apenas fazer referência à notas bibliográficas essenciais. agradece‑se à sr.ª Prof.ª doutora Rosário Palma Ramalho o amável convite para leccionar neste curso.1 com referências, antónio Menezes cordeiro, Direito das Sociedades, i (Parte Geral), 3.ª ed., 2011, 700 ss. sobre a recepção dos acordos parassociais em Portugal, veja ‑se ainda adelaide Menezes Leitão, “acordos parassociais e corporate governance”, Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, ii, 2012, 575 ‑589 (584 ss.). 2 antónio Menezes cordeiro, Direito das Sociedades, i (Parte Geral), 3.ª ed., 2011, 702.3 sem prejuízo da aplicação de disposições legais do csc e, fundamentalmente, do cvM e do RGicsF, em relação às quais os acordos parassociais surgem como elemento da previsão normativa.

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os dois tipos de situações jurídicas assinalados reúnem ‑se na mesma esfera e integram o mesmo status socii, i.e.: a mesma unidade normativa que permite a agregação e o tratamento unitário de uma multiplicidade de situações jurídicas, da mais diversa natureza, todas atinentes à qualidade de sócio4.

iii – a distinção entre a socialidade e parassocialidade e os seus distintos planos de eficácia exige uma cuidada ponderação jurídica5. a diferença fundamental não reside na diversidade de títulos (contrato de sociedade vs. acordo parassocial), mas na estrutura e regime das situações jurídicas em causa.

contudo, a diferenciação estrutural entre a socialidade e a parassocialidade não ilude a acentuada proximidade e interdependência normativa entre ambos os planos jussocietários, o que coloca alguns embaraços à praxis jurídica. não é raro, sobretudo quando uma sociedade surge abertamente como um veículo instrumental de certo empreendimento económico, que o contrato de sociedade e os acordos parassociais sejam celebrados concomitantemente, depois de haverem sido objecto de uma negociação conjunta na qual, não poucas vezes, não só se assistiu à alteração de uma minuta em razão das alterações introduzidas na outra, como a uma «flutuação de cláusulas» entre a minuta do contrato de sociedade e a minuta do acordo parassocial.

a dependência causal e funcional entre a socialidade e parassocialidade nem sempre é clara e não é estabelecida, em todos os casos, no mesmo sentido.

o que ora se propõe é uma breve reflexão, esparsa, sobre a relação entre a socialidade e parassocialidade e alguns desafios que a mesma coloca à praxis jurídica.

1. Estrutura da parassocialidade.

i – Para uma primeira aproximação à parassocialidade, pode servir ‑nos de mote a noção de acordos parassociais, supra referida, colhida no artigo 17.º/1 csc. na letra do preceito, estes surgem como aqueles acordos “celebrados entre todos ou entre alguns sócios pelos quais estes, nessa qualidade, se obrigam a uma conduta não proibida por lei” (artigo 17.º/1).

4 sobre o status socii, veja ‑se, por todos, antónio Menezes cordeiro, Direito das Sociedades, i (Parte Geral), 3.ª ed., 2011, 620 ‑622; Pedro Pais de vasconcelos, A participação social nas sociedades comerciais, 2.ª ed., 2006, 412 ss. e o nosso, Fusão, cisão e transformação de sociedades comerciais – A posição jurídica dos sócios e a delimitação do statuo viae, 2008, 339 ss.5 entre nós, veja ‑se com especial interesse Paulo câmara, “acordos parassociais: estrutura e delimitação”, Estudos em memória do Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, ii, 2011,783 ‑817 (796 ss.).

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obrigar ‑se a uma conduta não proibida por lei é, em rigor, nota pouco relevante6. o espaço de liberdade jurígena7 que a autonomia privada consubstancia existe sempre “dentro dos limites da lei” (artigo 405.º cc), pelo que qualquer negócio jurídico – acordo parassocial ou não – há ‑de conformar ‑se com as disposições legais aplicáveis.

a atenção do intérprete ‑aplicador deve centrar ‑se, portanto, no facto de os acordos parassociais surgirem como acordos celebrados por sócios de uma socie‑dade comercial nessa qualidade. aqui reside, justamente, a quidditas da admissibili‑dade da figura: a controvérsia dos acordos parassociais não reside, naturalmente, na possibilidade de os sócios celebrarem acordos entre si, mas de o fazerem na qualidade de sócios, à margem do contrato de sociedade.

ii – a referência à qualidade de sócio permite, desde logo, uma delimitação objectiva da parassocialidade: os acordos parassociais são aqueles que têm por objecto situações jurídicas que integram essa qualidade. o objecto da parassocialidade é, portanto, a socialidade. as obrigações assumidas pelos contraentes que sejam estranhas ao universo da socialidade não integram, em rigor, a parassocialidade, já que os contraentes não as haverão assumido na qualidade de sócios8.

iii – a mesma referência à qualidade de sócio opera ainda uma delimitação subjectiva da parassocialidade: no entendimento tradicional, só celebram acordos parassociais aqueles que são sócios entre si9. tal não significa que não possam exis‑

6 neste sentido, carolina cunha, CSC em comentário (coutinho de abreu), i, 2010, 17.º, 306‑307. veja ‑se ainda, Raúl ventura, “acordos de voto: algumas questões depois do código das sociedades comerciais”, O Direito 124 (1992), 17 ‑86 (20) e Paulo olavo cunha, Direito das sociedades comerciais, 5.ª ed., 2012, 171 ss., chamando justamente a atenção para a aplicação do artigo 280.º cc ao disposto em tais acordos (como em qualquer negócio jurídico). 7 antónio Menezes cordeiro, Tratado de Direito Civil, i, 4.ª ed., 2012, 951. 8 Raúl ventura, “acordos de voto: algumas questões depois do código das sociedades comerciais”, O Direito 124 (1992), 17 ‑86 (20). 9 é esta a orientação tradicional. em sentido crítico, cf. com especial interesse Paulo câmara, “acordos parassociais: estrutura e delimitação”, Estudos em memória do Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, ii, 2011,783 ‑817 (813 ss.). note ‑se que a delimitação do âmbito subjectivo da parassocialidade não é uma questão apriorística; em causa estará sempre uma questão de regime: saber se o artigo 17.º se deve aplicar ou não a acordos celebrados entre sócios de determinada sociedade e outros intervenientes e, em caso afirmativo, qual a justificação metodológica de tal aplicação.no sentido da admissibilidade da celebração de acordos parassociais por não ‑sócios, cf. Jorge coutinho de abreu, Curso de Direito Comercial, ii (Das sociedades), 4.ª ed., 2011 (reimp. 2013), 156. o autor sustenta a apliacação analógica do artigo 17.º em tais casos. veja ‑se ainda Maria da Graça trigo, Os acordos parassociais sobre o exercício do direito de voto, 1998, 147 e passim e Helena catarina silva Morais, Acordos parassociais – Restrições em matéria de administração das sociedades, 2014, 16.

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tir negócios jurídicos que tenham por objecto situações jurídicas de socialidade, celebrados entre sujeitos que não são sócios da mesma sociedade. todavia, em tais casos, não estaremos perante acordos parassociais em sentido técnico ‑jurídico10.

neste contexto, a referência à qualidade de sócio – enquanto delimitação subjec-tiva da parassocialidade – estabelece uma relação entre a possibilidade de celebrar certo negócio jurídico e a qualidade dos sujeitos intervenientes. não basta, para celebrar um acordo parassocial, uma liberdade genérica de agir; é necessário que os sujeitos reúnam uma qualidade própria que, neste contexto, surge como legitimadora do exercício jurídico em causa.

iv – a delimitação objectiva e subjectiva que a referência à qualidade de sócio induz, permite ‑nos conhecer, desde já, as notas essenciais da estrutura da parassocialidade.

assim:

– a parassocialidade é derivada: ela pressupõe a qualidade de sócio que se adquire por outro título e que é o seu pressuposto normativo.

– a parassocialidade é referencial: tem por objecto as situações jurídicas de socialidade.

– a parassocialidade é integrada: as situações jurídicas em causa integram o mesmo status socii. sendo estruturalmente diversa da socialidade, forma com ela uma mesma unidade de sentido jurídico ‑normativo, com inegáveis con‑sequências no processo aplicativo11.

v – sublinhe ‑se, contudo, que derivação e referencialidade, no sentido acima adoptado, são notas estruturais da parassocialidade, i.e.: permitem ‑nos conhecer o perfil jurídico ‑normativo da figura. tais notas não traduzem, necessariamente, a específica funcionalidade (ou polifuncionalidade12) dos acordos parassociais. como a seu tempo veremos, em alguns casos uma referencialidade estrutural (da parassocia‑lidade à socialidade), pode ser acompanhada por exemplo, de uma referencialidade funcional inversa, que obriga a compreender o contrato de sociedade em função do acordo parassocial.

10 cf. exemplo clássico glosado por Fernado Galvão teles, “União de contratos e contratos para ‑sociais”, ROA 11(1951) i/ii, 37 ‑103 (78 ‑79), da associação de terceiro ao gozo de certa participação social. 11 cabe aqui referência à distinção entre direitos extra ‑sociais e associais, tal como apresentada por Paulo câmara, “acordos parassociais: estrutura e delimitação”, Estudos em memória do Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, ii, 2011,783 ‑817 (794 ‑795). 12 numa expressão cunhada por ana Filipa Leal, “algumas notas sobre a parassocialidade no direito português”, Rds i (2009) 1, 135 ‑183.

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2. Essentialia na parassocialidade?

i – estabelecidas as notas essenciais da estrutura da parassocialidade, surge natural que nos perguntemos acerca do seu conteúdo jurídico: que situações jurídicas integram a parassocialidade e que outras integram a socialidade?

as notas de derivação e referencialidade, acima indicadas, podem ajudar ‑nos na resposta.

ii – as situações jurídicas que correspondem ao núcleo intangível da qualidade de sócio e sem o qual não se adquire tal status integram necessariamente a esfera da socialidade. são elas, fundamentalmente, as correspondentes aos artigos 20.º e 21.º csc.

Poder ‑se ‑ia dizer, portanto, que tais situações jurídicas correspondem aos essentialia da socialidade13.

13 Pese embora ser doutrina genericamente ultrapassada (ao menos quanto à qualificação do negócio jurídico), conserva ainda capacidade expositiva a distinção entre essentialia, naturalia e accidentalia negotii na determinação do conteúdo da parassocialidade, sobretudo se tivermos em conta as referidas notas de derivação e referencialidade.Para proceder à qualificação contratual, a orientação dogmática tradicional aproveitava a distinção entre essentialia, naturalia e accidentalia negotii – entre nós divulgada por Manuel de andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, ii, 1960, 33 ss.) – fazendo depender a qualificação do contrato da determinação dos essentialia. a cada tipo contratual corresponderiam, portanto, certos elementos essenciais. na processo de qualificação, deveria o intérprete ‑aplicador identificar os essentialia do negócio celebrado e, em função deles, identificar o tipo contratual em causa. a doutrina dos essentialia foi conhecendo críticas e os autores foram formulando reservas quanto à sua utilidade dogmática. em itália, Betti propôs uma esquematização assente na distinção entre (i) pressupostos, (ii) estrutura e (iii) função do negócio jurídico (Teoria generale del negozio giuridico, 1955, 44 ss.), que veio a ser acolhida entre nós por dias Marques (Teoria Geral do Direito Civil, ii, 1959, 33 ss.). a qualificação do negócio jurídico passaria assim a estar dependente do critério função (causa): a cada tipo contratual estaria associada certa função que, uma vez verificada no negócio, permitia a sua recondução ao tipo. tem igualmente merecido acolhimento a doutrina tipológica (Typuslehre) que acentua a distinção entre uma estrutura de pensamento conceptual, baseada no exercício distinguo e definitio, e uma estrutura de pensamento tipológica, aberta e assente sobretudo na descriptio. com desenvolvimento e referências, veja ‑se, entre nós, Pedro Pais vasconcelos, Contratos atípicos, 2.ª ed., 2009 e Rui Pinto duarte, Tipicidade e atipicidade dos contratos, 2000.a qualificação resultaria assim não na verificação exaustiva da presença dos elementos de um conceito, mas antes na identificação da presença de certos vectores do tipo, permitindo assim uma qualificação mais quantitativa do que qualitativa (no sentido clássico).a determinação de método para qualificação dos negócios jurídicos não pode ser resolvida tendo em conta apenas as querelas sumariamente apontadas. Um contrato é, antes de mais, uma reunião de vontades juridicamente relevantes que visam produzir certo efeito na ordem jurídica. numa

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as disposições em causa devem, naturalmente, ser articuladas com as dispo‑sições da Parte especial, que moldam a qualidade de sócio de acordo com o tipo societário em causa.

Para além destas situações jurídicas, integram ainda a esfera da socialidade aquelas que podem ser qualificadas como naturais (naturalia), i.e.: que não sendo constitutivas da qualidade de sócio, quando presentes, configuram de modo determinante a sua posição jurídica, como sejam os direitos especiais, por exemplo.

iii – Quanto à parassocialidade, é mais difícil determinar um núcleo intangível ou as situações jurídicas que, pela sua natureza, sejam essencialmente parassociais. na verdade, a praxis jurídica permite constatar com frequência que há elementos jurídico ‑contratuais dos acordos parassociais que podiam integrar, sem dificuldades, o conteúdo do contrato de sociedade. tal ocorre, com especial evidência, nos casos de negociação conjunta dos instrumentos e, sobretudo, no caso dos acordos omnilaterais (carneiro da Frada), que veremos com melhor detalhe.

iii – À inclusão de uma determinada disciplina na esfera da parassocialidade parece presidir, não tanto um juízo de necessidade, quanto um juízo de conveniência, baseado, pelo menos, na ponderação dos seguintes critérios:

a) Publicidade

o contrato de sociedade está sujeito à publicidade própria dos actos sociais (artigo 166.º csc e artigo 3.º/1 cRc). em cada momento da vida da socie‑dade, deve encontrar ‑se arquivado na conservatória um exemplar do contrato

construção mais analítica, é um enunciado performativo: uma comunicação linguística que visa obter uma modificação da realidade (Ferreira de almeida, Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, i, 1990, 121)temos, portanto, que o ponto de partida para a qualificação de certo contrato deve ser o do plano da sua eficácia. se os efeitos desejados pelas partes integram aqueles que se encontram normativamente regulados em certa figura contratual, a tal contrato corresponderá um tipo; se integram efeitos jurídicos regulados para diversas figuras, será um contrato misto; e se, a eficácia jurídica desejada pelas partes não está normativamente prevista (mas permitida, ao abrigo da autonomia privada), tal contrato será um contrato atípico. Podemos ir mais longe: o sentido da qualificação (para além do auxílio hermenêutico) prende ‑se com a determinação de um regime potencialmente aplicável. este escopo orienta também o próprio método: a qualificação é feita tendo em conta o plano de eficácia contratual e teleologicamente orientada à potencial aplicação de certo regime normativo.Pese embora a crítica e a tendencial superação, a doutrina dos essentialia conversa uma capacidade expositiva de que o intérprete ‑aplicador, com naturais reservas, pode lançar mão.

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actualizado (artigo 59.º/2 cRc). o conteúdo do contrato de sociedade goza, portanto, de publicidade registal.

o mesmo não sucede com os acordos parassociais. exceptuando as comuni‑cações previstas no artigo 19.º cvM, ou no artigo 111.º do RGicsF, os acordos parassociais permanecem ocultos no comércio jurídico.

À eleição entre a esfera social/parassocial preside, em alguns casos, a con‑sideração da publicidade que se deseja dar ou não a certo clausulado. as partes tenderão a destinar à parassocialidade o conteúdo que se deseja oculto ou, pelo menos, não acessível a qualquer interessado14.

b) Transitoriedade

a modificação de um acordo parassocial segue o regime geral da modificação dos negócios jurídicos (artigo 406.º/1 cc). o mesmo não sucede com o con‑trato de sociedade. de um modelo puramente obrigacional, o direito societário evoluiu, paulatinamente, para um princípio cogente de alterabilidade, baseado na preclusão da unanimidade e na assunção do acto modificativo como acto da sociedade15.

desta evolução resultou que a modificação do contrato de sociedade está sujeita a um moroso processo deliberativo, tanto mais complexo quanto mais estrutural for a modificação societária em causa.

ora, muitas disposições acordadas pelos sócios são transitórias: destinam ‑se a vigorar durante certo tempo (por exemplo: durante certa fase do investimento, ante a titularidade de certa percentagem do capital social, etc.) ou dão corpo a compromissos parcelares, destinados a serem revistos quando alterados outros pressupostos negociais.

os sócios tenderão a remeter para a parassocialidade o conteúdo contratual mutável ou cuja alteração se prevê certa, obviando assim o moroso procedimento de alteração do contrato de sociedade (cujo controlo, dependendo da concreta participação no capital social, podia nem sequer estar nas suas mãos)16.

14 neste sentido, Manuel carneiro da Frada, “acordos parassociais “omnilaterais” – Um novo caso de “desconsideração” da personalidade jurídica?”, DSR i (2009) 2, 97 ‑135 (107). veja‑se também carolina cunha, CSC em comentário (coutinho de abreu), i, 2010, 17.º, 292 ‑293.15 sobre esta evolução, cf. o nosso Fusão, cisão e transformação de sociedades comerciais – A posição jurídica dos sócios e a delimitação do statuo viae, 2008, 35 ‑113.16 neste sentido, Manuel carneiro da Frada, “acordos parassociais “omnilaterais” – Um novo caso de “desconsideração” da personalidade jurídica?”, DSR i (2009) 2, 97 ‑135 (107).

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c) Especificação

intimamente associada ao critério da transitoriedade, está ainda a concepção do contrato de sociedade (tendencialmente perene e imutável) como o repositório nor‑mativo da estrutura básica da sociedade, por oposição ao acordo parassocial como o instrumento no qual se desenvolve ou especifica o regime previsto no contrato.

esta concepção dá origem a um conteúdo parassocial que se oferece como a especificação de certo conteúdo contratual. assim, por exemplo, o contrato de sociedade prevê o direito de preferência na transmissão de participações, ficando regulado em acordo parassocial o regime do seu exercício; ou o contrato de socie‑dade prevê a realização de prestações acessórias, ficando no acordo parassocial previsto o momento e os pressupostos da sua realização e outros elementos não essenciais da obrigação.

d) Eficácia

veremos com melhor detalhe os distintos planos de eficácia da socialidade da parassocialidade. Retenha ‑se, por ora, que a representação, pelas partes, de tais distintos planos de eficácia está também na origem da eleição entre o contrato de sociedade e o acordo parassocial.

vejamos dois exemplos: (i) a unanimidade nas deliberações do conselho de administração; e (ii) o direito de preferência em sede de alienação de participações sociais.

Uma significativa orientação doutrinal, pontificada por Pedro Maia, sustenta que a unanimidade injuntiva, como regra de funcionamento do conselho de administração, seria violadora de um princípio da colegialidade17 e, como tal, inválida a cláusula estatutária que a fixasse18.

a acolher esta tese, os accionistas tenderão a preferir fixar a unanimidade no acordo parassocial, a estipulá ‑la no contrato de sociedade. isto porque, perante um cenário de invalidade, preferirão ainda assim poder contar com a eficácia parassocial da unanimidade – ainda que meramente entendida como configu‑rando um dever dos accionistas diligenciarem junto dos membros do conselho

17 sobre a colegialidade e a gestão de conflitos de intereses nas sociedades comerciais, veja ‑se, com especial interesse, José Ferreira Gomes, “conflito de interesses entre accionistas nos negócios celebrados entre a sociedade anónima e o seu accionista controlador”, Conflito de interesses no direito societário e financeiro – Um balanço a partir da crise financeira (Paulo câmara),75 ‑213 (120 ss. e passim).18 é o que resulta de uma imperatividade do funcionamento colegial do conselho de administração, ao menos por força do princípio da tipicidade das sociedades (artigo 1.º/3 csc). veja ‑se, neste sentido, Pedro Maia, Função e funcionamento do conselho de administração da sociedade anónima, 2002, 213 ss.

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de administração neste sentido e sempre dentro dos limites possíveis de uma interpretação “cuidada e restritiva”19 do artigo 17.º/220 –, a ficarem desprovidos de qualquer base normativa que a preveja21.

noutros casos, a presença de diversas disposições no contrato de sociedade procuram reforçar a vinculação dos sócios ao seu cumprimento e, em especial, ao regime do incumprimento. é o que sucede, por exemplo, quando num acordo parassocial se reproduz, com eventuais variações não substanciais, uma cláusula que estipule o direito de preferência, já presente no contrato de sociedade. em tal caso, as partes desejaram dotar o regime da preferência da eficácia própria da parassocialidade, reforçando a vinculação dos sócios e sujeitando o seu incum‑primento ao regime previsto no acordo parassocial.

e) Âmbito subjectivo de aplicação

o âmbito de aplicação subjectiva de certa disciplina contratual é igualmente critério de eleição entre a socialidade e a parassocialidade. Reservar ‑se ‑á para esta última, o conteúdo obrigacional ao qual não possam, ou não se deseje, que estejam vinculados todos os sócios.

f ) Dimensão juscultural

Por fim, a eleição entre a socialidade e a parassocialidade é igualmente con‑dicionada por uma representação sócio ‑económica e juscultural dos planos em causa. tal representação não é susceptível de uma formulação lógico ‑dedutiva. nela estão presentes múltiplos factores culturais e económicos que justificam uma “certa ideia” de socialidade e parassocialidade que estará presente na formação da vontade dos contraentes.

Uma nota marcadamente presente nesta dimensão juscultural tem que ver com a despersonalização vs. personalização da própria sociedade. Por regra, a socialidade é entendida como realidade jurídica despersonalizada, aplicável independentemente da identidade dos sócios.

19 Parafraseando antónio Menezes cordeiro, Direito das Sociedades, i (Parte Geral), 3.ª ed., 2011, 708.20 no sentido da invalidade desta clásula inserta no acordo parassocial, cf. João calvão da silva, Estudos jurídicos (Pareceres), 2001, 246 ss. e Jorge coutinho de abreu, Curso de Direito Comercial, ii (Das sociedades), 4.ª ed., 2011 (reimp. 2013), 158, por exemplo.21 sem prejuízo da discussão acerca de uma eventual conversão das cláusulas sociais inválidas em cláusulas parassociais, Paulo câmara, Parassocialidade e transmissão de valores mobiliários (dissertação policopiada), 1996, 434 ss.

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ao contrário, a parassocialidade é entendida como factor de personalização, permitindo configurar a vida da sociedade de acordo com os interesses dos sócios e de acordo com a real composição do capital social22.

3. Polifuncionalidade dos acordos parassociais

i – o juízo de conveniência que acabamos de ilustrar está intimamente associado à polifuncionalidade dos acordos parassociais. a eleição entre a esfera social e parassocial exige a ponderação da específica funcionalidade das estipulações em causa na economia da vida societária.

a mero título exemplificativo, retenham ‑se alguns escopos fundamentais:

a) Personalização de sociedades de capitais

vimos já que a parassocialidade é entendida como factor de personalização, permitindo aos sócios configurar a vida da sociedade de acordo com os seus particulares interesses e concreta participação no capital social.

esta nota adquire especial relevo no âmbito das sociedades anónimas, espe‑cialmente face à estrutura do mercado continental, marcado por uma acentuada concentração accionista23. neste contexto, os acordos parassociais servem não poucas vezes um escopo individualizador, introduzindo numa estrutura de socie‑dade de capitais sucedâneos normativos de institutos das sociedades de pessoas, marcados por um carácter intuitu personae24.

b) Controlo

os acordos parassociais permitem aos sócios estabelecerem mecanismos con‑tratuais de controlo da sociedade, quer mediante a regulação do exercício dos seus direitos participativos, quer dando corpo a planos de investimento/desinvestimento na participação no capital social.

22 neste sentido, Manuel carneiro da Frada, “acordos parassociais “omnilaterais” – Um novo caso de “desconsideração” da personalidade jurídica?”, DSR i (2009) 2, 97 ‑135 (108). 23 com efeito, as sociedades presentes nos mercados de matriz anglo -saxónica são, em regra, de grande dimensão e com uma considerável fragmentação da titularidade do capital social. nos mercados europeus a situação é inversa. a concentração de capitais em estruturas familiares ou em outras sociedades e grupos financeiros é grande. o accionista europeu tem, na sua larga maioria, um rosto, uma história de investimento – uma genealogia económica – e detém participações sociais com grande expressão no capital social das sociedades em que investe. 24 Paulo câmara, Parassocialidade e transmissão de valores mobiliários (dissertação policopiada), Lisboa, 1996, 87 ss.

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c) Protecção de minorias

Paralelo ao escopo controlador, a parassocialidade serve ainda a tutela dos sócios minoritários, possibilitando a existência de mecanismos que visam evitar comportamentos abusivos, garantir a protecção face a uma mudança da estrutura maioritária, prevenir possíveis expropriações pela maioria e assegurar a liquidez comercial de uma reduzida participação no capital da sociedade.

d) Fiduciário

Presente sempre que um acordo parassocial materialize uma titularidade fiduciária de participações sociais25.

e) Financiamento

sobretudo quando a sociedade é marcadamente um veículo instrumental para a realização de certa actividade económica, os acordos parassociais dão corpo muitas vezes ao plano de investimento dos sócios na actividade em causa.

a aportação de fundos próprios a certo projecto (capital social, prestações acessórias, empréstimos subordinados, etc.) é, por regra, titulada em acordos parassociais ou em negócios jurídicos com outro nomen juris mas com cláusulas que integram, ainda assim, a esfera da parassocialidade.

f ) Especificação de meios de tutela

Por fim, os acordos parassociais representam ainda uma importante função de especificação dos meios de tutela. as partes reservam para a parassocialidade a definição das sanções associadas à violação do plano negocial acordado e dos foros (arbitragem, mediação, etc.) onde desejam ver dirimidos os seus litígios sociais.

com efeito, não é pouco comum que certa cláusula inserta no contrato de sociedade surja reproduzida num acordo parassocial, acompanhada de uma cláu‑sula penal, por exemplo, e de uma sujeição a foro arbitral.

Mas não é necessário que haja uma reprodução; basta que o intérprete‑‑aplicador, face ao caso concreto, chegue à conclusão de que um dos fins do acordo parassocial foi, precisamente, o de especificar os meios de tutela a observar em caso de conflito.

25 Paulo câmara, Parassocialidade e transmissão de valores mobiliários (dissertação policopiada), Lisboa, 1996, 108 ‑109. sobre o negócio jurídico fiduciário, veja ‑se antónio Barreto Menezes cordeiro, Do trust no Direito Civil (dissertação de doutoramento – Faculdade de direito da Universidade de Lisboa), 2013.

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este escopo é importante, porquanto pode dar corpo a uma relação de especia-lidade na ordenação dos diversos instrumentos que regulam as relações entre os sócios, como veremos infra.

4. Eficácia parassocial: o princípio da inimpugnabilidade

i – é doutrina comum, que a socialidade e a parassocialidade se distinguem no plano da eficácia por aquela gozar de eficácia erga omnes e esta de mera eficácia inter partes26.

Há muito, porém, que tal distinção vem sendo posta em causa.

ii – a atribuição de mera eficácia obrigacional aos acordos parassociais encontra respaldo no artigo 17.º/1 ao estatuir que tais acordos “têm efeitos entre as partes” e que “com base neles não podem ser impugnados actos da sociedade ou dos seus sócios para com a sociedade”.

o mesmo sentido limitativo surge confirmado no n.º 2 do mesmo artigo: os acordos parassociais não podem dizer respeito à conduta de intervenientes ou de outras pessoas no exercício de funções de administração ou fiscalização.

iii – se bem atendermos, o cerne normativo da eficácia limitada da parasso‑cialidade reside na inimpugnabilidade dos actos da sociedade ou dos seus sócios para com a sociedade (artigo 17.º/1 in fine).

com efeito, estatuir que os acordos parassociais “têm efeitos entre as partes” é tão despiciendo quanto a referência a uma “conduta não proibida por lei”: não se duvida da eficácia obrigacional do negócio jurídico em causa. do mesmo modo, o artigo 17.º/2, sob distinta técnica de formulação normativa, o que opera é uma extensão da regra da inimpugnabilidade aos membros dos órgãos sociais.

a particular eficácia da parassocialidade reside, portanto, na nota da inim-pugnabilidade, cujo alcance merece ser revisitado.

iv – Retome ‑se o mote já lançado por Paulo câmara: o artigo 17.º/1 não estabelece a ineficácia dos acordos parassociais para com a sociedade mas a sua inimpugna-bilidade, o que é distinto27.

26 Para um enquadramento geral, com abundantes referências, cf. carolina cunha, CSC em comentário (coutinho de abreu), i, 2010, 17.º, 298 ‑300 e Paulo câmara, Parassocialidade e transmissão de valores mobiliários (dissertação policopiada), Lisboa, 1996, 417 ss.27 Paulo câmara, Parassocialidade e transmissão de valores mobiliários (dissertação policopiada), Lisboa, 1996, 420.

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a inimpugnabilidade limita, é certo, a eficácia dos acordos parassociais, mas não impede a produção dos efeitos jurídicos que com ela não colidam, de onde, alguma eficácia externa pode ser reconhecida aos acordos parassociais. Mais ainda: a inimpugnabilidade – enquanto critério de limitação da eficácia parassocial – surge formulada a partir do arquétipo dos acordos relativos ao exercício do direito de voto. o que não é impugnável são os actos da sociedade (em regra fundados numa deliberação) e os actos dos sócios para com a sociedade (maxime quanto ao exercício do direito de voto)28. a origem do regime dos acordos parassociais no âmbito do exercício do direito de voto29 condiciona, em mais do que desejável, a construção geral da figura.

Fora do âmbito da inimpugnabilidade desenhada no artigo 17.º/1, o alcance da limitação da eficácia dos acordos parassociais exige uma reconstituição dos dados do sistema: a ineficácia não tem porque ser a regra.

v – Mas devemos ir mais longe. o próprio princípio da limitação da eficácia externa dos acordos parassociais, formulado sob a regra da inimpugnabilidade, conhece limitações. atenda ‑se ao disposto no artigo 19.º cvM:

Artigo 19.º

Acordos parassociais

1 – Os acordos parassociais que visem adquirir, manter ou reforçar uma participação qualifi-cada em sociedade aberta ou assegurar ou frustrar o êxito de oferta pública de aquisição devem ser comunicados à CMVM por qualquer dos contraentes no prazo de três dias após a sua celebração.

2 – A CMVM determina a publicação, integral ou parcial, do acordo, na medida em que este seja relevante para o domínio sobre a sociedade.

3 – São anuláveis as deliberações sociais tomadas com base em votos expressos em execução dos acordos não comunicados ou não publicados nos termos dos números anteriores, salvo se se provar que a deliberação teria sido adoptada sem aqueles votos.

a não comunicação ou publicação dos acordos parassociais abrangidos pelo âmbito de aplicação do preceito determina a anulabilidade da deliberação (i) tomada em execução do previsto no acordo; (ii) salvo se a deliberação houvesse sido tomada sem aqueles votos.

sendo anulável, qualquer accionista que não tenha votado no sentido que fez vencimento pode requer a anulação (artigo 59.º csc). daqui se retira que os

28 neste sentido, Paulo câmara, Parassocialidade e transmissão de valores mobiliários (dissertação policopiada), Lisboa, 1996, 424: “o legislador está sobretudo a pensar declarar inimpugnável a deliberação social e o voto do sócio tomados em violação do acordo parassocial”.29 antónio Menezes cordeiro, Direito das Sociedades, i (Parte Geral), 3.ª ed., 2011, 700 ss.

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efeitos do cumprimento do acordo parassocial transvazam o âmbito obrigacional, repercutindo na posição jurídica de terceiros.

a eficácia externa da parassocialidade está in casu associada à publicidade do acordo (garantida nos termos do n.º 2 do artigo 19.º), publicidade igualmente exigida às fontes da socialidade.

vi – do mesmo modo, o artigo 83.º csc reconhece os acordos parassociais como elemento constitutivo da previsão da responsabilidade solidária do sócio com os membros do órgão da administração e fiscalização30.

independentemente da justificação hermenêutica formal, a materialidade norma-tiva do preceito parece colidir com pretensão ineficácia externa da parassocialidade.

5. Cont.: os acordos omnilaterais

i – a propósito da eficácia externa da parassocialidade foi entre nós suscitado por carneiro da Frada o problema da eficácia dos acordos parassociais omnilaterais, celebrados por todos os sócios da sociedade31.

Face ao regime do artigo 17.º, procurou o autor determinar “1) se a não impugna bilidade dos actos da sociedade ou dos sócios perante a sociedade se aplica também no caso de tais acordos omnilaterais; 2) se os referidos acordos não poderão referir -se, preci-samente por incluírem todos os sócios, à conduta de pessoas com funções de administração ou fiscalização”32.

cumpre aqui reter as notas mais impressivas da redução teleológica proposta por carneiro da Frada, que passa por assumir que o regime da limitação externa da eficácia dos acordos parassociais, preconizado pelo princípio da inimpugnabi‑lidade, não pode ser aplicado em igual extensão no caso dos acordos omnilaterais.

ii – em primeiro lugar, o autor chama a atenção para o facto dos acordos omnilaterais não poderem deixar de ser ponderados na determinação do que seja o interesse da sociedade. independentemente da orientação que se sufrague quanto à natureza do interesse social, é mister reconhecer que a definição por todos os

30 Para um enquadramento geral do preceito, cf. Rui Pereira dias, CSC em comentário (coutinho de abreu), i, 2010, 83.º, 952 ‑964 e antónio Menezes cordeiro, CSC Anotado (Menezes cordeiro), 2.ª ed., 2011 (reimp. 2014), 83.º.31 Manuel carneiro da Frada, “acordos parassociais “omnilaterais” – Um novo caso de “desconsideração” da personalidade jurídica?”, DSR i (2009) 2, 97 ‑134.32 Manuel carneiro da Frada, “acordos parassociais “omnilaterais” – Um novo caso de “desconsideração” da personalidade jurídica?”, DSR i (2009) 2, 97 ‑134 (106).

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sócios de uma concreta composição de interesses não pode ser alheia à determi‑nação do interesse da sociedade33.

esta observação é importante porquanto permite sustentar que, não obstante o artigo 17.º/2, o conselho de administração não pode deixar de atender ao con‑teúdo de um acordo parassocial omnilateral, por força dos deveres que lhe são assacados ao abrigo do artigo 64.º34.

a limitação à eficácia externa da parassocialidade surge assim questionada a partir de um dado nuclear do próprio sistema societário, atinente à situação jurídica da administração.

iii – constatação semelhante pode ser feita em outro lugar do sistema: o exer‑cício abusivo do direito de voto. com efeito, sabendo os sócios que o acordado em sede parassocial pressupõe um determinado comportamento na assembleia geral (ou tem por objecto, precisamente, esse comportamento), a não observância da conduta devida pode redundar num exercício inadmissível do direito de voto.

a omnilateralidade do acordo – com a composição de interesses que o mesmo consubstancia – impõe aqui a possibilidade de qualifcar como abusivo, para efei‑tos do artigo 58.º/1 b), o exercício do direito de voto em sentido contrário ao previsto no acordo parassocial35, o que redunda numa clara excepção à regra da inimpugnabilidade.

iv – em segundo lugar, o autor sublinha um facto conhecido no comércio: a instrumentalidade da sociedade no quadro da regulação de interesses das partes.

com efeito, não poucas vezes a sociedade surge como um veículo instrumental para a realização de interesses dos sócios cuja composição é mais lata e se encontra titulada num acordo parassocial36.

nestes acsos, as notas de derivação e referencialidade estrutural (da parassocia‑lidade à socialidade) é substituída por uma derivação e referencialidade funcional, em que o contrato de sociedade surge em função do acordo parassocial.

33 Manuel carneiro da Frada, “acordos parassociais “omnilaterais” – Um novo caso de “desconsideração” da personalidade jurídica?”, DSR i (2009) 2, 97 ‑134 (115 ‑118).34 Manuel carneiro da Frada, “acordos parassociais “omnilaterais” – Um novo caso de “desconsideração” da personalidade jurídica?”, DSR i (2009) 2, 97 ‑134, 117: “Sendo o acordo omnilateral, a necessidade, por princípio, de orientação dos administradores pelo entendimento unânime dos sócios quanto ao interesse social impõe -se.”35 Manuel carneiro da Frada, “acordos parassociais “omnilaterais” – Um novo caso de “desconsideração” da personalidade jurídica?”, DSR i (2009) 2, 97 ‑134 (128 ss.). 36 Manuel carneiro da Frada, “acordos parassociais “omnilaterais” – Um novo caso de “desconsideração” da personalidade jurídica?”, DSR i (2009) 2, 97 ‑134 (119 ss.).

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esta nota é importante porquanto coloca em causa o dogma da acessoriedade do acordo parassocial37. na realidade do comércio, muitas vezes é o contrato de sociedade que é acessório do acordo parassocial, observando ‑se uma conexão fun-cional inversa à que normalmente é apontada. Pelo menos no plano interno, não parece que os sócios possam invocar a eficácia social, como excludente de efeitos parassociais neste cenário apontado.

os efeitos hermenêuticos também não podem ser desprezados: perante uma conexão funcional inversa, impor ‑se ‑á uma interpretação do contrato de sociedade por referência ao acordo parassocial.

v – Por fim, carneiro da Frada chama ainda a atenção para o facto de os acordos omnilateriais poderem ser qualificados como contratos com eficácia de pro-tecção de terceiros38, próximos das normas legais e estatutárias que visam tal escopo.

vi – as notas assinaladas pelo autor tem como natural consequência a possi‑bilidade de derrogação, entre sócios, da socialidade em favor da parassocialidade. ou, dito de outro modo: a inoponibilidade, entre sócios, de regras sociais que violem disposições parassociais, evitando assim que os sócios, ao menos na rela‑ções internas, se escudem na esfera de eficácia social para obstaculizar a violação de um acordo parassocial.

tal possibilidade encontra fundamento dogmático na teoria dos efeitos duplos (Doppelwirkungen im Recht)39. com efeito, a derrogação, entre sócios, da socialidade em favor da parassocialidade pode consubstanciar o reconhecimento, à mesma conduta juridicamente relevante, de distintos efeitos jurídicos. em concreto: a mesma conduta pode ser juridicamente havida como cumprimento do contrato de sociedade ou da lei e, no mesmo passo, como violação do acordo parassocial40, sem que tal comprometa o plano aplicativo do direito.

do mesmo modo, a derrogação da socialidade em favor da parassocialidade conhece respaldo dogmático no instituto do levantamento da personalidade colectiva.

37 como justamente assinala Manuel carneiro da Frada, “acordos parassociais “omnilaterais” – Um novo caso de “desconsideração” da personalidade jurídica?”, DSR i (2009) 2, 97 ‑134 (118 ss.).38 Manuel carneiro da Frada, “acordos parassociais “omnilaterais” – Um novo caso de “desconsideração” da personalidade jurídica?”, DSR i (2009) 2, 97 ‑134 (122 ‑123).39 Manuel carneiro da Frada, “acordos parassociais “omnilaterais” – Um novo caso de “desconsideração” da personalidade jurídica?”, DSR i (2009) 2, 97 ‑134 (124 ss.).40 Manuel carneiro da Frada, “acordos parassociais “omnilaterais” – Um novo caso de “desconsideração” da personalidade jurídica?”, DSR i (2009) 2, 97 ‑134 (125). Pense ‑se, por exemplo, no accionista que, membro do conselho de administração, participa numa deliberação que viola o acordo parassocial. não parece que seja de admitir que invoque o artigo 17.º/2 para se eximir às consequências do incumprimento.

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derrogar a socialidade na relação entre os sócios é – como salienta carneiro da Frada – não permitir que os sócios se ocultem sob o manto da personificação a fim de obterem o beneficício da inoponibilidade do regime parassocial41.

não se pode afastar, portanto, a hipótese de redundar em abuso de personalidade colectiva a invocação, pelos sócios, do respeito pela socialidade em justificação da violação de uma disposição parassocial.

6. Sinopse: a superação da Trennungsthese

i – temos, portanto, que a distinção entre a socialidade e a parassocialidade baseada na dicotomia eficácia erga omnes vs. inter partes deve entender ‑se superada.

não só tal relação dicotómica é desmentida por diversos dados do sistema como a configuaração particular de certos acordos parassociais (maxime os omni‑laterais) conduz à sua superação.

Mais se retenha ainda que o alargamento da eficácia parassocial ao âmbito da socialidade é sustentado a partir de lugares argumentativos nevrálgicos do sistema societário, como sejam a identificação do interesse social, a prossecução dos deveres fundamentais dos administradores e o exercício abusivo do direito de voto, por exemplo.

tudo ponderado, a tese da separação (Trennungsthese) entre a socialidade e a parassocialidade parece claudicar no actual panorama dogmático.

ii – algo de semelhante vem acontecendo também no espaço jurídico ale‑mão, onde a jurisprudência tem vindo a admitir, paulatinamente, a impugnação de deliberações sociais por violação de um acordo parassocial42.

Pese embora as vozes discordantes43, autores como Karsten schmidt têm vindo a sustentar a eficácia estatutária (verbandsrechtlich Wirkung) ou semelhante à estatutária (Satzungsähnlich Wirkung) dos acordos parassociais, superando assim um princípio de absoluta segregação entre esferas de eficácia44.

41 Manuel carneiro da Frada, “acordos parassociais “omnilaterais” – Um novo caso de “desconsideração” da personalidade jurídica?”, DSR i (2009) 2, 97 ‑134 (130 ss.).42 Por exemplo, BGH de 20 ‑Jan. ‑1983, NJW 36 (1983) 34, 1910 ‑1911 e BGH de 27 ‑out. ‑1986, NJW 40 (1987) 31, 1890 ‑1892. ambas as decisões surgem comentadas por Paulo câmara, “acordos parassociais: estrutura e delimitação”, Estudos em memória do Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, ii, 2011,783 ‑817 (805 ss.).43 Por exemplo, Peter Ulmer, “verletzung schuldrechtlicher nebenabreden als anfechtungsgrund im GmbH ‑Rechts?”, NJW 40 (1987) 31, 1850 ‑1855, pronunciando ‑se sobre a decisão BGH de 27 ‑out. ‑1986.44 Karsten schmidt, Gesellschaftsrecht, 4.ª ed., 2002, 93 ‑95.

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7. Parassocialidade e arbitrabilidade societária

i – Por fim, detenhamo ‑nos brevemente na relação entre a parassocialidade e arbitrabilidade societária.

o recurso à arbitragem na resolução litígios societários coloca diversos problemas à praxis jurídica que, entre nós, foram objecto da qualificada atenção por Rui Pereira dias45. o autor chegou a apresentar uma proposta de articulado referente à arbitrabilidade societária, no contexto da elaboração na Lav 2011 (Lei n.º 63/2011, 14 ‑dez.)46.

na relação entre a socialidade e a parassocialidade, os problemas de arbitrabi‑lidade surgem fundamentalmente associados à divergência de tutela jurisdicional: quid juris quando um dos instrumentos normativos (contrato de sociedade ou o acordo parassocial) nada prevê, ou remete expressamente para os tribunais judiciais, e o outro instrumento normativo apresenta um compromisso arbitral?

ii – tomemos por primeiro cenário aquele em que o contrato de sociedade prevê o recurso a tribunal judicial (com eventual escolha de foro) e o acordo parassocial remete para a arbitragem.

autores como coutinho de abreu referem ‑se a um direito de acção judicial dos sócios47, como tipologia de situações jurídicas que integra status socii. Rui Pereira dias refere ‑se mesmo ao direito a uma tutela jurisdicional judicial da qualidade de sócio. a particularidade deste direito reside na natureza judicial da jurisdição.

ora, os litígios parassociais são, como vimos, litígios de sócios entre si. a ques‑tão que se coloca in casu é a seguinte: poder ‑se ‑ão os sócios furtar à arbitragem invocando, para o efeito, o direito à tutela judicial, não afastado (antes confirmado) em contrato de sociedade?

a conveniência de um tal «comportamento furtivo» para o demandado é evidente, se atendermos a uma ponderação clássica das vantagens/desvantagens da resolução de litígios por via arbitral48.

45 Rui Pereira dias, “alguns problemas práticos da arbitragem de litígios societários (e uma proposta legislativa)”, II Congresso DSR (2012), 291 ‑304. 46 oferecido à estampa in “alguns problemas práticos da arbitragem de litígios societários (e uma proposta legislativa)”, II Congresso DSR (2012), 291 ‑304. 47 Jorge coutinho de abreu, Curso de Direito Comercial, ii (Das sociedades), 4.ª ed., 2011 (reimp. 2013), 210. os direitos de acção judicial integram a classificação de direitos de controlo (critério funcional).48 veja ‑se Mariana França Gouveia, Curso de resolução alternativa de litígios, 2.ª ed., 2012, passim.

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iii – a resposta à questão suscitada pode ser enquadrada a partir de duas teses: (i) a tese da subordinação (normativa) absoluta e (ii) a tese da subordinação (normativa) relativa ou mitigada.

o acordo parassocial (derivado e referencial, como dissémos) é visto por variados autores como titulando estipulações acessórias, numa situação de coligação necessária e dependência funcional unilateral face ao contrato de sociedade49. ana Filipa Leal, por exemplo, refere ‑se ao contrato de sociedade como base do negócio do acordo parassocial50 e Pereira de almeida vai mais longe, qualificando o acordo parassocial como convenção infra -estatutária51.

ora, com este enquadramento, tudo aponta para uma subordinação normativa absoluta das fontes parassociais ao contrato de sociedade.

Resultado: os sócios poder ‑se ‑iam subtrair sempre à arbitragem parassocial, invocando o direito a uma tutela jurisdicional judicial da qualidade de sócio, asse‑gurado no plano da socialidade52. a invocação de tal direito sempre estaria sujeito, naturalmente, ao controlo pela boa fé, mas o eventual exercício inadmissível de tal situação jurídica careceria da demonstração da existência de um suficiente investimento de confiança objectivamente justificável que o obstaculizasse, o que nem sempre seria possível.

iv – Partindo do mesmo enquadramento de base, é ainda possível outro entendimento que passa pela distinção entre (i) litígios parassociais puros e (ii) litígios parassociais mistos ou impuros.

os litígios parassociais puros são aqueles em que a disciplina em causa não encontra qualquer respaldo no contrato de sociedade. não obstante a referenciali‑dade estrutural da parassocialidade, o acordo parassocial surge, nestes casos, como a única fonte normativa; por oposição às situações em que existe um concurso de títulos social e parassocial para a mesma situação jurídica (litígios parassociais mistos ou impuros).

49 assim, por exemplo, sublinhando a dependência funcional unilateral, Pedro Pais de vasconcelos, A participação social nas sociedades comerciais, 2.ª ed., 2006, 63.50 ana Filipa Leal, “algumas notas sobre a parassocialidade no direito português”, RDS i (2009) 1, 135 ‑183 (171).51 antónio Pereira de almeida, Sociedades comerciais, valores mobiliários, instrumentos financeiros e mercados, i, 7.ª ed., 2013, 35152 ilustrando esta possibilidade, afirma Rui Pereira dias: “(…) um dos argumentos de que se poderá valer o signatário do acordo parassocial para «fugir» à arbitragem será hipoteticamente o de haver um conflito entre a «regra parassocial infra -ordenada» que o vincula à arbitragem e a «regra social supra -ordenada» que lhe reconhece em geral o direito a uma tutela jurisdicional judicial” – “alguns problemas práticos da arbitragem de litígios societários (e uma proposta legislativa)”, II Congresso DSR (2012), 291 ‑304 (297).

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Um entendimento relativo ou mitigado da tese a subordinação (normativa) sustentará que apenas nos litígios parassociais mistos ou impuros poderá haver lugar à invocação de um direito a uma tutela jurisdicional judicial da qualidade de sócio. nos litígios parassociais puros, prevalecerá o compromisso arbitral.

trata ‑se, quanto a este último entendimento, de uma subordinação mitigada porque mesmo os litígios parassociais puros são litígios entre sócios da mesma sociedade e referente a situações jurídicas que integram a sua qualidade de sócio, de onde sempre haveria lugar a subordinação normativa.

v – Partamos, agora de um cenário distinto: no contrato de sociedade prevê‑se o recurso à arbitragem, porém, no acordo parassocial as partes previram o reso‑lução de litígios por via judicial (com eventual designação de foro).

a aplicação da tese da subordinação absoluta determinaria a resolução de todos os litígios por via arbitral, ao passo que da aplicação da tese da subordinação mitigada resultaria a não aplicação da convenção de arbitragem aos litígios paras‑sociais puros.

vi – a tese da subordinação normativa está naturalmente associada à dis‑tinção entre os planos de eficácia social e parassocial acima indicados. traduz, no fundo, a ideia de que a esfera de eficácia civil (ou jusobrigacional), própria da parassocialidade, deve submeter ‑se à esfera de eficácia corporativa (ou jussocietária), de que goza a socialidade.

sucede, porém, que a distinção entre tais planos de eficácia encontra ‑se, como vimos, em crise e não pode ser manuseada sem acentuadas reservas.

Mais se diga ainda que a mitigação da tese da subordinação normativa exige uma distinção entre pura parassocialidade e parassocialidade impura, o que é impossível sustentar em termos absolutos: as fronteiras entre a socialidade e a parassocialidade não só são ténues como móveis53.

vii – tudo ponderado, parece preferível adoptar por critério o que pode‑ríamos designar por tese da conexão funcional. o intérprete ‑aplicador deve partir do concreto nexo funcional existente entre a socialidade e a parassocialidade, dando prevalência ao meio jurisdicional de tutela previsto no instrumento normativo cuja funcionalidade é servida pelos restantes.

assim, se o contrato de sociedade se encontrar funcionalmente ligado ao acordo parassocial, prevalecerá o foro previsto no acordo parassocial. o inverso também é verdadeiro.

53 como acentuou Manuel carneiro da Frada, “acordos parassociais “omnilaterais” – Um novo caso de “desconsideração” da personalidade jurídica?”, DSR i (2009) 2, 97 ‑134 (121).

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viii – a aplicação deste critério carece, contudo, de uma correcção que tem que ver com a já assinalada função de especificação de meios de tutela, que há pouco atribuimos aos acordos parassociais.

com efeito, há situações em que não é possível afirmar a existência de uma conexão funcional inversa. ou seja: o acordo parassocial está, de facto, funcional‑mente ordenado ao contrato de sociedade. a tradicional acessoriedade do acordo parassocial existe, na verdade.

todavia, mesmo nestas circunstâncias, é possível identificar como escopo de celebração do acordo parassocial a aludida função de especificação dos meios de tutela tendo as partes elegido, para o efeito, a tutela arbitral.

nestes casos, não obstante o critério da conexão funcional não apontar nesse sentido, deve prevalecer o meio jurisdicional fixado no acordo parassocial, em razão da sua função de especificação de meios de tutela (e no âmbito da especificação operada).