Nota 2 (Badiou, São Paulo)

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Se é verdade que a peculiaridade do pensamento de Paulo é a produção de uma cesura (histórica?) que se baseia unicamente nas leis gerais da universalidade (p. 126), uma vez que o acontecimento mesmo a que ele é fiel (a ressurreição de Cristo) não pode ser senão (para nós?) uma fábula; se é verdade que isso significa que tal cesura está baseada “nas condições formais e nas consequências de uma consciência-de-verdade enraizada num puro acontecimento” (p. 125) e se é verdade que um militante “constitui” sua subjetividade a partir do acontecimento, então é bastante plausível a tarefa que Badiou se colocaria de pensar a figura do militante em geral a partir de um pensamento que funda sua posição subjetiva nas leis gerais do acontecimento. Se esse quadro faz sentido, me parece que há (pelo menos) três elementos ou grupos de elementos a considerar quando se trata de caracterizar tipológica ou formalmente (isto é, abstração feita do acontecimento real em um processo de verdade real) a figura do militante: 1) o regime de discurso/a disposição subjetiva que se instaura na fidelidade a um acontecimento (na linguagem paulina, o discurso do apóstolo (p. 53)); 2) os conceitos que enquadram essa fidelidade mesma (na linguagem paulina, pístis (fé/convicção), ágape (caridade/amor) e elpís (esperança/certeza) (p. 22)); 3) a cisão subjetiva que caracteriza a subjetividade militante (na linguagem paulina, as vias subjetivas do espírito e da carne que se ligam, do ponto de vista do objeto, ou no real, respectivamente a vida e morte (real entendido aí como “o que se concebe num pensamento subjetivante” (p. 67; definição que, por sinal, acho que merece(ria) uma explanação mais detalhada))). Com relação a esses três grupos de elementos, um ponto que me parece delicado é distinguir claramente o que vale como elaboração da leis gerais do acontecimento e o que é característico da situação, do mundo com que Paulo tem que lidar na sua fidelidade ao acontecimento (fabuloso...) da ressurreição do Cristo. Pensando esse ponto delicado com relação ao item 1 acima (ao qual me limito aqui; gostaria de voltar aos outros em outra oportunidade), me parece que se dá o que segue. Parece evidente que, ao ser fiel a um acontecimento, o militante não encontrará no mundo/na situação em que vive comunidades particulares agrupadas sob o nome de judeus e gregos, ou mesmo judeus e pagãos. Mas o regime de discurso/a disposição subjetiva representado/a por cada um desses dois nomes particulares não estará sempre presente formalmente em uma situação? Vejamos: em linhas gerais, o grego é o discurso da totalidade natural e cósmica, cuja lei é a adaptação do sujeito essa totalidade, para o que é necessária a dominação de tal totalidade pelo saber – o que se realiza pela posição subjetiva (que ocupa o lugar do mestre) do sábio. Já o judeu é “na exceção, o grego” (p. 53), é o discurso do que foge à totalidade (do não todo? Do não totalizável?), cuja lei se relaciona com a decifração dos signos (da eleição de uma comunidade), para o que é necessária o domínio sobre essa decifração – o que se realiza pela posição subjetiva (que ocupa o lugar do mestre) do profeta.

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Segunda nota de trabalho sobre o São Paulo, a invenção do universalismo, por Germano Nogueira Prado (047)

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Page 1: Nota 2 (Badiou, São Paulo)

Se é verdade que a peculiaridade do pensamento de Paulo é a produção de uma cesura

(histórica?) que se baseia unicamente nas leis gerais da universalidade (p. 126), uma vez que o

acontecimento mesmo a que ele é fiel (a ressurreição de Cristo) não pode ser senão (para nós?) uma

fábula; se é verdade que isso significa que tal cesura está baseada “nas condições formais e nas

consequências de uma consciência-de-verdade enraizada num puro acontecimento” (p. 125) e se é

verdade que um militante “constitui” sua subjetividade a partir do acontecimento, então é bastante

plausível a tarefa que Badiou se colocaria de pensar a figura do militante em geral a partir de um

pensamento que funda sua posição subjetiva nas leis gerais do acontecimento.

Se esse quadro faz sentido, me parece que há (pelo menos) três elementos ou grupos de

elementos a considerar quando se trata de caracterizar tipológica ou formalmente (isto é, abstração

feita do acontecimento real em um processo de verdade real) a figura do militante: 1) o regime de

discurso/a disposição subjetiva que se instaura na fidelidade a um acontecimento (na linguagem

paulina, o discurso do apóstolo (p. 53)); 2) os conceitos que enquadram essa fidelidade mesma (na

linguagem paulina, pístis (fé/convicção), ágape (caridade/amor) e elpís (esperança/certeza) (p. 22));

3) a cisão subjetiva que caracteriza a subjetividade militante (na linguagem paulina, as vias

subjetivas do espírito e da carne que se ligam, do ponto de vista do objeto, ou no real,

respectivamente a vida e morte (real entendido aí como “o que se concebe num pensamento

subjetivante” (p. 67; definição que, por sinal, acho que merece(ria) uma explanação mais

detalhada))). Com relação a esses três grupos de elementos, um ponto que me parece delicado é

distinguir claramente o que vale como elaboração da leis gerais do acontecimento e o que é

característico da situação, do mundo com que Paulo tem que lidar na sua fidelidade ao

acontecimento (fabuloso...) da ressurreição do Cristo.

Pensando esse ponto delicado com relação ao item 1 acima (ao qual me limito aqui; gostaria de

voltar aos outros em outra oportunidade), me parece que se dá o que segue. Parece evidente que, ao

ser fiel a um acontecimento, o militante não encontrará no mundo/na situação em que vive

comunidades particulares agrupadas sob o nome de judeus e gregos, ou mesmo judeus e pagãos.

Mas o regime de discurso/a disposição subjetiva representado/a por cada um desses dois nomes

particulares não estará sempre presente formalmente em uma situação?

Vejamos: em linhas gerais, o grego é o discurso da totalidade natural e cósmica, cuja lei é a

adaptação do sujeito essa totalidade, para o que é necessária a dominação de tal totalidade pelo

saber – o que se realiza pela posição subjetiva (que ocupa o lugar do mestre) do sábio. Já o judeu é

“na exceção, o grego” (p. 53), é o discurso do que foge à totalidade (do não todo? Do não

totalizável?), cuja lei se relaciona com a decifração dos signos (da eleição de uma comunidade),

para o que é necessária o domínio sobre essa decifração – o que se realiza pela posição subjetiva

(que ocupa o lugar do mestre) do profeta.

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Ora, na medida em que um dos fenômenos pelos quais se identifica um acontecimento é o fato

de que ele é um ponto real onde a língua chega a um impasse – e é isso que Paulo identificaria

como o que ocorre com o acontecimento-Cristo diante desses dois discursos constituídos. Mas por

quê?

Não parece que é por uma característica peculiar a esses discursos enquanto discursos daquela

situação, e sim por condições formais (universais?) da universalidade mesma, mais precisamente

(ao menos) duas. A primeira, é o fato de que ambos os discursos estão “encapsulados” pela lógica

do Todo: um afirmando-a (o grego), outro se colocando como exceção a ela (o judeu). Nesse

sentido, por limitarem-se mutuamente (como Todo e não-Todo), podem no máximo alcançar a

particularidade e não a universalidade (do todoS...). A segunda característica é que ambos se

constituem como discursos do mestre, do pai-criador – e a subjetividade como determinada pela

carência(-do-)-domínio do mestre. Ora, o acontecimento, além de universal, “produz” uma

subjetividade não-carente, em que nada falta, que é a pura espontaneidade de um começo absoluto:

todos são filhos do acontecimento (p. 65), e este, não obstante, não é a figura do domínio que é o

pai (este é justamente morto por essa filiação). (Aqui, aliás, não seria fundamental que o

acontecimento envolva justamente a ressurreição, que supõe a morte de Deus-Cristo? Não seria o

caso de pensá-la como a morte do pai para o renascimento universal de todos como filhos desse

acontecimento?)

Isso não mostraria que é formalmente constitutivo de toda situação a formação de discursos do

saber da totalidade e da profetização da exceção da, da não-totalidade? Não seria isso a hegemonia

do discurso da “civilização ocidental” (o (pretenso) todo) em relação às “minorias” que excedem a

ele (a começar pelos judeus, mas passando pelos negros, mulheres, homossexuais, etc, etc.)?

O novo discurso de Paulo, o discurso do apóstolo, parece também conter as características

formais de toda e qualquer subjetividade militante: a fidelidade à declaração do acontecimento, não

só como fé em sua possibilidade, mas como trabalho de suas consequências (amor) e convicção em

seu caráter acabado sustentando cada passo (esperança). Ademais, como pura declaração, se recusa

a tomar como prova não só o saber constituído (o grego) e a decifração de sinais (o judeu), mas

também qualquer (a alegação de) qualquer convicção íntima e inefável. Ora, não convivemos com

esse tipo de discurso não só dos fundamentalistas religiosos contemporâneos, mas também no caso

de certos marxistas dogmáticos? (Discurso que, como bem observa Badiou, é um quarto, mas

quando pronunciado se torna o segundo: o oferecimento de uma decifração de sinais (íntimos) como

prova de uma declaração.) Não é sobretudo em relação a este último que deve se guardar o

militante, justo para que a fidelidade ao acontecimento “conte” tão só com a declaração mesma,

“gratuita”, e com o trabalho nas consequências do processo de verdade que aquele abre? (Aliás, em

que medida este trabalho não pode ser considerado como “provação” (o ser-determinado-por, mas

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sobretudo a comprovação do (ser a partir do) acontecimento? Por que se recusar a toda prova,

mesmo que retrospectiva?)

Ora, se tudo isso faz parte das condições formais do acontecimento, ou ainda que nem tudo o

faça, acho que ainda cabe perguntar: se o acontecimento, seja qual for, tem alguma lei geral, em que

medida um acontecimento não pode mudar suas próprias leis gerais? Negar que isso possa

acontecer não seria subtrair muito da radicalidade do conceito de acontecimento?

***

Na medida em que o acontecimento é um ponto cego no saber (dado), na medida em que ela abre

um novo campo do possível e na medida em que não se confunde com um fato (algo acontecido no

campo de possibilidades de uma situação/estado/mundo), falar em voto com investigação/ voto

investigativo ainda não seria arriscar recair em uma investigação de dados? Não seria preciso falar

em um voto que “cria” (ou tenta criar) outros possíveis?

Mais, ainda: em vez de ampliar a noção de voto, demasiado ligada a Estado e representação

política, não seria preciso localizar o voto em uma compreensão de ação política mais amplas – nos

apropriando de, e quiçá ressignificando, a palavra “engajamento”?

(Germano Nogueira Prado)