Nos Tempos Antigos a Ciência Dos Mitos Indígenas

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Os mitos indígenas

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  • Nos tempos antigosA cincia dos mitos indgenas

    Luiza Mastop-LimaJane Felipe Beltro

    Belm - Par - 2010

  • Equipe do Projeto Etnoconhecimento Suru: a fauna no universo Aikewra

    CoordenaoLuis Junior Costa Saraiva

    Luiza de Nazar Mastop de Lima

    ColaboraoJane Felipe Beltro

    Flvio Bezerra BarrosFlvio Leonel Abreu da Silveira Rita de Cssia Domingues Lopes

    Bolsistas Fabrzia Silva Rodrigues

    Luciene Neres Gomes Maria Reginea Reis de Brito

    Professoras Indgenas Hj Suru

    Thim Suru

    Ilustraes Alunos da Escola Indgena Moroneik Suru ELETRONORTE. Brasil 500 Pssaros, 2000.

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARINSTITUTO DE EDUCAO MATEMTICA E CIENTFICA

    CENTRO DE PESQUISA E DESENVOLVIMENTO DA EDUCAO MATEMTICA E CIENTFICA

    Volume 46

    Nos tempos antigosA cincia dos mitos indgenas

    Luiza Mastop-LimaJane Felipe Beltro

    Educimat 53

    Belm - Par - 2010

  • Conselho Editorial

    Adilson Oliveira do Esprito Santo UFPA/ Ed. MatemticaEugnio Pacelli Leal Bittencourt UFPA/Ed. em FsicaGleiciane de Sousa Alves SEDUC/ Ed. Matemtica

    Jos Fernando Pina UFPA/ GeologiaMaria de Ftima Vilhena da Silva UFPA/ Ed. em CinciasMaria Joaquina Nogueira da Silva UEPA/ Ed. Inclusiva

    Neivaldo Oliveira Silva UEPA/ Ed. Matemtica Oneide Campos Pojo SEDUC/ Ed. Infantil

    Roslia Maria Ribeiro do Arago UFPA/ Ed. em Cincias Terezinha Valim Oliver Gonalves UFPA/ Ed. em Cincias

    Dados Internacional de Catalogao na Publicao (CIP)Biblioteca Setorial do NPADC, UFPA

    Nos tempos antigos: a cincia dos mitos indgenas / Luiza Mastop-Lima, Jane Felipe Beltro. Belm: EDUFPA, 2010. 43 p._ (EDUCIMAT, 53).

    ISBN 85-247-0292-3ISBN 978-85-247-0491-8

    1. Mitologia indgena. I. Mastopo-Lima, Luiza II. Beltro, Jane Felipe. III. Srie.

    CDD - 22. ed. 398.232861

  • Mitos: para ninar, encantar, conhecer e dialogar7

    1. E assim fez-se o livro8

    2. Como o livro foi feito10

    3. Naquele tempo ...12

    4. Como surgiram os Aikewra13

    5. A cincia dos mitos16

    6. A origem das caas26

    7. Mitos: conhecimento e identidade31

    8. Para saber mais38

    Sobre as autoras 41

    Sobre o Programa EDUCIMAT42

  • 7Mitos: para ninar, encantar, conhecer e dialogar

    Boi, boi, boi, boi da cara preta pega esta criana que tem medo de careta cantam as mes quando somos pequeninos, a letra aterrorizante, mas a msica calma como o embalo de nossas redes, voz de me puro carinho e por mais que seja esganiada, a ns parece doce.

    Ninado no colo da me ou no regao do pai, logo adormecemos. Se na falta dos dois a vov cheia de cumplicidade aparecer, a todas as graas encantam netos e netas. Av que duas vezes me faz questo de esquecer das regras sociais para ter os netos perto de si, na esperana de ensinar o que sabe. Alguns conhecimentos parecem estranhos, meio fora de poca, mas nos fazem sonhar e, crescidinhos, comeamos a entender o porqu dos cuidados, das canes e das histrias.

    Melhor do que histrias de av, s um vov, senhor de suas histrias, que do alto da sua senhoriedade nos compromete com bom comportamento, pelo menos enquanto durar a conversa, na medida em que conta causos e histrias do tempo que se foi, mas que retorna com as narrativas que conta aos netos como aventura.

    Nas narrativas de outrora muitos segredos so revelados, mas as narrativas que nos concedem o prazer de estar com os parentes no so privilgios de nossa sociedade, toda a humanidade parece ter o dom da oratria, da cantoria, do ninar suas crianas de forma aconchegante. As histrias nem sempre esto escritas, da nem sempre podemos ler, isso bom, pois nos

  • 8permite escutar, aprender, perguntar e usufruir daqueles que so mais experientes.

    Entre os Suru Aikewra no diferente. Entre eles h exmios narradores e ns escrevemos este livro em companhia deles para apresentar a cincia dos mitos que traz ao presente os tempos antigos e nos permite compreender o universo dos povos indgenas que nossos livros escolares ainda teimam em esconder.

    Muitas de nossas histrias so de origem indgena e, s vezes, no conhecemos os segredos da floresta guardados pelos povos indgenas, muitos dos quais nem so mas podem ser moradores da floresta pelo compromisso de defender seus interesses entre ns.

    O livro vai revelar um pouco do conhecimento Aikewra na tentativa de fazer o leitor desejar manter um dilogo intenso com as nossas tradies. Portanto, leitura!

    1. E assim fez-se o livro

    Certo dia, estvamos ns na aldeia Soror, local onde vive o povo indgena Aikewra, conhecido como Suru ou Suru do Par. Aikewra, em Portugus, significa ns, a gente. A rea Indgena Soror, terra dos Aikewra, fica localizada na regio Sudeste do Par, numa rea que abrange os hoje municpios de Marab, So Domingos do Araguaia e So Geraldo do Araguaia.

    Na poca, a escola existente na aldeia no respondia s expectativas do cacique, pois o que se ensinava aos estudantes

  • 9indgenas no fazia sentido, era muito difcil aprender o que os no-indgenas queriam dizer. Crianas e Jovens olhavam realidade cotidiana e no conseguiam fazer correlaes com o que lhes ensinavam professores no-indgenas, tudo parecia distante, sem sentido e inoperante entre os Aikewras. A vontade do cacique era que a partir da escola eles pudessem aprender o que o branco ensina, mas tambm ver aqueles ensinamentos se aproximarem da realidade vivida na aldeia. Ele queria que na escola dele no se ensinasse apenas as coisas dos brancos, mas tambm que a escola pudesse ser mais um espao de vivncia da cultura Aikewra. Desgostoso o cacique Mair falou: ... ns precisamos de livro! Livro que conte nossa vida pra ensin os

    meninos. Eles to tudo na escola, mas no sabe dos Aikewra.Da conversa, resultou o livro que agora vem a pblico.O pedido de Mair, que a ns soou como compromisso, no

    entanto, no significa que os Aikewra no saibam fazer o livro, pois eles o tm na cabea, assim como ns sabemos e fazemos coisas que no aprendemos na escola. O tom do livro quem d so os Aikewra; so eles que dizem o que querem, ns somos apenas as escribas. importante frisar que a tradio Aikewra oral.

    Com isso, os Aikewra querem que todos saibam que eles, assim como ns, tm histrias para contar, ensinar e encantar. E que essas histrias do significado vida deles, pois por meio delas muito se aprende da cultura do povo Aikewra e de como se relacionar com os seres existentes no mundo, como natureza e cultura se integram. A partir deste livro eles podem fazer da

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    escola um espao de vivncia da cultura e desta forma dar sentido ao que l se ensina e aprende.

    2. Como o livro foi feito

    O pedido do cacique ficou em nossas cabeas e nos deixou alerta para as oportunidades de realiz-lo, oportunidade que surgiu em 2004-2005 por ocasio de um edital do Programa Integrado de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extenso (PROINT), da Universidade Federal do Par (UFPA), para o qual se apresentou o projeto Etnoconhecimento Suru: a fauna no universo Aikewra. O projeto, tal qual este livro, foi feito a muitas mos: de indgenas Aikewra de diferentes geraes que narraram e coletaram os mitos, elaboraram desenhos; de estudantes de Cincias Sociais, que elaboraram e executaram planos de trabalho que integram as informaes aqui contidas; de docentes de diferentes reas do conhecimento que orientaram as aes do projeto.

    Foram coletados mitos e pesquisados a partir deles os diferentes usos da fauna entre os Aikewra. Entre os usos que eles fazem da fauna esto os rituais, a confeco de artefatos, a alimentao, o estabelecimento de normas, como veremos ao longo deste livro.

    Como no somos falantes da lngua Aikewra, trabalhamos com pessoas que falam tanto a lngua materna, como o portugus, para traduzir as informaes coletadas junto aos mais velhos do povo. Alis, o fato de o livro ser em Portugus faz parte da preocupao de Mair que as tradies Aikewra possam ser

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    conhecidas no apenas por eles, mas tambm por outros povos indgenas e tambm pelos no-indgenas. Apesar de os Aikewra estarem em um contexto de falta de fluncia da lngua materna, os mais velhos sabem narrar os mitos na lngua e no querem que os mais novos deixem de vivenciar a tradio das narrativas, por mais este motivo o livro est escrito em Portugus.

    Alm dos interlocutores Aikewra, uso-se um livro-guia com fotos de pssaros encontrados na Amaznia, a fim de identificar a variedade de aves por eles conhecidas, assim como o uso que delas feito.

    Todos os dados coletados para este livro so resultado de pelo menos 10 anos de pesquisa de campo junto aos Aikewra, assim como outros trabalhos, como o caso dos laudos antropolgicos elaborados por pesquisadores da Universidade Federal do Par a pedido deles. Os anos de parceria renderam frutos tais como trabalhos de concluso de curso, dissertaes de mestrados, projetos de pesquisa-ensino-extenso, o que para a comunidade se traduziu, entre outras coisas, em conquista de direitos e valorizao da cultura. So muitas histrias vividas com os Aikewra, histrias que ficam na memria do povo e na nossa e sero contadas s geraes futuras como parte do ensinamento de ser Aikewra.

    Pelo trabalho em conjunto esperamos ter escrito a contento o que o cacique Mair nos pediu, esperamos que os Aikewra possam us-lo para o fim almejado e que a leitura seja to prazerosa quanto o trabalho realizado para fazer este livro. Faa voc tambm parte dessa histria!

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    3. Naquele tempo ...

    Quem no ouviu histrias contadas por pessoas mais experientes que fazem referncia a tempos antigos, a ensinamentos de ontem ou a sagas de pessoas e grupos em busca de ser quem so? As narrativas esto presentes em nosso dia-a-dia: quando lemos s crianas para dormir, quando ouvimos nossos avs ou pais contarem histrias, quando ns mesmos narramos as referidas histrias para as pessoas da nossa gerao ou da gerao mais jovem, nas msicas que ouvimos, nos filmes que assistimos entre tantas outras possibilidades de viajar a tempos antigos.

    Imaginemos a linha do tempo da vida de um personagem imaginrio em nossa sociedade. Quando beb, essa pessoa ninada pelos pais ou avs com cantigas de melodia suave, muito embora s vezes as letras no sejam nada suaves, mas que tm a finalidade de acalmar as crianas e acalentar o sono. Nas noites da tal pessoa durante a infncia tambm esto presentes narrativas de seres que existem na nossa imaginao, outros mundos, outros tempos. Tambm identificamos tais narrativas na idade escolar, em que as viagens se fazem a partir de leituras de histrias da nossa sociedade e de outros lugares mundo afora.

    Mas e entre os povos indgenas? Ser que a trajetria percorrida pelas narrativas orais a mesma que a verificada entre ns? Por que ser que nossos pais e avs narram as histrias que um dia ouviram de outras pessoas mais experientes? Por que tendemos a narrar essas histrias a geraes subseqentes nossa? O que a reproduo deste ciclo significa? Por que

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    importante reproduzi-lo? Essas so algumas das perguntas que vo guiar o leitor na viagem sobre a cincia revelada por um tipo de narrativa particular: os mitos. Para trilhar este caminho, nada melhor que viajar pelos mitos indgenas, e, para este livro, os mitos Aikewra, nos chamam. Vamos a eles!

    4. Como surgiram os Aikewra

    Segundo os narradores Aikewra,

    [t]eve um ndio que foi buscar a taboca para fazer flecha l na Serra das Andorinhas, a veio a gua e tomou tudo, gua assim mata tudo. A o ndio vinha vindo, vinha vindo para voltar para a casa dele, a aldeia dele. A ele escutou xu, xu, xu, xu, ento voltou depressa, quase que ele ia morrer, quase que ele ia ficar tambm dentro da gua.

    A ele correu, correu, foi correndo, correndo mesmo, quase que a gua ia pegando ele. A ele subiu em cima de um coqueiro bem alto na Serra das Andorinhas. Ento ele pensou: Ser que minha turma morreu toda?

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    Quando ele subiu no coco ele viu um bocado de bichos: arara, curica, tucano, mutum, tudo bicho que tava na Serra das Andorinhas.

    O ndio passou muitos dias com fome em cima do coco, esperando o cho enxugar para ele poder voltar para a aldeia dele.

    Depois de muitos dias, ele escutou tapiira (anta) batendo na mata, no cho mesmo. A ele falou assim: Ser que ele t enxugando o que a gua tomou? Ser que minha mulher morreu? Meu filho morreu? Ser que a turma morreu? O capito morreu? J enxugou? Ah, vou reparar.

    A ele desceu do coqueiro e pisou bem devagarinho, na hora que ele foi descendo na Serra das Andorinhas.

    Ento ele falou assim: Ah, t bom. Eu vou agora, vou pra minha aldeia, pra gente comer!

    Quando ele chegou na aldeia no achou ningum, a gua tinha matado tudo. Ele s achou o mutum e a gara, aquele pssaro branco.

    Como ele estava com fome, foi arrancar mandioca para ralar para poder fazer farinha. Quando ele acabou de ralar a mandioca ele falou pro mutum assim: Voc repara pra mim a massa, porque vou caminhar pra ver se a nossa turma t viva ainda. Repara pra mim, e na hora que chover, bota pra dentro. A ele foi embora gritando, gritando pela turma dele, no caminho assim. Ningum respondeu, tinha morrido tudo mesmo. Ele gritou de novo e

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    depois chegou em casa, e viu que tinha uma panela de barro, bem bonita mesmo, para torrar a farinha.

    A ele falou assim pro mutum: Voc repara quem que t botando pra mim a massa na casa? E saiu gritando de novo procurando a turma dele. E fincou pensando no caminho: Quem ser que t pegando minha massa pra botar dentro da casa? No possvel que no seja gente, ele falou para ele mesmo. Ser que vou morrer sozinho?

    Na hora que o dia amanheceu, ele foi embora gritando de novo pela turma dele, para ver se algum respondia para ele. Como ningum respondeu, ele voltou calado.

    Quando ele chegou em casa, encontrou massa de mandioca l dentro de novo. E s via o mutum e a gara, que ns chamamos wirating.

    Ele resolveu sair, como fazia todos os dias, para procurar gente. Mas neste dia, ele ficou escondido na mata para ver quem que guardava a massa de mandioca na casa dele. Foi quando ele viu que quem colocava a massa na casa eram o mutum e a gara.

    Quando ele descobriu, o mutum e a gara falaram para ele: Tu no vais ficar sozinho, no. Ns vamos ser tuas companheiras. Ele disse: Ento t bom. Eu vou casar com vocs. O mutum e a gara viraram mulher e casaram com o ndio. A vai ano, vai ano, os filhos foram crescendo, a foi

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    casando com os irmos deles mesmo, a foi aumentando de novo a turma dele, foi aumentando os Aikewra.

    Narrado este mito, lanamos ao leitor um desafio: o que voc poderia dizer sobre a cultura deste povo a partir da origem dele narrada no mito? As respostas parecem incompletas ou incertas, no ? Mas, mesmo sem saber as respostas dadas, e sabendo que o leitor no conhece a fundo o povo de que trata o mito, podemos prever que algumas delas correspondem realidade Aikewra. Acompanhe conosco a viagem pela cultura Aikewra e confira suas respostas.

    5. A cincia dos mitos

    Para compreender o mito e o que ele revela preciso refletir sobre ele a partir de um contexto. Assim vamos conhecer agora um pouco mais dos Aikewra e saber como o mito d sentido vida deles.

    Os Aikewra, tambm conhecidos como Suru e Suru do Par, so um povo Tupi. Esta classificao referente classificao feita pelos lingistas, que organizam os povos indgenas do Brasil de acordo com a lngua falada por eles.

    H dois grandes troncos lingsticos: o tronco Macro-J e o tronco Tupi. A partir destes troncos so organizadas as famlias que pertencem a eles; as lnguas que possuem caractersticas semelhantes ou prximas compem as famlias. Povos indgenas diferentes podem falar lnguas da mesma famlia, ainda que as palavras usadas possam no ser as mesmas, a comunicao entre eles flui pela proximidade das lnguas, ou o parentesco

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    lingstico, por assim dizer.De acordo com os especialistas, no Brasil existem 180

    lnguas indgenas, organizadas em 10 famlias do tronco Tupi, nove famlias do tronco Macro-J e 20 famlias cujas caractersticas no se aproximam dos dois grandes troncos lingstico, sendo classificadas fora deles. Para termos idia de como essas lnguas esto distribudas pelo pas, podemos ver a figura a seguir.

    Figura 1. Lnguas indgenas faladas atualmente no Brasil. Fonte: Instituto Socioambiental, 2009. Disponvel em www.pibmirim.socioambiental.org

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    Voltando aos Aikewra, eles habitam a regio do hoje Sudeste do estado do Par, suas terras abrangem trs municpios: Marab, So Domingos do Araguaia e So Geraldo do Araguaia.

    Segundo relatos histricos, o primeiro contato organizado dos Aikewra com os no indgenas aconteceu pelos idos dos anos 1950, em que um frei, chamado Gil Gomes Leito, reuniu alguns homens e foi aldeia, deixando alguns presentes para os Aikewra.

    O povo Aikewra possui, portanto, mais de meio sculo de contato com os no indgenas; a populao Suru durante este perodo aumentou de cerca de 40 para 370 pessoas. Atualmente, os Aikewra possuem terra demarcada e homologada, a rea Indgena Soror, e moram em uma aldeia com escola e posto de sade.

    A escola oferece o nvel fundamental, apenas, com professores indgenas e no indgenas. Os professores indgenas so os que cuidam do ensino formal da lngua Aikewra, alfabetizando as crianas na lngua e em portugus.

    Embora tenham a escola, ela ainda no funciona como os Aikewra gostariam que ela funcionasse e que tm direito, com ensino diferenciado, dialogado com a cultura deles. Essa uma das bandeiras de luta no s deste povo, como do movimento indgena de uma maneira geral no Brasil.

    A assistncia sade na aldeia, assim como a educao escolar, apresenta problemas, mas os Aikewra esto conseguindo manter o trabalho de agentes indgenas de sade (AIS) e de

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    agentes indgenas de saneamento (AISAN) que em conjunto com os tcnicos de enfermagem que trabalham na aldeia prestam os primeiros socorros, acompanham os doentes e encaminham para Marab os casos mais graves. Em Marab os indgenas so encaminhados pela Fundao Nacional de Sade (FUNASA) aos hospitais pblicos em Marab.

    Os Aikewra so agricultores, assim como o so os demais povos Tupi, alis, esta uma caracterstica marcante desses povos. Eles costumam fazer uma roa comunitria, com produtos como arroz, abbora, mandioca, milho, feijo. As famlias trabalham na roa da comunidade e as que querem, fazem as roas individuais.

    Alm da roa, os Aikewra caam, pescam e coletam frutos na floresta, dentre os quais se destaca o cupuau e a castanha, que so comercializados localmente.

    Ao ler o mito de origem deste povo, v-se referncias agricultura, quando o personagem principal vai colocar roa de mandioca para fazer farinha. E esta uma prtica que os Aikewra vm realizando ao longo dos tempos, pois aprenderam que mandioca e farinha so alimentos que devem gostar e valorizar.

    Os dois outros protagonistas da narrativa, o mutum e a gara, so animais mticos de grande estima e utilidade para os Aikewra. A relao que eles estabelecem com esses animais expressa de vrias maneiras:

    i) Os Aikewra possuem tabu alimentar em relao ao mutum, por exemplo, eles podem mat-lo, mas no podem com-lo. Existem, no entanto, diferentes espcies de mutum e

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    a partir da convivncia com os Aikewra o que se verificou foi que o mutum com o qual eles mantm esta relao o mutum castanheiro, por isso muito provavelmente desta espcie o mutum de que fala o mito.

    ii) Com eles os Aikewra aprenderam a fazer panela de barro para processar os alimentos, cozinhando-os ou torrando-os, como o caso da farinha.

    iii) As penas e plumagens dessas aves so usadas pelos Aikewra para confeccionar artefatos de uso cotidiano e/ou ritual, como mostram as figuras a seguir.

    Figura 2. Adornos plumrios de cabea, utilizados em rituais dos Aikewra.

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    Os artefatos aqui mostrados, assim como os mitos, comunicam algo da cultura do povo Aikewra e que desvelado a partir da convivncia com ele. Os artefatos que aparecem na Figura 2, por exemplo, so de uso masculino e ritual. Nem todos podem ser usados por qualquer homem Aikewra, a faixa emplumada que vemos na figura um exemplo disso: ela utilizada por homens mais experientes do grupo, classificados como guerreiros, segundo a classificao etria deste povo. Alm deles, apenas o cacique e o paj ou seu aprendiz podem utilizar tal adorno.

    As mulheres tambm usam artefatos (Figura 3), sejam eles rituais ou no, mas para elas o formato outro para marcar a diferena entre os gneros, assim como acontece entre ns. E elas no fazem distino de uso de acordo com a idade ou com o reconhecimento da autoridade dentro do grupo.

    Figura 3. Atut, adorno plumrio feminino

    Des

    enho

    : Soc

    orro

    Lac

    erda

    .

    Quanto aos rituais, um se destaca pela relao direta que tem com o ensino-aprendizagem do que significa ser Aikewra: a Festa do Karuwra. Este ritual est relacionado

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    ao calendrio agrcola do povo e representa um momento de afirmao e renovao da cultura. Durante ele, os Karuwra, como so chamados os espritos dos pajs que j morreram, saem de suas grutas na floresta ou descem dos cus para ensinar o que ser Aikewra. O ritual dura entre 10 a 15 dias, durante os quais os Aikewra tm de permanecer na aldeia apenas, sem poder ir floresta. Por isso o ritual requer dias de preparao, que inclui alimentao, pintura corporal, confeco de artefatos, narrativas dos mais velhos sobre o acontecimento. A Figura 4 a seguir mostra os homens Aikewra saindo da casa ritual que construda para o evento e que assim que ele finda deve ser destruda.

    Figura 4. Desenho feito por estudante da Escola Indgena Moreneik Suru, representando a Festa de Karuwra.

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    Neste ritual, no apenas os adornos marcam a diferena entre homens e mulheres, tambm durante a dana essa diferena existe. A Figura 5 a seguir mostra a disposio de homens e mulheres durante a dana.

    Des

    enho

    : Lui

    za M

    asto

    p-Li

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    Figura5. Esquema da dana no ritual dos Karuwra

    Ao centro desses crculos esto o paj e seu aprendiz, no ritual eles devem controlar os espritos Karuwra que vo at aldeia para a renovao da cultura. Ao redor deles os homens

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    mais jovens e mais velhos formam crculos concntricos que se movimentam em direes opostas. Mais ao exterior e sempre se movimentando em sentido anti-horrio fica o crculo das mulheres e das crianas.

    Durante este ritual, os homens devem fumar grandes cigarros feitos por eles mesmos e um dos guerreiros deve defumar as mulheres. Como elas no podem fumar durante o ritual, a fumaa que o guerreiro lana sobre elas tem o sentido mgico-religioso de espantar os maus espritos e proteg-las de todos os males que possam vir a amea-las.

    Como se v, a partir dos mitos h muitos desdobramentos por meio dos quais a cultura de um povo indgena pode ser desvelada.

    Retomando o mito, ainda, v-se que h outras informaes sobre a cultura Aikewra, como por exemplo, o fato de o mutum e a gara se transformarem em mulheres para poder serem as esposas do ndio que sobreviveu ao dilvio e da recomear a vida na terra com os Aikewra. Este costume de um homem ter mais de uma esposa conhecido como poligamia e praticado em diferentes sociedades.

    Pelos dados etnogrficos sobre os Aikewra, eles referem que nos tempos antigos os lderes costumavam ter mais de uma mulher. Com o contato dos Aikewra com os no indgenas este costume sofreu alteraes.

    A primeira delas ocorreu logo aps o contato, em que muitos Aikewra morreram devido a doenas s quais no conheciam e no eram resistentes a elas: gripe e catapora, por

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    exemplo. Com isso a populao chegou a 40 indivduos e para mudar isso os Aikewra adotaram um costume chamado de poliandria, em que era permitido, aceito e incentivado que as mulheres tivessem mais de um marido. Eles acreditavam que isso teria resultado no aumento do nmero de crianas que nasceria na aldeia. Embora saibamos que biologicamente isso no acontece desta maneira, esta foi a forma encontrada na viso de mundo deles para solucionar o problema.

    As sociedades, no entanto, no possuem um mito apenas, ou apenas uma verso do mesmo mito, e com as sociedades indgenas no diferente. O que ocorre que cada vez que se narra um mito, ele narrado de uma forma. Se pedirmos para nossos pais contarem para ns as histrias que eles ouviram quando crianas, e pedimos para nossos avs contarem as mesmas histrias, veremos que as verses so diferentes, isso porque as pessoas no possuem a mesma experincia de vida, os tempos no so iguais.

    Os mitos no possuem a verso, ou a verso mais completa, eles vo se atualizando a partir do movimento prprio da cultura e das diferentes geraes em que narrado.

    Os mitos tambm no so narrativas isoladas de outras narrativas, pelo contrrio, muitas vezes para se compreender melhor um mito, ou uma sociedade a partir de seus mitos, preciso coletar diferentes mitos e diversas verses de um mesmo mito. Ao estudo do conjunto de mitos que d sentido vida em sociedade chama-se mitologia.

    Por exemplo: viu-se que no mito de origem Aikewra os

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    animais so referidos, sabemos que os Aikewra praticam a caa, mas como esta prtica aparece nos mitos? Como eles aprenderam que caar uma atividade produtiva que devem realizar?

    Assim como um mito que explica a origem dos Aikewra no mundo, h um mito que conta como os animais viraram caa, conforme relatado a seguir.

    6. A origem das caas

    Era uma vez a festa l no cu, jacuh, jacamin e outros bichos ouviram a festa l no cu e queriam ir l. Naquele tempo o cu era baixinho. Macaco, porco, jacu, jacamim e

    guariba pensaram: - Como que ns fazemos? Ns queramos ir l no cu para cantar l. Neste tempo, os bichos eram gente.

    - No, bora flechar para ns irmos at l., disse Jacuh.

    Jacuh e jacamim pegaram a flecha e comearam a jogar l no cu. Eles no acertaram, ento, jacuh pensou no tatuh e mandou jacamim ir atrs dele. Tatuh estava dormindo e a mulher dele falou assim: Ei, tatuh, jacamim, jacuh e tapiira vieram chamar voc porque eles querem danar l no cu, que t cantando bonito para eles l.

    A tatuh acordou, ficou sentado primeiro, conversando

    com eles e depois disse: - Ento, ta bom, vamos. A tatuh pegou a flecha e acertou no cu. A jacamin tentou de novo, queria acertar, mas ele no acertou; nem ele, nem mutum, nem jacuh, nem tapiira, nem poraqu, nem arraia, s tatuh mesmo que acertou. Tatuh viu a flecha l em cima no cu e jogou outra, acertou a ponta atrs da outra, esticou de novo a corda do arco e acertou de novo, e de novo at as flechas chegarem at o cho.

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    Quando as flechas chegaram ao cho, jacuh, macaco, caititu, veado, a cutia, paca, macaco, macaco ti comearam a subir para o cu para danar na festa. Era muito bicho mesmo, mas naquele tempo os bichos eram gente.

    A, quando tapiira subiu, porque muito pesada, a ponta da primeira flecha arrancou do cu e todos os bichos que estavam subindo caram. Macaco veio e se pendurou no galho, caititu ficou no cho mesmo, porco tambm ficou no cho, poraqu caiu dentro dgua, arraia tambm e jacar tambm. Todos eles quando caram viraram bicho, no eram mais gente.

    Neste mito aparecem vrios animais que compem a avifauna conhecida pelos Aikewra e assim como o mutum e a gara, vrios so os usos que os Aikewra fazem desses animais. Conferira a seguir.

    O jacu (Penelope pileata), conhecido na lngua Aikewra como sac, costuma comer bacaba e aa. Ele tambm usado como alimento e as penas da calda e das asas servem de matria-prima para a confeco de ararw, nome na lngua dos adornos plumrios de cabea de uso masculino.

    O jacamim (Psophia leucoptera), sakamim na lngua Aikewra, come sementes e frutas do mato, como o murici. O jacamim tambm serve de alimento para os Suru, mas as crianas e as mulheres grvidas no podem comer sua carne.

    Jacu

    Jacamim

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    Tatuh como os Aikewra chamam o tatu (Priodomtes gigantus). Ele utilizado como alimento, sendo que as mulheres que esto menstruadas ou ento de resguardo no devem com-lo.

    Conhecida na lngua Aikewra como tapiira, a anta (Tapirus terrestris) consumida como alimento e sua captura feita noite, com uma tcnica de caada chamada espera. A carne da anta macho considerada pelos Aikewra como reimosa para pessoas no perodo ps-parto e com infeco interna e externa.

    Tiwaa o nome que os Aikewra do para o caititu (Tayassu tajacu). Frutas como o inaj fazem parte da alimentao do caititu. Alm de comer sua carne, os Suru s vezes pegam algum filhote na mata para poder criar em casa.

    Para o macaco-prego (Cebus apella) os Aikewra chamam kai. Sua alimentao constituda basicamente de inaj e castanha-do-par, a carne do macaco-prego consumida assada na brasa.

    O guariba (Aloiatta sp.) conhecido entre os Aikewra como akyky, Ele se alimenta de frutas como aca e caju. Sua carne tambm serve de alimento para os Aikewra.

    Tatu

    Macaco-prego

    Guariba

    Caititu

    Anta

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    O veado mateiro (Mazana americana), conhecido na lngua Aikewra como mixra alimenta-se basicamente de frutinhas do mato. uma das carnes de caa mais apreciadas pelos Aikewra, que costumam com-lo assado na brasa.

    Coco babau, banana braba e milho so os principais alimentos consumidos pela paca (Agouti paca), ou karuaruh, na lngua Aikewra. Para os Aikewra, as mulheres de resguardo no podem se alimentar de paca, pois sua carne considerada fonte de doenas neste estado da vida das mulheres.

    Uruwutinuh nome que os Aikewra do ao urubu-rei (Sarcoramphus papa). A relao do urubu com as mulheres expressa no mito do urubu-rei tambm vivida nos rituais Aikewra, pois h a msica e a dana do urubu, da qual s as mulheres fazem parte.

    Tawareri, como os Suru denominam a mucura (Didelphis marsupilis), se alimenta e pequenos animais e responsvel pelas dores que as mulheres sentem nos partos. Para os Aikewra, esta foi a forma da mucura se vingar das mulheres, por ter sido expulsa da festa do quati.

    Por ser uma das responsveis pelo renascimento dos Aikewra aps o dilvio que acabou com os primeiros Aikewra, a gara-branca (Egretta thula) ou wirating no pode ser morta e nem comida pelos Suru. Wirating se alimenta de peixes, encontrados nos audes e igaraps da aldeia.

    Veado-mateiro

    Paca

    Urubu-rei

    Mucura

    Gara-brancapequena

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    O Mutum (Crax fasciolata) ou myt, no mito de origem dos Aikewra a outra mulher responsvel pelo seu renascimento. Frutas como muruci e coco babau so muito consumidas pelo mutum. Os Aikewra usam penas de sua cauda e de suas asas na confeco

    de ararw grande, as penas do corpo e as penas do penacho so usadas na produo de ararw menores, de atut (adorno plumrio de cabea, de uso feminino), brincos e cordes.

    A Arara (Ara chloroptera) conhecida na lngua Aikewra como Ararakanguh, alimenta-se de castanha-do-par, e consumida pelos Aikewra. As penas da arara so muito valorizadas e representam prestgio para quem tem algum ornamento feito com elas. Suas penas so utilizadas para fazer ararw, atut, brincos, cordes, e

    tambm servem de ornamento nas saias rituais utilizadas pelas mulheres e meninas. Alm disso, os Aikewra tambm usam penas de arara em suas flechas e maracs.

    Os Aikewra do o nome tucanoet ao tucano (Ramphastos vitellinus). Bacaba e aa so os principais alimentos consumidos por esta ave. Os Aikewra usam o couro, as penas do peito do tucano e as penas vermelhas situadas acima da cauda para a confeco de atut.

    A curica (Amazona amazonica) conhecida na lngua Aikewra como tikw. Ela se alimenta de ing e suas penas so usadas na confeco de ararw.

    Tucano-de-bico-preto

    Arara-vermelha-grande

    Mutum-de-penacho

    Curica

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    Conhecida na lngua Aikewra como aete, a jibia (Boa constrictor) tambm representada na pintura corporal Aikewra.

    Um dos alimentos preditos da cutia (Dasyprocta sp.) ou akuti, na lngua Aikewra, o inaj. Ela consumida pelos Aikewra, exceto pelas mulheres quando esto menstruadas.

    Pelo exposto, v-se que os mitos operam como uma forma de conhecimento tambm e muito informam sobre a cultura de um povo. Agora que fizemos este percurso pelos mitos de um povo indgena, podemos dar continuidade anlise das questes inicialmente levantadas e ensaiar algumas concluses a respeito delas.

    7. Mitos: conhecimento e identidade

    Um mito pode fazer referncia a muitos assuntos: origem das sociedades; dos costumes e das tradies; ensinamentos sobre como se relacionar com outras pessoas e com a natureza, entre tantas outras possibilidades. Quando ouvimos algum mito de uma sociedade diferente da nossa, inevitavelmente, pensamos em como as coisas relatadas acontecem entre ns ou no. O relato pode despertar vrios sentimentos: proximidade ou distanciamento, familiaridade ou estranhamento, entre outros. Vamos ver porque isso acontece e o que significa.

    Jibia

    Cutia

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    Claude Lvi-Strauss, importante antroplogo francs, dedicou parte de sua obra ao estudo dos mitos. Ele se interessou pelos mitos pela possibilidade de os mitos constiturem meios a partir dos quais se entende a estrutura de pensamento e comportamento humanos. Para o renomado antroplogo, os mitos se referem sempre a acontecimentos passados, que esto ao mesmo tempo relacionados com o passado, o presente e o futuro da vida em sociedade. Relacionados ao passado porque referem fatos ocorridos, ao presente porque nos identificamos com o que relatado, conhecemos a origem de muitos costumes e tradies que praticamos, e ao futuro, porque os ensinamentos presentes nos mitos sero repassados s prximas geraes, que os atualizaro e daro continuidade histria de ser quem se , pois os mitos sempre esto relacionados identidade do narrador.

    Quem conta um mito expressa aquilo em que acredita, aquilo e que de certa forma explica o que se faz, como se faz, porque se faz. Ouvir ou contar um mito tambm uma forma de aprender e ensinar. Os mitos fazem parte de nossa socializao, pois os conhecemos ainda muito jovens, quando crianas, em nossa famlia. esta socializao primria que aprendemos como devemos nos portar no mundo, nos relacionar com as pessoas prximas e distantes, o que devemos valorizar, que crenas devemos cultivar.

    Nos mitos tudo pode acontecer: animais falam, sabem cozinhar, pescar, atirar flechas, cantar, enfim, vivem como se gente fossem. A tendncia pensar que os mitos so narrativas

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    fantasiosas, ou mesmo mentirosas. Onde j se viu animal falando?! S mesmo em conto de fadas! Ou ento nas histrias de Monteiro Lobato, como O Stio do Pica-pau Amarelo, por exemplo. Algumas das frases so corriqueiras ouvir ou falar quando se depara com um mito. Vamos refletir sobre elas a partir de um mito conhecido por muitos de ns: o mito do Curupira. Aqui vai a nossa verso dele.

    Existe na mata ou floresta uma criatura cabeluda que tem os ps para trs. Este ser protege a mata das pessoas que nela entram para caar por prazer e derrubar rvores indiscriminadamente. Algum que entra na mata com estas intenes e sem sua permisso, est sujeito aos aoites do Curupira e confuso que ele causa na cabea do desrespeitador. Como seus ps so virados para trs, ele confunde a mente de quem tenta seguir seus rastros e a pessoa fica completamente perdida na mata. Para entrar na mata preciso pedir licena ao Curupira e ao estar dentro dela, preciso seguir as regras.

    primeira vista, esta parece uma narrativa de caador, no mesmo sentido que damos para as histrias de pescador. No entanto, o mito traz ensinamentos acerca de preservao e/ou conservao de plantas e animais dos quais precisamos para vrios usos: alimentao, remdios, entre outros. Ensina que preciso ter uma relao de respeito com a natureza, fazendo uso racional dos recursos nela disponveis. Ensina tambm que h regras para se comportar bem na mata, assim como existem regras para o comportamento social. Longe de ser uma mentira, o mito do Curupira reflexo do que pensamos acerca da relao

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    natureza e cultura, ele d sentido a esta relao. No caso do mito do Curupira, poucas so as pessoas que

    mesmo no acreditando nele vo ousar descumprir as regras, pois o mito, como aspecto da cultura, em alguma medida opera em nossas vidas. a conhecida atitude de desacreditar no duvidando... Isso acontece porque faz parte do nosso aprendizado de vida ouvir tais narrativas, reproduzi-las e atualiz-las, ainda que seja para delas desacreditar.

    Se prestarmos ateno aos momentos em que nos deparamos com narrao de mitos, podemos identificar que a narrao no se faz de qualquer forma, nem por todas as pessoas da mesma forma, nem em qualquer ocasio. Podemos verificar que h contextos que privilegiam a narrao de mitos: lugares aconchegantes, narradores especializados na arte de contar mitos, momentos tranqilos em que deixamos nossa imaginao voar.

    Voltando ao personagem imaginrio do qual falamos sobre a trajetria de vida, identificamos as pessoas mais velhas e experientes como narradoras por excelncia dos mitos. No so todas, claro, mas entre elas h as que se destacam. So pessoas que tomamos como referncia para nos orientar na vida, nos aconselhar, pois as julgamos sbias e conhecedoras dos costumes e tradies de nossa sociedade.

    Esta sabedoria, no entanto, no vem do nada e no se aprendeu nos bancos de uma escola, ela advm da experincia, da capacidade que o ser humano possui de pensar e experimentar coisas que satisfaam necessidades concretas ou abstratas. Os

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    mitos de origem, por exemplo, orientam povos e naes acerca da existncia no mundo e de tudo o que nele h. por meio deles que se aprende a relao com o outro que semelhante a ns e com o outro que nos diferente. Aprender isso aprender o que se deve fazer para se ser considerado gente (e no animal) em determinada sociedade.

    Os mitos trazem informaes sobre nossa organizao social, nosso parentesco, sobre como pensamos que est constitudo o mundo em que vivemos, nossa viso de mundo ou cosmoviso. Para entendermos o que uma viso de mundo, podemos lembrar dos ensinamentos religiosos, por exemplo. Quem foi criado como catlico aprendeu que o mundo constitudo de pelo menos trs partes, por assim dizer: existe o mundo terreno (no qual vivemos), o que est acima dele e o que est abaixo dele. Os mundos de cima e de baixo so mundos opostos, em que para l iro ou no aqueles que no mundo terreno se comportam de determinada forma e aqueles que no se comportam de acordo com as regras sociais criadas, legitimadas e compartilhadas. Pode-se dizer, esta a cosmoviso catlica, a maneira como os catlicos vem o mundo, os seres e as relaes entre eles.

    interessante como muitas vezes no nos damos conta do processo e das formas que criamos para aprendermos a ser quem somos. J ouvimos falar, por exemplo, em pessoas que no concordam com o mundo em que vivem e decidem se afastar do convvio social, dizendo-se eremitas. Ser que isso mesmo possvel? Se lembrarmos que as pessoas que tomam

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    tal atitude so em geral pessoas que sabem se cuidar, prover seus alimentos, suprir suas necessidades, veremos que no h como essa pessoa deixar de ser gente, ou deixar sua identidade de lado, pois ela passou por um processo em que aprendeu como proceder para conseguir alimentos, a manipular ferramentas e fogo para process-los, aprendeu como conserv-los, o que deve e o que no deve comer. Aprendeu a construir abrigar-se do sol e da chuva, a se aquecer quando o tempo est frio, enfim aprendeu a viver. esperado e aceito que as pessoas vivam de forma diferenciada sua cultura, como nos fala o antroplogo Roque Laraia, mas o que no possvel a pessoa tirar de dentro de si a sociedade, os ensinamentos que lhes orientam a sobreviver no mundo. A construo de nossa identidade um movimento contnuo de fatores externos e internos que orientam a sermos quem somos e sermos assim reconhecidos pelos demais. Os mitos so fontes desses conhecimentos.

    Ouvir e contar mitos , tambm, uma forma de produzir conhecimento. O conhecimento ou a cincia presente nos mitos legitimado e atualizado a cada gerao, que deles se utiliza para ensinar os nefitos o que precisam saber para ser gente. Neste processo de ensinar-aprender-ensinar vamos construindo nossa identidade. Narramos mitos porque lembramos, lembramos porque aprendemos e aprendemos para ensinar. O exerccio cclico da memria a partir dos mitos um reencontro com o passado, a legitimao do presente e o referendar do futuro.

    A memria, segundo um socilogo francs de nome Maurice Halbwachs que se dedicou a estud-la, um fenmeno

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    social, fruto de construo coletiva. O mito existe porque as pessoas em sociedade o criaram, o legitimam, nele acreditam e o tomam como base para orientar suas aes. Os mitos do sentido vida, conforme afirma Bronislaw Malinowski, outro famoso antroplogo. por isso que os mitos so narrados, para se aprender a ser quem se , para se construir identidade.

    Como vimos, muito podemos aprender e ensinar a partir dos mitos. Na nossa sociedade no diferente, os mitos que narramos, longe de serem narrativas fantasiosas, confundidas com mentiras, so, na verdade, expresso de como concebemos nossa existncia no mundo e a relao que estabelecemos com tudo o que nele existe.

    De posse desse conhecimento, podemos ns tambm fazer um exerccio de anlise dos nossos mitos e desvelar a cincia que neles se expressa. Bom exerccio!

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    8. Para saber mais

    BATISTA, Glucia Aparecida. Entre causos e contos: gneros discursivos da tradio oral numa perspectiva transversal para trabalhar a oralidade, a escrita e a construo da subjetividade na interface entre a escola e a cultura popular. Dissertao de Mestrado. Taubat-SP: Programa de Ps-Graduao da Universidade de Taubat, rea de concentrao: Lngua Materna, 2007.

    BELTRO, Jane Felipe; MASTOP-LIMA, Luiza de Nazar; MOREIRA, Hlio Luiz Fonseca. De vtimas a indiciados, um processo de ponta-cabea: Suru Aikewra versus Divino Eterno - Laudo Antropolgico. Espao Amerndio (UFRGS), v. 2, p. 194 - 258, 2008.

    ELETRONORTE. Brasil 500 Pssaros, 2000.

    HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. So Paulo: Centauro, 2006 (1990).

    LARAIA, Roque de Barros & DaMATTA, Roberto. ndios e castanheiros - a empresa extrativa e os ndios do mdio Tocantins. So Paulo: Difel, 1967.

    LARAIA, Roque de Barros. A cultura condiciona a viso de mundo do homem In: Cultura: um conceito antropolgico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1986.

    LARAIA, Roque de Barros. Arranjos polindricos na sociedade Suru. In.: Revista do Museu Paulista. Nova Srie, vol. XIV. So Paulo, 1963.

    LARAIA, Roque de Barros. Tupi: ndios do Brasil atual. So Paulo, FFLCH/USP, 1986.

    LVI-STRAUSS, Claude. A estrutura dos mitos In.:

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    Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

    LVI-STRAUSS, Claude. A gesta de Asdiwal In.: Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.

    LVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido: mitolgicas. So Paulo: Brasiliense, 1991.

    LUCIANO, Gersem dos Santos. O ndio brasileiro: o que voc precisa saber sobre os povos indgenas no Brasil de hoje. Braslia, Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

    MALINOWSKI, B. Argnonautas do Pacfico Ocidental. Um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquiplagos da Nova Guin Melansia. So Paulo: Abril Cultural, 1984.

    MASTOP-LIMA, Luiza de Nazar. O tempo antigo entre os Suru/Aikewra: um estudo sobre mito e identidade tnica. Dissertao de Mestrado. Belm: Universidade Federal do Par, 2002.

    MATTA DA SILVA, Gilmar . Sapurahi de Karura: mitos, instrumentos musicais e canto entre os Suru Aikewra. Dissertao de Mestrado. Belm: Universidade Federal do Par,

    2007.

    MORAES, Maria Neide Silva. O mito da existncia do povo indgena Kyikatj Pyt m Kaxre. Monografia. Imperatriz-MA: Instituto de Educao Professor Gamaliel, 2007.

    POLLAK, Michael. Memria e identidade social. In: Estudos Histricos 5(10). Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1992.

  • 40

    RICARDO, Carlos Alberto. Povos Indgenas do Brasil 8 sudeste do Par (Tocantins). So Paulo: CEDI, 1985.

    SARAIVA, Luis Junior Costa; MASTOP-LIMA, Luiza de Nazar. Etnoconhecimento Suru: a fauna no universo Aikewra. Projeto apresentado ao Programa Integrado de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extenso (PROINT). Marab: Universidade Federal do Par: 2004.

    Pginas (Sites) visitadas

    http://www.suapesquisa.com/o_que_e/lenda.htm (Capturado em 23.07.09)

    www.pibmirim.socioambiental.org

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    Sobre as autoras

    Apresentar Luiza de Nazar Mastop-Lima e Jane Felipe Beltro, no tarefa fcil, preciso abrir a memria, com emoo, pois a

    histria comea nos idos de 1999, sempre estruturada pela defesa dos povos

    indgenas, quando Luiza era discente do Curso de Cincias Sociais e eu Jane

    orientadora da aplicada graduanda, poca. O encontro instituiu parceria

    que resiste e produz h 11anos. Enfrentamos a graduao e a ps (mestrado

    e agora doutorado) como orientanda e orientadora, creio que conseguimos

    nos desorientar a ponto de conseguir equilbrio. Da luta apaixonada e dos

    textos acadmicos, passamos aquilo que chamo Antropologia implicada

    misturada educao, comunicao e s polticas afirmativas na tentativa

    de eliminar preconceitos e discriminaes via conhecimentos diversos, na

    tentativa de construir o Brasil Plural. Do trabalho inicial com os Aikewra

    (Suru), Parkatj e Kiykatj (Gavies de oeste) fomos requisitadas pelos

    povos do Tapajs e Arapiuns e, mais recentemente pelos Tenetehara (Temb)

    como somos contadoras de histrias estamos em cumplicidade com os

    povos indgenas narrado a Histria do ponto de vista dos nativos. O livro

    Nos tempos antigos: a cincia dos mitos indgenas o comeo, o tempo dir

    o que mais est por vir, pois o privilgio de estar na academia se completa

    com uma prtica conseqente! A prtica sinaliza que no temos que devolver

    o dinheiro dos impostos empregados em nossa formao, pois devolvemos

    cada centavo recebido no trabalho quotidiano, feito com desvelo e obrigao

    que, longe de cansar, nos faz admiradoras/parceiras da luta dos indgenas que

    discretamente acompanhamos, entrando em cena quando chamadas e saindo

    sempre que a cena no nos pertence, na luta seremos sempre co-adjuvantes

    cidads!

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    Sobre o Programa EDUCIMAT

    O Programa EDUCIMAT: Formao, Tecnologias e Prestao de Servios em Educao em Cincias e Matemticas coordenado e desenvolvido pelo NCLEO DE PESQUISA E DESENVOLVIMENTO DA EDUCAO MATEMTICA E CIENTFICA (NPADC)1, da Universidade Federal do Par, que integra a Rede Nacional de Formao Continuada de Professores de Educao Bsica (MEC/SEB), na qualidade de Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Educao Matemtica e Cientfica.

    O Programa visa formao continuada de professores para a Educao Matemtica e Cientfica, no mbito da Educao Infantil e Ensino Fundamental. Como estratgia de trabalho, prev a formao/fortalecimento de grupos regionais de professores tutores dos Centros Pedaggicos de Apoio ao Desenvolvimento Cientfico (CPADC) e municipais, por meio da constituio dos Grupos Pedaggicos de Apoio ao Desenvolvimento Cientfico (GPADCs), em nvel de especializao lato sensu. Nessa perspectiva, colocam-se como princpios de formao, dentre outros: a reflexo sobre a prpria prtica, a formao da cidadania e a pesquisa no ensino, adotando-se como transversalidade a educao inclusiva, a educao ambiental e a educao indgena.

    O Programa est proposto para quatro anos, iniciando-se no Estado do Par, com possibilidades de expanso para outros Estados, especialmente das regies Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Parcerias podero ser estabelecidas para otimizar o potencial da regio no que diz respeito institucionalizao da formao continuada de professores no mbito da Educao Infantil, Sries Iniciais, Cincias e Matemticas. O Programa EDUCIMAT situa-se no Ncleo de Pesquisa e

    1 Desde 18 de junho de 2009, o NPADC foi transformado pelo CONSUN/ UFPA em Instituto de Educao Matemtica e Cientfica IEMCI em razo da criao do Curso de Graduao: Licenciatura Integrada em Educao em Cincias, Matemtica e Linguagens. Com isso, o IEMCI passa a ter graduao, mestrado e doutorado na rea 46 da CAPES, Ensino de Cincias e Matemtica.

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    Desenvolvimento da Educao Matemtica e Cientfica (NPADC/UFPA), no mbito do Programa de Ps-graduao em Educao em Cincias e Matemticas, assim como o Mestrado e o Doutorado. O NPADC unidade acadmica dedicada pesquisa, ps-graduao e educao continuada de professores de Cincias e Matemticas, desde a educao infantil e sries iniciais at a ps-graduao lato e stricto sensu. Conta com a parceria da Secretaria Executiva de Estado de Educao, por meio do Convnio 024/98 e de Instituies de Ensino Superior integrantes do Protocolo e Universidades da Amaznia: Universidade da Amaznia (UNAMA), Centro de Estudos Superiores do Estado do Par (CESUPA) e a Universidade do Estado do Par (UEPA).