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Nos limites da inconstitucionalidade da PEC 215 e do desrespeito aos direitos
humanos na questão dos Kaiowá e Guarani do Mato Grosso do Sul1
Janaína Cardoso de Souza Ferreira
UFMG/Minas Gerais
Resumo: O direito originário às terras tradicionais foi reconhecido pela Constituição de
1988, no caput do artigo 231 cabendo à União “demarcá-las, proteger e fazer respeitar
todos os seus bens”. O direito à terra é originário: anterior à própria formação do
Estado, existe independentemente do reconhecimento oficial. O papel do executivo é
reconhecer a demarcação de terras feita por laudos antropológicos e estudos técnicos. A
proposta de Emenda Constitucional 215 acrescenta o inciso XVIII ao artigo 49;
modifica o §4º e acrescenta o §8º ambos no artigo 231 da Constituição. Investigaremos
se essa emenda pode ser considerada ilegal e suas justificativas. O processo de
demarcação de terras será radicalmente alterado, caso a PEC 215 seja aprovada. Outra
questão é a de como o acesso à terra e a outros direitos humanos e fundamentais estão
sendo negados aos Kaiowá e Guarani2 no Mato Grosso Sul (MS). Para tanto, usaremos
como parâmetros os artigos presentes na Convenção 169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT) e os artigos 231 e 232 da Constituição Federal (CF).
Palavras-chave: PEC 215, direitos fundamentais, Kaiowá e Guarani.
Introdução:
Hoje no cenário político brasileiro tramitam várias leis, portarias e emendas
constitucionais que afetam diretamente a vida dos povos indígenas no Brasil. Nesse
trabalho daremos ênfase à PEC 215 e à proposta de REQ 577/2014 CAPADR3. Para
analisarmos a questão dos direitos humanos aplicados aos indígenas, optamos por tratar
da Convenção 169 da OIT e de partes da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas
da ONU (DDPI). Ambas se preocupam em fornecer aos povos indígenas garantias que
alguns países ainda lhes recusam, direitos fundamentais para que esses povos sejam
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN. 2 Os Kaiowá também são Guarani, porém internamente se diferenciam dos Ñandeva, que se
autodenominam Guarani. Por isso optamos em chamá-los Kaiowá e Guarani neste artigo. 3 Outras propostas importantes seriam PEC 38, PEC 237, Portaria 303, PLP 227. Porém, nesse texto, não
nos ateremos a esses casos.
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respeitados em suas diferenças. Analisaremos esses direitos face à realidade dos Kaiowá
e Guarani do MS.
A PEC 215
A PEC 215 é uma proposta de emenda constitucional do Sr. Almir Sá e outros que
"acrescenta o inciso XVIII ao art. 49; modifica o § 4º e acrescenta o § 8º ambos no art.
231, da Constituição Federal". O artigo 49 trata da competência exclusiva do
Congresso Nacional. O inciso XVIII trata de “aprovar a demarcação de terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios e ratificar as demarcações já homologadas”.
Assim, o Congresso Nacional teria a competência exclusiva de decidir sobre as
demarcações de terras indígenas e de ratificar as já homologadas. Essa ratificação,
segundo Daniel Sarmento4 (2013), foi excluída pelo próprio poder legislativo “no
controle político preventivo de constitucionalidade exercido pela Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados” (ibidem:38). Sem a ratificação, pois
inconstitucional, o projeto de emenda pretende tornar atribuição exclusiva do Congresso
Nacional a decisão sobre a demarcação de terras indígenas. Resta verificar se a proposta
continua inconstitucional.
O artigo 231 da Constituição Federal de 1988 estabelece: “São reconhecidos aos índios
sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger
e fazer respeitar todos os seus bens”. A Constituição afirma no §4º do art.231 – “As
terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas,
imprescritíveis”.
A PEC 215 propõe a modificação desse inciso transformando-o em: “§4º. As terras de
que trata este artigo, após a respectiva demarcação aprovada ou ratificada pelo
Congresso Nacional, são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas
imprescritíveis. (...)” (SARMENTO, 2013, grifo nosso). E acrescenta: “§ 8º. Os
critérios e procedimentos de demarcação das áreas indígenas deverão ser
regulamentados em lei." (ibidem, grifo nosso).
4 Daniel Sarmento é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro e procurador regional da República. Sarmento realizou uma nota técnica sobre a
constitucionalidade da PEC 215/00 a pedido da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério
Público Federal em 2013. Vamos nos basear nessa nota técnica para algumas considerações gerais sobre a
PEC 215 e seus impactos para os direitos dos indígenas no Brasil.
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Assim, o Congresso Nacional decidiria sobre a demarcação de terras indígenas, e a
partir deste ato, os indígenas passariam a ter direito à terra. O relator do projeto afirma
que a demarcação de terras indígenas é uma intervenção federal em território estadual,
mas sem um controle, o que violaria o inciso IV do art.49, tornando a demarcação um
ato unilateral. As modificações propostas pela PEC 215 evitariam essa unilateralidade e
dariam segurança jurídica às demarcações.
A análise técnica de Sarmento chega à conclusão de que a PEC 215 é inconstitucional
por vários motivos: ela viola vários direitos fundamentais, “ofende, por diversas formas,
o limite material ao poder de reforma previsto no art. 60, §4º, inciso IV5, da
Constituição”; e fere a divisão dos poderes, “cláusula pétrea instituída no art. 60, §4º,
inciso III, da Constituição” (SARMENTO, 2013: 38-39). O relator da PEC 215,
deputado Osmar Serraglio, não concebe a PEC 215 como inconstitucional, com exceção
da questão da ratificação das terras já homologadas, conforme explicamos
anteriormente.
De acordo com Sarmento, a PEC 215 viola vários direitos dos indígenas: o direito às
“terras tradicionalmente ocupadas (art. 231, CF); direito à cultura (arts. 215, 216 e 231,
caput, CF); direito adquirido concedido diretamente pelo poder constituinte (art. 5º,
XXXVI, CF); e direito ao devido processo legal administrativo (art. 5º, LIV, CF)”
(SARMENTO, 2013:38).O art.60, §4 apresenta limites para as propostas de emenda da
Constituição, não serão objeto de deliberação aquelas que tendem a abolir: I - a forma
federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III a separação
dos poderes e IV os direitos e garantias individuais. Essas seriam algumas das cláusulas
pétreas da Constituição de 1988.
O interessante da análise de Sarmento é que ele nos apresenta pareceres de juízes e
especialistas no direito que reafirmam a extensão dos direitos previstos na Constituição
aos direitos sociais, e nessa medida é possível incluir nestes o direito dos indígenas ao
seu território tradicional. Ele propõe que os direitos fundamentais são cláusulas pétreas,
que devem ser mantidas para se garantir a democracia, a dignidade das pessoas; não há
motivos para que apenas os “direitos individuais clássicos” sejam tidos como “limites
ao poder de reforma” (2003:8). Mesmo se se quiser defender que “o papel das cláusulas
5 “Art.60 § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: inciso IV: os
direitos e garantias individuais” (Constituição Federal de 1988).
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pétreas é o de proteger o núcleo de identidade da Constituição”, se chega à mesma
conclusão: que “a Constituição de 88 tem um compromisso visceral com os direitos
fundamentais como um todo...”. A tarefa primordial desta Carta Magna seria “promover
a dignidade humana em todas as suas dimensões, inclusive das minorias vulneráveis,
como os povos indígenas”, por isso as cláusulas pétreas “devem se estender a outros
direitos fundamentais”, pois esses também “compõem o núcleo de identidades da
Constituição de 88” (ibidem:8).
O direito às terras torna-se um direito fundamental para os indígenas, constituindo-se
em cláusula pétrea o art.231 da CF, pois está atrelado ao sentido de dignidade defendido
pela Constituição. A análise de Sarmento é realmente preciosa na medida em que ela
retoma pareceres favoráveis em relação à importância das terras tradicionalmente
ocupadas para as populações indígenas, como no parecer do Ministro Menezes no caso
Raposa Serra do Sol. E também porque o Brasil é signatário da Convenção n. 169 da
OIT (“incorporada ao ordenamento interno através do Decreto n. 5051/2004”). O artigo
13 da Convenção 169 discorre sobre a importância do território e da dimensão espiritual
que ele abarca. No art. 14, a Convenção reafirma:
Os direitos de propriedade e posse de terras tradicionalmente ocupadas pelos
povos interessados deverão ser reconhecidos. Além disso, quando justificado,
medidas deverão ser tomadas para salvaguardar o direito dos povos
interessados de usar terras não exclusivamente ocupadas por eles às quais
tenham tido acesso tradicionalmente para desenvolver atividades tradicionais
e de subsistência.
Para a interpretação da Constituição o STF deve levar em consideração o compromisso
internacional firmado (SARMENTO, 2013:13)6.
Outro ponto essencial da Nota Técnica de Sarmento é a de que os direitos fundamentais
presentes na Constituição “não se subordinam à atividade parlamentar” (Sarmento,
2013:14). Isso teria relação com um novo modelo de constitucionalismo, que
principalmente após a 2º. Guerra Mundial percebeu que as maiorias podem violar os
direitos humanos. A partir de então se consolida “um novo modelo de
constitucionalismo, que afirma a plena vinculação do Legislativo aos direitos
6 Não é despropositadamente que a subscrição à Convenção está em xeque pela proposta do Sr. Quartiero
(REQ 577/2014 CAPADR), conforme veremos adiante.
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fundamentais e aposta na jurisdição constitucional como fiscal do respeito a estes
limites” (ibidem:14, grifo nosso). Aprovar a PEC 215 é subordinar o direito
fundamental dos indígenas à terra, previsto no art. 231 da Constituição, à maioria
parlamentar. Um dos critérios que definem uma democracia, segundo Sarmento, é “a
necessidade de respeito aos direitos fundamentais das minorias” (ibidem:32). A PEC
215 não apenas transfere a competência do Executivo para o Congresso, ela altera a
natureza do processo. “No atual cenário jurídico, compreende-se a decisão do
Presidente da República que conclui o processo de demarcação das terras indígenas
como dotada de natureza declaratória e não constitutiva” (ibidem:15)
O direito à terra que tradicionalmente ocupam é originário para os povos indígenas, ele
é anterior ao Estado, esse apenas o reconhece, não o constitui. O Presidente não exerce,
segundo Sarmento, “juízo político de conveniência e oportunidade sobre a demarcação”.
Depois dos estudos técnicos que a caracterizam como de ocupação tradicional indígena
e “do devido processos legal administrativo, a demarcação se converte em direito
subjetivo da comunidade étnica em questão”, sendo esses processos regidos pela
L.6001/73 (art. 19§1º) e do Decreto 1775/96 (art.5º), “que caracteriza o ato presidencial
como homologação”, mas que obviamente derivam da Constituição, que reconhece o
direito ao usufruto das terras indígenas como “um direito subjetivo”, e não depende de
“juízos políticos discricionários de autoridades estatais” (SARMENTO, 2013).
De acordo com Sarmento, as leis devem ser interpretadas levando-se em consideração a
realidade. E no cenário político nacional, a aprovação dessa emenda constitucional
“causaria dano terrível aos direitos territoriais das comunidades indígenas brasileiras”
(ibidem:17). Sarmento leva em consideração o fato de os indígenas não terem nenhum
representante no Congresso, da força da bancada ruralista, para afirmar que, do ponto de
vista prático, permitir que o Congresso seja o responsável pela demarcação das terras
indígenas seria “revogar integralmente o direito fundamental dos índios aos territórios
tradicionalmente ocupados” (ibidem).
O direito à cultura também seria uma cláusula pétrea a ser protegida pela Constituição,
o direito à diferença, à autonomia de se desenvolver de acordo com seus costumes e
diversidade, está explícito no art. 231: “São reconhecidos aos índios sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições...”. Eles também aparecem na Convenção
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169 da OIT no art. 8º enfatizando o direito à manutenção de “seus costumes e
instituições, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais previstos
no sistema jurídico nacional e com direitos humanos internacionalmente reconhecidos”.
Assim, preservar as culturas indígenas, possibilitando que se desenvolvam
com autonomia, é proteger não só os direitos dos índios que as compartilham,
mas também o patrimônio cultural da Nação e da Humanidade, que constitui
direito fundamental difuso de toda a coletividade (SARMENTO, 2013: 22).
O direito das comunidades indígenas às terras tradicionalmente ocupadas é originário,
porém, quando a Constituição de 88 foi promulgada, todas as comunidades que se
adequavam ao “art. [artigo] 231, §1, da Carta, incorporaram à sua esfera jurídica o
direito à posse e usufruto das terras que tradicionalmente ocupavam àquela época”
(ibidem: 24). Assim, trata-se de um direito adquirido, mas que “se funda em expressa
determinação do poder constituinte originário” (ibidem). É preciso ressaltar que vários
povos indígenas foram retirados de seu território tradicional, forçados pelo SPI ou
Funai, ou mesmo por particulares, cabendo ao Estado de direito atual considerar suas
demandas legítimas por seu território tradicional, que continua sendo direito originário.
O direito de cada comunidade às suas terras tradicionais é um direito adquirido. Não é a
demarcação seguida de homologação da União que funda o direito adquirido, já que
esse possui uma “natureza meramente demarcatória”. A PEC 215, caso aprovada,
“ofende a diretos adquiridos cuja fonte normativa repousa no texto originário da
Constituição Federal”, contido no art.231. §1 (ibidem:25). Basta lembrar, como bem o
faz Sarmento, a situação vulnerável na qual se encontrarão os povos indígenas que não
tiveram suas terras demarcadas devido à morosidade da União, eles dependerão das
“escolhas discricionárias das maiorias parlamentares para garantia do seu território”
(ibidem). Esse processo passa a depender dessas escolhas da maioria parlamentar sobre
a minoria, deixa de ser uma decisão técnica para ser isso que Sarmento chama “escolhas
discricionárias”, e considerando-se que esse processo versa sobre direitos fundamentais,
“não pode ser considerado justo” (ibidem: 26).
O processo legal demanda uma “tutela processual adequada ao direito material em
discussão”. O processo de demarcação de terras envolve uma equipe de expertise, sob a
supervisão de um antropólogo, não cabe ao Congresso, que não possui essa
competência, e que decidirá de acordo com os interesses da maioria. Esse princípio do
devido processo legal está associado à ideia de processo justo. Deixar o procedimento
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de demarcação nas mãos do Congresso seria privar os indígenas “‘da liberdade ou de
seus bens sem o devido processo legal’” (Constituição Federal, art. 5, inciso LIV, apud
SARMENTO, 2013:26).
A PEC é inconstitucional também por ofender o princípio de separação dos poderes,
não poderia ser aprovada enquanto emenda, pois contraria o art. 60, § 4º, inciso III da
CF. Submeter a decisão de demarcação a um juízo político discricionário do Congresso
ao invés de uma decisão administrativa de caráter declatório, pautada em laudos
competentes, seria submeter direitos fundamentais de uma minoria aos caprichos de
uma maioria. Não se trata de um mecanismo de freios e contrapesos, mas de uma
submissão a um juízo político que “representaria barreira praticamente insuperável para
a garantia de direito fundamental de uma minoria estigmatizada” (SARMENTO,
2013:34).
A justificativa para a PEC 215 é inconsistente. O Congresso nacional precisa aprovar a
intervenção Federal nos Estados porque é um ato de natureza política por parte da
União, caso que não acontece na homologação de terras indígenas realizada pela
mesma, pois esse é um ato de “caráter exclusivamente técnico”. A homologação não é
um ato unilateral do processo de demarcação, dado que Estados e municípios podem se
manifestar no processo de demarcação (Decreto 1775/96, art. 2 § 8º.), “antes da decisão
do Ministro da Justiça, que é depois submetida à homologação presidencial”
(SARMENTO, 2013: 36). E a ênfase dos propositores da emenda de uma maior
segurança jurídica ao processo de demarcação realizados pelo Congresso Nacional é
contestada por Sarmento. Não há segurança jurídica quando os direitos adquiridos
garantidos pela Constituição são ameaçados, e principalmente por se tratar de direitos
fundamentais de minorias que ficam submetidas “a um juízo político de conveniência e
oportunidade do Parlamento...” (ibidem:36).
É preciso nos atermos ao núcleo de identidade da Constituição, expresso no papel das
cláusulas pétreas. Nossa Carta Magna está embasada na promoção da “dignidade
humana em todas as suas dimensões” (SARMENTO, 2013). Sendo assim, ela
contempla a plurietnicidade, defende a diversidade e sua promoção (C.F, art.215), e a
autonomia dos povos indígenas no Brasil (art.231). Essas características aparecem
também na Convenção n. 169 da OIT (art.7: povos interessados terão prioridade no
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desenvolvimento que afete suas vidas, crenças, instituições, etc.) e da Declaração dos
Direitos do Povos Indígenas da ONU (art.9: os povos indígenas têm direito a viver de
acordo com suas tradições (...), art. 3: livre determinação, art. 4: autogoverno). Esta
Declaração é importante, porém, a Convenção n.169, da qual o Brasil é signatário, tem
valor supralegal, o que significa que está acima das leis ordinárias e abaixo da
Constituição, e pode, como sugere Sarmento (2013), ser usada para interpretar a
Constituição Federal, possuindo inclusive vários artigos que corroboram valores
expressos na Carta de 88. Dentre esses valores defendidos pela Convenção 169 está o
direito aos territórios tradicionalmente ocupados (art.14), reconhecendo que esses têm
inclusive um valor espiritual (art.13), a necessidade de os governos agirem efetivamente
para garantir tal posse e propriedade (art.14.2), atuando inclusive para resolução de
controvérsias jurídicas sobre esses territórios (14.3).
O fato é que o parecer de Sarmento (2013) sobre a inconstitucionalidade da PEC 215
poderia perfeitamente ser utilizado para mostrar a inconstitucionalidade de várias das
propostas já citadas que modificam os direitos dos índios no que concerne ao território,
ao usufruto das riquezas do solo, subsolo, ao papel da União na homologação, bem
como dos Estados e municípios nesse processo. Sem dúvida, a interpretação mais justa
seria considerar o artigo 231, como cláusula pétrea, reserva de justiça, como sugere
Sarmento (2013).
A situação dos indígenas Kaiowá e Guarani no MS
Passemos agora a averiguar a situação dos Kaiowá e Guarani do MS no que concerne
aos seus direitos fundamentais e que estão, a maioria deles, dispostos na Convenção
n.169 da OIT e na Constituição vigente no país. Ambas são parecidas em vários pontos,
pois se pautaram em consultas aos povos indígenas para sua realização.
A Convenção 169 da OIT apresenta princípios de autogoverno dos povos indígenas e
tribais, da responsabilidade dos governos de proteger o direito desses povos, da
transferência de responsabilidade nos casos de programas especiais de formação
profissional (art.22.3), serviços de saúde comunitários (art.25.1), e programas de
educação (art.27.2), sem excluir o governo de suas responsabilidades nesses casos; do
gozo dos direitos humanos e liberdades aos povos indígenas e tribais, assim como de
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qualquer outro ser humano; ao não uso da força ou coerção que viole os direitos ou
liberdades fundamentais. A consulta prévia é um dos princípios fundamentais desse
Convênio, ela deve ser realizada através de suas instituições representativas dos povos
indígenas ou tribais “cada vez que se prevejam medidas legislativas ou administrativas
suscetíveis de afetá-los diretamente” (art.6.1). E essas consultas devem ser feitas de
boa-fé (art.6.2), de maneira a se adequarem às circunstâncias: tanto no plano idiomático,
as proposições devem ser feitas no idioma compartilhado pelo grupo indígena, quanto
na busca da opinião do grupo como um todo, ou de entidades que realmente lhes
representem. Assim, a garantia da participação dos povos indígenas e tribais em todas as
etapas nos projetos que os afetem; os direitos sobre o território; a ênfase no direito
consuetudinário (art. 8) devem ser assegurados.
Um breve recorte histórico pode nos auxiliar a perceber como a situação de descaso e de
violações aos direitos humanos em relação aos indígenas Kaiowá e Guarani não é algo
recente. Os Kaiowá e Guarani foram utilizados como mão de obra na colheita de erva-
mate nativa do fim do século XIX até 1940 (Brand, 1997) pela Companhia Matte
Larangeiras, que tinha a concessão para a exploração da erva-mate no MS. Os casos de
abusos por essa Companhia são relatados pelos informantes de Brand. De acordo com
eles, seus antepassados não tinham direito à folga semanal na colheita de erva mate,
além de serem obrigados a permanecer no serviço, pois contraíam dívidas para se
manter no local, algo parecido com o que hoje conhecemos como sistema de aviamento.
Os casos de assassinatos de índios que tentavam fugir sem pagar as dívidas eram
frequentes.
Os Kaiowá e Guarani foram confinados em reservas constituídas pelo SPI de 1915 a
1928 no MS. Como observa Antonio Brand (1997), o objetivo era antes protegê-los do
que confiná-los em lotes de no máximo 3600 hectares para liberar terras para
exploração. Em 1943 é criada por Vargas a Companhia Agrícola Nacional de Dourados
(CAND) com a finalidade de lotear terras para emigrantes de diversas partes do país.
Durante esse período, houve várias tentativas do SPI de levar os índios desaldeados,
aqueles que não ficavam dentro das reservas, para as reservas então existentes.
Em 1950, acentua-se a instalação de fazendas de gado com desmatamento sistemático
da região. Esse processo ocasiona a dispersão de várias aldeias tradicionais, os nativos
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denominam tal período de esparramo (sarambipa). Os fazendeiros apresentavam o
documento de propriedade da terra e mandavam os indígenas saírem, ameaçando os
nativos com armas. Acentua-se nesse período o processo de confinamento nas reservas,
sem terem para onde ir, inúmeras famílias se mudaram para uma das oitos reservas
existentes. Entretanto, já no final da década de 70, começam movimentos de retorno,
com vistas a ocupar os antigos territórios, o que obviamente ocasiona conflitos com os
novos “donos” das propriedades (Brand, 1997).
A soja começou a ser implantada na região em 1970, assim como a mecanização da
agricultura, o que tornou os indígenas desempregados e acabou com as “ aldeias refúgio
nos fundos das fazendas, onde os Kaiowá e Guarani resistiam” (Brand, 2004:140). Os
restos de campos, matas e capoeiras foram destruídos pela monocultura da soja.
A situação das reservas no MS criou um ambiente de muitos conflitos internos e
externos. O ambiente artificial das reservas reúne várias famílias, que não são parentes,
em espaços restritos. Os casos de violência, inclusive de estupros, assassinatos, tráfico,
são uma realidade documentada pelo Relatório de 2011 do Conselho Indigenista
Missionário (CIMI). Há vários problemas relacionados com o fato de não terem espaço
suficiente para viver de acordo com o modo de vida guarani. Os Kaiowá e Guarani
realizavam as caminhadas (oguata) quando algo não estava bom a fim de superar
conflitos e tensões envolvendo conflitos familiares, feitiçaria, ou quando atingidos por
doenças, mortes, exaustão do solo, etc. Porém, o ambiente restrito das reservas não
permite essas caminhadas, o que provoca o aumento das tensões e violência internas.
O intenso contato com as populações urbanas, o “engajamento como assalariados nas
usinas de açúcar e álcool”, o aumento do “número de indígenas que frequentam cursos
do ensino superior”, e o “acesso aos meios de comunicação de massa são fatores que
permitem compreender as contradições vivenciadas por essas gerações” (Brand, 2004).
O relatório Survival (2010) relata que o álcool e as drogas estão fortemente atrelados ao
trabalho do corte de cana de açúcar. Brand (1997) já mencionava a questão desses
trabalhos temporários, denominados “changa”, que acabam alterando a rotina de vida
dos Kaiowá e Guarani, seja porque eles não plantam mais como antes, não estão
presentes para comandar a família, ou porque às vezes, ao voltar para casa, se deparam
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com o abandono da esposa. No MS, a população indígena trabalhou na construção de
ferrovias e nas fazendas quando foram despejados de suas terras. A própria localização
das reservas propiciou que esses indígenas fossem tomados como mão-de-obra para
diversos empreendimentos.
Porém, a situação de trabalho sempre foi precária e atrelada à discriminação étnica. Os
relatórios do CIMI (2011) e Survival (2010) indicam que os Kaiowá e Guarani são
vítimas de trabalho escravo no corte da cana de açúcar; além de apontarem para casos
em que jovens menores de 18 anos trabalham, sem a anuência dos pais, nessa atividade.
A Convenção 169 da OIT estabelece no artigo 20.3.c que “trabalhadores pertencentes a
esses povos não sejam submetidos a sistemas coercitivos de contratação, inclusive a
trabalho escravo e a outras formas de servidão por dívida”. As condições desse tipo de
trabalho em geral são degradantes, péssimas condições de alojamento e refeitório,
longas jornadas de trabalho. Além disso, ainda precisam pagar para o “cabeçante”,
aquele que lhes consegue o emprego; o empregado paga também pela comida, pela
moradia, pelo transporte para o trabalho. O valor recebido, em 2007, variava de acordo
com a quantidade de cana cortada, o salário básico era de 425 reais, mas para quem
cortasse de 8 a 12 toneladas, o salário era de 800 ou 900 reais (AYLWIN, 2009:37). A
situação dos Kaiowá e Guarani do MS, ainda é crítica. O CIMI, a Survival, Antonio
Brand, Levi Pereira (CIMI, 2011), e outros antropólogos, defendem que a falta de
acesso ao território tradicional dos Kaiowá e Guarani é o grande catalisador da
avalanche de problemas que hoje esses povos enfrentam. Segundo a Declaração dos
Direitos dos Povos Indígenas da ONU, no artigo 17.3: “as pessoas indígenas têm
direitos a não ser submetidas a condições discriminatórias de trabalho, entre outras
coisas, emprego ou salário”.
Os Kaiowá e Ñandeva localizados no MS seriam aproximadamente 37.317 pessoas, dos
50 mil Guarani no Brasil. Daquele total, dois terços, 19.638 pessoas, estão concentrados
em três reservas do MS: Dourados, Amambaí e Caarapó, que juntos têm 9.498 hectares
(Funasa apud Aylwin, 2009:34). Segundo o CIMI (2011:22), cerca de 10.000 indígenas
trabalhavam no corte de cana de açúcar em 2010. A Survival (2010) denuncia o
ambiente degradante desses empregos temporários, que incentivam o uso de bebidas
alcoólicas, e onde se faria uso de outros tipos de entorpecentes, como formas de ajudar
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a suportar o trabalho pesado e distância da família. Porém, ao retornarem para as
aldeias, tanto o álcool quanto as drogas favoreceriam brigas internas.
Os Kaiowá e Guarani do MS apresentam altas taxas de suicídios, detentos, desnutrição e
mortalidade infantil, assassinatos, e são vítimas de homicídios culposos por
atropelamento. Há uma associação entre a ausência de terras e o aumento da violência
entre os Kaiowá e Guarani, que está intrinsecamente relacionado ao modo de ser
Kaiowá e Guarani. Esses povos não possuem espaço para fazer suas plantações, para
pescar, e são obrigados a conviver com várias famílias extensas que não são seus
parentes. Em Dourados, estima-se que convivam quarenta famílias extensas. Nesse
ambiente de tensão, ainda há a figura do capitão. Este foi inicialmente imposto pelo SPI,
que inclusive era nomeado pelo órgão governamental. Porém, esse cargo de capitão
permanece gerando conflitos em alguns casos, pois subverte o modo tradicional de
liderança guarani, que não era via coerção, nem fazia uso de polícia indígena, como
continua ocorrendo em algumas comunidades, mas se manifestava através da conversa,
do convencimento (Brand, 2001). Quando se estabelece uma liderança para uma
reserva, temos vários chefes de família sem a oportunidade de ter voz. Além disso, os
capitães continuam reunindo recursos, como empregos, por exemplo, principalmente
para seus familiares e aliados políticos (ibidem).
Nesse cenário, as crianças sofrem com desnutrição, em 2003 faleceram 93 crianças para
cada 1000 nascimentos no MS, em 2004 foram 63 (CIMI, 2011:16); de 2005 a 2007
esse número foi de 65 crianças (Aylwin, 2009:38). De acordo com o CIMI (2011), em
2010, a mortalidade infantil entre os Kaiowá e Guarani foi de 38 mortes para cada 1000
nascimentos; enquanto no Brasil, a média foi de 25 mortes para cada mil nascimentos.
Atualmente, a Funai distribui cestas básicas para a população indígena para amenizar a
situação. Entretanto, essa medida é insuficiente e está longe de garantir-lhes a
autonomia do próprio sustento, como muitos anseiam. O art.20.2 da Declaração dos
Direitos dos Povos Indígenas da ONU afirma: “Os povos indígenas despojados de seus
meios de subsistência e desenvolvimento têm direito a uma reparação justa e
equitativa”.
Segundo o CIMI (2011), em 2007, “houve um número descomunal de assassinatos de
indígenas em MS”, e que continuou alto nos anos seguintes. O relatório do CIMI
13
(2011), nos lembra de que 2007 é o ano do início do mandato do atual governador do
MS: André Puccinelli. Esse político se mostrou “publicamente contrário aos direitos
territoriais indígenas” (CIMI:2011), basta ver os jornais locais do MS. Segundo a
Convenção 169 da OIT, art. 4º. 1: “Medidas especiais necessárias deverão ser adotadas
para salvaguardar as pessoas, instituições, bens, trabalho, culturas e meio ambiente
desses povos”.
O relatório do CIMI (2011) demonstra que 56% dos assassinatos de indígenas de 2003 a
2010 ocorreram no MS, ficando a totalidade dos outros assassinatos de indígenas nas
outras regiões do Brasil com 44% dos casos. De acordo com o CIMI, o confinamento é
certamente a maior causa dessa realidade. Dourados tem mais de 14 mil indígenas, onde
ocorreram, em 2010, 16 assassinatos dos 34 apresentados no MS (dados da polícia apud
CIMI, 2011:18). A média nacional é de 24,5 assassinatos para cada 100 mil pessoas; em
Dourados esse número é de 145 assassinatos para cada 100 mil pessoas, ou seja, 495%
maior do que a média nacional (CIMI, 2011: 18).
Outro dado desse panorama sobre os Kaiowá e Guarani no MS, é o do número de
suicídios. A explicação para tal fenômeno varia, mas a dificuldade de manter o modo de
vida guarani, dada pela ausência do território é uma delas, propiciando a violência
interna e externa. Os Kaiowá e Guarani residentes no MS contabilizam 83% dos
suicídios indígenas ocorridos de 2003 a 2010 em relação ao restante de suicídios
indígenas ocorridos no Brasil durante o mesmo período (CIMI, 2011:18).
As áreas de confinamento (reservas) e os acampamentos na beira de estrada estão
cercados por grandes rodovias, infraestrutura desenvolvida para atender ao agronegócio,
propiciando muitos casos de homicídio culposo por atropelamento. O número de
indígenas mortos por atropelamento no MS de 2003 a 2010 foi de 49 casos, contra os 50
casos ocorridos no restante do país.
A violência sofrida pelos Guarani e Kaiowá está relacionada com a questão da ausência
de terra suficiente, todavia não se trata de qualquer terra passível de ser cultivada, esses
povos indígenas desejam retomar seu tekoha tradicional, onde seus pais, avós, viveram
e de onde foram violentamente expulsos com o aval do SPI ou Funai e do governo do
estado que vendeu terras que já estavam ocupadas pelos índios como se fossem
14
devolutas. O fato é que as reservas demarcadas de 1915 a 1928, além de não
ultrapassarem 3600 hectares, não eram o tekoha tradicional de muitos dos indígenas que
foram obrigados, por falta de opção, a permanecerem naquele local.
Em 2007 foi assinado um Termo de Ajustamento e Conduta (TAC) entre o Ministério
Público Federal do MS, a Funai e 23 lideranças indígenas. O termo obriga a “Funai a
identificar 36 terras ancestrais guarani e demarcar sete grandes territórios abrangendo-
as, além de devolvê-los às comunidades indígenas até abril de 2010” (Survival, 2010:6).
A oposição por parte dos interesses locais foi marcante, além da violência contra
lideranças indígenas ter aumentado em 2007; até hoje os trabalhos não foram
completados, e a quantidade de recursos judiciais envolvendo terras ameríndias se
avoluma. Para se ter uma ideia, havia mais de oitenta processos envolvendo terras
indígenas no MS sendo analisadas pelo Tribunal Federal Regional em 2009 (ibidem).
Atualmente duas terras homologadas permanecem parcialmente suspensas por decisão
judicial: Arroio-Korá e Ñande Ru Marangatu, e há também terras demarcadas que se
encontram suspensas parcialmente por liminar da justiça (Instituto Socioambiental).
No MS, o número de cabeças de gado por hectare não chega a um animal, (CIMI, 2011;
nota 3: 56), apesar de alguns criadores terem investido na recuperação do solo e se
equipado para que esse número aumente. Por outro lado, cada habitante em Amambaí
ou Dourados ocupa em média 0,5 hectare. E o alarmante é que, tanto a produção de
soja e de cana de açúcar, quanto a criação de gado estão se expandindo, ocupando o sul
do MS, região tradicional dos Kaiowá e Guarani. Essa expansão implica na criação de
uma infraestrutura, estradas que cortam áreas indígenas, contaminação da água por
agrotóxicos, e a ocupação de áreas indígenas com soja e cana-de-açúcar, o que dificulta
o processo de retomada dessas terras pelos Kaiowá e Guarani.
Em 17 de setembro de 2009, quando foi publicado o Decreto Nº 6.961, que aprovou o
Zoneamento Agroecológico da Cana-de-açúcar (ZAE), “o plantio de cana em áreas
indígenas (assim como no Pantanal, na Amazônia e na Bacia do Alto Paraguai) passou a
ser considerado irregular e inapto a receber financiamento público” (GLASS, 2012:8).
Esse decreto foi regulamentado em outubro de 2009 pelo Conselho Monetário Nacional.
O Ministério Público Federal procurou várias usinas do MS para propor um acordo no
qual essas se comprometiam a não comprar nem financiar plantações de cana-de-açúcar
15
em terras indígenas nos imóveis rurais que estejam localizadas “em áreas identificadas,
declaradas ou homologadas como terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”
(GLASS, 2012:9).
A instalação de Usinas entre terras indígenas também é uma decisão política, segundo a
Survival (2010), pois dificulta o processo de retomada dessas áreas. De um lado, o
governo federal e o estadual atuam para aumentar a produção de soja, cana de açúcar e
gado, de outro, esses empreendimentos requerem mais terras para suas produções e há
mais implementações de Usinas que arrendam fazendas locais, localizadas dentro de
terras indígenas identificadas e demarcadas para supri-las. A terra indígena de
Guyraroká, município de Caarapó, se encaixa perfeitamente nesse quadro, há 26
fazendas dentro de seu território, e a população ocupa uma pequena porção de terra,
mesmo já estando na situação legal de declarada.
A situação violenta no MS mostra que as autoridades não estão se posicionando para
que a situação seja resolvida, inclusive judicialmente, como recomenda a OIT ao falar
do território dos povos indígenas e tribais e da responsabilidade do Estado nesse
processo. Nesse contexto, a autonomia dos povos indígena acaba sendo inviabilizada.
As violações dos direitos fundamentais de todo o ser humano continuam com a situação
dos detentos indígenas no MS. Segundo o CTI (2008), os indígenas presos no MS
sequer tiveram direito a um julgamento justo, pressionados, desacompanhados por
advogados e tradutores durante o processo penal, calados inclusive por juízes que os
impedem de falar sua própria língua durante o julgamento7. Há, no MS, um sistema
penal rigoroso com os delitos indígenas, a ponto deste ignorar recomendações da
própria Convenção 169 da OIT sobre o direito consuetudinário (art.8.1) que estabelece a
necessidade de a legislação nacional, ao ser aplicada aos indígenas, considerá-lo. A
mesma Convenção afirma que deve ser dada a “preferência a outros métodos de punição
que não o encarceramento” (art.10.2). Essa recomendação está presente também na
L.6001/ 73 ainda em vigor no país, basta verificar o parágrafo único do art. 56, que
7 Caso do julgamento dos acusados da morte do líder indígena Marcos Veron que foi transferido do MS
para São Paulo, na busca de um julgamento imparcial. Porém, em São Paulo, “a juíza do caso impediu
que os indígenas se expressassem em guarani, porque eles haviam respondido uma simples pergunta em
português” (Deborah Duprat apud CIMI, 2011:26)
16
estipula: “As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime
especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência
aos índios mais próximos da habitação do condenado”. Segundo a CTI (2008)8, a maior
parcela dos indígenas processados: 45% estão cumprindo pena no regime fechado, e em
97% dos 103 processos analisados, eles foram reconhecidos como indígenas. A
recomendação ao não encarceramento desses povos aparece na definição da pena em
1% dos casos levantados no MS, contra 99% onde não é mencionada. E quanto a se
levar em consideração as formas de punição que acontecem na comunidade, desde que
não sejam incompatíveis com a legislação nacional e os direitos humanos
internacionalmente reconhecidos, isso foi tomado em consideração em 1% dos casos
analisados.
A necessidade de um devido processo legal está garantida na Constituição Federal
art.5, inciso LIV- “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal”; e no inciso LV em que lhe são assegurados o contraditório e ampla
defesa. No caso dos indígenas, isso não é cumprido, pois mesmo quando falam
português, não se pode afirmar que compreendam suficientemente a linguagem jurídica
e as implicações de seus atos perante a fase do interrogatório e do processo penal como
um todo. A necessidade de um tradutor (art.12 da Convenção 169 da OIT) é necessária,
assim como do acompanhamento de profissionais da Funai, o que nem sempre ocorre
no MS devido ao número de casos em que estes precisam estar presentes e do pequeno
número de funcionários. De acordo com a pesquisa do CTI (2008), 22% dos casos
analisados fizeram uso de intérprete, enquanto 78% não o utilizaram. O
acompanhamento de advogado durante todo o processo, inclusive na fase policial, dado
o desconforto e temor dos indígenas nessa situação não é uma realidade no MS. Em 6%
dos casos analisados eles não foram acompanhados por advogados nos interrogatórios,
em 6% eles foram acompanhados na fase policial, em 10% eles foram acompanhados
em ambas as fases, e em 78% somente na fase judicial (CTI, 2008).
Outro grande empecilho para um julgamento justo é o fato de muitos juristas
trabalharem pautados apenas no Estatuto do índio L.6001/73 que, apesar de ainda em
8 A CTI (2008) realizou uma pesquisa acerca da situação dos detentos indígenas no MS em 2006, no qual
enfatizou a situação dos Kaiowá e Guarani. Foram analisados 103 processos no ano de 2006 que
demonstram graves infrações tanto à Constituição de 88 quanto a Convenção 169 da OIT.
17
vigor, apresenta muitos aspectos contraditórios com a Constituição de 88 e com a
Convenção 169 da OIT (Pacheco; Prado; Kadwéu, 2011). Assim, acabam sendo
induzidos no julgamento pela questão de se o índio acusado é integrado ou não
integrado, imputável ou inimputável, e isso explica o fato de não levarem em
consideração a necessidade de um tradutor, por julgarem que o réu domina o português
por tê-lo visto falando nosso idioma, e entendem que ele deve compreender os tramites
legais, desconsiderando, talvez por preconceito ou falta de conhecimento, a Convenção
169 da OIT que tem caráter vinculante, supralegal e que recomenda que se investigue
acerca do direito consuetudinário dos povos indígenas acusados de delito, art.9.2 : “Os
costumes desses povos, sobre matérias penais, deverão ser levados em consideração
pelas autoridades e tribunais no processo de julgarem esses casos”. E que se deve levar
em consideração tanto as “suas características econômicas, sociais e culturais”
(art.10.1), além de dar “preferência a outros métodos de punição que não o
encarceramento” (art.10.2).
Considerações Finais:
Como vimos a Convenção 169 da OIT tem caráter vinculante e deve ser considerada
pelos juristas, legisladores, para tratar de questões concernentes aos indígenas. Não é
desinteressadamente que o Sr. Quartiero propôs a realização de Audiência Pública na
Comissão de Agricultura, Pecuária e Abastecimento para debater sobre a revogação do
Brasil à subscrição da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A alegação é que ela traz perigo para a “segurança jurídica da sociedade”. Quartiero
critica a “auto atribuição para reconhecimento de supostos índios, fator elementar para
as demarcações de terras indígenas, conforme dispõe o artigo 1º item 2 da Convenção
169 da OIT...”, esse critério, segundo ele, deve ser levado em consideração, mas “isso
não significa que deve ser critério único (como é hoje), o que dá azo a uma série de
pessoas oportunistas que buscam essa convenção para benefício próprio”. A referida
Convenção, devido ao seu caráter de lei, seria um perigo para a soberania nacional,
principalmente, por envolver a consideração da autonomia dos povos indígenas e
tribais, pois fornecem “requisitos de independência quanto às questões que envolvem
sanções penais e responsabilidade civis e principalmente quanto à forma de
determinação das áreas limítrofes aos territórios indígenas”. De acordo com Quartiero,
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em seu art.1º. “a Convenção não guarda rigor jurídico algum no que tange ao uso do
tema ‘povos’, pois atribuí ao tema característica de independência frente ao Estado,
divergente do que determina a regra de direito internacional”. A utilização do termo
“Povos” envolveria a ideia de nação e de soberania. Porém, no inciso 3 do art.1º. da
referida Convenção é claro: “A utilização do termo povos na presente Convenção não
deverá ser interpretada no sentido de acarretar qualquer implicação no que se refere a
direitos que possam ser conferidos ao termo no âmbito do Direito Inter nacional”.
Conforme vimos, tanto a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas,
quanto a Convenção 169 da OIT estabelecem como prioridade fornecer aos povos
indígenas condições para que disponham de direitos fundamentais que muitos países
ainda não lhes possibilitam. Esse não é o caso do Brasil, no qual a Constituição de 88
reconheceu aos índios no art.231 “sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. E
inclusive forneceu aos índios a possibilidade de entrar “em juízo em defesa de seus
direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”
(art.232). A Convenção 169 da OIT nos parece ser de suma importância para os direitos
dos povos indígenas, assim como os artigos 231 e 232 da Constituição Federal.
O pequeno contexto da situação histórica e atual do MS que tentamos esboçar neste
trabalho, no que concerne à infração de seus direitos fundamentais garantidos tanto pela
Constituição quanto pela Convenção 169 da OIT e Declarações de Direitos dos Povos
Indígenas, demonstra quanto ainda há por fazer na garantia desses direitos.
Concordamos com Carneiro da Cunha a respeito do futuro dos povos indígenas no
Brasil: “A posição dos índios no Brasil de hoje e de amanhã desenhar-se-á na
confluência de várias opções estratégicas, tanto do Estado Brasileiro e da comunidade
internacional quanto das diferentes etnias. Trata-se de parceria” (1997:134).
Quanto maior o número de parceiros, e mais diversos, maiores são as chances de
inovações (Lévi-Strauss,1976). Os indígenas mudaram e o continuam fazendo, assim
como nós, pois ambos estamos vivos e em contato com os outros. Porém, os processos
de unificação, semelhança com a civilização brasileira e mundial, se faz junto com o da
produção de mais diversidade, são duas ações constantes ao fabricar cultura. É preciso
19
respeitar a diversidade sem congelá-la no tempo e no espaço, como ainda o fazem os
juristas e brasileiros que se apegam com paixão ao ideal integracionista presente na
L.6001/73 e veem os índios como isolados, em vias de integração, ou integrados. Na
mesma linha de raciocínio, outros ainda se prestam a analisar se são falsos índios.
Esperamos do judiciário e do legislativo que protejam os princípios assegurados pela
Constituição, dentre eles está o da dignidade da pessoa, dos costumes, crenças e
tradições dos povos indígenas, da diversidade, dos direitos adquiridos, que como vimos
inclui o direito dos ameríndios às suas terras tradicionais e aos seus direitos
fundamentais, e nesse sentido, a Convenção 169 da OIT pode auxiliar-nos.
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