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1 Nos limites da inconstitucionalidade da PEC 215 e do desrespeito aos direitos humanos na questão dos Kaiowá e Guarani do Mato Grosso do Sul 1 Janaína Cardoso de Souza Ferreira UFMG/Minas Gerais Resumo: O direito originário às terras tradicionais foi reconhecido pela Constituição de 1988, no caput do artigo 231 cabendo à União “demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. O direito à terra é originário: anterior à própria formação do Estado, existe independentemente do reconhecimento oficial. O papel do executivo é reconhecer a demarcação de terras feita por laudos antropológicos e estudos técnicos. A proposta de Emenda Constitucional 215 acrescenta o inciso XVIII ao artigo 49; modifica o §4º e acrescenta o §8º ambos no artigo 231 da Constituição. Investigaremos se essa emenda pode ser considerada ilegal e suas justificativas. O processo de demarcação de terras será radicalmente alterado, caso a PEC 215 seja aprovada. Outra questão é a de como o acesso à terra e a outros direitos humanos e fundamentais estão sendo negados aos Kaiowá e Guarani 2 no Mato Grosso Sul (MS). Para tanto, usaremos como parâmetros os artigos presentes na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e os artigos 231 e 232 da Constituição Federal (CF). Palavras-chave: PEC 215, direitos fundamentais, Kaiowá e Guarani. Introdução: Hoje no cenário político brasileiro tramitam várias leis, portarias e emendas constitucionais que afetam diretamente a vida dos povos indígenas no Brasil. Nesse trabalho daremos ênfase à PEC 215 e à proposta de REQ 577/2014 CAPADR 3 . Para analisarmos a questão dos direitos humanos aplicados aos indígenas, optamos por tratar da Convenção 169 da OIT e de partes da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas da ONU (DDPI). Ambas se preocupam em fornecer aos povos indígenas garantias que alguns países ainda lhes recusam, direitos fundamentais para que esses povos sejam 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2 Os Kaiowá também são Guarani, porém internamente se diferenciam dos Ñandeva, que se autodenominam Guarani. Por isso optamos em chamá-los Kaiowá e Guarani neste artigo. 3 Outras propostas importantes seriam PEC 38, PEC 237, Portaria 303, PLP 227. Porém, nesse texto, não nos ateremos a esses casos.

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Nos limites da inconstitucionalidade da PEC 215 e do desrespeito aos direitos

humanos na questão dos Kaiowá e Guarani do Mato Grosso do Sul1

Janaína Cardoso de Souza Ferreira

UFMG/Minas Gerais

Resumo: O direito originário às terras tradicionais foi reconhecido pela Constituição de

1988, no caput do artigo 231 cabendo à União “demarcá-las, proteger e fazer respeitar

todos os seus bens”. O direito à terra é originário: anterior à própria formação do

Estado, existe independentemente do reconhecimento oficial. O papel do executivo é

reconhecer a demarcação de terras feita por laudos antropológicos e estudos técnicos. A

proposta de Emenda Constitucional 215 acrescenta o inciso XVIII ao artigo 49;

modifica o §4º e acrescenta o §8º ambos no artigo 231 da Constituição. Investigaremos

se essa emenda pode ser considerada ilegal e suas justificativas. O processo de

demarcação de terras será radicalmente alterado, caso a PEC 215 seja aprovada. Outra

questão é a de como o acesso à terra e a outros direitos humanos e fundamentais estão

sendo negados aos Kaiowá e Guarani2 no Mato Grosso Sul (MS). Para tanto, usaremos

como parâmetros os artigos presentes na Convenção 169 da Organização Internacional

do Trabalho (OIT) e os artigos 231 e 232 da Constituição Federal (CF).

Palavras-chave: PEC 215, direitos fundamentais, Kaiowá e Guarani.

Introdução:

Hoje no cenário político brasileiro tramitam várias leis, portarias e emendas

constitucionais que afetam diretamente a vida dos povos indígenas no Brasil. Nesse

trabalho daremos ênfase à PEC 215 e à proposta de REQ 577/2014 CAPADR3. Para

analisarmos a questão dos direitos humanos aplicados aos indígenas, optamos por tratar

da Convenção 169 da OIT e de partes da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas

da ONU (DDPI). Ambas se preocupam em fornecer aos povos indígenas garantias que

alguns países ainda lhes recusam, direitos fundamentais para que esses povos sejam

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN. 2 Os Kaiowá também são Guarani, porém internamente se diferenciam dos Ñandeva, que se

autodenominam Guarani. Por isso optamos em chamá-los Kaiowá e Guarani neste artigo. 3 Outras propostas importantes seriam PEC 38, PEC 237, Portaria 303, PLP 227. Porém, nesse texto, não

nos ateremos a esses casos.

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respeitados em suas diferenças. Analisaremos esses direitos face à realidade dos Kaiowá

e Guarani do MS.

A PEC 215

A PEC 215 é uma proposta de emenda constitucional do Sr. Almir Sá e outros que

"acrescenta o inciso XVIII ao art. 49; modifica o § 4º e acrescenta o § 8º ambos no art.

231, da Constituição Federal". O artigo 49 trata da competência exclusiva do

Congresso Nacional. O inciso XVIII trata de “aprovar a demarcação de terras

tradicionalmente ocupadas pelos índios e ratificar as demarcações já homologadas”.

Assim, o Congresso Nacional teria a competência exclusiva de decidir sobre as

demarcações de terras indígenas e de ratificar as já homologadas. Essa ratificação,

segundo Daniel Sarmento4 (2013), foi excluída pelo próprio poder legislativo “no

controle político preventivo de constitucionalidade exercido pela Comissão de

Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados” (ibidem:38). Sem a ratificação, pois

inconstitucional, o projeto de emenda pretende tornar atribuição exclusiva do Congresso

Nacional a decisão sobre a demarcação de terras indígenas. Resta verificar se a proposta

continua inconstitucional.

O artigo 231 da Constituição Federal de 1988 estabelece: “São reconhecidos aos índios

sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários

sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger

e fazer respeitar todos os seus bens”. A Constituição afirma no §4º do art.231 – “As

terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas,

imprescritíveis”.

A PEC 215 propõe a modificação desse inciso transformando-o em: “§4º. As terras de

que trata este artigo, após a respectiva demarcação aprovada ou ratificada pelo

Congresso Nacional, são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas

imprescritíveis. (...)” (SARMENTO, 2013, grifo nosso). E acrescenta: “§ 8º. Os

critérios e procedimentos de demarcação das áreas indígenas deverão ser

regulamentados em lei." (ibidem, grifo nosso).

4 Daniel Sarmento é professor adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro e procurador regional da República. Sarmento realizou uma nota técnica sobre a

constitucionalidade da PEC 215/00 a pedido da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério

Público Federal em 2013. Vamos nos basear nessa nota técnica para algumas considerações gerais sobre a

PEC 215 e seus impactos para os direitos dos indígenas no Brasil.

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Assim, o Congresso Nacional decidiria sobre a demarcação de terras indígenas, e a

partir deste ato, os indígenas passariam a ter direito à terra. O relator do projeto afirma

que a demarcação de terras indígenas é uma intervenção federal em território estadual,

mas sem um controle, o que violaria o inciso IV do art.49, tornando a demarcação um

ato unilateral. As modificações propostas pela PEC 215 evitariam essa unilateralidade e

dariam segurança jurídica às demarcações.

A análise técnica de Sarmento chega à conclusão de que a PEC 215 é inconstitucional

por vários motivos: ela viola vários direitos fundamentais, “ofende, por diversas formas,

o limite material ao poder de reforma previsto no art. 60, §4º, inciso IV5, da

Constituição”; e fere a divisão dos poderes, “cláusula pétrea instituída no art. 60, §4º,

inciso III, da Constituição” (SARMENTO, 2013: 38-39). O relator da PEC 215,

deputado Osmar Serraglio, não concebe a PEC 215 como inconstitucional, com exceção

da questão da ratificação das terras já homologadas, conforme explicamos

anteriormente.

De acordo com Sarmento, a PEC 215 viola vários direitos dos indígenas: o direito às

“terras tradicionalmente ocupadas (art. 231, CF); direito à cultura (arts. 215, 216 e 231,

caput, CF); direito adquirido concedido diretamente pelo poder constituinte (art. 5º,

XXXVI, CF); e direito ao devido processo legal administrativo (art. 5º, LIV, CF)”

(SARMENTO, 2013:38).O art.60, §4 apresenta limites para as propostas de emenda da

Constituição, não serão objeto de deliberação aquelas que tendem a abolir: I - a forma

federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III a separação

dos poderes e IV os direitos e garantias individuais. Essas seriam algumas das cláusulas

pétreas da Constituição de 1988.

O interessante da análise de Sarmento é que ele nos apresenta pareceres de juízes e

especialistas no direito que reafirmam a extensão dos direitos previstos na Constituição

aos direitos sociais, e nessa medida é possível incluir nestes o direito dos indígenas ao

seu território tradicional. Ele propõe que os direitos fundamentais são cláusulas pétreas,

que devem ser mantidas para se garantir a democracia, a dignidade das pessoas; não há

motivos para que apenas os “direitos individuais clássicos” sejam tidos como “limites

ao poder de reforma” (2003:8). Mesmo se se quiser defender que “o papel das cláusulas

5 “Art.60 § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: inciso IV: os

direitos e garantias individuais” (Constituição Federal de 1988).

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pétreas é o de proteger o núcleo de identidade da Constituição”, se chega à mesma

conclusão: que “a Constituição de 88 tem um compromisso visceral com os direitos

fundamentais como um todo...”. A tarefa primordial desta Carta Magna seria “promover

a dignidade humana em todas as suas dimensões, inclusive das minorias vulneráveis,

como os povos indígenas”, por isso as cláusulas pétreas “devem se estender a outros

direitos fundamentais”, pois esses também “compõem o núcleo de identidades da

Constituição de 88” (ibidem:8).

O direito às terras torna-se um direito fundamental para os indígenas, constituindo-se

em cláusula pétrea o art.231 da CF, pois está atrelado ao sentido de dignidade defendido

pela Constituição. A análise de Sarmento é realmente preciosa na medida em que ela

retoma pareceres favoráveis em relação à importância das terras tradicionalmente

ocupadas para as populações indígenas, como no parecer do Ministro Menezes no caso

Raposa Serra do Sol. E também porque o Brasil é signatário da Convenção n. 169 da

OIT (“incorporada ao ordenamento interno através do Decreto n. 5051/2004”). O artigo

13 da Convenção 169 discorre sobre a importância do território e da dimensão espiritual

que ele abarca. No art. 14, a Convenção reafirma:

Os direitos de propriedade e posse de terras tradicionalmente ocupadas pelos

povos interessados deverão ser reconhecidos. Além disso, quando justificado,

medidas deverão ser tomadas para salvaguardar o direito dos povos

interessados de usar terras não exclusivamente ocupadas por eles às quais

tenham tido acesso tradicionalmente para desenvolver atividades tradicionais

e de subsistência.

Para a interpretação da Constituição o STF deve levar em consideração o compromisso

internacional firmado (SARMENTO, 2013:13)6.

Outro ponto essencial da Nota Técnica de Sarmento é a de que os direitos fundamentais

presentes na Constituição “não se subordinam à atividade parlamentar” (Sarmento,

2013:14). Isso teria relação com um novo modelo de constitucionalismo, que

principalmente após a 2º. Guerra Mundial percebeu que as maiorias podem violar os

direitos humanos. A partir de então se consolida “um novo modelo de

constitucionalismo, que afirma a plena vinculação do Legislativo aos direitos

6 Não é despropositadamente que a subscrição à Convenção está em xeque pela proposta do Sr. Quartiero

(REQ 577/2014 CAPADR), conforme veremos adiante.

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fundamentais e aposta na jurisdição constitucional como fiscal do respeito a estes

limites” (ibidem:14, grifo nosso). Aprovar a PEC 215 é subordinar o direito

fundamental dos indígenas à terra, previsto no art. 231 da Constituição, à maioria

parlamentar. Um dos critérios que definem uma democracia, segundo Sarmento, é “a

necessidade de respeito aos direitos fundamentais das minorias” (ibidem:32). A PEC

215 não apenas transfere a competência do Executivo para o Congresso, ela altera a

natureza do processo. “No atual cenário jurídico, compreende-se a decisão do

Presidente da República que conclui o processo de demarcação das terras indígenas

como dotada de natureza declaratória e não constitutiva” (ibidem:15)

O direito à terra que tradicionalmente ocupam é originário para os povos indígenas, ele

é anterior ao Estado, esse apenas o reconhece, não o constitui. O Presidente não exerce,

segundo Sarmento, “juízo político de conveniência e oportunidade sobre a demarcação”.

Depois dos estudos técnicos que a caracterizam como de ocupação tradicional indígena

e “do devido processos legal administrativo, a demarcação se converte em direito

subjetivo da comunidade étnica em questão”, sendo esses processos regidos pela

L.6001/73 (art. 19§1º) e do Decreto 1775/96 (art.5º), “que caracteriza o ato presidencial

como homologação”, mas que obviamente derivam da Constituição, que reconhece o

direito ao usufruto das terras indígenas como “um direito subjetivo”, e não depende de

“juízos políticos discricionários de autoridades estatais” (SARMENTO, 2013).

De acordo com Sarmento, as leis devem ser interpretadas levando-se em consideração a

realidade. E no cenário político nacional, a aprovação dessa emenda constitucional

“causaria dano terrível aos direitos territoriais das comunidades indígenas brasileiras”

(ibidem:17). Sarmento leva em consideração o fato de os indígenas não terem nenhum

representante no Congresso, da força da bancada ruralista, para afirmar que, do ponto de

vista prático, permitir que o Congresso seja o responsável pela demarcação das terras

indígenas seria “revogar integralmente o direito fundamental dos índios aos territórios

tradicionalmente ocupados” (ibidem).

O direito à cultura também seria uma cláusula pétrea a ser protegida pela Constituição,

o direito à diferença, à autonomia de se desenvolver de acordo com seus costumes e

diversidade, está explícito no art. 231: “São reconhecidos aos índios sua organização

social, costumes, línguas, crenças e tradições...”. Eles também aparecem na Convenção

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169 da OIT no art. 8º enfatizando o direito à manutenção de “seus costumes e

instituições, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais previstos

no sistema jurídico nacional e com direitos humanos internacionalmente reconhecidos”.

Assim, preservar as culturas indígenas, possibilitando que se desenvolvam

com autonomia, é proteger não só os direitos dos índios que as compartilham,

mas também o patrimônio cultural da Nação e da Humanidade, que constitui

direito fundamental difuso de toda a coletividade (SARMENTO, 2013: 22).

O direito das comunidades indígenas às terras tradicionalmente ocupadas é originário,

porém, quando a Constituição de 88 foi promulgada, todas as comunidades que se

adequavam ao “art. [artigo] 231, §1, da Carta, incorporaram à sua esfera jurídica o

direito à posse e usufruto das terras que tradicionalmente ocupavam àquela época”

(ibidem: 24). Assim, trata-se de um direito adquirido, mas que “se funda em expressa

determinação do poder constituinte originário” (ibidem). É preciso ressaltar que vários

povos indígenas foram retirados de seu território tradicional, forçados pelo SPI ou

Funai, ou mesmo por particulares, cabendo ao Estado de direito atual considerar suas

demandas legítimas por seu território tradicional, que continua sendo direito originário.

O direito de cada comunidade às suas terras tradicionais é um direito adquirido. Não é a

demarcação seguida de homologação da União que funda o direito adquirido, já que

esse possui uma “natureza meramente demarcatória”. A PEC 215, caso aprovada,

“ofende a diretos adquiridos cuja fonte normativa repousa no texto originário da

Constituição Federal”, contido no art.231. §1 (ibidem:25). Basta lembrar, como bem o

faz Sarmento, a situação vulnerável na qual se encontrarão os povos indígenas que não

tiveram suas terras demarcadas devido à morosidade da União, eles dependerão das

“escolhas discricionárias das maiorias parlamentares para garantia do seu território”

(ibidem). Esse processo passa a depender dessas escolhas da maioria parlamentar sobre

a minoria, deixa de ser uma decisão técnica para ser isso que Sarmento chama “escolhas

discricionárias”, e considerando-se que esse processo versa sobre direitos fundamentais,

“não pode ser considerado justo” (ibidem: 26).

O processo legal demanda uma “tutela processual adequada ao direito material em

discussão”. O processo de demarcação de terras envolve uma equipe de expertise, sob a

supervisão de um antropólogo, não cabe ao Congresso, que não possui essa

competência, e que decidirá de acordo com os interesses da maioria. Esse princípio do

devido processo legal está associado à ideia de processo justo. Deixar o procedimento

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de demarcação nas mãos do Congresso seria privar os indígenas “‘da liberdade ou de

seus bens sem o devido processo legal’” (Constituição Federal, art. 5, inciso LIV, apud

SARMENTO, 2013:26).

A PEC é inconstitucional também por ofender o princípio de separação dos poderes,

não poderia ser aprovada enquanto emenda, pois contraria o art. 60, § 4º, inciso III da

CF. Submeter a decisão de demarcação a um juízo político discricionário do Congresso

ao invés de uma decisão administrativa de caráter declatório, pautada em laudos

competentes, seria submeter direitos fundamentais de uma minoria aos caprichos de

uma maioria. Não se trata de um mecanismo de freios e contrapesos, mas de uma

submissão a um juízo político que “representaria barreira praticamente insuperável para

a garantia de direito fundamental de uma minoria estigmatizada” (SARMENTO,

2013:34).

A justificativa para a PEC 215 é inconsistente. O Congresso nacional precisa aprovar a

intervenção Federal nos Estados porque é um ato de natureza política por parte da

União, caso que não acontece na homologação de terras indígenas realizada pela

mesma, pois esse é um ato de “caráter exclusivamente técnico”. A homologação não é

um ato unilateral do processo de demarcação, dado que Estados e municípios podem se

manifestar no processo de demarcação (Decreto 1775/96, art. 2 § 8º.), “antes da decisão

do Ministro da Justiça, que é depois submetida à homologação presidencial”

(SARMENTO, 2013: 36). E a ênfase dos propositores da emenda de uma maior

segurança jurídica ao processo de demarcação realizados pelo Congresso Nacional é

contestada por Sarmento. Não há segurança jurídica quando os direitos adquiridos

garantidos pela Constituição são ameaçados, e principalmente por se tratar de direitos

fundamentais de minorias que ficam submetidas “a um juízo político de conveniência e

oportunidade do Parlamento...” (ibidem:36).

É preciso nos atermos ao núcleo de identidade da Constituição, expresso no papel das

cláusulas pétreas. Nossa Carta Magna está embasada na promoção da “dignidade

humana em todas as suas dimensões” (SARMENTO, 2013). Sendo assim, ela

contempla a plurietnicidade, defende a diversidade e sua promoção (C.F, art.215), e a

autonomia dos povos indígenas no Brasil (art.231). Essas características aparecem

também na Convenção n. 169 da OIT (art.7: povos interessados terão prioridade no

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desenvolvimento que afete suas vidas, crenças, instituições, etc.) e da Declaração dos

Direitos do Povos Indígenas da ONU (art.9: os povos indígenas têm direito a viver de

acordo com suas tradições (...), art. 3: livre determinação, art. 4: autogoverno). Esta

Declaração é importante, porém, a Convenção n.169, da qual o Brasil é signatário, tem

valor supralegal, o que significa que está acima das leis ordinárias e abaixo da

Constituição, e pode, como sugere Sarmento (2013), ser usada para interpretar a

Constituição Federal, possuindo inclusive vários artigos que corroboram valores

expressos na Carta de 88. Dentre esses valores defendidos pela Convenção 169 está o

direito aos territórios tradicionalmente ocupados (art.14), reconhecendo que esses têm

inclusive um valor espiritual (art.13), a necessidade de os governos agirem efetivamente

para garantir tal posse e propriedade (art.14.2), atuando inclusive para resolução de

controvérsias jurídicas sobre esses territórios (14.3).

O fato é que o parecer de Sarmento (2013) sobre a inconstitucionalidade da PEC 215

poderia perfeitamente ser utilizado para mostrar a inconstitucionalidade de várias das

propostas já citadas que modificam os direitos dos índios no que concerne ao território,

ao usufruto das riquezas do solo, subsolo, ao papel da União na homologação, bem

como dos Estados e municípios nesse processo. Sem dúvida, a interpretação mais justa

seria considerar o artigo 231, como cláusula pétrea, reserva de justiça, como sugere

Sarmento (2013).

A situação dos indígenas Kaiowá e Guarani no MS

Passemos agora a averiguar a situação dos Kaiowá e Guarani do MS no que concerne

aos seus direitos fundamentais e que estão, a maioria deles, dispostos na Convenção

n.169 da OIT e na Constituição vigente no país. Ambas são parecidas em vários pontos,

pois se pautaram em consultas aos povos indígenas para sua realização.

A Convenção 169 da OIT apresenta princípios de autogoverno dos povos indígenas e

tribais, da responsabilidade dos governos de proteger o direito desses povos, da

transferência de responsabilidade nos casos de programas especiais de formação

profissional (art.22.3), serviços de saúde comunitários (art.25.1), e programas de

educação (art.27.2), sem excluir o governo de suas responsabilidades nesses casos; do

gozo dos direitos humanos e liberdades aos povos indígenas e tribais, assim como de

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qualquer outro ser humano; ao não uso da força ou coerção que viole os direitos ou

liberdades fundamentais. A consulta prévia é um dos princípios fundamentais desse

Convênio, ela deve ser realizada através de suas instituições representativas dos povos

indígenas ou tribais “cada vez que se prevejam medidas legislativas ou administrativas

suscetíveis de afetá-los diretamente” (art.6.1). E essas consultas devem ser feitas de

boa-fé (art.6.2), de maneira a se adequarem às circunstâncias: tanto no plano idiomático,

as proposições devem ser feitas no idioma compartilhado pelo grupo indígena, quanto

na busca da opinião do grupo como um todo, ou de entidades que realmente lhes

representem. Assim, a garantia da participação dos povos indígenas e tribais em todas as

etapas nos projetos que os afetem; os direitos sobre o território; a ênfase no direito

consuetudinário (art. 8) devem ser assegurados.

Um breve recorte histórico pode nos auxiliar a perceber como a situação de descaso e de

violações aos direitos humanos em relação aos indígenas Kaiowá e Guarani não é algo

recente. Os Kaiowá e Guarani foram utilizados como mão de obra na colheita de erva-

mate nativa do fim do século XIX até 1940 (Brand, 1997) pela Companhia Matte

Larangeiras, que tinha a concessão para a exploração da erva-mate no MS. Os casos de

abusos por essa Companhia são relatados pelos informantes de Brand. De acordo com

eles, seus antepassados não tinham direito à folga semanal na colheita de erva mate,

além de serem obrigados a permanecer no serviço, pois contraíam dívidas para se

manter no local, algo parecido com o que hoje conhecemos como sistema de aviamento.

Os casos de assassinatos de índios que tentavam fugir sem pagar as dívidas eram

frequentes.

Os Kaiowá e Guarani foram confinados em reservas constituídas pelo SPI de 1915 a

1928 no MS. Como observa Antonio Brand (1997), o objetivo era antes protegê-los do

que confiná-los em lotes de no máximo 3600 hectares para liberar terras para

exploração. Em 1943 é criada por Vargas a Companhia Agrícola Nacional de Dourados

(CAND) com a finalidade de lotear terras para emigrantes de diversas partes do país.

Durante esse período, houve várias tentativas do SPI de levar os índios desaldeados,

aqueles que não ficavam dentro das reservas, para as reservas então existentes.

Em 1950, acentua-se a instalação de fazendas de gado com desmatamento sistemático

da região. Esse processo ocasiona a dispersão de várias aldeias tradicionais, os nativos

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denominam tal período de esparramo (sarambipa). Os fazendeiros apresentavam o

documento de propriedade da terra e mandavam os indígenas saírem, ameaçando os

nativos com armas. Acentua-se nesse período o processo de confinamento nas reservas,

sem terem para onde ir, inúmeras famílias se mudaram para uma das oitos reservas

existentes. Entretanto, já no final da década de 70, começam movimentos de retorno,

com vistas a ocupar os antigos territórios, o que obviamente ocasiona conflitos com os

novos “donos” das propriedades (Brand, 1997).

A soja começou a ser implantada na região em 1970, assim como a mecanização da

agricultura, o que tornou os indígenas desempregados e acabou com as “ aldeias refúgio

nos fundos das fazendas, onde os Kaiowá e Guarani resistiam” (Brand, 2004:140). Os

restos de campos, matas e capoeiras foram destruídos pela monocultura da soja.

A situação das reservas no MS criou um ambiente de muitos conflitos internos e

externos. O ambiente artificial das reservas reúne várias famílias, que não são parentes,

em espaços restritos. Os casos de violência, inclusive de estupros, assassinatos, tráfico,

são uma realidade documentada pelo Relatório de 2011 do Conselho Indigenista

Missionário (CIMI). Há vários problemas relacionados com o fato de não terem espaço

suficiente para viver de acordo com o modo de vida guarani. Os Kaiowá e Guarani

realizavam as caminhadas (oguata) quando algo não estava bom a fim de superar

conflitos e tensões envolvendo conflitos familiares, feitiçaria, ou quando atingidos por

doenças, mortes, exaustão do solo, etc. Porém, o ambiente restrito das reservas não

permite essas caminhadas, o que provoca o aumento das tensões e violência internas.

O intenso contato com as populações urbanas, o “engajamento como assalariados nas

usinas de açúcar e álcool”, o aumento do “número de indígenas que frequentam cursos

do ensino superior”, e o “acesso aos meios de comunicação de massa são fatores que

permitem compreender as contradições vivenciadas por essas gerações” (Brand, 2004).

O relatório Survival (2010) relata que o álcool e as drogas estão fortemente atrelados ao

trabalho do corte de cana de açúcar. Brand (1997) já mencionava a questão desses

trabalhos temporários, denominados “changa”, que acabam alterando a rotina de vida

dos Kaiowá e Guarani, seja porque eles não plantam mais como antes, não estão

presentes para comandar a família, ou porque às vezes, ao voltar para casa, se deparam

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com o abandono da esposa. No MS, a população indígena trabalhou na construção de

ferrovias e nas fazendas quando foram despejados de suas terras. A própria localização

das reservas propiciou que esses indígenas fossem tomados como mão-de-obra para

diversos empreendimentos.

Porém, a situação de trabalho sempre foi precária e atrelada à discriminação étnica. Os

relatórios do CIMI (2011) e Survival (2010) indicam que os Kaiowá e Guarani são

vítimas de trabalho escravo no corte da cana de açúcar; além de apontarem para casos

em que jovens menores de 18 anos trabalham, sem a anuência dos pais, nessa atividade.

A Convenção 169 da OIT estabelece no artigo 20.3.c que “trabalhadores pertencentes a

esses povos não sejam submetidos a sistemas coercitivos de contratação, inclusive a

trabalho escravo e a outras formas de servidão por dívida”. As condições desse tipo de

trabalho em geral são degradantes, péssimas condições de alojamento e refeitório,

longas jornadas de trabalho. Além disso, ainda precisam pagar para o “cabeçante”,

aquele que lhes consegue o emprego; o empregado paga também pela comida, pela

moradia, pelo transporte para o trabalho. O valor recebido, em 2007, variava de acordo

com a quantidade de cana cortada, o salário básico era de 425 reais, mas para quem

cortasse de 8 a 12 toneladas, o salário era de 800 ou 900 reais (AYLWIN, 2009:37). A

situação dos Kaiowá e Guarani do MS, ainda é crítica. O CIMI, a Survival, Antonio

Brand, Levi Pereira (CIMI, 2011), e outros antropólogos, defendem que a falta de

acesso ao território tradicional dos Kaiowá e Guarani é o grande catalisador da

avalanche de problemas que hoje esses povos enfrentam. Segundo a Declaração dos

Direitos dos Povos Indígenas da ONU, no artigo 17.3: “as pessoas indígenas têm

direitos a não ser submetidas a condições discriminatórias de trabalho, entre outras

coisas, emprego ou salário”.

Os Kaiowá e Ñandeva localizados no MS seriam aproximadamente 37.317 pessoas, dos

50 mil Guarani no Brasil. Daquele total, dois terços, 19.638 pessoas, estão concentrados

em três reservas do MS: Dourados, Amambaí e Caarapó, que juntos têm 9.498 hectares

(Funasa apud Aylwin, 2009:34). Segundo o CIMI (2011:22), cerca de 10.000 indígenas

trabalhavam no corte de cana de açúcar em 2010. A Survival (2010) denuncia o

ambiente degradante desses empregos temporários, que incentivam o uso de bebidas

alcoólicas, e onde se faria uso de outros tipos de entorpecentes, como formas de ajudar

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a suportar o trabalho pesado e distância da família. Porém, ao retornarem para as

aldeias, tanto o álcool quanto as drogas favoreceriam brigas internas.

Os Kaiowá e Guarani do MS apresentam altas taxas de suicídios, detentos, desnutrição e

mortalidade infantil, assassinatos, e são vítimas de homicídios culposos por

atropelamento. Há uma associação entre a ausência de terras e o aumento da violência

entre os Kaiowá e Guarani, que está intrinsecamente relacionado ao modo de ser

Kaiowá e Guarani. Esses povos não possuem espaço para fazer suas plantações, para

pescar, e são obrigados a conviver com várias famílias extensas que não são seus

parentes. Em Dourados, estima-se que convivam quarenta famílias extensas. Nesse

ambiente de tensão, ainda há a figura do capitão. Este foi inicialmente imposto pelo SPI,

que inclusive era nomeado pelo órgão governamental. Porém, esse cargo de capitão

permanece gerando conflitos em alguns casos, pois subverte o modo tradicional de

liderança guarani, que não era via coerção, nem fazia uso de polícia indígena, como

continua ocorrendo em algumas comunidades, mas se manifestava através da conversa,

do convencimento (Brand, 2001). Quando se estabelece uma liderança para uma

reserva, temos vários chefes de família sem a oportunidade de ter voz. Além disso, os

capitães continuam reunindo recursos, como empregos, por exemplo, principalmente

para seus familiares e aliados políticos (ibidem).

Nesse cenário, as crianças sofrem com desnutrição, em 2003 faleceram 93 crianças para

cada 1000 nascimentos no MS, em 2004 foram 63 (CIMI, 2011:16); de 2005 a 2007

esse número foi de 65 crianças (Aylwin, 2009:38). De acordo com o CIMI (2011), em

2010, a mortalidade infantil entre os Kaiowá e Guarani foi de 38 mortes para cada 1000

nascimentos; enquanto no Brasil, a média foi de 25 mortes para cada mil nascimentos.

Atualmente, a Funai distribui cestas básicas para a população indígena para amenizar a

situação. Entretanto, essa medida é insuficiente e está longe de garantir-lhes a

autonomia do próprio sustento, como muitos anseiam. O art.20.2 da Declaração dos

Direitos dos Povos Indígenas da ONU afirma: “Os povos indígenas despojados de seus

meios de subsistência e desenvolvimento têm direito a uma reparação justa e

equitativa”.

Segundo o CIMI (2011), em 2007, “houve um número descomunal de assassinatos de

indígenas em MS”, e que continuou alto nos anos seguintes. O relatório do CIMI

13

(2011), nos lembra de que 2007 é o ano do início do mandato do atual governador do

MS: André Puccinelli. Esse político se mostrou “publicamente contrário aos direitos

territoriais indígenas” (CIMI:2011), basta ver os jornais locais do MS. Segundo a

Convenção 169 da OIT, art. 4º. 1: “Medidas especiais necessárias deverão ser adotadas

para salvaguardar as pessoas, instituições, bens, trabalho, culturas e meio ambiente

desses povos”.

O relatório do CIMI (2011) demonstra que 56% dos assassinatos de indígenas de 2003 a

2010 ocorreram no MS, ficando a totalidade dos outros assassinatos de indígenas nas

outras regiões do Brasil com 44% dos casos. De acordo com o CIMI, o confinamento é

certamente a maior causa dessa realidade. Dourados tem mais de 14 mil indígenas, onde

ocorreram, em 2010, 16 assassinatos dos 34 apresentados no MS (dados da polícia apud

CIMI, 2011:18). A média nacional é de 24,5 assassinatos para cada 100 mil pessoas; em

Dourados esse número é de 145 assassinatos para cada 100 mil pessoas, ou seja, 495%

maior do que a média nacional (CIMI, 2011: 18).

Outro dado desse panorama sobre os Kaiowá e Guarani no MS, é o do número de

suicídios. A explicação para tal fenômeno varia, mas a dificuldade de manter o modo de

vida guarani, dada pela ausência do território é uma delas, propiciando a violência

interna e externa. Os Kaiowá e Guarani residentes no MS contabilizam 83% dos

suicídios indígenas ocorridos de 2003 a 2010 em relação ao restante de suicídios

indígenas ocorridos no Brasil durante o mesmo período (CIMI, 2011:18).

As áreas de confinamento (reservas) e os acampamentos na beira de estrada estão

cercados por grandes rodovias, infraestrutura desenvolvida para atender ao agronegócio,

propiciando muitos casos de homicídio culposo por atropelamento. O número de

indígenas mortos por atropelamento no MS de 2003 a 2010 foi de 49 casos, contra os 50

casos ocorridos no restante do país.

A violência sofrida pelos Guarani e Kaiowá está relacionada com a questão da ausência

de terra suficiente, todavia não se trata de qualquer terra passível de ser cultivada, esses

povos indígenas desejam retomar seu tekoha tradicional, onde seus pais, avós, viveram

e de onde foram violentamente expulsos com o aval do SPI ou Funai e do governo do

estado que vendeu terras que já estavam ocupadas pelos índios como se fossem

14

devolutas. O fato é que as reservas demarcadas de 1915 a 1928, além de não

ultrapassarem 3600 hectares, não eram o tekoha tradicional de muitos dos indígenas que

foram obrigados, por falta de opção, a permanecerem naquele local.

Em 2007 foi assinado um Termo de Ajustamento e Conduta (TAC) entre o Ministério

Público Federal do MS, a Funai e 23 lideranças indígenas. O termo obriga a “Funai a

identificar 36 terras ancestrais guarani e demarcar sete grandes territórios abrangendo-

as, além de devolvê-los às comunidades indígenas até abril de 2010” (Survival, 2010:6).

A oposição por parte dos interesses locais foi marcante, além da violência contra

lideranças indígenas ter aumentado em 2007; até hoje os trabalhos não foram

completados, e a quantidade de recursos judiciais envolvendo terras ameríndias se

avoluma. Para se ter uma ideia, havia mais de oitenta processos envolvendo terras

indígenas no MS sendo analisadas pelo Tribunal Federal Regional em 2009 (ibidem).

Atualmente duas terras homologadas permanecem parcialmente suspensas por decisão

judicial: Arroio-Korá e Ñande Ru Marangatu, e há também terras demarcadas que se

encontram suspensas parcialmente por liminar da justiça (Instituto Socioambiental).

No MS, o número de cabeças de gado por hectare não chega a um animal, (CIMI, 2011;

nota 3: 56), apesar de alguns criadores terem investido na recuperação do solo e se

equipado para que esse número aumente. Por outro lado, cada habitante em Amambaí

ou Dourados ocupa em média 0,5 hectare. E o alarmante é que, tanto a produção de

soja e de cana de açúcar, quanto a criação de gado estão se expandindo, ocupando o sul

do MS, região tradicional dos Kaiowá e Guarani. Essa expansão implica na criação de

uma infraestrutura, estradas que cortam áreas indígenas, contaminação da água por

agrotóxicos, e a ocupação de áreas indígenas com soja e cana-de-açúcar, o que dificulta

o processo de retomada dessas terras pelos Kaiowá e Guarani.

Em 17 de setembro de 2009, quando foi publicado o Decreto Nº 6.961, que aprovou o

Zoneamento Agroecológico da Cana-de-açúcar (ZAE), “o plantio de cana em áreas

indígenas (assim como no Pantanal, na Amazônia e na Bacia do Alto Paraguai) passou a

ser considerado irregular e inapto a receber financiamento público” (GLASS, 2012:8).

Esse decreto foi regulamentado em outubro de 2009 pelo Conselho Monetário Nacional.

O Ministério Público Federal procurou várias usinas do MS para propor um acordo no

qual essas se comprometiam a não comprar nem financiar plantações de cana-de-açúcar

15

em terras indígenas nos imóveis rurais que estejam localizadas “em áreas identificadas,

declaradas ou homologadas como terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”

(GLASS, 2012:9).

A instalação de Usinas entre terras indígenas também é uma decisão política, segundo a

Survival (2010), pois dificulta o processo de retomada dessas áreas. De um lado, o

governo federal e o estadual atuam para aumentar a produção de soja, cana de açúcar e

gado, de outro, esses empreendimentos requerem mais terras para suas produções e há

mais implementações de Usinas que arrendam fazendas locais, localizadas dentro de

terras indígenas identificadas e demarcadas para supri-las. A terra indígena de

Guyraroká, município de Caarapó, se encaixa perfeitamente nesse quadro, há 26

fazendas dentro de seu território, e a população ocupa uma pequena porção de terra,

mesmo já estando na situação legal de declarada.

A situação violenta no MS mostra que as autoridades não estão se posicionando para

que a situação seja resolvida, inclusive judicialmente, como recomenda a OIT ao falar

do território dos povos indígenas e tribais e da responsabilidade do Estado nesse

processo. Nesse contexto, a autonomia dos povos indígena acaba sendo inviabilizada.

As violações dos direitos fundamentais de todo o ser humano continuam com a situação

dos detentos indígenas no MS. Segundo o CTI (2008), os indígenas presos no MS

sequer tiveram direito a um julgamento justo, pressionados, desacompanhados por

advogados e tradutores durante o processo penal, calados inclusive por juízes que os

impedem de falar sua própria língua durante o julgamento7. Há, no MS, um sistema

penal rigoroso com os delitos indígenas, a ponto deste ignorar recomendações da

própria Convenção 169 da OIT sobre o direito consuetudinário (art.8.1) que estabelece a

necessidade de a legislação nacional, ao ser aplicada aos indígenas, considerá-lo. A

mesma Convenção afirma que deve ser dada a “preferência a outros métodos de punição

que não o encarceramento” (art.10.2). Essa recomendação está presente também na

L.6001/ 73 ainda em vigor no país, basta verificar o parágrafo único do art. 56, que

7 Caso do julgamento dos acusados da morte do líder indígena Marcos Veron que foi transferido do MS

para São Paulo, na busca de um julgamento imparcial. Porém, em São Paulo, “a juíza do caso impediu

que os indígenas se expressassem em guarani, porque eles haviam respondido uma simples pergunta em

português” (Deborah Duprat apud CIMI, 2011:26)

16

estipula: “As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime

especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência

aos índios mais próximos da habitação do condenado”. Segundo a CTI (2008)8, a maior

parcela dos indígenas processados: 45% estão cumprindo pena no regime fechado, e em

97% dos 103 processos analisados, eles foram reconhecidos como indígenas. A

recomendação ao não encarceramento desses povos aparece na definição da pena em

1% dos casos levantados no MS, contra 99% onde não é mencionada. E quanto a se

levar em consideração as formas de punição que acontecem na comunidade, desde que

não sejam incompatíveis com a legislação nacional e os direitos humanos

internacionalmente reconhecidos, isso foi tomado em consideração em 1% dos casos

analisados.

A necessidade de um devido processo legal está garantida na Constituição Federal

art.5, inciso LIV- “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido

processo legal”; e no inciso LV em que lhe são assegurados o contraditório e ampla

defesa. No caso dos indígenas, isso não é cumprido, pois mesmo quando falam

português, não se pode afirmar que compreendam suficientemente a linguagem jurídica

e as implicações de seus atos perante a fase do interrogatório e do processo penal como

um todo. A necessidade de um tradutor (art.12 da Convenção 169 da OIT) é necessária,

assim como do acompanhamento de profissionais da Funai, o que nem sempre ocorre

no MS devido ao número de casos em que estes precisam estar presentes e do pequeno

número de funcionários. De acordo com a pesquisa do CTI (2008), 22% dos casos

analisados fizeram uso de intérprete, enquanto 78% não o utilizaram. O

acompanhamento de advogado durante todo o processo, inclusive na fase policial, dado

o desconforto e temor dos indígenas nessa situação não é uma realidade no MS. Em 6%

dos casos analisados eles não foram acompanhados por advogados nos interrogatórios,

em 6% eles foram acompanhados na fase policial, em 10% eles foram acompanhados

em ambas as fases, e em 78% somente na fase judicial (CTI, 2008).

Outro grande empecilho para um julgamento justo é o fato de muitos juristas

trabalharem pautados apenas no Estatuto do índio L.6001/73 que, apesar de ainda em

8 A CTI (2008) realizou uma pesquisa acerca da situação dos detentos indígenas no MS em 2006, no qual

enfatizou a situação dos Kaiowá e Guarani. Foram analisados 103 processos no ano de 2006 que

demonstram graves infrações tanto à Constituição de 88 quanto a Convenção 169 da OIT.

17

vigor, apresenta muitos aspectos contraditórios com a Constituição de 88 e com a

Convenção 169 da OIT (Pacheco; Prado; Kadwéu, 2011). Assim, acabam sendo

induzidos no julgamento pela questão de se o índio acusado é integrado ou não

integrado, imputável ou inimputável, e isso explica o fato de não levarem em

consideração a necessidade de um tradutor, por julgarem que o réu domina o português

por tê-lo visto falando nosso idioma, e entendem que ele deve compreender os tramites

legais, desconsiderando, talvez por preconceito ou falta de conhecimento, a Convenção

169 da OIT que tem caráter vinculante, supralegal e que recomenda que se investigue

acerca do direito consuetudinário dos povos indígenas acusados de delito, art.9.2 : “Os

costumes desses povos, sobre matérias penais, deverão ser levados em consideração

pelas autoridades e tribunais no processo de julgarem esses casos”. E que se deve levar

em consideração tanto as “suas características econômicas, sociais e culturais”

(art.10.1), além de dar “preferência a outros métodos de punição que não o

encarceramento” (art.10.2).

Considerações Finais:

Como vimos a Convenção 169 da OIT tem caráter vinculante e deve ser considerada

pelos juristas, legisladores, para tratar de questões concernentes aos indígenas. Não é

desinteressadamente que o Sr. Quartiero propôs a realização de Audiência Pública na

Comissão de Agricultura, Pecuária e Abastecimento para debater sobre a revogação do

Brasil à subscrição da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A alegação é que ela traz perigo para a “segurança jurídica da sociedade”. Quartiero

critica a “auto atribuição para reconhecimento de supostos índios, fator elementar para

as demarcações de terras indígenas, conforme dispõe o artigo 1º item 2 da Convenção

169 da OIT...”, esse critério, segundo ele, deve ser levado em consideração, mas “isso

não significa que deve ser critério único (como é hoje), o que dá azo a uma série de

pessoas oportunistas que buscam essa convenção para benefício próprio”. A referida

Convenção, devido ao seu caráter de lei, seria um perigo para a soberania nacional,

principalmente, por envolver a consideração da autonomia dos povos indígenas e

tribais, pois fornecem “requisitos de independência quanto às questões que envolvem

sanções penais e responsabilidade civis e principalmente quanto à forma de

determinação das áreas limítrofes aos territórios indígenas”. De acordo com Quartiero,

18

em seu art.1º. “a Convenção não guarda rigor jurídico algum no que tange ao uso do

tema ‘povos’, pois atribuí ao tema característica de independência frente ao Estado,

divergente do que determina a regra de direito internacional”. A utilização do termo

“Povos” envolveria a ideia de nação e de soberania. Porém, no inciso 3 do art.1º. da

referida Convenção é claro: “A utilização do termo povos na presente Convenção não

deverá ser interpretada no sentido de acarretar qualquer implicação no que se refere a

direitos que possam ser conferidos ao termo no âmbito do Direito Inter nacional”.

Conforme vimos, tanto a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas,

quanto a Convenção 169 da OIT estabelecem como prioridade fornecer aos povos

indígenas condições para que disponham de direitos fundamentais que muitos países

ainda não lhes possibilitam. Esse não é o caso do Brasil, no qual a Constituição de 88

reconheceu aos índios no art.231 “sua organização social, costumes, línguas, crenças e

tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,

competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. E

inclusive forneceu aos índios a possibilidade de entrar “em juízo em defesa de seus

direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”

(art.232). A Convenção 169 da OIT nos parece ser de suma importância para os direitos

dos povos indígenas, assim como os artigos 231 e 232 da Constituição Federal.

O pequeno contexto da situação histórica e atual do MS que tentamos esboçar neste

trabalho, no que concerne à infração de seus direitos fundamentais garantidos tanto pela

Constituição quanto pela Convenção 169 da OIT e Declarações de Direitos dos Povos

Indígenas, demonstra quanto ainda há por fazer na garantia desses direitos.

Concordamos com Carneiro da Cunha a respeito do futuro dos povos indígenas no

Brasil: “A posição dos índios no Brasil de hoje e de amanhã desenhar-se-á na

confluência de várias opções estratégicas, tanto do Estado Brasileiro e da comunidade

internacional quanto das diferentes etnias. Trata-se de parceria” (1997:134).

Quanto maior o número de parceiros, e mais diversos, maiores são as chances de

inovações (Lévi-Strauss,1976). Os indígenas mudaram e o continuam fazendo, assim

como nós, pois ambos estamos vivos e em contato com os outros. Porém, os processos

de unificação, semelhança com a civilização brasileira e mundial, se faz junto com o da

produção de mais diversidade, são duas ações constantes ao fabricar cultura. É preciso

19

respeitar a diversidade sem congelá-la no tempo e no espaço, como ainda o fazem os

juristas e brasileiros que se apegam com paixão ao ideal integracionista presente na

L.6001/73 e veem os índios como isolados, em vias de integração, ou integrados. Na

mesma linha de raciocínio, outros ainda se prestam a analisar se são falsos índios.

Esperamos do judiciário e do legislativo que protejam os princípios assegurados pela

Constituição, dentre eles está o da dignidade da pessoa, dos costumes, crenças e

tradições dos povos indígenas, da diversidade, dos direitos adquiridos, que como vimos

inclui o direito dos ameríndios às suas terras tradicionais e aos seus direitos

fundamentais, e nesse sentido, a Convenção 169 da OIT pode auxiliar-nos.

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