Nordeste VinteUM

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Cangaço e o “Brasil profundo” de Frederico Pernambucano de Mello CRISE A blindagem nordestina no subdesenvolvimento FUNDOS SETORIAIS A ciência do desequilíbrio regional NORDESTE MAIS PERTO DE CELSO FURTADO? Edição Nº 01 — Ano I — Maio/2009 — Revista Nordeste VinteUm – Publicação sobre economia, política e cultura — www.nordestevinteum.com.br - R$ 8,90

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Economia, poiítica, cultura, educacao

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Cangaço e o “Brasil profundo” de Frederico Pernambucano de Mello

CRISE

A blindagem nordestina no subdesenvolvimento

FUNDOS SETORIAIS

A ciência do desequilíbrio regional

NORDESTE MAIS PERTO DE CELSO FURTADO?

Cangaço e o “Brasil profundo” de Frederico Pernambucano de Mello

CELSO FURTADO?CELSO FURTADO?

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8,90

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O dilema sociológico O dilema sociológicoEm ciências sociais, pensamos

o mundo para transformá-lo ou para defender o status quo

Coluna Prestes“Quando a Coluna Prestes passou por perto, ouvi os adultos dizerem que era como uma praga de gafanhotos, que tomavam as reses dos ricos para comer e deixavam como pagamento papéis rabiscados. Poucos sabiam o que queriam aqueles homens, vistos como desertores do Exército comandados por um capitão de 26 anos.”

Cassação“Ouvi pelo rádio a leitura dos atos institucionais que excluíam da vida pública um grande número de cidadãos. Entre os nomes que constituíam o pelotão de frente, � gurava o meu. Cassado de direitos! Proibido de ocupar-se da coisa pública! Processo secreto. Provavelmente, a acusação fora a mesma feita a Sócrates: perverter a mocidade!”

Capitalismo brasileiro“O capitalismo subdesenvolvido não é um capitalismo menos desenvolvido que o dos países ricos. É um sistema de outro tipo, que não conduz ao bem-estar social, mas à concentração da renda. Precisamos compreender melhor a natureza do nosso capitalismo.”

Elite brasileira“Se eu não estivesse fora do Brasil provavelmente não teria prestado atenção, mas o fato de viver fora, de trabalhar numa equipe internacional, me obrigou a enfrentar esse desa� o que era decifrar o Brasil, entender onde estavam os erros. Será que nós, brasileiros, éramos realmente inferiores, como muita gente insinuava? Ou será que a classe dirigente brasileira é que não tinha política, não tinha uma visão clara das coisas, não tinha projeto para alavancar o país?”

Sudene e o golpe militar“No Nordeste, as consequências do golpe militar foram muito graves, pois a repressão exercida, desde o início, liquidou com movimentos sociais de grande alcance, surgidos no decênio anterior e que prenunciavam ampla reconstrução de suas estruturas. O Nordeste acumulara, historicamente, o maior atraso social do país. A criação da Sudene, que me coube dirigir, desde sua implantação em 1959 até golpe militar, era uma tentativa de impulsionar o desenvolvimento nessa área tão desvalida.”

Orson Welles“Eu tinha conhecido Orson Welles aqui no Rio, porque, pela Revista da Semana, acompanhei-o em algumas saídas — me recordo uma à Tijuca – e então � quei muito interessado nessa personalidade. E Orson Welles resolveu ir a Ouro Preto para � lmar a Semana Santa. Levei comigo o fotógrafo e � z uma reportagem sobre a Semana Santa de Ouro Preto. Só que o Orson Welles não foi.”

Graciliano Ramos“Ia publicando em revistas de prestígio, escrevia para as que existiam na época. Por exemplo, a revista Cultura Política que era, na verdade, subsidiada pelo governo. Mas nós, que não éramos simpáticos ao governo – que éramos, pelo contrário, críticos –, tínhamos acesso a ela porque o seu secretário era Graciliano Ramos. Ele é que fazia o editing da revista, lia as provas dos artigos. Ele me chamou lá e me disse: ‘Esse � lho é seu?’. Eu disse: ‘Sim’. Era um artigo sério, circunspecto.”

Ernesto “Che” Guevara

“Che Guevara polarizava as atenções, o que criava inveja em muita gente. Estive com ele em mais de uma conferência e via como levava vantagem. É verdade que tinha a bandeira sedutora do mito da revolução... Che Guevara era brilhante nesse passe de mágica.”

Celso Furtado. Visão de Mundo

O dilema sociológicoEm ciências sociais, pensamos

Graciliano Ramos“Ia publicando em revistas

Insigthsnossa criatividade

A DIFERENÇA ENTRE SEU VEÍCULO IMPRESSO E OS OUTROS

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QUEM SOMOSEditora

Fundada em agosto de 2005, com sede em Fortaleza (CE), a Editora Assaré atua no mercado editorial cearense, com a pro-dução de jornais, revistas, livros e demais publicações gráfico-editoriais. Formada por profissionais com experiência nas áreas de comunicação, design e gráfica, a empresa criou e lançou diversos periódicos institu-cionais e comerciais, como os jornais de parlamentos e executivos municipais, de parlamentares e de entidades privadas, re-vistas comerciais, de gestão pública e em-presariais. Além disso, publicou livros de personalidades consagradas como o cine-asta Francis Vale e o escritor e poeta Juarez Leitão, entre outras obras.

InstitutoO Instituto Nordeste XXI surge no ce-

nário de instituições não governamentais com objetivo precípuo de promover a di-fusão social do conhecimento em todas as áreas de atividade humana. Busca con-tribuir para a elevação de massa crítica de nossa sociedade, bem como fomentar o desenvolvimento local sustentável e o ple-no exercício de cidadania. Outra missão do instituto é o da realização de encontros, de-bates, seminários, jornadas, congressos e fóruns. Enfim, promover eventos em todos os formatos, bem como elaborar e formatar projetos dentro do conceito de suas ativida-des finalísticas para encaminhamento aos órgãos governamentais e ao Terceiro Setor.

RESPONSABILIDADESEDITORIAIS

A Revista Nordeste VinteUm, dentro de seu caráter pluralista, se pretende um veículo aberto à participação e à constru-ção coletiva do seu conteúdo. Para tanto, trabalha com o Conselho Editorial desig-nado pela Editora Assaré. Nesta instân-cia, são discutidas estratégias para viabi-lizar e manter a periodicidade da revista, garantir o cumprimento da sua política editorial, definir os nomes dos colabora-dores e acompanhar, através de ouvidoria, a relação público leitor-revista. Tudo em respeito aos ditames do bom jornalismo, cujo compromisso com a ética e a verda-de são inarredáveis.

Editora Assaré Ltda MERua Waldery Uchôa, 567 A Benfi caFortaleza, Ceará CEP: 60020-110e-mail: [email protected]/fax: (85) 3254.4469

Por que a Revista?Em poucas palhetadas, como diz o matuto: a

Nordeste VinteUm nasce porque queremos o uni-versal pelo regional. Porque entendemos que cons-truir e sistematizar um veículo de comunicação eficiente, moderno, abrangente e de conteúdo é imperativo para ajudar a região a sedimentar polí-ticas públicas sustentáveis de desenvolvimento re-gional e local. E pronto.

Aqui, está a missão a que nos rendemos. Em grande medida, inspirados nos pensamentos do professor Celso Furtado. Ele achava que era prima-zia para o Nordeste assumir um papel de liderança no combate ao subdesenvolvimento brasileiro.

E o enfrentamento dessa tarefa se tornará tanto quanto mais eficaz, se o país, enfim, resolver peitar seu anacrônico e inveterado problema das desigual-dades regionais. A essa luta Celso Furtado dedicou o melhor de sua criação intelectual e de sua atua-ção como homem público, no Brasil e no exterior.

A tese do universal pelo regional nos impele a tratar questões políticas, sócio-econômicas e cultu-rais com maior profundidade. Buscar o porquê da pobreza, do subdesenvolvimento e das desigualda-des entre territórios deste imenso país. Através des-se instrumento de mídia, abrir mais ainda as portas da região Nordeste para o mundo e com ele intera-gir. Conquistar público ávido por informação, cujo senso crítico o coloca entre seletos segmentos for-madores de opinião.

Por fim, um veículo impresso é, por excelência, um registro de fatos que passarão a perpetuar os feitos de uma liderança, de um grupo de pessoas que transformam a realidade e catapultam uma re-gião para os anais indeléveis da história humana.

Além do enfoque na discussão política, econô-mica e científica de questões relevantes ligadas ao desenvolvimento da região, falar em Nordeste sig-nifica também a obrigação de abordar a riqueza de sua cultura, sob os mais variados prismas.

E mais: a revista agrega, em breve, um caderno especial sobre Ciência & Tecnologia, importante setor da economia cujo fortalecimento pode contri-buir significativamente para ajudar a região a supe-rar problemas históricos.

A revista Nordeste VinteUm conta com uma equipe de profissionais experientes e, acima de tudo, conscientes da importância de construir um veículo de comunicação comprometido com o en-grandecimento da região Nordeste. Isso dentro da concepção fundamental de um crescimento volta-do para o homem, com a preservação das suas raí-zes e riquezas culturais. Sem esquecer de estarmos atentos ao papel colaborador das iniciativas que concorram para que o progresso sempre chegue acompanhado de responsabilidade ambiental.

CARTA DO EDITOR Sumário

Celso Furtado vive no atual cenário de desenvolvimento do Nordeste?

Como uma cooperativa digital ajuda a mudar as perspectivas de crianças e jovens do maior bairro pobre de Fortaleza

NE x Crise Econômica: porque estamos blindados

Especial

Poder Local&Cidadania

Economia

06

A necessidade de democratizar o acesso à água no Nordeste das grandes obras hídricas

Água

22

Dom Helder: 100 anos do Bispo Vermelho da política, das grandes polêmicas e da contestação

História

39

Frederico Pernambucano de Mello: cangaço e o “Brasil profundo”

Entrevista

32

A retomada do desenvolvimento de uma região através do geoturismo e da “economia do conhecimento”

Cariri cearense

44Ave poesia: o centenário de Patativa do Assaré

Cultura

54Os Fundos Setoriais e os desequilíbrios regionais da produção científica brasileira

Ciência

6268

14

30. Caleidoscópio

52. Saberes&Sabores

60. Ciência&Tecnologia

74. Ateliê

Seções

29. Unicef comemora 21 anos no Ceará Ana Márcia Diógenes

59. Patativa não era “analfa” Barros Alves

Artigos

Francisco Bezerra Diretor de Negócios e Relações Institucionais [email protected]

Orlando Júnior Diretor Administrativo Financeiro [email protected]

Wilton Bezerra Júnior Editor [email protected]@[email protected]

Marcel Bezerra Editor [email protected]

Luiz Carlos Antero Repórter [email protected]

Flamínio Araripe Editor Adjunto de Ciência e [email protected]

Dimas de Oliveira Costa [email protected]

Claudemir Luis Gazzoni Diretor de Arte [email protected]

Vladimir Pezzole Editor de [email protected]

Lucílio Lessa e Carolyne Barros Repó[email protected] Rocha Repórter Fotográfi [email protected]

Imagem Assessoria de Comunicação [email protected]

Colaboradores ABA Film, Barros Alves, Mino Castelo Branco, Tiago Santana

Impressão MarcografTiragem 10.000 exemplares

TODOS OS DIREITOS SÃO RESERVADOS. É proibida a reprodução total ou parcial, especialmente por sistemas gráfi cos, microfílmicos, fotográfi cos, reprográfi cos, fonográfi cos e videográfi cos ou qualquer outro meio ou processo existente ou que venha a ser criado.

Edição Nº 01Ano I — Maio/2009Revista Nordeste VinteUmPolítica, Economia, Culturawww.revistanordestevinteum.com.br

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Distante da economia colonial, o Brasil de hoje arranca Celso Furtado do passado e o projeta para o futuro. Isso se dá pela via de ações estruturantes em curso na região. São iniciativas que podem levar adiante seus sonhos de combate ao subdesenvolvimento no Nordeste. Uma colheita das sementes que, de modo pioneiro, semeou no solo nordestino

Especial

Obra de evocação ao desenvolvimento vive no Nordeste atual?

Por LUIZ CARLOS ANTEROJornalista e soció[email protected]

6 Maio/2009 7Maio/2009

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elso Monteiro Furtado faleceu, aos 84 anos, lú-cido, no Rio de Janeiro, em 20 de novembro de 2004, ainda acompa-nhado pela consciência

dramática do presente como uma rea-lidade distante do futuro que sonhou em sua juventude. Naquele momento, o Brasil perdia um nordestino submer-so em sua época, bem nascido no ser-tão paraibano em 26 de julho de 1920, no município de Pombal.

De vida tão útil e laboriosa, trans-formou-se na grande � gura evocativa do Nordeste como cenário possível e passível de desenvolvimento. Enxergou na região o ambiente no qual uma nova estratégia substituiria a velha política de combate às secas. Promoveria ali o que já ocorria no Brasil desde a chama-da Era Vargas: o desenvolvimento da indústria e, portanto, do emprego, do mercado interno, com a mudança da estrutura da propriedade.

Neste ambiente ensolarado de ex-traordinária exuberância, onde guardava seus sonhos mais de� nidos, as políticas predominantes até o � nal da década de 1950 não atendiam ao Semi-árido. Não tratavam a questão da água e da produ-ção de alimentos de um modo adequa-do às necessidades do imenso contin-gente de nordestinos.

O paradigma econômico da região não conhecia nenhum horizonte além dos vastos domínios territoriais do lati-fúndio e da monocultura da cana-de-

C

Especial

DIANTE DE LULA, A EXPOSIÇÃO DE DESAFIOS ESTRUTURAIS

açúcar. Variava, no máximo, até o binô-mio algodão-pecuária. A mudança desse paradigma representou uma obsessão na vida de Celso Furtado. Inconforma-do até os seus últimos dias com a osten-siva presença de multidões de mendigos num território privilegiado em riquezas — generosas e diversi� cadas como o amálgama da sua formação.

POR UMA NOVA INTERVENÇÃO DO ESTADO

Em seu pensamento, o Nordeste brasi-leiro, iluminado pelas suas típicas con-dições climáticas e estrategicamente situado nas proximidades logísticas dos maiores mercados internacionais, despontaria no futuro para o aporte de investimentos que extrapolariam os li-mites do sentido indutor da interven-ção de Estado. Con� uindo em seus objetivos sociais, golpeariam a perversa realidade de uma região submersa no predomínio do latifúndio, do analfabe-tismo e de um largo contingente abaixo da linha da pobreza.

Hoje, mesmo ainda distante das metas furtadianas de plena vitória so-bre as raízes do subdesenvolvimento, este cenário que abarca 1,5 milhão de quilômetros quadrados — o equi-valente aos territórios somados da França, Itália, Reino Unido e Ale-manha —, passa a exibir indícios mais signi� cativos de crescimen-to. Em especial, esse per� l tende

a um encontro com os investimentos capazes de mudar sua realidade econô-mica, com a recuperação e construção de rodovias, re� narias, ferrovias e obras no setor energético.

A conseqüência é o despontar de uma moderna agroindústria, que leva os produtos nordestinos (entre os quais a soja, uva, manga, melão, ace-rola e outras frutas tropicais) para ou-tros mercados continentais, a exemplo da América do Norte, Europa e Ásia.

Nas últimas décadas, o Nordes-te alcançou progressivas transforma-ções, que o promovem da condição de produtor de bens tradicionais e in-troduzem a fabricação de produtos de base tecnológica, a exemplo dos aços especiais, automóveis, equipamentos para irrigação, software e produtos pe-troquímicos. Obras de reformulação aeroportuárias e as re� narias projeta-das em Pernambuco, Ceará e Mara-nhão são elementos de impulso trans-formador nesse processo.

Tais fatores podem rea� rmar a consciência de que os avanços do Nordeste são indispensáveis ao de-senvolvimento do Brasil, a partir da decisão política de direcionar os investimentos federais na região e equilibrar o crescimento ante as de-mais regiões do País. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), por exemplo, anuncia que pre-tende investir mais de R$ 128 bilhões nos Estados da Região Nordeste até 2010.

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Numa das ocasiões memoráveis dos seus últimos tempos, Celso Furtado, na presença do presi-dente Lula, proferiu um discurso na cerimônia de criação da nova Superintendência do Desenvolvi-mento do Nordeste (Sudene), em 28 de julho de 2003, no qual su-bordinou as novas idéias e o plane-jamento do Nordeste à soberania do País — particularmente, na-quele momento, diante do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Celso ressaltou o Estado Na-cional enquanto “instrumento pri-vilegiado para levar adiante uma política de reconstrução estrutu-ral”. Ao mesmo tempo, partiu na frente e declinou o desa� o “em compatibilizar a ação estatal disci-plinadora dos � uxos monetários e � nanceiros, ou processo de globa-lização, de crescente autonomia”.

Destacou a batalha em curso no Brasil como “uma luta grande de transformação”, com três as-pectos e � nalidades principais:

“Primeiro, o problema da fome e da exclusão social, já tão bem formulados por seu Governo. Em segundo lugar, os investimentos necessários ao aperfeiçoamento do

fator humano, a� m de ampliar a oferta de pessoal quali� cado. Em terceiro lugar, a subvenção do pro-cesso de globalização às prioridades do mercado interno. Quer dizer, o projeto de desenvolvimento do Bra-sil é feito a partir das potencialida-des do mercado interno. E não pen-sar que basta exportar para resolver o problema brasileiro”.

Foi a formulação de um méto-do que acompanhou Celso Furtado em sua trajetória, amadurecida com sua experiência na Comissão Econô-mica para América Latina e Caribe da Organização das Nações Unidas (Cepal/ONU), nos anos 1950. Nes-se momento, evidenciava que os países subdesenvolvidos eram uma realidade de dominação em sua for-ma política na relação centro-perife-ria. E questionava a idéia de que “o presente sempre promete um futu-ro melhor”. Para ele, os países que se integram de modo subordinado na divisão internacional do trabalho — enquanto fornecedores de ma-téria prima ao centro hegemônico — estariam condenados ao eterno subdesenvolvimento.

A reestruturação do desenvolvi-mento do Nordeste teria que passar internamente, então, pelo crescimento e simultânea redistribuição da renda, com remoção do latifúndio como en-trave estrutural, harmonizando a região com o conjunto do país.

FORMULADOR DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA JK E JANGO

No � nal dos anos 1950, Celso Furtado submeteu um convite da então direto-ria do Bndes à criação de uma área es-pecializada na instituição para criar as bases destinadas a “cuidar dos proble-mas e do desenvolvimento do Nordes-te”. Teve êxito e, em seguida, assumiu a difícil tarefa de expor ao presidente Juscelino Kubitschek, em 20 minutos, sua visão de desenvolvimento em con-vivência com a seca. A brilhante expo-sição despertou em JK uma forte sen-sação de “tempo perdido”, iniciando-se aí a saga da criação da Sudene.

Foi desse modo que, antes do golpe militar de 1964, Celso aproveitou — a favor do Nordeste — a con� ança em sua capacidade como formulador. Nomeado para o Grupo de Trabalho para o Desen-volvimento do Nordeste (GTDN), ela-borou o estudo Uma política de desenvol-vimento para o Nordeste — que lastreou a criação, em 1959, da Sudene.

No momento seguinte, em 1962, no comando da instituição, se empe-nhava na organização de uma fren-te de governadores para a defesa estratégica do Nordeste, quando o presidente João Goulart o con-vidou para a elaboração do Plano Trienal do seu governo e o nomeou

(o primeiro na História do Brasil) mi-

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nistro do Planejamento. No entanto, esse momento foi efê-

mero e logo o Nordeste assumiria nova-mente o centro de suas preocupações: em 1963 retornou à Sudene, criando e implantando a política de incentivos � scais para investimentos na região.

Entre suas inúmeras atividades, ainda na década de 1950, Celso pre-sidira o Grupo Misto Cepal-Bndes, onde elaborou um estudo sobre a eco-nomia brasileira. Publicado em 1955, serviria de base para o Plano de Metas do governo JK. Ali, a� rmaria suas con-

A trajetória inicial da formação de Celso Furtado coincide com o que se pensaria popularmente: nos anos seguintes, saiu da Paraíba, do Nordeste e do Brasil, mas esses lu-gares, cultura e recordações não se ausentaram da sua vida.

Dos estudos secundários no Liceu Paraibano e no Ginásio Per-nambucano do Recife, à Faculda-de Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, em 1939, à experiência de

atuar como jornalista na Revista da Semana, ao CPOR e à convocação para a (FEB) Força Expedicionária Brasileira, essa condição de versátil nordestino apenas se aprofundou, acompanhando sua profícua forma-ção intelectual.

Muito jovem, adiante é um advogado nordestino com a pa-tente do aspirante a oficial, na Itália (Toscana), e atua como ofi-cial de ligação junto ao V Exército

Aluno do Liceu Paraibano (1934)

O economista Celso Furtado com o presidente do EUA, John F. Kennedy, na

Casa Branca (1961)

Celso Furtado e o governador de Pernambuco Cid Sampaio

em Recife (1959)

Celso Furtado com Juscelino Kubitschek (1959)

O presidente Jango empossa o ministro

do Planejamento Celso Furtado (1962)

vicções de que, na assimetria da rea-lidade (no mundo, na América Latina e no Brasil), o subdesenvolvimento se reproduzia ao lado do desenvolvimen-to. Nessa época, no período 1957-58, elaborou no King’s College da Univer-sidade de Cambridge, na Inglaterra, os fundamentos de sua mais relevante de uma extensa relação de obras: o clássi-co Formação Econômica do Brasil.

Não obstante o reconhecimento mundial de sua obra clássica, na qual percorria as diversas formações eco-nômicas e sociais do país ao longo de

Oscar Niemeyer com Celso Furtado (1983)

Cepal, década de 1950. Raúl Prebisch está no centro. Da esquerda para a direita, Louis Swenson é o terceiro e Celso Furtado é o sexto

dos EUA até que um acidente, em plena ofensiva final dos aliados no Norte da Itália, interrompe sua participação na guerra em sua breve carreira militar.

Sua inspiração jornalística se desenvolve quando envia repor-tagens para a Revista da Semana, Pan� eto e Observador econômico e � nanceiro, nas quais narra sua ex-periência como integrante de uma brigada francesa de reconstrução de uma estrada na Bósnia.

No auge de sua formação aca-dêmica rea� rmou sólidos víncu-los com suas raízes. Foi assim em 1948, quando realizou o doutorado

em Economia pela Universidade de Paris, com o tema central da “Economia Colonial Brasileira”.

MOMENTO DAS BARRICADASQuando já repercutia pelo mundo o eco das barricadas de maio de 1968 na França, Celso Furtado veio em junho ao Brasil, a convite da Câma-ra dos Deputados, pela primeira vez após sua cassação.

Nos anos 1970, seu périplo se estendeu aos países da África, Ásia e América Latina, em missões de agências da ONU (Organiza-ção das Nações Unidas), atuando

ainda como professor-visitante da American University, em Washing-ton; da Columbia University, em Nova York; da Universidade Católi-ca de São Paulo e da Universidade de Cambridge.

No período compreendido entre 1978 e 1981, integrou o Con-selho Acadêmico da Universidade das Nações Unidas, em Tóquio. No mesmo período, recebeu um man-dato do Commitee for Developement Planning, da ONU. Entre 1982 e 1985, coordenou seminários como diretor de pesquisas da Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, da Universidade de Paris.

DOUTOR E JORNALISTA, ANTES DE TUDO NORDESTINO

sua história, Celso a considerou ina-cabada. Acreditava que, nas duras cir-cunstâncias da época, seria acusado de “esquerdista e marxista” se atacasse os problemas centrais da distribuição da renda em plena batalha contra o sub-desenvolvimento e a concentração do poder nas oligarquias. “Então”, disse, “vou � car por aqui”.

DITADURA PRIVA O BRASIL DO PIONEIRO DO PLANEJAMENTO Com o golpe de 1964, a interrupção da

vida democrática no Brasil sustou tam-bém uma formidável trajetória — que não seria retomada após o � m do regi-me militar. Após a transição negociada de 1985, foi ministro da Cultura no go-verno Sarney. Com essa nomeação, Sar-ney ignora uma recomendação de Ulys-ses Guimarães, que sugere o convite a Celso Furtado para a pasta do Planeja-mento após a crise do Plano Cruzado.

Em sua gestão como ministro da Cultura, a partir de março de 1986, lo-grou aprovar a primeira lei brasileira de incentivos � scais à cultura. Em julho

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de 1988 se exonerou e retornou às ativi-dades acadêmicas no Brasil e no exterior. Encerrava-se aí sua vinculação com o executivo federal, sem que seus conheci-mentos fossem plenamente assimilados.

O primeiro Ato Institucional da ditadura, publicado três dias depois do golpe militar de 1964, cassara seus direi-tos políticos por dez anos. Quem perdeu com o exílio de Celso Furtado foi o Brasil e o Nordeste. Em 1965 aceitou um con-vite da Faculdade de Direito e Ciências Econômicas da Universidade de Paris — onde conquistou a inédita situação de primeiro estrangeiro nomeado para uma universidade francesa por decreto presi-dencial do general de Gaulle.

Lá, permaneceu nos quadros da Sorbonne, pelos 20 anos seguintes de vigência do regime militar.

EMERGÊNCIA E SUBDESENVOLVIMENTO

Celso Furtado foi um especialista na arte de realizar caminhos — que com-preendia originalmente como obra de conhecimento e reconstrução.

O pós-guerra alimentou o desejo “enorme” de conhecer a Europa e o mundo como “um jovem mobilizado para ajudar a sociedade” — em suas próprias palavras. Percebe então, a par-tir do laboratório de reconstrução dos países pela via da inspiração keynesia-na, uma novidade fundamental: a força do Estado como um protagonista deci-sivo nas grandes transformações.

Permaneceu por oito anos (de 1949 a 1957), inclusive como diretor da Divisão de Desenvolvimento, na Cepal, órgão das Nações Unidas que assume o lugar de única escola de pen-samento econômico surgida no cha-mado Terceiro Mundo.

Neste período, se inicia o debate sobre os aspectos teóricos do desenvol-vimento, no qual orientou a metodologia e os objetivos da sua principal obra clás-sica. Nela, enquadra a evolução da eco-nomia brasileira no centro da realidade latino-americana, enfatizando conceitos vigentes na Cepal. Desponta aí, uma vi-são da economia internacional realçada por uma divisão do trabalho que se fun-damenta nas relações de paradoxo, assi-métricas, entre países centrais, industria-lizados, e países periféricos, agrícolas.

Em 1954, o mito de que o subde-senvolvimento era uma questão de “baixa poupança” já caíra por terra no conceito do “círculo vicioso da pobreza”. Revela-se que a retenção de uma parte do ex-cedente exportado, poderia proporcionar a criação de uma indústria que gerasse emprego, salário e progresso técnico.

Essa matriz de pensamento ganha a simpatia de Getúlio Vargas, que se opõe à pretensão dos EUA — voltada inclu-sive para a perpetuação do Brasil como exportador de matérias-primas — de ex-tinguir a incômoda Cepal pelo estragos em seus interesses hegemonistas.

Depois que assume a liderança do pensamento desenvolvimentista de orientação nacionalista, Celso hege-

Celso Furtado e o educar Anísio Teixeira, troca de idéias sobre o Brasil

À esquerda, Carlos André Peres, presidente da Venezuela. À direita, Celso Furtado. Ao lado de Celso, Hélio Jaguaribe

moniza o debate contra a corrente mo-netarista liderada por Roberto Campos — segundo a qual os países subdesen-volvidos deveriam continuar colhendo, de modo subordinado, os frutos do processo de industrialização indireto, enquanto conseqüência do desenvolvi-mento dos países centrais.

Celso compreendeu que o proces-so histórico especí� co do Brasil engen-dra uma industrialização dependente dos países do centro capitalista e que, portanto, não seria superado sem uma enérgica intervenção estatal capaz de redirecionar o excedente.

Mesmo que isso não signi� casse uma plena transformação do sistema produtivo, tal reorientação da política te-ria como referência um desenvolvimento mais avançado. Celso destacava o “pro-blema do Brasil e do Nordeste” em sua natureza estrutural, a requerer reformas profundas “sempre consideradas marxis-tas no passado” — e considerando-se, ele próprio um reformista reconhecido.

Para o sociólogo Chico de Olivei-ra e de acordo com escritor Antônio Cândido, foi o quarto demiurgo no panteão dos grandes “inventores” do Brasil, ao lado de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque.

Nas poéticas palavras da econo-mista Maria da Conceição Tavares, foi o grande pensador econômico do século XX, que tinha uma “enorme capacidade de levantar os olhos para o horizonte, mesmo o vendo se afastar como uma miragem no deserto”.

Base do pensamento

1948 “Economia colonial no Brasil nos séculos 16 e

17” (“L’économie coloniale brésilienne”, tese de doutorado, Universidade de Paris)

1954

“A economia brasileira”

1956

“Uma economia dependente”

1958

“Perspectivas da economia brasileira”

1959 “Formação econômica do Brasil”

“A Operação Nordeste”

1961

“Desenvolvimento e subdesenvolvimento”

1962

“A pré-revolução brasileira”

1964

“Dialética do desenvolvimento”

1966 “Subdesenvolvimento e estagnação na América

Latina”

1967 “Teoria e política do desenvolvimento

econômico”

1968

“Um projeto para o Brasil”

1972

“Análise do modelo brasileiro”

1973 “A hegemonia dos Estados Unidos e o

subdesenvolvimento da América Latina”

1974

“O mito do desenvolvimento econômico”

1976

“A economia latinoamericana”

1978 “Criatividade e dependência na civilização

industrial”

1980 “Pequena introdução ao desenvolvimento, um

enfoque interdisplinar”

1981

“O Brasil Pós-milagre”1982 “A nova dependência, dívida externa e

monetarismo”

1983

“Não à recessão e ao desemprego”

1984

“Cultura e desenvolvimento em época de crise”

1985

“A fantasia organizada”

LINHA DO TEMPO DA OBRA DE CELSO FURTADO

1987

“Transformação e crise na economia mundial”

1989 “A fantasia desfeita”

“ABC da dívida externa”

1991

“Os ares do mundo”

1992

“Brasil, a construção interrompida”

1997

“Obra autobiográ� ca de Celso Furtado, 3 vol”

1998

“O capitalismo global”

1999

“O longo amanhecer”

2002 “Em busca de novo modelo, re� exões sobre a

crise contemporânea”

2003

“Raízes do Subdesenvolvimento”

12 Maio/2009 13Maio/2009

Page 8: Nordeste VinteUM

Por Marcel [email protected]

a economia do Nordeste está sendo menos afetada pela crise do que a economia do Brasil. Essa é a conclusão da versão preli-minar do estudo Crise Financeira Global: Canais de Transmissão, Impactos Regionais

e Perspectivas, divulgada em meados de abril deste ano, pelo Escritório Técnico de Estudos do Nordeste (Etene-BNB). O órgão concluiu que as razões para essa “blin-dagem” estão mais ligadas aos aspectos de subdesenvol-vimento da região do que numa suposta pujança da sua dinâmica de crescimento.

O estudo do Banco do Nordeste identi� ca três ca-nais de transmissão, ou seja, as resultantes da crise so-bre a economia brasileira. O primeiro deles foi a redu-ção global da oferta de crédito, principalmente privado, seguido da diminuição do comércio e da demanda mun-dial, geradora, por último, da deterioração das expecta-

blindagem condicionadaOs efeitos calamitosos da crise econômica mundial não atingiram o Nordeste com a mesma força com que chegaram a outras regiões do Brasil. Os pontos

negativos que agem como anticorpos são a nossa menor participação nas operações de crédito/PIB do País, maior peso dos bancos públicos no total de empréstimos, baixo grau de abertura da economia e preponderância do Estado

como empregador/investidor. Portanto, antes de soltarmos fogos de artifício, que � que bem claro: a região parece blindada contra intempéries � nanceiras muito

mais por sua condição de subdesenvolvimento do que por um planejamento estratégico que a coloque em pé de igualdade para competir com outras regiões do país

Elaboração: Equipe de Conjuntura do BNB/Etene. Fontes: IBGE, BACEN, TEM, MF e BNB

Indicadores Períodos de comparação

Variação em %Nordeste Brasil

Produção industrial Jan – 09/08 -10,7 -17,4

Pessoal ocupado na indústria Jan – 09/08 -1,8 -2,5

Horas pagas na indústria Jan – 09/08 -3,0 -3,6

Estimativa da produção de grãos 2009/2008 3,4 -7,3

Estimativa da área plantada de grãos 2009/2008 5,6 0,3

Estimativa produtividade de grãos 2009/2008 -2,1 -7,6

Volume de vendas do comércio varejista ampliado Jan – 09/08 3,4 2,8

Exportações Jan-Fev – 09/08 -26,3 -25,7

Importações Jan-Fev – 09/08 -55,9 -25,4

Saldo nas operações de crédito Dez/08 – Nov/08 -8,0 -11,6

Saldo nos depósitos bancários Dez/08 – Nov/08 1,4 -17,2

Arrecadação de receitas federais IPI Imposto sobre a Renda COFINS CSLL

Jan-Fev – 09/08 Jan-Fev – 09/08Jan-Fev – 09/08Jan-Fev – 09/08Jan-Fev – 09/08

-7,4-11,90,8

-21,424,1

-15,2-28,1-8,4-20,4-5,0

Arrecadação de ICMS Jan – 09/08 -7,1 -8,8

Saldo do emprego formal total Jan – 09/08 246,8 -171,2

EFEITOS DA CRISE GLOBAL SOBRE AS ECONOMIAS NORDESTINA E BRASILEIRA (ANÁLISE DE ALGUNS INDICADORES)

tivas dos agentes econômicos – produtores e consumi-dores de forma geral.

O primeiro ponto negativo a funcionar como anti-corpo é o fato de que, no Nordeste, o percentual corres-pondente ao estoque total das operações de crédito do sistema � nanceiro em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) é inferior ao do país. Na região, a proporção ope-rações de crédito/PIB é de é 15,8%, enquanto no Brasil ela chega a 41,3%.

“Mesmo no nível do Brasil, isso é uma coisa atenu-ante. Em muitos países desenvolvidos há um volume muito maior de crédito privado, por que neles o crédi-to público é muito pequeno”, pontua o gerente do Am-biente de Estudos, Pesquisas e Avaliações (Aepa) do Etene, Biágio Mendes Júnior. Na sua análise, a baixa participação da região “não é boa em termos de desen-volvimento, mas nesse momento de crise passa a ser um

NORDESTE X CRISE ECONÔMICA

14 Maio/2009 15Maio/2009

Page 9: Nordeste VinteUM

Uruçui

Colônia do Gurgueia

Ribeiro Gonçalves

Entre as medidas chamadas anticíclicas para minimizar os efeitos da crise, o Governo Federal apostou na redução do Imposto sobre Produtos Industrializados ( IPI) para a indústria automotiva e de eletro-domésticos, no aumento do salário mínimo, na redução do Imposto de Renda, na ampliação do seguro desemprego e do Bolsa Família, no Plano Nacional de Habitação – Programa Minha Casa, Minha Vida – na redução da taxa básica de juros e no Fundo Garantidor de Crédito para pequenos e médios bancos.

Todavia, na visão do coordenador da Diretoria de Planejamento da Sudene, Frederico Cavalcanti, a continuidade dos investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) é um dos caminhos que podem ajudar o Nordeste a começar a subverter sua condição de

ponto positivo”. Para sustentar um

segundo ponto, o estudo aponta que, no Nordeste, os bancos públicos têm maior peso no total de investimentos. Ao todo, 75% do que é emprestado aqui provém de institui-ções � nanceiras estatais, tendência que se inverte em relação ao país, onde os bancos privados em-prestam 63,2% do total de recursos. Isso num ce-nário em que os públicos vêm aumentando a oferta, ao contrário da estratégia da banca privada. Prova está na participação do crédito do BNB em re-lação aos demais bancos (inclusive os privados) no total do crédito da região Nordeste, que atingiu 36,3% (dados de dezembro/2008).

“Num momento de crise como esse, é bom o Nor-deste estar com essa dependência interna, mas no momento da competição normal, levamos muita des-vantagem em termos internacionais e intrarregionais”, coloca o economista Frederico Cavalcanti, coordena-dor da Diretoria de Planejamento da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), ao avaliar um outro agente da blindagem da economia nordes-tina. Trata-se da preponderância do setor público na economia. Ela se materializa na participação relativa do Estado como empregador, investidor e executor dos programas de transferência de renda.

Na prática, o estudo se refere ao Bolsa Família e às aposentadorias e pensões, pagas em grande parte com o Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Esse dinheiro é responsável pelo aquecimento mensal das economias de pequenas, e muitas vezes pobres ci-dades do interior, fenômeno maior em escala regional do que nacional.

O último fator que explica porque a crise não nos atingiu com tanta força é o baixo grau de abertura co-mercial da economia nordestina (14,2%) em compara-ção com o país (21,2%). Cavalcanti explica que isso se deve à maior formação comercial para o mercado inter-no, em contraponto à indústria de base, mais concen-trada em São Paulo, por exemplo.

“Não que o Nordeste não sofra. Temos mercados exportadores aqui como cana-de-açúcar, lagosta, frutas, que têm sofrido muito com a crise. No entanto, a maior parte da nossa renda advém da produção para demanda interna. E, nisso, temos certa estabilidade”, esclarece.

OBRAS ESTRUTURANTES SÃO SAÍDAS A LONGO PRAZO

subdesenvolvimento econômico num prazo a partir de cinco anos. Ele coloca a Ferrovia Transnordestina, cujas obras devem começar nos próximos meses, como fundamental. “Essa obra vai criar infra-estrutura necessária. A questão do multimodal com o São Francisco, pois a revi-talização vai permitir que você faça transporte pluvial. Juntar isso com a ferrovia e ligar os portos. Vai viabilizar empresas que antes não poderiam se instalar no Semi-árido”.

Mesmo reconhecendo como é difícil prever o impacto exato da Transnordestina, Cavalcanti considera que a obra deverá dinamizar regi-ões, “quando se vê que os ramais fi cam ainda mais baratos”. Ele diz que será possível interligar vários pólos econômicos dinâmicos à ferrovia principal, e viabilizar diversas produções antes impossíveis no semi-árido. O coordenador cita ainda a duplicação da BR-101 entre Sergipe e Rio Grande do Norte, a refi naria Abreu e Lima, em Pernambuco, cujo estaleiro já começou a funcionar, a transposição do rio São Francisco e as refi narias e siderúrgica no Ceará e no Maranhão, além da reforma de portos e aeroportos como outros exemplos. “Se não atrasar nada, em torno de cinco, seis anos, o Nordeste começa a ter essa infraestrutura econômica pronta para ser utilizada por empresas que queiram se ins-talar no Nordeste”.

Ramal de Itaqui

Imperatriz

Estreito

Balsas

S. João do Piauí

Canto do Buriti

SÃO LUÍS

Complexo Portuário do ItaquiItaqui, Ponta da Madeira e Alumar

Caxias

TERESINANova Russas

IpuSobral

Itapipoca

Porto do Pecém

FORTALEZAPorto do Mucuripe

Baturité

Macau

JucurutuNATAL

Limoeiro do Norte

Quixadá

C. GrandePatos

PB

RNCEPI

MA

PA

TO

BASE

PE

AL

CratoPatos do Piauí

Jacobina do Piauí

Parnamirim

Propriá

ArapiracaMACEIÓ

Juazeiro

Salgueiro

Iguatu

Crateús

JOÃO PESSOAItabaiana

Porto de Cabedelo

Porto de Suape

Porto de Jaraguá

RECIFECaruaru

Biágio Mendes Junior, Gerente Ambiente Estudos Etene BNB

Em um cenário de crise como o atual, a confiança do setor produtivo brasileiro pesa nas projeções quanto ao futuro da economia brasileira. O Sensor Econômico, di-vulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ouve mensalmente 115 entidades que represen-tam mais de 80% do PIB entre as atividades da agropecu-ária, da indústria, do comércio e serviços, e de trabalhado-res. Em sua avaliação, o estudo do Etene-BNB considerou a edição de março, com dados de fevereiro, para mostrar que, naquele mês, apenas o Nordeste se mostrava con-fiante em relação ao desempenho do país em 2009.

Numa escala que vai do pessimismo (entre -100 e -60), passando pelo adverso (entre -60 e -20), pela apre-ensão (de -20 a +20), pela confiança (de +20 a +60) até chegar ao otimismo (de +60 a +100), a pesquisa revelou a região com o melhor índice (26,19), em oposição ao Sul (-4,23) e ao Sudeste (1,13). Já a edição de abril trouxe uma leve redução na apreensão do setor produtivo de forma geral, com o aumento do índice de 4,36 em fevereiro para 4,57 em março.

Mas, as previsões mostram cautela quando o assunto é até onde essa blindagem do Nordeste vai resistir. Nesse sentido, o estudo sugere pontos para reflexão. Entre eles, estão os impactos sociais da crise global no Brasil e na região relativos à redução de emprego, da massa salarial e a diminuição da qualidade de vida. Também conta o aumento da inadimplência de pessoa física e jurídica e a queda na arrecadação devido à redução nas transferên-cias governamentais – em parte dado o impacto da redu-ção do IPI dos automóveis e eletrodomésticos.

Quanto às perspectivas, os economistas são unânimes em transferir para o segundo semestre avaliações mais claras. “A partir do meio do ano as indústrias começam a produzir, ou seja, retoma a produção máxima para repor estoque no final do ano. E essa perspectiva de que vai ha-ver compras no final do ano é que vai motivar as empresas a contratar mais gente, vai gerar renda e impostos. É com o que o governo está contando”, detalha Cavalcanti.

SENSOR ECONÔMICO OTIMISMO EM 2009, MAS COM LIMITES

Ferrovia Transnordestina

16 Maio/2009 17Maio/2009

Page 10: Nordeste VinteUM

Frederico Cavalcanti

NORDESTE VINTEUM COMO O SENHOR VÊ O NORDESTE DIANTE DA CRISE?FREDERICO CAVALCANTI A diferença do Brasil em relação à crise é que o Nor-deste não é tão industrializado como São Paulo, e também não depende-mos tanto do mercado exterior. Nós temos uma formação de comércio, de atividades internas que é muito grande, em termos da renda geral na região. De forma que essa cri-se, como afeta diretamente as eco-nomias externas, as mais ligadas ao comércio exterior, principalmente a indústria pesada que está mais ins-talada em São Paulo, sofre, primei-ro, por conta de um impacto muito grande sobre os setores. Não é que

o Nordeste não sofra. Nós

temos mercados exportadores aqui, como cana-de-açúcar, lagosta, fru-tas, que têm sofrido muito com a crise, e isso não quer dizer que não estão sendo afetados. No entanto, a maior parte da nossa renda advém da produção para demanda interna. E aí você tem uma certa estabilida-de. No entanto, o Nordeste tem uma dependência grande das transferên-cias governamentais, como o Bolsa Família e também o FPM. É prová-vel que esse ano o Nordeste tenha uma redução, esperamos que não seja muito signi� cativa, nesses re-passes, já que o governo está arreca-dando menos esse ano. Como esses repasses dependem de arrecadação, o Nordeste vai ter um certo impac-to interno. Mas, de qualquer forma,

a região pode ter uma com-pensação. Porque, por outro lado, os investimentos não

vão reduzir-se. Nem do PAC, nem de infra-estrutura, nem os investimen-tos do Banco do Nordeste (em torno de R$ 6 a 8 bilhões de investimento previsto), nem da Sudene, que deve ter em torno de R$ 2 bilhões. Então, esses valores vão compensar e muito essa redução dos repasses.

NVU O SENHOR ACHA ENTÃO QUE O ESTUDO DO ETENEBNB SEGUE A LINHA DO QUE É A REALIDADE MESMO DO NORDESTE. REFLETE BEM A SITUAÇÃO DA REGIÃO?FC Eu tenho lido aqui que o empre-go do Nordeste, ao contrário do que se pensava, não caiu. Estamos nos mesmos patamares, segundo os da-dos de fevereiro desse ano da Pnad, de desemprego que tínhamos ano passado. A situação não mudou. Se pode dizer que o emprego não cres-ceu. No entanto, não pioramos a si-tuação em relação ao ano passado.

NVU QUANTO ÀS POLÍTICAS DO GOVERNO, EM QUE SENTIDO ESSES RESULTADOS MOSTRAM O QUANTO O NORDESTE PRECISA CRESCER PARA SUPERAR ESSE PADRÃO DE SUBDESENVOLVIMENTO?FC Você precisa perceber: a presen-ça do governo aqui é porque a região é muito pobre. E ela precisa da ajuda do Estado para poder sobreviver. Por um lado, isso é bom num momento de crise � nanceira externa, porque nós estamos protegidos por transfe-rências públicas. Por outro lado, a Sudene percebe que a situação nor-destina é muito ruim em termos de autodesenvolvimento, ou desenvolvi-mento sustentável. Se o Estado, por exemplo, hoje, cortasse esses repas-ses de verbas para cá, nós regrediría-mos, teríamos uma queda brusca de renda e de produção, e o desempre-go provavelmente cresceria muito. Num momento de crise como esse, é bom Nordeste estar com essa depen-dência interna, mas no momento que você está na competição normal, nós levamos muita desvantagem em ter-mos internacionais e intrarregionais.

NVU O GOVERNO TEM PROJETOS ESTRUTURANTES EM ANDAMENTO, A MAIORIA EM ESTÁGIO DE PERSPECTIVA, OU INICIANDO...FC A Transnordestina já está apro-vada, deve começar esse ano ainda. A transposição, apesar ainda de estar sendo feita a primeira parte da revi-talização do rio, já se tem iniciadas as obras dos canais e adutoras. Da parte da re� naria Abreu Lima aqui em Per-nambuco, o estaleiro, apesar de ainda estar sendo instalado, começa a fun-cionar. E tem outros investimentos grandes, como a duplicação da BR-101, entre Sergipe e Rio Grande do Norte, que será concluída em breve, uma obra importante com gasto pú-blico, ou seja, diretamente dinheiro do Governo Federal.

NVU EM QUE MEDIDA ESSAS OBRAS PODEM IMPACTAR NO DESENVOLVIMENTO DA REGIÃO NO LONGO PRAZO?FC O Nordeste fala muito que a Transnordestina é fundamental para a Região, porque conseguimos cres-

cer um pouco, mas no litoral. Esse problema do Semi-árido, da pobreza e da baixa renda, do emprego, ainda é muito grave. A Transnordestina vai criar infra-estrutura necessária. Além do multimodal com o São Francis-co, que a revitalização vai permitir. Então, você junta isso com a ferro-via e liga os portos. Isso vai viabilizar empresas que antes não poderiam se instalar no Semi-árido. O impac-to futuro disso é difícil prever, mas a Sudene sabe que vai dar um dina-mismo muito grande. Quando você vê que os ramais � cam ainda mais baratos para ser feitos, você pode in-terligar vários pólos econômicos di-nâmicos à ferrovia principal. Vai via-bilizar diversas produções que antes eram impossíveis no semi-árido. Por isso, a grande concentração de em-presas aqui no litoral, porque a infra-estrutura toda necessária está aqui. Não tem como incluir as empresas

grandes lá para o Semi-árido porque não tem como tirar as mercadorias de lá, sem transporte, logística.

NVU MAS ISSO É COISA PARA QUANTO TEMPO?FC Os impactos no Nordeste de-vem começar a ser observados a partir da conclusão, no prazo em torno de cinco anos. A região teria dentro de cinco anos o estaleiro e a Transnordestina funcionando, a du-plicação da BR-101 pronta, a refor-ma dos portos e aeroportos também. Mas até lá não se pode contar com isso. No futuro, se não atrasar nada, começaremos a ter essa infraestru-tura econômica pronta para ser uti-lizada por empresas que queiram se instalar no Nordeste.

NVU AS AVALIAÇÕES SEMPRE APONTAM QUE O NORDESTE PRECISA SOBREPUJAR DESAFIOS EM SETORES COMO SAÚDE, EDUCAÇÃO, SANEAMENTO E ACESSO A ÁGUA. VOCÊ CONCORDA E ACREDITA EM EVOLUÇÃO NESSE SENTIDO DAS NECESSIDADES BÁSICAS?FC Nós estamos falando de infra-estrutura econômica. E essa parte de infra-estrutura social, é uma área que ainda carece muito da presença do Estado. Essa infra-estrutura que falei vai viabilizar o investimento pri-vado na região. Um dinamismo para a renda e o emprego. Essas outras questões têm que ser analisadas sob o ponto de vista macro. Por exemplo, o problema da educação não é só no Semi-árido. É um problema nacio-nal. A questão da Saúde também não se concentra só aqui. Lógico que tem algumas questões piores. O índice de analfabetismo é mais elevado, a mor-talidade infantil é mais alta. Existe muito espaço para o Estado ocupar.

NVU O QUE SE PODE ESPERAR DE PLANEJAMENTO EM RELAÇÃO A ESSAS ÁREAS?FC Nós estamos selecionando os projetos prioritários para a região, que vão compor nosso Plano de De-senvolvimento do Nordeste, que deve ser apresentado até dia 30 de junho. Dentro desses projetos, boa parte está ligada a saneamento. Essas

ESTABILIDADE SEM AUTODESENVOLVIMENTO

ENTREVISTA COM FREDERICO CAVALCANTI, COORDENADOR DA DIRETORIA DE PLANEJAMENTO DA SUDENE

TRANSFERÊNCIA CAI, INVESTIMENTO SE MANTÉM, ATIVIDADE INTERNA AINDA SALVA. E A SUDENE?

Sede da Sudene, em Recife (PE)

Se o Estado, por exemplo, hoje, cortasse

esses repasses de verbas para cá, nós

regrediríamos, teríamos uma queda brusca de renda e de produção,

e o desemprego provavelmente cresceria muito

NORDESTE X CRISE ECONÔMICA

18 Maio/2009 19Maio/2009

Page 11: Nordeste VinteUM

É preciso observar alguns setores

foram fortemente prejudicados pela

crise. Como a produção de cana de açúcar. Não é que a

produção vai reduzir, o problema é que eles não estão recebendo

as exportações que � zeram no

ano passado

É preciso observar alguns setores

foram fortemente prejudicados pela

É preciso observar alguns setores

foram fortemente prejudicados pela

as exportações que � zeram no

ano passado

obras devem impactar diretamente na mortalidade infantil. Obras de ampliação de educação, de edi� cações do ensino médio, de interiori-zação do ensino superior. Por outro lado, essa crise veio a atrapalhar. Mas, a idéia era ter um desenvolvimento maior na área de educação na região Nordeste, ou seja, o que se chamou de “PACinho” da edu-cação. Só que esse ainda não deslanchou, existe muito espaço para trabalhar. Uma das grandes questões da Sudene é combater direta-mente o analfabetismo, pois acreditamos que mesmo que a Sudene consiga botar empresas lá, elas não vão ter mão-de-obra quali� cada. Estamos tendo problemas aqui em Pernambuco com o porto. Ou seja, você tem muitas empresas se instalando, e não tem mão-de-obra. São ações mais macro, de Ministério da Educação e de secre-tarias estaduais de Educação. A Sudene está articulando via esse pla-no. Então, tentamos na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2010, a partir das prioridades que os Estados levantaram, incluir ações como prioridade para os ministérios dentro do PPA Federal, para que os recursos realmente cheguem, principalmente no Semi-árido.

NVU A SUDENE ESTÁ NA ORDEM DO DIA E ESTRUTURADA DE FATO? O QUE ELA FAZ?FC Começamos a trabalhar em 2008, e a primeira coisa foi ten-tar estruturar o Fundo de Desenvolvimento do Nordeste, para que a Sudene pudesse agir e também estruturar administrativamente a casa. Tocar o Plano de Desenvolvimento que a Sudene está con-cluindo agora. Esse plano vai dar as diretrizes da Sudene. O que está tramitando é a estrutura nova, que deveria ter sido aprovada para a Sudene, na qual temos mais uma diretoria dedicada a cuidar espe-ci� camente do desenvolvimento local. Mais focada no Semi-árido. E estamos sem poder fazer concurso público, etc. Ou seja, vai ser possível reestruturar a Sudene a partir dessa lei, que talvez saia até por Medida Provisória, devido à urgência. Na realidade, desde o ano passado, quando a Sudene foi criada, ela tinha a estrutura que está no Congresso, tramitando. Só que cortaram partes da lei, o que invia-bilizou alguns projetos. Dessa forma, está novamente tramitando.

NVU É A LEI COMPLEMENTAR?FC Tem os vetos a essa Lei Complementar que é uma coisa. E tem uma outra que é a estrutura da Sudene. Porque, como não foram aprovados os cargos, ela � cou inviabilizada de funcionar na forma como consta a Lei Complementar 125. E foi feita a lei para que pos-sa reestruturar a parte administrativa, fazer concurso, reequipá-la de capital humano.

NVU E COM RELAÇÃO A ESSE FUNDO, UMA DAS COISAS QUE MAIS SE FALA DA SUDENE...FC Fundo Regional de Desenvolvimento. Esse fundo vai englobar o Fundo de Desenvolvimento do Nordeste atual, o FNE, e outros recursos que o governo também repassa para cá. O que a Sudene percebe é que, se isso for feito dessa forma, o Nordeste vai � car com a mesma coisa. Vai parecer ser um dinheiro novo, mas vai ser o mesmo dinheiro com outro nome. Não queremos que o fundo saia desse jeito, a Sudene está querendo que o FNE seja protegido, ou seja, que ele � que fora, do jeito que é hoje, e se inclua os in-centivos, outros fundos, dentro desse fundo maior. A idéia central é que o fundo seja mais uma fonte de recursos. Do jeito que es-tão querendo fazer, vai � car a mesma fonte de recursos. Talvez até

menos, porque entram outras regi-ões também na demanda. Perde-se a garantia anterior. Ficaria tudo num grande fundo, que poderia, de uma hora para outra, ser contingenciado.

NVU QUANDO VOCÊS ESPERAM RESOLVER ESSA QUESTÃO CRUCIAL DO ÓRGÃO?FC Hoje, a Sudene tem o Fundo de Desenvolvimento do Nordeste, o FDNE, que é da ordem de R$ 2 bilhões ao ano. Ele não tem nada a ver com o FNE, que é em torno de R$ 8 bilhões ao ano. Esse novo fun-do vai incorporar o outro e também o FNE, que está sendo votado. En-tão, por exemplo, a Transnordestina, as usinas eólicas que � nanciamos, está tudo dentro do FDNE. Essa idéia de incorporar todas essas ques-tões de apoios e incentivos regionais é que causa maior polêmica. É um fundo nacional de desenvolvimento regional. Para desenvolver as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, mas também entra a linha de fronteira, que é parte do Sul do país, etc. Ou seja, nós vamos incluir novas áreas que hoje não estão presentes na divi-são do fundo. Por exemplo, o FNE só existe para o Norte e Nordeste.

NVU ATÉ O FIM DO ANO ISSO NÃO PODERIA SER RESOLVIDO?FC Acho difícil, porque isso en-volve reforma tributária e nesse ano ninguém quer falar sobre isso. É um ano de crise e a receita do governo está caindo, ele não quer falar em nada que mexa no estado que está atualmente.

NVU A SUDENE VIVE ENTÃO UMA ANGÚSTIA?FC Na verdade, a Sudene está fun-cionando normalmente. Esse fundo vai mudar o per� l do que é hoje, mas nós temos recursos, continuamos � -nanciando as obras, estamos com tra-balho de desenvolvimento local, te-mos orçamento do FDNE que é uma parte, mas desses R$ 2 bilhões que estamos para liberar esse ano, das li-berações do FDNE, 1,5% constituirá um fundo para ciência e tecnologia. É um outro fundo que estamos crian-

do a partir da liberação de recursos desse FDNE. Temos os incentivos � scais, que vão ser revistos.

NVU QUE É PARA RESOLVER ESSA GUERRA FISCAL ENTRE OS ESTADOS?FC A idéia maior é evitar que as em-presas consigam acessar os benefí-cios por Estado. Que seja por região. Mas, de qualquer forma, esse fundo não vai evitar isso, porque o ICMS, essas coisas, � cam a critério dos Es-tados, ainda. Eles têm autonomia para legislar, dar a isenção ou não. A alíquota de ICMS é de� nida pelo Senado, mas o estado tem autonomia para isentar ou não.

NVU O SENSOR ECONÔMICO DO IPEA MOSTROU A CONFIANÇA DO SETOR EMPRESARIAL BRASILEIRO DIANTE DA CRISE INTERNACIONAL. DIZ QUE O SETOR PRODUTIVO MANTÉM A EXPECTATIVA APESAR DO AGRAVAMENTO. POR REGIÃO, ELE MOSTROU O NORDESTE

BEM CONFIANTE NO DESEMPENHO DA ECONOMIA...FC É preciso observar: alguns seto-res foram fortemente prejudicados pela crise. Como a produção de ca-na-de-açúcar. Não é que a produção vai reduzir, o problema é que eles não estão recebendo as exportações que � zeram no ano passado. Isso vai criar uma crise aqui de desemprego agora, na safra, provavelmente, em setem-bro. Você tem a zona da mata toda que depende muito dessa renda que não vai ter, a não ser que haja uma re-viravolta nos créditos das empresas. Ou seja, existem vários fatores, variá-veis que não possibilitam uma previ-são clara. Lógico que a perspectiva é favorável. Nós temos recursos, nosso dinheiro depende na maior parte de banco público, que continua empres-tando, deve haver um crescimento muito grande dos empréstimos aqui tanto por parte do FNE como do FDNE, fora o Bndes que também está investindo muito aqui no Nor-deste na atividade turística. Então, nós temos diversos investimentos grandes que estão tendo continui-dade este ano. Não dependem só de recursos da iniciativa privada. Isso é muito bom para o Nordeste.

NVU COMO É A ARTICULAÇÃO DO CONSELHO COM OS COMITÊS?FC A Sudene está se organizando. Dentro do Conselho Deliberativo da Sudene foi criado o Comitê Regio-nal das Instituições Financeiras Fe-derais (Corife) e o Comitê Regional de Articulação dos Órgãos e Enti-dades Federais. Esses dois comitês conseguem juntar a parte � nancei-ra e econômica com a parte social, educação, saúde, para atuação no Nordeste. Essas articulações vão dar um resultado muito proveitoso. A questão desses desníveis sociais que é o que a Sudene deve atacar fortemente, via esses conselhos e articulações. Nós vamos tentar criar planos especí� cos para o Nordeste. Nós estamos caminhando bem rápi-do, por sinal, nessa parte de articu-lação com essas instituições.

20 Maio/2009 21Maio/2009

Page 12: Nordeste VinteUM

Desde grandes projetos a iniciativas pontuais, a necessidade de democratizar o destino de uso dos recursos hídricos é quem dita o tom das polêmicas. Em foco, as populações difusas, excluídas do compartilhamento no espaço rural. A priorização da água como bem econômico limita o seu uso múltiplo e tradicional nas pequenas comunidades

DAS GRANDES OBRASDAS GRANDES OBRASDesde grandes projetos a iniciativas pontuais,

DAS GRANDES OBRASDesde grandes projetos a iniciativas pontuais,

DAS GRANDES OBRASDAS GRANDES OBRASDAS GRANDES OBRAS

Negar água é pecadoNO SERTÃONO SERTÃO

ara o Brasil, a tarefa é relativamente antiga do ponto de vista legal. Políticas públicas de gestão dos recursos hídri-cos já eram realidade antes mesmo da

sanção da Lei das Águas, em 1997. O documento oficializa a necessidade de desenvolvimento das políticas de proteção aos recursos e outorga o do-mínio público da água, seu uso prioritário para o consumo humano e dessedentação de animais, em situações de escassez. Mas, só há pouco tem-po o assunto parece ganhar maior atenção com os grandes investimentos em obras de infra-estrutura hídrica e a explosão do debate na esfera pública.

P

Por Carolyne [email protected]

Foto: Agência Petrobras

RECURSOS HÍDRICOS

22 Maio/2009 23Maio/2009

Page 13: Nordeste VinteUM

Os últimos meses foram de rebuliço para as águas. Como lembra a música Águas de Março, de Tom Jobim, o fim do verão marcou também um momento de promessas. Du-rante o V Fórum Mundial da Água, realizado na Turquia, na segunda quinzena de março, a delegação brasileira prota-gonizou o debate da gestão e planejamento de recursos hídricos. Uma esperança de vida para políticas públicas cen-tradas na democratização do acesso ao uso da água

Entre chefes de Estado, líderes locais, especialistas, pesqui-sadores e representantes de ONGs de 192 países, nossos parla-mentares estiveram por lá e, mesmo sem querer, renovaram o fôlego das discussões sobre a valorização da água no país.

No mesmo período, em Cabrobó (PE), as obras de trans-posição do rio São Francisco, que prevê a construção de canais, estações de bombeamento de água e pequenos re-servatórios, continuaram como previsto no projeto de Inte-gração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional, do Governo Federal.

Para o secretário de Infra-Es-trutura Hídrica do Ministério da Integração Nacional, João Reis Santana Filho, em relatório apre-sentado no Encontro Regional do Nordeste, também em mar-ço, “o imenso maquinário pre-sente nas obras e os mais de R$ 3,2 bilhões com gastos já contra-

Na região do Semi-árido, composta por 1.133 municí-pios de nove Estados e norte de Minas Gerais, numa área de 969 mil km2, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) vai investir R$ 1,034 bilhão em 14 obras estruturantes até o final de 2010. O pacote de ações, com recursos alocados do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), do Governo Federal, prevê a construção de quatro açudes – Berizal (MG), Piauis (PI), Taquara e Figueiredo (CE) –, três adutoras – Adutora do Acauã (PB), Adutora do Oeste e Pajeú (PE) – e ampliação de perímetros irrigados nos Estados do Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte.

É com justiça e atraso histórico que para esse semi-árido as atenções estão voltadas. Pesquisadores, ambienta-listas e técnicos que atuam na gestão dos recursos hídricos têm à frente a missão de garantir o compartilhamento da água para toda a população, em um cenário de escassez ge-ográfica perene.

Instituições não-governamentais arregaçaram as man-gas e também se engajaram nessa luta. Hoje, ações de edu-

A água como um valor coletivo e a instituição da gestão compartilhada do recurso, somadas a um conjunto de propostas, devem nos orientar no caminho a seguir

A água como um valor coletivo e a instituição da gestão compartilhada do

A água como um valor coletivo e a instituição da gestão compartilhada do recurso, somadas a um conjunto de propostas, recurso, somadas a um conjunto de propostas, devem nos orientar no caminho a seguirrecurso, somadas a um conjunto de propostas, devem nos orientar no caminho a seguirJémisson Santos, mestre em Geoquímica e Meio Ambiente pela Universidade Federal da Bahia

todo o mundo, devido a doenças rela-cionadas com a falta de água potável.

Os 26 mil participantes do fórum até que fizeram barulho, mas o dis-curso universalizado muda de tom quando a abordagem chega perto de nossa realidade. Ao fim do V Fórum Mundial da Água, o Brasil se posicio-nou contra o reconhecimento da água como um direito humano.

Dominguez é cauteloso ao co-mentar a questão. “Quem representa o Brasil no exterior é o Itamaraty, que assume uma postura muita crítica porque o nosso país é rico em (volu-me de) água. Só que a ANA ainda não tomou uma posição”, pondera.

Em nota, a assessoria de imprensa do Ministério das Relações Exteriores explica: o posicionamento visa “evitar o risco de que a soberania do País so-bre o uso do recurso seja afetada”. E a postura não foi não foi isolada. Grandes potências como os Estados Unidos e França, além do Egito e a própria Turquia também se opuseram a assinar o docu-mento, cuja declaração final garantiria o reconhecimento jurídico de universali-zação do acesso à água.

O fato gerou a especulação de que esses países “se negam a debater o assunto preocupados com a sobera-

Brasil e EUA: acesso à água não reconhecido como direito humano

FÓRUM MUNDIAL, TURQUIA

pesquisador. Ele explica a necessidade legal

para gerir o uso racional da água, seja pela utilização de agentes públicos, como privados. Na coordenação do Laboratório de Estudos da Dinâmica e Gestão do Ambiente Tropical (Geo-trópicos), Jémisson acredita que para a manutenção e gestão dos recursos é preciso adequar novas perspectivas de trabalho.

“O Brasil não possui legislação para disciplinar o uso da água. A apli-cação do caráter indutor de uma lei como essa se constitui num aspecto importante para inibir comportamen-tos indesejáveis e incentivar os proce-dimentos corretos”, sugere.

Essas questões interferem na vida das mais de 20 milhões de pessoas que vivem na região Nordeste. Nas comu-

nia sobre o controle territorial de suas águas”. A rachadura política causou mal-estar entre as delegações diplo-máticas dos países participantes.

De um lado, 20 países, entre Ale-manha, Espanha, Holanda, Suíça e os nossos vizinhos Bolívia, Equador, Uru-guai e Venezuela pressionaram a de-fesa do acesso como direito humano, enquanto o bloco dos opositores pre-feriu manter o discurso de que água deve ser definida como uma necessi-dade humana básica.

Outro questionamento é a natureza privada do evento, que tem na sua or-ganização o Conselho Mundial da Água (WWC, do inglês World Water Council), pertencente ao mesmo grupo que con-trola o Banco Mundial e o Comitê Inter-nacional da Cruz Vermelha.

Pendengas à parte, após uma se-mana de debates, o documento oficial apresenta o comprometimento dos países em gerenciar os recursos hídri-cos de forma sustentável, impedindo a poluição dos recursos e tomando medidas para evitar inundações e es-cassez da água. A democratização do acesso e as condições sanitárias para todos parecem mesmo continuar de-legados como grandes desafios às fu-turas gerações.

tados” reforçam o empenho do governo com o projeto. E isso é só parte da transposição, que tem orçamento estimado em R$ 5,5 bilhões, divido em dois eixos: Leste e Norte.

No ranking de recursos hídricos da Organização Mun-dial de Saúde (OMS), o Brasil é o número um. Possui o rio de maior volume – Amazonas – e um dos principais aquíferos subterrâneos. Detém 12% da água doce do planeta. Mas, se aqui os números são aliados, em se tratando de aproveita-mento da água, outros dados podem se apresentar de for-ma lamentável. Calcula-se que cerca de 50% do que é cole-tado é perdido por ineficiência nas operações.

“Mesmo com 90% de nossa população tendo acesso à água encanada, apenas 50% dos esgotos gerados são cole-tados. E destes, apenas metade é tratado”, alerta o coorde-nador geral das Assessorias da Agência Nacional de Águas (ANA), Antônio Félix Dominguez. Ele foi um dos 150 brasilei-ros na Turquia a buscar formas de adaptação às mudanças climáticas, econômicas e aos problemas decorrentes da ur-

banização. Também trocou expe-riências sobre projetos que asse-guram água limpa a 900 milhões de pessoas no mundo, hoje sem o acesso devidamente garantido.

Os dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef ) são ainda mais pungentes. Cerca de 4.200 crianças morrem por dia, em

Na região do Semi-

árido, composta por 1.133

municípios de nove Estados e norte de Minas Gerais, numa área de 969 mil km2, o

Departamento Nacional de Obras

Contra as Secas (Dnocs) vai investir

R$ 1,034 bilhão em 14 obras estruturantes até o final de 2010

No ranking de recursos hídricos

da Organização Mundial de Saúde

(OMS), o Brasil é o número um.

Possui o rio de maior volume –

Amazonas – e um dos principais

aqüíferos subterrâneos. Detém

12% da água doce do planeta. Mas, se aqui os

números são aliados, em se

tratando de aproveitamento

da água, outros dados podem

se apresentar de forma

lamentável. Calcula-se que cerca

de 50% do que é coletado é perdido por ineficiência nas

operações

Mesmo com 90% de nossa população tendo acesso à água

encanada, apenas 50% dos

esgotos gerados são coletados

Cerca de 4.200 crianças morrem por dia, em todo o mundo,

devido a doenças relacionadas com

a falta de água potável.

nidades mais penalizadas pelas secas, principalmente os grupos difusos não integrados às águas, o caráter coleti-vo do recurso compreende a adoção de políticas públicas diferenciadas e adequadas a cada realidade.

“A população rural difusa é um aspecto ainda complicado. O Gover-no Federal garantiu a segurança hídri-ca a regiões com grandes contingentes populacionais. Para grupos pequenos, o custo de investimento por unidade ainda é muito alto”, diz Antônio Félix Dominguez, da Agência Nacional de Águas (ANA). As alternativas são os projetos de convivência, frutos de es-tudos e experiências práticas de enti-dades que se articulam em defesa das pequenas quantidades.

cação e conscientização ambiental seguem modificando a realidade dos atingidos pelas secas, ao passo que a gestão de obras e projetos hídricos reafirma a política universal da necessidade prioritária da água.

Jémisson Santos, mestre em Geoquímica e Meio Am-biente pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), trans-formou seu objeto de pesquisa nas universidades em instru-mento de debate sobre a realidade do Semi-árido brasileiro. “A água como um valor coletivo e a instituição da gestão compartilhada do recurso, somadas a um conjunto de pro-postas, devem nos orientar no caminho a seguir”, afirma o

Fórum Mundial da Água, na Turquia

A dimensão do Semi-árido

Abundância e desperdício

24 Maio/2009 25Maio/2009

Page 14: Nordeste VinteUM

O

Orol das grandes ações estratégicas para garan-tir o abastecimento do Semi-árido ainda vive turbulências. Em xeque, o projeto de Inte-gração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional, do Governo Federal.

Há quem reivindique que o desvio do rio atenderá necessidades do agro e hidronegócio, preterindo a questão fundamental: o abaste-cimento humano universal. Especialistas afir-mam que o caminho das águas desembocará em locais onde a oferta já é abundante.

Transposição do São Francisco: cara e injusta socialmente?

Pesquisa dá resultado e se torna case de sucesso

ATLAS NORDESTE

CISTERNAS, TANQUES E BARRAGENS

s projetos Um Millhão de Cisternas (P1MC) e Uma Terra e Duas Águas (P1+2), coordenados pela Articulação do Semi-Árido (ASA), em parceria com o Governo Federal, mostram que pesquisar é a palavra de ordem

OFundação Joaquim Nabuco e ONGs buscam alternativasSEMI-ÁRIDO

Semi-árido possui alguns dos piores indicadores sociais do país. A popula-ção é composta, prioritariamente, por crianças e jovens de até 17 anos, se-gundo o estudo Crianças e Adolescen-tes no Semi-Árido, realizado pelo Uni-cef ainda em 2003. Dos 13 milhões, 75% são pobres.

Sem condições favoráveis a uma vida digna, 16 mil não completam nem primeiro ano de vida. E para quem escapa, o futuro reserva dificuldades já secularmente anunciadas como in-transponíveis. Só que graças a grupos como o Núcleo de Estudos e Articula-ção Sobre o Semi-Árido (Nesa), outras expectativas começam a proliferar.

Criado pela Fundação Joaquim Nabuco, o Nesa partilha projetos de

desenvolvimento sustentável e inclusão social. João Suassuna, engenheiro agrô-nomo e pesquisador, revela que a pro-blemática não é a falta de água e sim o mau gerenciamento dos recursos.

“O Nordeste tem o maior volume de água represado em regiões semi-ári-das do mundo, com cerca de 37 bilhões de m3. Nosso potencial foi construído com ações pontuais, com o empenho do Dnocs, com pesquisas assertivas. O que falta é o bom gerenciamento da água, em face a cada realidade específica. Nosso volume é suficiente para o abas-tecimento pleno da população”, aponta.

O pesquisador defende os projetos de desenvolvimento e difusão das tec-nologias de convivência, executadas por ONGs e associações. “Os movimentos

sociais colocam em prática ações públi-cas que oferecem alternativas eficazes”.

A Articulação do Semi-Árido (ASA) é outro grupo que luta pelo de-senvolvimento da região, desde 1999. Em formato de fórum de organizações da sociedade civil, reúne mais de 700 entidades. Os investimentos são re-passados pelo Governo Federal, mas as ações são resultado de estudos e ex-periências vivenciadas pela população atingida, por meio dos saberes dos pró-prios agricultores.

“Não adianta investir em grandes obras e não trabalhar habilidades e ap-tidões do povo. Na década de 1980, o governo implantou modelos de cisternas para famílias difusas. Não garantiram resultado. Não basta construir e entre-

em se tratando de alternativas para a convivência com as condições geo-gráficas desfavoráveis.

A construção de cisternas de placa, que captam água da chuva em peque-nas proporções, garante água potável

para o uso doméstico das famílias; enquanto as cisternas calçadão, as bar-ragens subterrâneas e os tanques de pedra aproveitam a água da chuva para a produção de alimentos e a criação de pequenos animais. A eficácia das ações é resultado de muito estudo.

A ANA traçou, no final de 2006, o diagnóstico da realidade de mais de 1.300 municípios no Semi-árido e organizou o Atlas Nordeste – abaste-cimento urbano de água, uma compi-lação de alternativas para demandas atuais e futuras, com orçamento das obras e foco no abastecimento hu-mano. Por conseguinte, no desenvol-vimento sustentável, em municípios com mais de 5.000 habitantes.

“O atlas permite identificar qual a obra mais adequada em cada loca-lidade, auxiliando as prefeituras com detalhamentos técnicos”, explica Do-minguez. O estudo se projeta como case de sucesso e, aliado a outras pesquisas, garante ações com retorno efetivo até 2015.

gar, é preciso entender a formação como a peça principal desse quebra-cabeça”, explica Alessandro Nunes, assessor téc-nico da Cáritas Ceará, regional integran-te da Rede Cáritas Internationalis.

A entidade atua na defesa dos direitos humanos e desenvolvimento sustentável solidário em mais de 200

Não adianta investir em grandes obras e não trabalhar habilidades e aptidões do povo. Na década de 1980, o governo implantou modelos de cisternas para famílias difusas. Não garantiram resultado. Não basta construir e entregar, é preciso entender a formação como a peça principal desse quebra-cabeçaAlessandro Nunes, assessor técnico da Cáritas Ceará, regional integrante da Rede Cáritas Internationalis

Foto: Arquivo pessoal

Não adianta investir em grandes obras e não trabalhar habilidades e aptidões do povo. Na década de 1980, o governo implantou modelos de cisternas para famílias

Não adianta investir em grandes obras e não trabalhar habilidades e aptidões do povo. Na década de 1980, o governo implantou modelos de cisternas para famílias

e entregar, é preciso entender a formação como a peça e entregar, é preciso entender a formação como a peça principal desse quebra-cabeça

países. A entidade põe em prática os projetos coordenados pela ASA nos municípios do Semi-árido, que abrange ainda o Espírito Santo e o Maranhão.

Com o objetivo de apresentar um panorama da região e suas característi-cas, bem como servir de canal de pes-quisa, o Observatório do Semi-Árido

atua com visão diferenciada. A situa-ção de seca e pobreza é colocada em contraposição às vivências da região, desmistificando o que é noticiado na mídia. As expressões culturais, os sabe-res do sertão e a proeza de encontrar vida digna em ambientes tão hostis são questões revalorizadas.

Cisterna de placa Foto: Renato Lopes/Agência Minas

O Nordeste com a Transposição

26 Maio/2009 27Maio/2009

Page 15: Nordeste VinteUM

“Os dados apontam que é um projeto socialmente injusto. A própria população que vive à margem do rio não tem água, as comunidades ribei-rinhas, para o onde o rio naturalmen-te se desloca, não são contempladas. Parece até uma piada, não é?”, reflete o mestre em Geoquímica e Meio Am-biente, Jémisson Santos.

Para João Suassuna, engenheiro agronômico e pesquisador da Funda-ção Joaquim Nabuco, a abrangência social do projeto não justifica o in-vestimento “faraônico”. “O Atlas Nor-deste garante um trabalho de abaste-cimento de cerca de 34 milhões de pessoas, com as águas já existentes na região, enquanto a transposição atende apenas 12 milhões de pessoas, com o dobro de recursos previstos para as obras do Atlas”, explica.

Em meio ao debate, os números expressivos. Os investimentos com o projeto de Integração com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Seten-trional, iniciado em junho de 2007, é orçado em R$ 5,5 bilhões; enquanto as obras do Atlas Nordeste apontam soluções com um pouco mais da me-tade desse custo (R$ 3,6 bilhões).

Na defesa, os argumentos são muitos: a transposição não compro-mete a saúde das águas, pois a vazão prevista é de apenas 1,4% de 1.850 m3/s, aquém do bombeamento das águas do São Francisco; os projetos de revitalização tem perspectivas de desenvolvimento econômico e social, a partir da gestão e monitoramento, proteção e uso sustentável dos recur-

BALANÇO DAS ÁGUAS

PREVISÃO DE OFERTA POR HABITANTE/ANO (m3)

VAZÃO DA OFERTA DE ÁGUA EXISTENTE (m3/s)

O Atlas Nordeste garante um trabalho de abastecimento de cerca de 34 milhões de pessoas, com as águas já existentes na região, enquanto a transposição atende a apenas 12 milhões de pessoas, com o dobro de recursos previstos

João Suassuna, engenheiro agronômico e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco

O Atlas Nordeste garante um trabalho de abastecimento de

recursos previstos

sos naturais, saneamento ambiental e incentivo às economias sustentáveis. Sem se falar das muitas possibilida-des de atração de investimentos.

“O projeto original foi modifica-do. A vazão é relacionada ao volume do rio, em épocas de seca e épocas de cheia. O São Francisco tem con-dições de ‘fazer a transposição’ sem acometer seus usos”, justifica Antônio Félix Dominguez.

O ponto unânime é que levar a água do rio para regiões atingidas pe-las secas não é tarefa simples, nem tampouco representa a solução para os problemas de abastecimento de água. Muito mais do que a polêmica, o acesso à água se estende como um cenário de perspectivas e novas pos-sibilidades, a partir do debate amplo e permanente.

UNICEF comemora 21 anos no Ceará

Ana Márcia DiógenesCoordenadora do Escritório do UNICEF para Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte

Artigo

mplantar um escritório no Ceará foi uma decisão da instituição atendendo solicitação do então go-vernador Tasso Jereissati. Lideranças da saúde es-tavam preocupadas em mobilizar parceiros em tor-no da redução da mortalidade infantil no estado.

A instituição chegou para apoiar iniciativas do Go-verno Estadual, dos municípios e da sociedade civil, e sugerir novas estratégias e ações para potencializar resul-tados. O primeiro coordenador, em 1988, foi o educador catarinense Antenor Naspolini. À época, os indicadores de saúde remetiam para centenas de crianças morrendo por desnutrição infantil.

Cinco anos depois, em 1993, os resultados levaram o Ceará a receber o Prêmio Internacional Maurice Pate por ter reduzido em 34% a mortalidade infantil em quatro anos. Pela primeira vez o Unicef havia concedido este prêmio ao Brasil, à América Latina, e vinha com um carimbo especial, remetendo o feito ao “povo e ao Estado do Ceará”.

O segundo coordenador, o médico italiano Ennio Svirtone, que já era funcionário da instituição, apoiou uma grande estratégia gerada no Ceará: o Programa Agentes de Saúde. O Unicef trabalhou na metodologia, Sistema de Informação e no estudo que avaliou o progra-ma no Ceará.

A idéia dos agentes de saúde havia sido idealizada por Carlile Lavor, então secretário de Saúde do Ceará. Em 1987, quando o Estado passava por um período de seca, foram convocadas seis mil mulheres para conversar com outras mulheres sobre pré-natal, qualidade do parto, aleitamento materno, higiene com o bebê, vacinação, de-senvolvimento infantil e aplicação do soro oral para evitar a desidratação.

 A conversa deu resultado: um número menor de crianças morreu. Isso fez com que, em 1988, fosse criado o Programa Agentes de Saúde. Em 1991 o Ministério da Saúde adotou o programa para todos os Estados nordes-tinos, disseminando-o posteriormente para todo o Brasil,

que hoje conta com mais de 240 mil agentes comunitá-rios de saúde.

  A gestão do terceiro coordenador, o chileno natu-ralizado brasileiro Patrício Fuentes, foi marcada por um projeto de mobilização gerado no escritório do Ceará. Em 1998 a preocupação maior, dentre outras, era a situação da educação infantil no Brasil e em especial nos municípios do Ceará. Patrício, junto com a educadora Stela Naspolini, funcionária da instituição, buscou uma estratégia arrojada e ao mesmo tempo factível de ser implantada.

Eles desenvolveram a metodologia junto com ou-tros funcionários, parceiros e consultores; incorporaram temas como ensino fundamental, saúde e direitos e de� -niram que o reconhecimento deveria ser para municípios que colocassem em prática o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Estava nascendo o Projeto Selo Unicef Município Aprovado. Nascia para melhorar a vida das crianças ce-arenses, para que passasse a ser vista como cidadão de forma diferenciada através de creches e pré-escolas de qualidade, parques infantis em praças públicas, espaços lúdicos em postos de saúde e hospitais, brinquedotecas, espaço de� nido na gestão escolar, entre outros.

Bastaram três edições do Selo Unicef para que o projeto encontrasse repercusão nacional e internacional. Enquanto vários países agendam visitas ao projeto, aqui no Brasil foi criado um movimento dos governadores de onze estados da região do Semi-árido que, junto com o Presidente da República, criaram o Pacto Nacional Um mundo para a criança e o adolescente do Semi-árido.

Os números passaram a falar pelo selo. Em dezem-bro do ano passado foi concluída a quinta edição em nível local, e a segunda em nível nacional. Até agosto deste ano, o UNICEF estará lançando a nova edição.

Comemorar esses 21 anos é pensar que o trabalho ape-nas começou. E, com tantos bons exemplos em que se espe-lhar, nos colocando cada vez mais a serviço da sociedade.

i

Foto: Mari Flos/ skyscrapercity

Obras da Transposição do São Francisco

Fonte: Agência Nacional de Águas e João Suassuna/Fundação Joaquim Nabuco

28 Maio/2009 29Maio/2009

Page 16: Nordeste VinteUM

A região Nordeste do Brasil ocupa 1.5 milhão de km2. É a 3ª em área do país, com 18,3% do território. Tem 51,6 milhões de habitantes, o que equivale a 28% da população nacional. Possui o

2º maior colégio eleitoral (30.998.109 eleitores - IBGE/2002) do país.

Abrange 9 Estados, o maior número do país. São eles:

Alagoas, Bahia, Ceará,

Maranhão, Paraíba, Piauí, Pernambuco (incluindo o Distrito

Estadual de Fernando de Noronha e o

Arquipélago de São Pedro e São Paulo),

Rio Grande do Norte (incluindo a

Reserva Biológica Marinha do Atol das

Rocas) e Sergipe

tem 42,5% da população e contribui

com 56,5% do PIB ); PIB per capita de US$ 1,856.72; 18 terminais marítimos; 18 aeroportos; 405,3 mil km de rodovias; 8,2 mil km de ferrovias; 27,767.129 kw

de capacidade instalada de energia.

6 é a média de anos de estudo

contra 8,5 no Sudeste; 8 no Sul e 7,6 no

Brasil; 146% de crescimento no consumo desde 2002, contra 126% de

média nacional; 12,7% de emprego industrial em 2005 contra 10,7% em

1986; 14% de valor bruto da produção agropecuária do país; 45% da

População Economicamente Ativa do campo; 50,9% da população ocupada trabalha no setor terciário em

2006, contra 25,7% em 1976; 8% do total das exportações brasileiras

saem do Nordeste. Em 1960, a região

participava com 20% (O porte da

economia nordestina, no entanto, não

dá razões para pessimismo. Colômbia,

Venezuela, Chile e Peru, por exemplo,

tem, cada uma, economias menores

do que a do Nordeste); 5,7 milhões de pessoas beneficiadas pelo Bolsa-Família ou 51,8% das famílias

em condições de extrema pobreza do País; R$ 13 bilhões anuais de investimento do Governo Federal em

apoio à agricultura familiar, contra

R$ 2,2 bilhões anuais em 2002; 40% da população vive no semi-árido, que

contribui com apenas 20% do PIB regional; 4% e 7% das empresas

apresentam capacidade de inovar; R$ 128 bilhões é a previsão de investimento em infra-estrutura

do Programa de Aceleração

do Crescimento (PAC).

A bancada do Nordeste é formada por

151 deputados federais, o que representa

29,43% das cadeiras da Câmara, além dos

27 senadores, ocupando 33,3% das vagas.

Arumã, fábrica da Crown instalada em Estância, Sergipe, representa o maior investimento privado da indústria de transformação dos últimos 10 anos no Estado. É a segunda planta industrial do grupo no Brasil. Vai produzir corpos de latas num investimento de R$ 120 milhões. A primeira começou a operar em 1996 em Cabreúva, distante 57 quilômetros da cidade de São Paulo. Hoje, produz 2,5 bilhões de unidades a cada ano. A meta da Arumã é de 1 bilhão de latas anuais, com o diferencial de que pode fazer os latões de 473 ml. A demanda só faz crescer. Dos 70 funcionários, 50 são técnicos em mecânica ou eletrônica. Em decorrência dessa necessidade especí� ca, muitos colaboradores são de Aracaju. Com uso de tecnologia avançada, em parceria com a prefeitura de Estância e o Senai, a empresa vai desenvolver cursos que ajudem a formar mão de obra na região. Sergipe tem a melhor localização para o maior número de clientes com menor custo de frete, diante de outros estados nordestinos. Toda a produção será voltada para empresas no Nordeste, principalmente a Ambev, a Coca-Cola e a Schincariol. Na região, o consumo tem crescido acima da média brasileira devido aos programas sociais do Governo do presidente Lula. A previsão é ampliar a fábrica investindo mais R$ 10 milhões.

O cenário está propício para a abertura de negócios no Piauí. O Estado obteve no primeiro trimestre de 2009, o terceiro lugar nacional em aberturas de empresas. Um total de 1.306 novos negócios na praça. Em 2008, nesse mesmo período, o número foi de 965 empresas abertas. Portanto, um incremento de 33,3%. Mas, os números animadores não se limitam apenas à estréia de empreendimentos. Em relação ao número de empresas fechadas, houve uma queda de 8,46%. O governador Welington Dias (PT)

assinala que o desempenho é mais que animador em tempos bicudos de crise econômica, além de rea� rmar a blindagem da região contra a

quebradeira externa.

Com o tema“Estado e Desenvolvimento: novo ciclo”, a Superintendência de Estudos Sociais e Econômicos do Estado e o Mestrado em Economia da Universidade Federal da Bahia realizam, nos dias 17 e 18 de setembro, em Salvador, o V Encontro de Economia Baiana. O evento vai abordar a economia local, regional e � nanciamento. Na última edição do evento foram apresentados 20 trabalhos produzidos por pesquisadores residentes na Bahia, Pernambuco, Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal. Devem ser encaminhados à comissão cientí� ca do V EEB, que este ano é formada por membros da Universidade Católica do Salvador (UCSal), NPGA/UFBA, CME/UFBA, Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Universidade Federal do Ceará (UFC) e Funcape/Business School (ES). Para submeter os artigos e consultar o regulamento do Prêmio, acesse o site www.mesteco.ufba.br. Outras informações podem ser obtidas através do telefone (71) 3116-1780.

O presidente do BNB, Roberto Smith, é o novo presidente da Associação Latinoamericana de Instituições Financeiras para o Desenvolvimento (Alide), organismo internacional que representa mais de 80 bancos, oriundos de 23 países da América Latina e Caribe, além de Canadá, Alemanha, Espanha e China. A decisão foi tomada pelo conselho diretor da instituição, no último dia 30 de março. Roberto Smith, até então vice-presidente, assume em substituição a Luis Rebolledo, que deixou o cargo para se dedicar a outros compromissos no Peru. A 39ª Assembléia Geral da Alide será presidida por Smith nos próximos dias 19 e 20 maio, em Curaçao, nas Antilhas Holandesas. Ele permanece no cargo até maio de 2010, quando será realizada nova assembleia, desta vez na sede do Banco do Nordeste, em Fortaleza. “Isso principalmente em um momento no qual a economia mundial atravessa uma crise, tornando mais visível o papel dos bancos públicos voltados para o desenvolvimento e das intervenções importante dos bancos centrais para operar em termos contracíclicos em relação à crise que foi desencadeada", ressalta.

Crown acerta na lata em Sergipe

Caleidoscópio

Nordeste em números

CearáRio Grande do Norte

Paraíba

Pernanbuco

Alagoas

Sergipe

Bahia

Piauí

Maranhão

Bons ventos para o Piauí

Estado e Desenvolvimento em pauta na Bahia

Presidente do BNB comandará Alide

E mais:1.793 municípios; 3.300 km de litoral; PIB de

US$ 93,6 milhões, o equivalente 13,1% do país (O Sul

tem 14,5% da população e participa com 16,6% do PIB. O Sudeste

Foto: César de Oliveira/ASN3

30 Maio/2009 31Maio/2009

Page 17: Nordeste VinteUM

Um desdobramento da reação nativa de corrente minoritária ao longo de cinco séculos. Um resultado da luta renitente contra os valores do colonizador, sua ideologia mercantilista e a escravidão da “raça castanha”. Nessa entrevista, é

assim que o fenômeno do cangaço começa a ser descrito e analisado, num resgate da profunda e brilhante leitura lançada em 1985 pelo historiador Frederico Pernambucano de Mello. Sucesso de edição esgotada há anos e raridade de

alto preço nos sebos, a obra foi relançada em 2004. Aqui, o autor, entre outras abordagens, fundamenta como o cangaço, “no mais fundo da carne, foi uma tradição

brasileira de resistência popular armada, contínua e metarracial”

Entrevista

Cangaço Sem lei nem rei, “Guerreiros do Sol” mais

universais e irredentos do que nunca

Pernambucano de Mello

com

FREDERICONordeste VinteUm – Nordeste Vinte Um - Há similaridades do cangaço com outros fenômenos em outras partes do mundo, especialmente nos moldes da amplitude alcançada pela figura de Lampião?Frederico Pernambucano de Mello – Em essência, o fenô-meno do cangaço é universal, correspondendo àquele pe-ríodo cinzento da transição privado-público na história dos países, de modo particular nos países de colonização tardia, nos quais se mostrou mais renitente. Mas, houve em todos os continentes, no instante em que o braço da administração da justiça criminal pública, começando ti-midamente a chamar a si os conflitos sociais, vai lançando na marginalidade as práticas e os agentes da violência pri-vada, no afã de monopolizar a coerção. Saindo do abstra-to, diríamos estar tratando, com referência ao Nordeste do Brasil, daquele momento dramático em que a figura histó-

rica do valentão, instância privada de resolução de confli-tos na ausência da justiça estatal, vai cedendo passo lenta-mente ao capitão-mor e ao juiz de paz, depois ao delegado, ao subdelegado, ao inspetor de quarteirão. E se transfor-mando, sem o sentir, de justiceiro em criminoso. De figura socialmente exemplar a perseguido da justiça pública em ascensão. Não devemos deixar de assinalar que o caráter universal do cangaço, em sua essência, foi proclamado por Câmara Cascudo há muitos anos. Quanto à amplitude de espaço, de tempo, de engajamento de massa e de visibili-dade pública alcançada por Lampião e seu bando, não há rival nos tempos modernos, sobretudo no Ocidente.    

 NVU – Qual o contexto histórico do Nordeste no período pré-surgimento do cangaço?FPM – Diferentemente do que pensam muitos autores ilus-

Foto: Arquivo pessoal

Por Marcel [email protected]

32 Maio/2009 33Maio/2009

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Maria Bonita e Lampião em 1936Fotograma do � lme “Lampião Rei do Cangaço”. 1936

tres, que costumam datar do meado do século XIX o início da existência do cangaço no sertão — como se fos-se um cometa surgido do infinito — o fenômeno é velho de cinco séculos. E não tem no sertão o seu berço. Há até quem crave um ano, tirado não se sabe de onde: 1870. O que o meado do Novecentos fez despontar, a partir do aumento da população do interior, foi a percepção daquela vida de aven-turas pela  opinião pública do litoral, na ocasião em que esta começava a cogitar sobre a presença de um lugar longínquo a que se dava o nome de sertão, onde, além da violência, havia a seca, como fenômeno natural recor-rente, e uma poesia popular, cantada e escrita, que aliava à arte o sentido precioso da documentação dos fatos. Em Pernambuco, o donatário da Ca-pitania, Duarte Coelho, queixava-se à Coroa das correrias de bandos de salteadores que “anarquizavam” os primórdios do empreendimento lito-râneo do açúcar, nossa primeira eco-nomia não apenas de exportação, mas de transformação, ainda no meado do século XVI. Esse é o momento em que surge e vai-se afirmando, contra as exatidões da ideologia mercantilista brandida a ferro e fogo pelo coloniza-dor europeu — e contra, sobretudo, a escravização das raças castanhas que implicava — o mito primordial de que

seria possível viver-se, nesta parte do Novo Mundo, sem lei nem rei e al-cançar a felicidade.

 NVU – E em que aspectos e proporção o mito se estabeleceu nesse Novo Mundo?FPM – Esse mito inspirou e deu vida a uma corrente minoritária de nativos e de adventícios que não se dobraria aos valores coloniais e se manteria irredenta, exprimindo-se através da atitude daqueles grupos sociais que não aceitaram fraternizar com os va-lores europeus de civilização. Nada de acumulação, nada de propriedade privada, nada do primado dos metais nobres, do tempo linear, da pontua-lidade, do comércio, da subjugação religiosa. Nada, enfim, daqueles ca-brestos que recheavam o Mercan-tilismo pré-capitalista como ideolo-gia dominante no Mundo Ocidental nos séculos XV e XVI, contrabandea-dos para a Terra dos Papagaios pelas concepções culturais portuguesas do Quinhentismo e do Seiscentismo. A essa gama de novidades, reagiam por trás de individualismo elegante, ex-presso na frase que permeia boa par-te dos documentos reinóis do século do Descobrimento, escrita por quem observava os modos dos habitantes da terra recém-devassada: eles vivem sem lei nem rei e são felizes. Foi as-sim que o europeu que aqui aportava,

atolando o pé na carne opulenta de índias receptivas – segundo salien-tou Gilberto Freyre em sua lingua-gem plástica – retratou o nativo que estava encontrando. E quedou side-rado no instante seguinte, acusando o impacto que tanta liberdade pro-duzia sobre a alma de quem velejava vergado ao cambão de braúna da Co-roa portuguesa e do Papado de Roma. Um Papado de fogueira acesa, com a chama da Santa Inquisição. E uma Coroa absolutista, a despachar para as masmorras do Limoeiro a quantos tropeçassem nas cavilações penais do Livro Quinto das Ordenações Ma-nuelinas. 

 NVU – O que foi o cangaço, finalmente?FPM – Em seu sentido profundo, ele é a expressão de irredentismo que falta agregar à historiografia brasilei-ra dos cinco séculos de colonização. Uma historiografia de longa data, sensível às recorrências irmãs des-se irredentismo de chapéu de cou-ro, representadas pela intermitência plural do levante indígena, de que é exemplo maior a chamada Guerra dos Bárbaros; do quilombo predomi-nantemente negro, à frente Palmares, e da revolta social branca ou mesti-ça, encabeçada por Canudos. Não é o cangaço, na visão moderna que te-mos proposto, fenômeno surgido do nada, solto no tempo e no espaço, como se pensou até ontem, mas par-te – e parte tão ilustre quanto as de-mais – do desvio de fogo que correu parelhas com o leito central de nossa história, o de expressão majoritária, a impor, este último, os valores reinóis, no instante em que o índio e o negro baixaram finalmente a cabeça à sub-jugação pelo branco europeu. Não todos. Os que reagiram, agremiados na corrente minoritária, deram vida a um irredentismo militante que é a raiz comum de todas as insurgên-cias vistas acima, sublimado, com o passar do tempo, numa tradição bra-sileira. Uma tradição guerreira de re-sistência popular. Deve ser notado que, enquanto o levante indígena, o quilombo e a revolta social possuíam

caráter intermitente e uma identida-de étnica definida pela predominân-cia do contingente racial que rechea-va suas fileiras, o cangaço mostrou-se contínuo no tempo e absolutamente metarracial. Você podia ter sucesso no bando, ascendendo à chefia, fos-se branco alourado, como Corisco; negro, como Zé Baiano; índio, como Gato; ou mestiço dos mais diferentes matizes, como o caboclo Lampião, o mulato Sabino, o sarará Luiz Pedro, o cafuzo Jararaca, o cabo-verde Zé Se-reno. Sem deixar de ser uma expres-são de banditismo — porque sempre houve lei capaz de respaldar esse en-quadramento jurídico de epiderme — o cangaço, no mais fundo da car-ne, foi uma tradição brasileira de re-sistência popular armada, contínua e metarracial.

 NVU – Por que o cangaço é sempre liga-do ao sertão?FPM –  O cangaço nasce no litoral e vai sendo enxotado para o sertão pelo sucesso do empreendimento econô-mico na zona costeira. Houve canga-ço no verde e no cinzento, como mos-tramos em nosso livro Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordes-te do Brasil (São Paulo, A Girafa Edi-tora, 2004, 2ª ed.). Com pontos em comum e pontos discrepantes, na-turalmente. O cangaço no verde foi mais sedentário que o do sertão, por exemplo. De maneira que não se tra-ta de fenômeno sertanejo na origem, como vimos não ser uma singularida-de brasileira. A colonização no semi-árido inicia-se na segunda metade do século XVII, com as doações de terra pela Coroa portuguesa, e não se faz sem muito sangue. O choque entre o branco invasor e o índio resistente foi tremendo.

 NVU – Que tipo de gente protagonizava esse conflito?FPM – Entre os primeiros, ao lado da gente áspera vinda da vila de São Pau-lo, os chamados bandeirantes, e dos não menos rijos vaqueiros das casas senhoriais da Torre e da Ponte, par-tidos de Salvador, encontravam-se,

por exemplo, os soldados da guerra de quase trinta anos movida contra os neerlandeses a partir de Pernam-buco, um exército luso-brasileiro de cerca de três mil homens, adestrado no emprego das armas brancas e de fogo, desempregado pela capitula-ção de 1654. Gente toda ela violen-ta, afeiçoada ao sangue. Ao aço frio. À pólvora. Pelo lado do índio, vale lembrar que o choque se dá, não com o tupi litorâneo, conhecido pela cor-dialidade, mas com as várias nações do ramo tapuia, conhecido pela fero-cidade. Ao assentamento dos currais de gado no sertão, corresponde um banho de sangue. E à dizimação de um gentio que estava na escala mais baixa das formulações doutrinárias do colonizador, à frente o religioso José de Acosta, um erudito da Companhia de Jesus. Até o padre Antônio Vieira, de sua experiência de penetração do Brasil, asseverava a impossibilidade da catequese de canibais hostis, ar-mados de flechas envenenadas, invi-síveis na vegetação cúmplice. Será ali que o cangaço irá apropriar e desen-volver essa tradição de guerra brota-da da intuição do caçador, receben-do o estímulo de um relevo propenso à ocultação e de uma vegetação toda feita de espinhos, como que trança-da a capricho para barrar a presença do litorâneo. Paga com o nome pelo

Foto: Benjamin Abrahão/ ABA Film

Fotos: Benjamin Abrahão/ ABA Film

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de acumulação, nada de propriedade privada, nada do primado dos metais nobres, do tempo linear, da pontua-lidade, do comércio, da subjugação religiosa. Nada, enfim, daqueles ca-brestos que recheavam o Mercan-tilismo pré-capitalista como ideolo-gia dominante no Mundo Ocidental nos séculos XV e XVI, contrabandea-dos para a Terra dos Papagaios pelas concepções culturais portuguesas do Quinhentismo e do Seiscentismo. A essa gama de novidades, reagiam por trás de individualismo elegante, ex-presso na frase que permeia boa par-te dos documentos reinóis do século do Descobrimento, escrita por quem observava os modos dos habitantes da terra recém-devassada: eles vivem sem lei nem rei e são felizes. Foi as-sim que o europeu que aqui aportava,

mos proposto, fenômeno surgido do mos proposto, fenômeno surgido do nada, solto no tempo e no espaço, nada, solto no tempo e no espaço, como se pensou até ontem, mas par-como se pensou até ontem, mas par-te – e parte tão ilustre quanto as de-te – e parte tão ilustre quanto as de-mais – do desvio de fogo que correu mais – do desvio de fogo que correu parelhas com o leito central de nossa parelhas com o leito central de nossa história, o de expressão majoritária, a história, o de expressão majoritária, a impor, este último, os valores reinóis, impor, este último, os valores reinóis, no instante em que o índio e o negro no instante em que o índio e o negro baixaram finalmente a cabeça à sub-baixaram finalmente a cabeça à sub-jugação pelo branco europeu. Não jugação pelo branco europeu. Não todos. Os que reagiram, agremiados todos. Os que reagiram, agremiados na corrente minoritária, deram vida na corrente minoritária, deram vida a um irredentismo militante que é a um irredentismo militante que é a raiz comum de todas as insurgên-a raiz comum de todas as insurgên-cias vistas acima, sublimado, com o cias vistas acima, sublimado, com o passar do tempo, numa tradição bra-passar do tempo, numa tradição bra-sileira. Uma tradição guerreira de re-sileira. Uma tradição guerreira de re-sistência popular. Deve ser notado sistência popular. Deve ser notado que, enquanto o levante indígena, o que, enquanto o levante indígena, o quilombo e a revolta social possuíam quilombo e a revolta social possuíam

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01 Cinta – de couro, com enfeites sertanejos próprias para carregar os cantis

02 Cantis – enfeitados, usados um de cada lado do corpo. Em um era guardado açúcar e no outro cachaça ou água

03 Fuzil Mauser, modelo 1908. Bandoleira enfeitada com moedas de prata e ilhoses brancos

04 Lenço de seda – usados nas cores vermelha, verde ou no padrão xadrez. As pontas eram presas

com anéis e moedas de valor

05 Cartucheiras – de couro, abrigavam 121 projéteis de fuzil

06 Perneira – de couro enfeitada com ilhoses e presa por pequenas � velas

Antes de padronizar a maioria do armamento no potente e preciso Mauser 1908, os cangaceiros usavam uma verdadeira miscelânea de armas

Corisco, Dadá e seu bando. 1936 Ru� no e os membros da volante do Estado da Bahia sob seu comando. Benjamin Abrahão, 1936.

qual o fenômeno ficaria imortalizado: cangaço. Que é voz sertaneja, como proclamava o cearense Juvenal Galeno já em 1871. Por tudo isso, não é de estranhar que o can-gaço tenha-se desenvolvido no sertão de maneira extra-ordinária, a ponto de evoluir de endêmico a epidêmico em alguns períodos. É assim que a caatinga passa a ser o palco por excelência das correrias dos capitães chefes de bando. 

 NVU – Em que patamar a “distribuição gratuita de marxismo simplificado” pelo meio acadêmico embotou a consciência sobre o fenômeno do cangaço?FPM –  O marxismo prêt-à-porter desenvolvido no Brasil permitiu que muita gente deitasse falação sobre o canga-ço, sobretudo no meio acadêmico do Sudeste, sem nem mesmo sentir a necessidade de conhecer o Brasil seten-trional e o sertão. Ou de sujar-se na poeira de arquivos. Para armar o esquema da luta de classes, que tudo expli-cava em seu suficientismo orgulhoso, bastava caracterizar-se o coronel como opressor e o cangaceiro como oprimido. Pronto. Para que mais? Para que queimar as alpercatas em Quixeramobim ou nas Lavras da Mangabeira? Acon-tece que Lampião – e vamos pegar logo o exemplo mais emblemático – era o queridinho dos coronéis de barran-co, gostando de estar entre estes e combatendo apenas aqueles que se erguessem contra a sua violência meti-culosamente organizada. Empresarialmente organizada. Essa era a regra, não sendo raro que as duas figuras se associassem nas empreitadas rentáveis da rapina. E

até na agiotagem posterior. Foi assim com os chefes de grupo em geral. Mas isso desmontava a barra-ca marxista e não podia ser aceito. Historiadores ilustres, como José Honório Rodrigues, no Rio de Janeiro, e menos ilustres, como a paulista Cristina Mata Machado, embarcaram nessa canoa furada. E brilharam por muito tempo

em livros e na sala de aula. Até que a voga marxista co-meçasse a ser varrida lentamente, a partir dos anos 70 do século passado, quando a história volta a se assumir como ciência ideográfica, ocupada com o específico e o não-repetível, e dá as costas para as constantes nomotéticas geradoras de estruturas generalizantes, com o perdão do leitor pelos nomes pesados.

 NVU – Então, como “desembotar” essa consciência do confli-to de viés puramente ideológico?FPM – Na história do Nordeste, a dinâmica de conflito por excelência residiu sempre no divórcio litoral-sertão. Aí é que estão as placas tectônicas dos vulcões sociais que nos sacudiram de modo recorrente, fruto da falha no desdo-bramento do processo colonial. Da decadência precoce da colonização sertaneja, geradora do isolamento da ca-atinga e do que já chamamos em livro de mumificação dos costumes sertanejos, vis-à-vis da renovação que se produzia no litoral, aberto à via marítima. Isso vem até os nossos dias, ultrapassando o paroxismo de Canudos, na Bahia de 1897, e invadindo o século XX. É ver o Caldei-rão, em 1936, no sul do Ceará, ou a também teocracia do Pau-de-Colher, de 1938, novamente na Bahia. O litorâ-neo não se via no sertanejo e vice-versa. Consideravam-se estrangeiros, quando postos um em face do outro, como se viu, dolorosamente, em Canudos. Mostramos isso, detidamente, em nosso livro A guerra total de Canu-dos (São Paulo, A Girafa Editora, 2007, 2ª ed.) No sertão, coronéis e cangaceiros entendiam-se a seu modo. E como se entendiam...

 NVU – O senhor identifica diferentes tipos de cangaço. Quais as características mais marcantes de cada um?FPM – No Guerreiros do sol, mostramos que hou-ve grupos que fizeram do cangaço predominan-temente um meio de vida, como no caso de Lampião ou de Antônio Silvino. E outros, que dele se valeram como instrumento de vingança, geralmente num contexto de luta entre famílias, como se deu com Si-nhô Pereira e Luiz Padre, de um lado, e Sindário, do outro, na guerra privada en-

tre Pereiras e Carvalhos. Ou com Jesuíno Brilhante, na guerra contra a família Limão, encabeçada por um canga-ceiro não menos valente: Honorato Limão. Outros, ainda, o transformaram em asilo nômade de criminosos jurados de morte, como Ângelo Roque, o Labareda. A cada pro-pósito correspondendo um estilo de vida, uma contenção de gestos e até uma dimensão de espaço e de tempo. Os primeiros mostrando-se mais longevos e de abrangência geográfica mais espalhada, chegando a atingir quatro Es-tados, como aconteceu com o bando de Lampião, e varan-do os vinte anos de sobrevivência. Uma tradição presta-se a muitos propósitos, não é?

 NVU – Por que Lampião acabou sendo a figura de maior relevo nesses domínios?FPM – O cangaço de Lampião – reinado derradeiro numa sucessão de “realezas” que caracteriza o desdobramento do fenômeno ao longo de séculos – marchando para se confundir com o próprio conceito, não foi senão o canto de cisne dessa vertente contínua, minoritária e metarra-cial em nossa história, sem que se esteja a amesquinhar o diferencial de volume, organização e requintes estraté-gico e tático presente nos mais de vinte anos de império daquele que seria chamado pela imprensa, ainda em vida, de Rei do Cangaço, Tigre do Sertão e Terror do Nordeste, à base do talento pessoal, do raciocínio fulgurante e do engajamento de massa que logrou atingir. Há ocasos por-tentosos. Lampião nos põe diante de um.

 NVU – Qual a influência de Gilberto Freyre em sua obra?FPM – Muito grande. Integramos sua equipe de traba-lho por quinze anos, cumprindo aquilo que o profes-

sor Nelson Aguilar, de São Paulo, caracterizou um dia como o mais longo doutorado já feito por um

cristão. Estava certo. Trabalhar com Gilberto era aprender a cada minuto uma lição. Graças a

ele, demo-nos conta de que a história deve ir muito além do fato saliente na política e do registro de fatos objetivos. Que deve alon-gar-se num romance verdadeiro, incorpo-rando o dia-a-dia, o ordinário, o cotidiano, o aparentemente banal, o universo ínti-

mo. Nisso, ele se antecipou a Braudel, a Lefèbvre, a Bar-tes, a Bastide, a Abelès, a Ginzburg. A Escola dos Anais, consagrada na França de 1930, proclamou o pioneirismo desse ilustre brasileiro do Nordeste. Ele antecipou o ga-nho que a história recebeu modernamente ao incorporar, com humildade digna de louvor, umas tantas lições da an-tropologia. Boas lições. NVU – Onde evidenciamos tal influência em seu trabalho?FPM – Está no perfil que traçamos de Lampião, revelador de que o guerreiro insuperável, o homem de violência in-discutível, qualidades conhecidas no passado, era, ao mes-mo tempo, um costureiro exímio, em pano e em couro, além de bordador caprichoso. Um sujeito preocupado sur-preendentemente com questões de representação simbó-lica no traje e no equipamento de seu grupo, e com a ali-mentação dos mídia sobre os passos de seu bando. Que apreciava, incorporando o requinte de coronéis fidalgos com os quais privou, à frente Hercílio de Brito, de Pro-priá, Sergipe, o perfume francês e o uísque de Escócia. Que possuía cartões de visita e postal com a própria foto no anverso já em 1936, confeccionados na Aba-Film, de Fortaleza, para evitar falsificações em sua correspondência surpreendentemente ativa. Quando mostramos isso em li-vro, nos anos 80 do século passado, quase que o mundo desaba sobre nossa cabeça. A menor acusação era de que estávamos efeminando o Rei do Cangaço. Hoje, não há quem ignore ou conteste que Lampião possuía dores ar-tísticas. Ao contrário. Há livros recentes, escritos aqui e lá fora, para desenvolver essas revelações, o que nos envaide-ce. É o salário moral de quem pesquisa. De quem come poeira e arranha os cotovelos sobre as fontes de primeira mão. O espaço de rebeldia do assistente ficou por conta da escolha do sertão como tema de estudos. Gilberto Freyre não gostava do sertão. Algumas vezes nos abordou com a ciumeira: “Você anda conversando muito com Ariano Su-assuna!” Mas não se privou de reconhecer a seriedade dos estudos que empreendíamos, prefaciando nosso livro de estréia e cravando na imprensa estar diante de um “mes-tre de mestres em assuntos de cangaço”. Está lá, no Diário de Pernambuco de 28 de fevereiro de 1985. É muito bom para o aluno constatar que não decepcionou o professor. 

Fotos: Benjamin Abrahão/ ABA Film

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QUEM É ESSE PERNAMBUCANOEMBRENHADO NUM “BRASIL PROFUNDO”?

 Frederico Pernambucano de Mello é pes-

quisador de história social da Fundação Joa-quim Nabuco, Recife, cidade em que nasceu no ano de 1947. Tem formação ainda em Direito e se aposentou como Procurador Fe-deral. É membro da Academia Pernambuca-na de Letras, onde ocupa a cadeira 36 desde o ano de 1988.

Na fundação, integrou a equipe do sociólogo Gilberto Freyre, de 1972 a 1987, período em que se especializou, sob a orientação deste, no estudo da História Social do Nordeste do Brasil, especialmen-te em seus aspectos de conflito.

Pela originalidade dos estudos, volume da obra que produziu e por se de-dicar a aspectos históricos tidos como ásperos e de pesquisa difícil ou peno-sa, tem sido considerado, sobretudo no meio acadê-mico paulista, o "historia-dor do Brasil profundo".

Na especialidade, publicou ainda A tragé-dia dos blindados (1991); Quem foi Lampião (1993); A Guerra total de Canudos

(1997) e Delmiro Gouveia (1998). Tem, no prelo, o livro Estrelas de couro: a estética do cangaço, resultado de estudo profundo a que se dedicou desde o ano de 1997.

O maior sucesso foi mesmo Guerreiros do Sol, o mais profundo e completo estudo sobre o fenômeno do cangaço no Nordes-te. Sua pesquisa o torna o maior especia-lista no assunto, reconhecido tanto aqui quanto no exterior.

Ariano Suassuna define assim a obra do autor: “Sem sombra de dúvida, a teoria do escudo ético de Frederico Pernambu-cano foi a única que, até o dia de hoje, me pareceu convincente. Foi a única que expli-cou a mim próprio os sentimentos contra-ditórios de admiração e repulsa que sinto diante dos cangaceiros”.

Durante 20 anos, Lampião e seu bando percorreram o sertão nordestino a perpetrar feitos que fizeram do capitão Virgulino um mito. Mitificação essa construída a partir do sertão interiorano ao litoral mais desenvolvido, para dele se espraiar a todo o Brasil de ainda precários meios e vias de comunicação. Durante muito tempo, a saga do cangaço foi noticiada através dos cantadores de feira, dos emboladores, dos cegos rabequeiros e da literatura de cordel.

Para quem não tinha chegado a ver um cangaceiro de perto, Lampião poderia passar à história como um fora da lei que talvez nem tivesse existido além da xilogravura ou do desenho. Não fosse a visão de um mascate libanês cuja ousadia foi fundamental para a compreensão atual do fenômeno do cangaço. Benjamim Abrahão foi o responsável pela memória iconográfica do bando de Lampião. Trata-se de uma verdadeira façanha a captura exclusiva de momentos da intimidade cotidiana do cangaceiro e seu grupo, que virou tema do longa-metragem brasileiro “O Baile Perfumado”, de Lírio Ferreira.

Todo esse material está disponível hoje em Fortaleza (CE), sob os cuidados do Instituto Cultural Chico Albu-querque – pioneiro da fotografia publicitária no Brasil. A entidade é vinculada à rede de lojas especializada em materiais fotográficos Aba Film, e detém os direitos de uso do trabalho do fotógrafo. O acervo é composto por uma série de 99 fotos e um vídeo de 11 minutos, além de outras 400 fotos coletadas por Ricardo Albuquerque sobre o cangaço, a maioria de fotógrafos amadores.

“Essas outras fotos são anteriores às de Benjamim. Existem outras de Lampião com vestimentas di-ferentes da habitual. Bem pobres em relação às usadas no final do cangaço”, revela Ricardo, presidente do instituto e filho de Chico Albuquerque. Ele diz que foi Dadá, mulher do cangaceiro Corisco, quem motivou os cangaceiros a usarem roupas enfeitadas.

A história das fotos e imagens começa com a chegada de Benjamim Abrahão a Juazeiro do Norte. O viajante aca-bou conquistando a confiança de Padre Cícero e virou seu secretário. Com a morte do padre, decidiu renovar contato que já possuía com Lampião – o cangaceiro era devoto de Padre Cícero – e propôs a Ademar Bezerra Albuquerque, avô de Ricardo Albuquerque e fundador da Aba Film, registrar a rotina do grupo.

Proposta aceita, o “mascate-fotógrafo” foi ao sertão, e após um mês de convívio com o bando e todo o equipamen-to para cobertura, verificou que o filme havia velado. Disposto a cumprir seu intento, Benjamim recebeu dicas de Ademar, voltou outras duas vezes e conseguiu os registros. O ano era 1937. Em 1938, Benjamim foi assassinado em Recife (PE).

Segundo Ricardo Albuquerque, depois do episódio, Ademar tentou exibir o filme no Cine Mo-derno, em Fortaleza, ainda em 1938. Mas o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Governo Getúlio Vargas censurou e confiscou a película ao assistir uma prévia. Sorte que Ade-mar fizera uma cópia do material. As fotografias foram reproduzidas por diversos veículos como o jornal O Povo, de Fortaleza, e até pelo O Globo.

O filme do grupo de Lampião foi exibido pela primeira vez em 1950 e serviu para outra película, “Memória do Cangaço”. Uma sala na sede da Aba Film (Rua Costa Barros, 915, 9º andar, Centro), abriga hoje todo o material em disponibilidade para publicações.

As fotos que registram a história de Lampião e seu bando foram restauradas em 2003, quando Ricardo voltou de São Paulo para morar em Fortaleza. O vídeo teve se-quências compiladas e foi recuperado graças a projeto bancado pela Petrobras. O direito autoral pertence à família Albuquerque, e o de imagem à família de Lampião. “É uma parceria. Há um contrato entre as partes, inclusive a família do Benjamim. E eu tenho uma procuração para cuidar disso tudo”, informa Ricardo Albuquerque.

RELÍQUIAS ICONOGRÁFICAS DO CANGAÇO EM FORTALEZA

INSTITUTO CHICO ALBUQUERQUE D H C D H C D H C D H C D H C D H C D H C D H C D H C Dom Helder Câmara

“ João XXIII me parece um pássaro numa gaiola de ouro... Dia virá em que o Pai livrará o Vigário de Cristo do luxo do Vaticano. ”

100 anos do “Bispo

Vermelho”

Benjamin Abrahão aperta a mão de Lampião cercado por seus cangaceiros.1936

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História

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Memória. Dom Hélder com seu pai, João Eduardo Torres Câmara Filho

Dom Helder Câmara, prêmio Nobel da Paz. Por uma de quatro oportunidades, a manchete certamente seria de primeira página. Não fosse a contra-campanha dos governos militares, de parte da imprensa e da própria Igreja do Brasil. Nesse sentido, seu centenário marca o resgate da história de um homem � el, sobretudo, à sua concepção de humanidade. Uma existência de atitude, que mesmo ao esbarrar em princípios da Igreja Católica, nunca se esquivou da política e das grandes polêmicas. Lembranças de familiares e da vida eclesiástica redesenham seu per� l

“Os que agora estão prestando homena-gens ao meu tio, o estariam comba-tendo se hoje ele estivesse vivo. A começar pela própria Igreja”. A fra-se é do pesquisador e memorialista

cearense Cristiano Câmara, sobrinho do ex-arcebispo de Olinda, Dom Helder Câmara. Em fevereiro, o religioso completaria 100 anos, o que motivou homenagens em vários estados do país.

O tom de crítica das palavras do parente vivo mais próximo do padre revela o ceticismo de al-guém que dispensa o legado espiritual do tio, mas se orgulha do parentesco. A começar pelo que ca-racteriza a história de vida de Dom Helder. Sua postura, sempre voltada à defesa dos desvalidos, acabou celebrizando-o como o “Bispo Vermelho”, face sua associação aos movimentos de esquerda du-rante a ditadura militar.

A hipótese de perseguição da Igreja ao religioso ga-nha fôlego na autodefesa da instituição à época. É o que denota um boletim interno do Secretariado Regional Nordeste I da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), de 1970.

Entre outras denúncias, o documento, intitula-do Dom Helder: Acusações e Defesas, relata que em 1970, no auge da repressão, o então cardeal arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer, a� rmou, categoricamente, que Dom Helder deve-ria usar seu prestígio em círculos europeus para desmentir calúnias deformadoras da imagem reli-giosa, política e social do Brasil.

No jogo das aparências, Dom Helder se tor-nava um incômodo cada vez maior, para setores da Igreja e dos militares. Em artigo do Mestre em História Social, Márcio de Souza Porto, so-bre o boletim da CNBB, consta que o religioso era atacado não só por padres, bispos, e arce-bispos, mas também por políticos e jornalistas nacionais e estrangeiros.

Dom Helder Pessoa Câmara nasceu em Fortaleza no dia 7 de fevereiro de 1909. Filho de família ilustre do início do século, foi ordena-do sacerdote aos 22 anos. Desde o início, optou pela linha de defesa dos direitos humanos. Nada demais para um padre, a não ser pela constante transposição ideológica dos muros da Igreja e os enfrentamentos com regimes vigentes.

A idéia era contribuir para uma congrega-ção mais atuante, mais próxima dos movimen-tos sociais. “Quando dou de comer aos pobres, chamam-me de santo, quando respondo por-que é que os pobres têm fome, chamam-me de comunista”, disse certa vez.

Mas, tanta inspiração não foi su� ciente para evitar graves e custosos erros de per-curso. Em 1932, um ano após sua orde-nação sacerdotal, entusiasmado com uma época de radicalização política, o padre aceitou militar na Ação Integra-lista Brasileira (AIB). In� uenciado por ideologia fascista, o Integralismo havia sido fundado pelo jornalista, escritor e político Plínio Salgado, para se tornar um verdadeiro transtorno ao regime ditatorial de Getúlio Vargas. O bani-mento para a ilegalidade não tardou com a instalação da ditadura do Es-

tado Novo, em 1937.Na parceria Igreja e Go-

verno Vargas, sobrou para o jovem sacerdote uma ordem de imediato afastamento da AIB, assinada pelo então cardeal do Rio de Janeiro, Sebastião Leme. Vida que segue mais re� exiva, ainda durante a década de 1930,

já convertido aos ideais de-mocráticos, Helder Câmara teria feito um comentário re-velador: “O período na AIB foi um erro de juventude”.

Após a turbulência desse episódio, aos 26 anos, o padre ocupou o cargo de diretor da Instrução Pública do Estado do Ceará, hoje Secretaria de Educação. A oportunidade, a priori extraordinária para

aquele religioso de olhos azuis arregalados no futuro e do alto de seu 1,60m, não demoraria a virar sinônimo de aborrecimentos.

O motivo eram as freqüentes intromissões da autoridade governamental, algo já bem re-corrente. Preferiu sair do cargo. Arranjar uma nova colocação que não bastasse fugir do irri-tante “monitoramento”. Escolheu também sair do Estado do Ceará. O ano era 1936. Destino, o Rio de Janeiro.

Em fase de industrialização, o Rio dessa época era preferencialmente o ponto de desem-barque para levas de gente que caracterizavam o êxodo rural. Com o � m da ditadura Vargas, em meados da década de 1940, o cenário tornou-se propício aos movimentos sociais em todas as re-giões. Nesse período, o sacerdote convenceu o alto clero de que, em função do grande avanço dos protestantes, seria necessária uma “Ação Católica” com atividade mais intensa na vida política do país.

A proposta era alcançar, principalmente, a juventude. O resultado prático foi uma mudan-ça positiva para a imagem da Igreja, ao promo-ver per� s de evangelização que contemplavam não só a salvação do rebanho, mas a melhoria da qualidade de vida das pessoas.

 No Rio de Janeiro e Europa, o “Padre dos Pobres” ganha projeção Pela articulação e credibilidade à frente de ini-ciativas populares, Dom Helder foi nomeado bispo-auxiliar do Rio de Janeiro, em 1952. Ele defendeu a promoção de uma reforma social através do Estado, dos sindicatos rurais e da Igreja. O prestígio do religioso pôde ser testado, quando em 1955 acontece na cidade o Con-gresso Eucarístico Internacional. O novo bispo revelou-se um fenômeno de popularidade. Sua � gura foi o principal atrativo para mais de 1 mi-lhão de pessoas.

Ao � nal do congresso, um gesto de solida-riedade. Dom Helder teve a idéia de utilizar toda a madeira dos milhares de bancos do lo-cal, para a construção dos edifícios da Cruza-da São Sebastião, situada no bairro do Leblon. A obra, que urbanizava a favela, iria abrigar milhares de moradores da Praia do Pinto.

Nessa época, o padre passou a ser o prin-cipal nome da CNBB, além de um de seus fundadores poucos anos antes. De 50 anos para cá, a instituição se consolidou como o órgão de maior in� uência na promoção da Igreja Católica no país.

Durante o período em que representou a CNBB, Helder apoiou o Movimento de Edu-cação de Base (MEB), projeto � nanciado pelo

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Por Lucílio [email protected]

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Se parece verossímil que a relação entre Dom Helder e a Igreja Católica era pautada por visões de mundo divergentes, a conclusão fica ainda mais evidente a partir de escritos deixados pelo Padre dos Pobres. Por exemplo: você sabia que no quarto aniversário de co-roação do papa, Dom Helder se escandalizou com o excesso de pompa da solenidade?

“João XXIII me parece um pássaro numa gaiola de ouro... Dia virá em que o Pai livrará o Vigário de Cristo do luxo do Vaticano”, escreveu ele. Na verdade, Helder defendia uma Igreja mais “servidora e pobre” e menos “senhora e rica”. O fim do Vaticano era uma de suas propostas.

Em cartas escritas durante o Concílio Vaticano II, o religioso deixou clara sua intenção em mudar conceitos da Igreja. Por várias vezes chegou a classificar essa busca como o Sagrado Complô. A idéia era voltar os olhos da Igreja para a pobreza a partir do Concílio. Para isso reunia bispos em reuniões e palestras, a fim de trocarem idéias durante o encontro.

O compromisso do religioso em defender seus ideais a qualquer custo promovia péro-las como seu discurso de posse na arquidio-cese de Olinda. “Ninguém pretenda prender-me a um grupo, ligar-me a um partido, tendo como amigos os seus amigos e querendo que eu adote as suas inimizades. Minha porta e meu coração estarão abertos a todos. Abundantemente a todos. Cristo morreu por todos os homens: a ninguém devo excluir do diálogo fraterno”.

E de fato foi assim. Era comum o bispo rece-ber no palácio episcopal a todos, sem distin-ção, e sem hora marcada. De pessoas ilustres a bêbados e prostitutas. Sempre ancorado no princípio da igualdade. Todos esses relatos podem ser conferidos nos livros "Circulares conciliares" e “Circulares inconciliares", que compõem o início das Obras Completas de Dom Helder.

Se parece verossímil que a relação entre Dom Helder e a Igreja Católica era pautada por visões de mundo divergentes, a conclusão visões de mundo divergentes, a conclusão fica ainda mais evidente a partir de escritos deixados pelo Padre dos Pobres. Por exemplo: você sabia que no quarto aniversário de co-roação do papa, Dom Helder se escandalizou com o excesso de pompa da solenidade?

“João XXIII me parece um pássaro numa gaiola de ouro... Dia virá em que o Pai livrará o Vigário de Cristo do luxo do Vaticano”, escreveu ele. Na verdade, Helder defendia uma Igreja mais “servidora e pobre” e menos “senhora e rica”. O fim do Vaticano era uma

Em cartas escritas durante o Concílio Vaticano II, o religioso deixou clara sua intenção em mudar conceitos da Igreja. Por várias vezes chegou a classificar essa busca como o Sagrado Complô. A idéia era voltar os olhos da Igreja para a pobreza a partir do Concílio. Para isso reunia bispos em reuniões e palestras, a fim de trocarem

O compromisso do religioso em defender seus ideais a qualquer custo promovia péro-las como seu discurso de posse na arquidio-cese de Olinda. “Ninguém pretenda prender-me a um grupo, ligar-me a um partido, tendo como amigos os seus amigos e querendo que eu adote as suas inimizades. Minha porta e meu coração estarão abertos a todos. Abundantemente a todos. Cristo morreu por todos os homens: a ninguém devo excluir do

E de fato foi assim. Era comum o bispo rece-ber no palácio episcopal a todos, sem distin-ção, e sem hora marcada. De pessoas ilustres a bêbados e prostitutas. Sempre ancorado no princípio da igualdade. Todos esses relatos

Circulares Circulares inconciliares", que Circulares inconciliares", que Circulares inconciliares

compõem o início das Obras Completas de Dom Helder.

Críticas à Igreja

Governo Federal. A idéia era alfabetizar o trabalhador rural e possibilitar o desenvolvimento e a conscientização política, social e religiosa. Ao mesmo tempo, promover ações comunitárias junto aos trabalhadores.

Sobre o seu legado, se destacam ainda projetos como a criação do Banco da Providência, que até hoje arrecada doações para os pobres, e ainda a criação do Instituto Obra do Frei Francisco, de 1984. Posterior-mente, o projeto passou a se chamar Instituto Dom Helder Câmara.

Os trabalhos do Instituto consistem em tornar acessível aos pesqui-sadores e ao público interessado, o conjunto dos escritos do padre. Os relatos, registrados em um acervo com milhares de textos, denunciam formas de violência. Tudo em benefício dos excluídos e bem ao estilo de Dom Helder.

Um fato revelador, segundo integrantes da Igreja, é que a maioria dos escritos teria sido composta nas madrugadas. Ao todo, o padre es-creveu 23 livros, dos quais 19 foram traduzidos para 16 idiomas.

No auge do golpe militar, em 1964, Dom Helder tomou posse na Arquidiocese de Olinda, 12 dias após os tanques terem ocupado as ruas. A volta ao Ceará ocorreu devido a pressões políticas contra o já ro-tulado “Bispo Vermelho”. Não tardou para o religioso perceber a poster-gação dos direitos humanos na ditadura e, assim, travar a luta nos anos seguintes contra a tortura. A atitude gerou a revolta entre os militares.

A pressão do governo pelo silêncio não intimidou Helder. Nem mesmo a partir do assassinato de seu secretário, padre Antônio Henri-que Pereira Neto. Um crime até hoje não elucidado.

Dom Helder contribuiu para a fundação do Conselho Episcopal Latino-Americano (Ceplam) na luta por reformas internas na Igreja Católica durante o Concílio Vaticano II (1964-1965). Paralelamente, o então arcebispo, já também conhecido como Padre dos Pobres, ini-ciou um programa social de grande visibilidade, a Operação Esperança. Projeto de auxílio aos � agelados das enchentes. O propósito era o surgi-mento de lideranças populares.

Foi por conta dessas obras que Dom Helder Câmara conquistou grande reconhecimento internacional. Viajou como um requisitado conferencista, a ponto de juntar mais de 20 mil pessoas na França, em 1970, para denunciar o regime militar no Brasil.

Quatro indicações ao prêmio Nobel

O religioso foi indicado quatro vezes ao Prêmio Nobel da Paz (entre 1970-1973). Campanhas sigilosas realizadas pelos militares a fi m de minar o pres-tígio do bispo no exterior impediram a conquista. Tanta popularidade pode ser ilustrada em comentários do então embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick. Certa vez, o diplomata elegeu Dom Helder como um pretenso presi-dente do Brasil, em uma hipotética der-rocada do Regime Militar.

Ainda sobre o boicote ao Prêmio Nobel, a teoria também é comentada no livro “Dom Helder Câmara – Entre o Poder e a Profecia”, dos escritores Nelson Pilleti e Walter Praxedes. A publicação re-vela uma trama do governo Médici para a não premiação de Dom Helder, que em todas as indicações era o favorito.

Quanto à Igreja, a história denuncia o incômodo que as ações do padre Hel-der, como era chamado intimamente, causava em algumas alas do clero. O si-lêncio imposto pelo Vaticano incluiu até a restrição de suas viagens ao exterior.

Ao ser retirado do cargo de Ar-cebispo de Olinda, em 1985, Dom Helder, de certa forma, afastou-se da vida pública, e passou a viver em um pequeno quarto nos fundos da Igreja das Fronteiras, em Recife.

Faleceu em 27 de agosto de 1999, sem declarar nenhuma frase que com-prometesse a Igreja Católica. “Quando ele mais podia fazer algo, ele foi silencia-do”, diz o sobrinho Cristiano Câmara.

Imprensa: relações con� ituosas,algumas homenagens

No terceiro capítulo do seu livro “Memó-rias Profi ssionais – O que é ser Jornalista” e através do seu blog, o jornalista Ricar-do Noblat descreve um episódio que envolve Dom Helder, do qual foi teste-munha nos anos de violenta repressão. O cenário era uma manifestação de estu-dantes em frente a Universidade Católica de Pernambuco, em 27 de junho de 1968. Noblat revela que por volta das 11 horas

Cristiano Câmara, pesquisador e memorialista cearense, sobrinho do ex-arcebispo de Olinda

pesquisador e memorialista pesquisador e memorialista

Os que agora estão prestando homenagens ao meu tio, o estariam combatendo se hoje ele

estivesse vivo. A começar pela própria Igreja

da noite, “o silêncio da rua cedeu lugar ao leve barulho provocado pelo arrastar de botas dos soldados no asfalto, à medida que uma mancha pequena e sem contor-nos ia se infi ltrando”. Era Dom Helder.

Após ultrapassar gentilmente o blo-co de soldados da Polícia Militar – “Com licença, boa noite... Com licença, boa noite”, dizia ele a cada soldado que toca-va o braço, o religioso se aproximou dos estudantes e subiu em uma cadeira para discursar. Usava na ocasião uma boina e uma capa de lã “que lhe deixava à mos-tra apenas os sapatos de couro preto”. E em meio às centenas de pessoas perple-xas, disse:

- Eu vim para fi car ao lado de vo-cês... Só sairei na companhia de vocês”. E assim varou a madrugada com os mani-festantes.

Mas as relações entre imprensa e Dom Helder nem sempre foram apenas de respeito e admiração. No boletim interno da CNBB, de 1970, consta que parte da imprensa brasileira e estran-geira desencadeou intensa campanha contra o religioso.

Em notícia publicada pelo jornal “O Estado de São Paulo”, em 30 de maio de 1970, o jornalista Gustavo Corção desqua-lifi cou Dom Helder, quando ele recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Louvain, na França. “O Sr. Câmara não completou ainda a rede de viagens que sonhou, e ainda não percor-reu todas as prostituídas universidades ex-católicas que lhe trarão uma bandeja, para ser cuspido, o título doutor honoris causa”, disse o jornalista.

O periódico Combat, da França, pu-blicou no mesmo ano um artigo de Jean Marc Kalfl eche, que dizia: “Dom Helder não consegue iludir com seu simplismo que só produz boas manchetes”.

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Cariri cearense:

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GEOGEOGEOGEOGEOGEOGEOGEOGEOGEOGEOGEOGEOGEOGEOGEOGEOGEOTURISMOTURISMOTURISMOTURISMOTURISMOTURISMOPor MARCEL [email protected]

ormada por nove municípios, a região do Cariri, no Sul do Ceará, hoje é pólo

prioritário para qualquer iniciativa governamental que enseje uma retomada

do processo de desenvolvimento territorial. Mais populoso centro urbano do inte-

rior cearense, com 550 mil habitantes, tem peso social, econômico, ambiental e cultural

relevantes para o Estado e regiões vizinhas. Fica em área geográ� ca estratégica da região Nordeste – a

uma média de 600 quilômetros das principais capitais. Em termos de arrecadação, o Cariri só perde

para as regiões Metropolitana de Fortaleza (RMF) e Norte.

Ali, a principal fonte de recolhimento de tributos ainda é o comércio. Mas, a região possui uma forte

indústria calçadista, uma tradicional e reconhecida ourivesaria, agronegócios e o turismo religioso.

Único nas Américas e no hemisfério Sul, um projeto na divisa do Ceará com os Estados do Piauí e do Pernambuco, é o carro-chefe de uma ambiciosa retomada do progresso da região do Cariri cearense. Certi� cado em 2006 e integrante de uma rede mundial coordenada pela Unesco, o Geopark Araripe quer incentivar o desenvolvimento territorial com base no geoturismo. Os investimentos iniciais são de US$ 6 milhões para sua estruturação em seis municípios. Mas é bom ir devagar com o andor. Tudo ainda está só no começo...

relevantes para o Estado e regiões vizinhas.

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GeoParkAraripe

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Este último, ao longo de cada ano, remotivado pelas mul-tidões de � éis a visitar a terra de um dos maiores líderes políticos e religiosos do Brasil, o Padre Cícero Romão Ba-tista, nascido no Crato e fundador de Juazeiro do Norte.

Além da religiosidade popular, o Cariri tem na sua cultura ricas personalidades e manifestações que o tor-nam singular e conferem projeção além-fronteiras. Seja pelo artesanato, a música das bandas cabaçais, a literatu-ra de cordel, o maneiro-pau, o coco-de-roda, os Caretas de Jardim, os Penitentes de Barbalha, as romarias de Jua-zeiro do Norte, a poesia de Patativa do Assaré ou as festas do Pau da Bandeira.

Mas, é em outro patrimônio, ainda não explorado de-vidamente, que reside uma das saídas para avanços na exploração do potencial de desenvolvimento desse con-junto de municípios reconhecido pelo triângulo denomi-nado Crajubar (Crato, Juazeiro e Barbalha). Ele está na abundância dos recursos naturais e paleontológicos da região. Encravado em pleno semi-árido, o Cariri cearense é um oásis nordestino. Potencial hídrico, terras férteis, vegetação exuberante e a particular beleza da Chapada do Araripe com suas formas de relevo, � ora e fauna.

Um bioma que inclusive acabou digno de reconhe-cimento do Governo Federal, ao instituir em 1946 a pri-meira � oresta nacional do país, a Floresta Nacional do Araripe (Flona). Só que a importância dessa área não � ca apenas em tais evidências, mas também abaixo delas, e a olho nu. O Cariri tem no seu chão, uma das maiores reservas fossilíferas do mundo Cretáceo, último período

da Era Mesozóica, compreendido entre 145,5 milhões e 65,5 milhões de anos atrás.

Foi nesse tempo que os continentes começaram a adqui-rir a atual conformação e os dinossauros dominaram o terre-no. Em seguida, a extinção em massa desses seres marca o � nal do período, quando desapareceram também muitas ou-tras espécies animais e vegetais. Restou, então, para a Paleon-tologia uma riqueza de lugar com seus exemplares fósseis de

O mundo no período Cretáceo

fauna e � ora. Tudo encontrado, hoje, até em plena superfície do solo dos municípios de Barbalha, Juazeiro do Norte, Crato, Nova Olinda, Missão Velha e Santana do Cariri.

Reconhecido esse patrimônio geológico e paleontológi-co, nasceu a inspiração de um projeto que pode vir a ser, na opinião do secretario das Cidades do Ceará, Joaquim Car-taxo, a transformação do Cariri no grande pólo de desenvol-vimento no interior cearense. Ao � nal de 2005, o Governo Estadual, ainda durante a gestão Lúcio Alcântara, postulou a criação do Geopark Araripe junto à Divisão de Ciências da Terra da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O resultado veio menos de um ano depois, em setembro de 2006, quando a Unesco re-conheceu o parque como primeiro das Américas.

O intento cearense, à época, contou com a participação da Secretaria Estadual da Ciência, Tecnologia e Educação Superior, e do Museu de Paleontologia de Santana do Ca-riri, instituição vinculada à Universidade Regional do Cariri (Urca), hoje gestora do Geopark.

Período Cretáceo. Está compreendido entre 145,5 milhões e 65,5 milhões de anos atrás, aproximadamente. Durante esse período, os dinossauros alcançaram seu ápice, mas ao � m do período acaba ocorrendo a extinção em massa desses grandes répteis e dos animais da Terra (cerca de 60% deles foi extinto).

Fauna e Flora. No Cariri, os fósseis se destacam em função de sua excelente preservação e particular importância paleontológica

REDE MUNDIAL. O reconhecimento não foi apenas um ato for-mal. A chancela do organismo se baseou em diversos critérios e integrou o Geopark Araripe à Rede Global de Geoparks da Unesco (World Geoparks Network), que criou o programa no ano 2000. A rede é composta atualmente por 57 geoparks em 18 países, entre eles União Européia e China.

“A nossa tarefa é articular os diversos sujeitos po-líticos e sociais tanto públicos quanto privados, para desenvolver a economia local a partir desse local, geran-do emprego e renda, dentro do foco turístico. Ele é um equipamento para o turismo, e um turismo de natureza, cientí� co, o geoturismo”, explica Cartaxo.

Geopark é uma área com expressão territorial e limi-tes bem de� nidos, que contêm um número signi� cativo de sítios de interesse geológico com particular importân-cia – os geotopes –, raridade ou relevância cênica/estéti-ca, com muito interesse histórico-cultural e riqueza em biodiversidade. Estes sítios que reportam a memória da Terra fazem parte de um conceito integrado de proteção, educação e desenvolvimento sustentável.

No Araripe, dentro dos mais de cinco mil quilôme-tros quadrados da área estabelecida para o geopark, está mais de um terço de todos os registros de pterossauros descritos no mundo, mais de 20 ordens diferentes de insetos e única notação da interação inseto-planta. Há similares destas mesmas espécies na África, indício de quando os continentes foram um só, na época do conti-nente primaz Gondwanna.

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Rastros da cultura. Pinturas pré-históricas, olarias e

ferramentas líticas

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GeotopesGeopark Araripe

G4. Geotope Granito/ Juazeiro do Norte (Colina do Horto)A Colina do Horto fi ca a 3 km da cidade de Juazeiro do Norte, onde abriga a estátua de 25m do Padre Cícero. Sua paisagem é inteiramente inserida na zona urbana de Juazeiro do Norte e, por este aspecto, está integralmente submetida às ocupações e edifi cações ali existentes. Pouco resta de aspectos naturais relevantes.

G5. Geotope Nova Olinda/ Nova Olinda (Mina Triunfo)A Mina de Pedra Cariri situa-se a 3 km da cidade de Nova Olinda, com fácil acesso pela rodovia CE-166 entre Nova Olinda e Santana do Cariri. É uma formação fossilífera, que inclui grupos de invertebrados, vertebrados e plantas, composta de calcários laminados de cor amarela a creme com estratifi cação plano paralelo horizontal.

G6. Geotope Arajara/ Barbalha (Parque do Riacho do Meio)Também Unidade de Conservação Ambiental Estadual, onde se destacam os aspectos paisagísticos da Bacia Sedimentar do Araripe que refl etem a riqueza da fl ora, fauna e do potencial hídrico da região.

G7. Geotope Devoniano/ Missão Velha (Canyon do rio Batateira)Unidade de Conservação Ambiental Estadual, o Canyon do Rio Salgado situa-se a 4 km da cidade de Missão Velha, próximo à ponte sobre o rio, na rodovia que conecta os municípios de Missão Velha e Aurora.

G8. Geotope Missão Velha/ Missão Velha (Floresta Fóssil)Floresta Fóssil, com altitude de 360m, situa-se a 6 km a sudeste do município de Missão Velha, ao lado esquerdo da rodovia CE-293, que liga Missão Velha a Milagres.

G9. Geotope Batateiras/ Crato (Rio Batateira)Nos pontos mais próximos à sua nascente, o Rio Batateira confi gura belas situações formadas por um conjunto de pequenas cascatas, onde é possível apreciar as formações rochosas do local inseridas em área de vegetação densa ainda pouco exploradas por atividades humanas.

G1. Geotope Exu/ Santana do Cariri (Pontal da Santa Cruz)Unidade de Conservação Ambiental Estadual, fi ca no topo da Chapada do Araripe, no município de Santana do Cariri, a uma altitude de 750m, de onde se tem uma vista panorâmica de uma parcela considerável da Bacia Sedimentar do Araripe.

Localização dos Geotopes

Ceará

Pernambuco

Piauí

Paraíba

NovaOlinda

Santana do CariríCrato

Juazeirodo Norte

MissãoVelha

Milagres

Abaiara

Barbalha

G3G5

G2

G1

G4

G7

G8

ESCALA

0km 10km 20km 30km 40km 50km

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G9

G6

G2. Geotope Santana/ Santana do Cariri (Parque dos Pterossauros)Unidade de Conservação Ambiental Estadual. Está instalado em área de 23 hectares de propriedade da Urca, na zona rural de Santana do Cariri, como um dos principais componentes do Geopark Araripe. Em sua primeira etapa, já concluída, a proposta pretende a proteção e preservação de uma área de escavação, visando à exposição dos diversos níveis sedimen-tares, os quais contêm relevantes camadas fossilíferas.

G3. Geotope Ipubi/ Santana do Cariri (Mina Chaves)A antiga Mina Chaves, hoje inativa, faz parte do complexo industrial de extração de gipsita da Chaves Mineração e Indústria, que explora diversas minas situadas no municípios de Santana do Cariri e Nova Olinda, fornecendo matéria-prima para a indústria de produção de cimento e produzindo gesso agrícola, gesso de fundição e revesti-mento, bem como aditivados especiais.

O Geopark Araripe foi incluído na estratégia de desenvolvimento regional e local do atu-al governo cearense. “A idéia é tentar criar

no interior do Ceará algumas regiões que possam efetivamente se estruturar e compartilhar com Fortaleza a atração de investimentos e pessoas”, coloca Cartaxo.

Batizado de Cidades do Ceará – Cariri Cen-tral, a parceria do Estado com o Banco Mundial, prevê aplicar de R$ 65 milhões fundamentalmente nas cidades de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha

entre 2009 e 2013. Algumas dessas obras terão impacto no geopark. Mas nele, especi� ca-

mente, estão conjeturados investimentos de R$ 6 milhões na construção da sede

– já iniciada, na Urca (Crato) – e obras de infra-estrutura dos geo-

topes, aquisição de bens e equi-pamentos, consultorias para

assistência técnica, capaci-tação e elaboração de es-tudos e planos. Dinheiro garantido, hoje aguarda-se apenas que o Senado conclua tramitação do

Projeto é a “ECONOMIA DO CONHECIMENTO”

processo para liberação dos recursos.A efetivação ideal de um geoparque se dá

através da articulação dos objetivos primários de conservação, educação e turismo de natureza. No primeiro, o geoparque procura preservar os geoto-pes ao assegurar medidas de proteção adequadas em colaboração com universidades, serviços geo-lógicos e outras instituições relevantes em acordo com as práticas locais e as obrigações legislativas.

Em relação à educação, cabe ao geopark or-ganizar atividades para o público e providenciar apoio logístico na comunicação do conhecimen-to geocientí� co e dos conceitos ambientais. Este apoio realiza-se através da proteção e identi� cação de geosítios, desenvolvimento de museus, centros de informação, percursos pedestres, visitas guia-das, visitas de estudo, materiais de divulgação, pai-néis, mapas, material educativo, seminários, entre outros. Um geopark apóia a investigação cientí� ca em cooperação com as universidades e institui-ções de investigação, estimulando o diálogo entre as Ciências da Terra e as populações locais.

Quanto ao terceiro objetivo primário, o do turismo de natureza, através dele o geopark esti-mula a atividade econômica e o desenvolvimento sustentável. Com efeito, existe o estímulo ao de-senvolvimento socioeconômico local através da promoção de uma imagem de excelência intrinse-camente relacionada com um reconhecido patri-mônio natural de importância internacional, que atrai um número crescente de turistas de todo o mundo. Este fato tende a encorajar a criação de empresas locais ligadas ao setor do Turismo de Natureza, com produtos de qualidade certi� cada.

“Estamos tratando de uma coisa extrema-mente nova, que está ligada fundamentalmente à economia do conhecimento. É o conhecimento que atrai o turista, que quer ir conhecer a forma-ção Santana, o pterossauro, visitar o cânion de Missão Velha. Isso é o atrativo. E você tem que preparar a economia local para recebê-lo de outra forma, criando a rede do que está em volta. Se você vai a um georestaurante, não vai encontrar lá um � lé a parmegiana, e sim a culinária local, um geocardápio. Assim se fortalece a economia local”, detalha o secretario.

Joaquim Cartaxo. "Preparar a economia local para receber o turista de outra forma, criando a rede do que está em volta"

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Resultados só a médio e longo prazo.MAS O POTENCIAL É GRANDE...

A estruturação de um equipamento com a envergadura de um geopark não é tarefa fácil. E os resultados também não aparecem no curto prazo. De acordo com Cartaxo,

ainda não há uma avaliação preliminar sobre o que ele pode signi� car em termos de impactos econômicos sobre a região. Ele adianta que estudos já estão sendo contratados.

Para articular todas as diversas atividades, a Secretaria das Cidades coordena a montagem de um programa mul-tisetorial que envolve as secretarias de Turismo, Cultura, Infra-Estrutura, o Conselho Estadual de Políticas e Gestão Meio Ambiente e a Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) e a própria Urca. O trabalho não pode dar errado, pois, a cada quatro anos, a Unesco faz uma ava-liação para a revalidação do selo.

Por ora, alguns programas cientí� cos e sociais são de-senvolvidos pelo Geopark Araripe com o objetivo de promo-ver e divulgar os ideais da geoconservação, da geoeducação e do geoturismo. O Geopark nas Escolas procura integrar os estudantes dos colégios locais públicas ou privadas à reali-dade do local.

Já para formar condutores para as visitas guiadas aos ge-otopes foi desenvolvido o Curso de Capacitação de Conduto-res com Enfoque na Geologia, Paleontologia e Biodiversidade da Chapada do Araripe, fundamentado na construção de um conhecimento regional interdisciplinar, que contemple o do-mínio de todos os temas e assuntos correlatos ao Geopark Araripe, e insere diretamente a comunidade acadêmica no projeto. A outra ação são as exposições itinerantes.

Ao Geopark Araripe foi delegada pela Unesco a tarefa de ajudar a montar a rede americana de geoparks. “Vamos fazer no Cariri, em 2010 uma conferência internacional com o objetivo de sensibilizar os países da América Latina no sentido de que eles criem geoparks”, antecipa. No Bra-sil, a Companhia Nacional de Produção Mineral (CPRM) identi� ca 33 possibilidades de geoparks.

Por outro lado, o potencial turístico de um geopark, se bem planejado e estruturado, é bastante expressivo. Sem

uma estrutura integrada e articulada que o inclua, o Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, vinculado à Urca, recebe uma média de 25 mil visitantes por ano. Um exem-plo desse potencial está no Geopark Naturtejo, em Portugal. Nos últimos três anos, o número de visitantes do território duplicou, atingindo 200 mil pessoas por ano. O número de leitos nos hotéis e pousadas cresceu 20% com perspectivas de chegar a 40% até o � m deste ano.

“A expectativa para o prazo de três anos será do aumen-to da oferta hoteleira, quali� cação e serviços restantes em mais 30%, e a visitação em mais 50%. Espera-se um aumen-to de 10% no número de empregos diretos e de 3% no PIB, considerando também os efeitos de arrastamento subjacen-te ao investimento previsto (efeito multiplicador)”, explica o presidente do Geopark Naturtejo, Armindo Jacinto.

Jacinto destaca ainda o que é preciso para que a experi-ência se consolide. “O sucesso de um processo deste gênero está na capacidade de envolvimento de toda a sociedade. Só assim se conseguirá o que se pretende, fazer desenvolvi-mento econômico, criação de emprego e preservação do pa-trimônio para as gerações vindouras. É uma tarefa hercúlea, mas fundamental para estes territórios”, avalia. O envolvi-mento político é também fundamental para criar estruturas estáveis de desenvolvimento do geopark, que com o tempo se tornem imprescindíveis no seu funcionamento, indepen-dentemente dos ciclos da própria política.

Museu de Paleontologia de Santana do Cariri recebe uma média de 25 mil visitantes por ano.

O Geopark Naturtejo da Meseta Meridional é o primeiro com o selo da Unesco em Portugal. Está integrado às redes Européia e Global de Geoparks. O presidente

do Geopark, Armindo Jacinto, coloca o equipamento como uma abordagem inteiramente inovadora no panorama turís-tico português. Com 4.600 km2 de área, abrange o espaço territorial dos municípios de Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Nisa, Oleiros, Proença-a-Nova e Vila Velha de Ródão.

O geopark oferece no seu conjunto um vasto e rico patrimônio natural, histórico e cultural. São 16 geossítios que contextualizam 600 milhões de anos de dinâmica do

NATURTEJO: experiência consolidada em Portugal

planeta, no Parque Natural do Tejo Internacional e Serra de S. Mamede, nos sítios Rede Natura da Serra da Gardunha e de Nisa, nas Important Bird Areas, destinos singulares de natureza, nas 4 Aldeias de Xisto, 2 Aldeias Históricas e 70 monumentos classi� cados.

As rotas dos 16 geossítios, desenvolvidas pela Naturtejo, empresa intermunicipal de promoção turística que dirige o Geopark Naturtejo, convidam os turistas a passear de barco pelo rio Tejo e seus a� uentes, entrar pelas Portas de Ródão e do Vale Mourão, visitar o Parque Natural do Tejo Internacio-nal “surpreendendo-se com os abutres, as cegonhas negras e as águias imperiais, os coloridos abelharucos, os rouxinóis a cantar, os veados na brama e a vegetação a � orescer”, como diz o material de divulgação do geopark.

No Naturtejo, os visitantes tem a oportunidade de via-jar no tempo, através dos icnofósseis de Penha Garcia, por Monsanto, a aldeia mais portuguesa, pela outrora cidade romana e visigótica da Egitânea, podendo ain-da descobrir os castelos e comendas dos Templários e Hospitalários, deambulan-do pelos meandros dos rios Zêzere, Ponsul, Erges, Se-ver e Ocreza, das ribeiras de Oleiros e Aravil, garimpando ouro entre conhais de explo-ração mineira romana.

Segundo Armindo Ja-cinto, o Naturtejo tem ani-mação garantida 365 dias por ano, entre os programas de SPAS e Termas, festas e feiras medievais, de saberes e sabores, com passeios de burro, de bicicleta, de pára-quedas, de avião e a pé, por percursos ancestrais, com as marcas das invasões france-sas e outras.

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rtejo

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Dona Claudionor Velloso passa dos 101 anos com lucidez e disposição para viver. Isto já é su� ciente para render homenagens e histórias. Mas, o sabor é especial por Dona Canô ser quem é - � lha de uma cidade de atividade cultural e matriarca de uma família de artistas. O livro de Guerreiro e Assis reúne lembranças dos anos de dedicação à cidade, aos amigos e � lhos, dentre eles a escritora Mabel Veloso e os cantores Caetano e Bethânia. “Não é uma biogra� a, mas sim um registro da memória de Dona Canô, sobre os assuntos que tenham feito parte das suas rotinas e vivências ao longo de um século”, explica o autor.

Para os meios científicos e acadêmicos do mundo, 2009 é um ano especial. Sobretudo nas ciências naturais, celebra-se os 200 anos de Charles Robert Darwin, o gênio britânico do naturalismo, nascido em 12 de fevereiro de 1809 e falecido em 1882. Darwin aprofundou seus conhecimentos sobre as espécies quando viajou a bordo do navio HMS, atuando como naturalista, entre

1831 e 1836. O ponto alto da programação será em outubro, no Encontro Charles Darwin, na Bahia, de 7 a 9. Também serão inaugurados marcos turísticos da passagem do Beagle e de Darwin por Salvador, como o monumento no local do antigo Hotel do Universo, na Praça Castro Alves, onde ele ficou hospedado. Placas

comemorativas no Cemitério dos Ingleses serão afixadas onde foram enterrados dois marinheiros do Beagle (Charles Musters e Boy Jones). A série de eventos que tem à frente o professor Chabel Ninõ El-Hani, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), será concluída em novembro com o simpósio "O olhar estrangeiro sobre o Brasil", no dia 19 daquele mês. Mais informações sobre o assunto no site www.darwinnabahia.ba.gov.br

ANAVANTUR, DILMA!A estratégia de exposição da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousse� , aos eleitores terá mais um capítulo agitado. Convidada pelo deputado Wolney Queirós (PDT-PE), ela participará, em 30 de maio, da abertura da Festa de São João, de Caruaru. O evento reunirá cerca de 1,5 milhão de pessoas, ao longo de 40 dias. Para fugir da concorrência de outras festas, Dilma foi convidada para acompanhar a abertura, no Parque de Eventos da cidade, quando ocorrerão shows dos cantores Fagner e Elba Ramalho. A expectativa é de que esses shows reúnam 100 mil pessoas. Lula também foi convidado, mas ainda não confi rmou presença. Queirós nega, porém, que a participação de Dilma na festa tenha como objetivo central um viés eleitoral. A partir do momento em que sua candidatura à sucessão de Lula se tornou praticamente um consenso dentro do partido, Dilma tem ampliado a sua exposição pública. (da Agência Estado)

Ba Freyre é um típico cidadão nordestino. Relaxado, simples e de uma calma cabocla. Nascido em Cajazeiras, na Paraíba, bem cedo migrou para o Ceará, onde adulto recebeu a infl uência musical do pai. De Fortaleza, se albergou no Crato para estabelecer profícua parceria com Rosemberg Cariry. Os dois foram bombardeados pela música de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e sonoridade dos cantadores de viola e emboladores. Como diria Belchior, o que pesa no norte cai no sul grande cidade. São Paulo, de cimento e lágrima, embalou o sonho de virar artista nacional. E nessas voltas que a vida dá, não é que Ba Freyre foi esbarrar em Israel? Na terra dos confl itos, virou fi gura carimbada, numa espécie de babel musical que é a capital Tel Aviv. Foi, de vez em quando, espalhar sua musicalidade em palcos europeus. Após compor divinamente o CD Às claras, está entre nós, divulgando o trabalho e fazendo shows pelo Brasil.

O professor Jorge Portugal dá mais uma demonstração de sua versatilidade. Ele idealizou e irá

apresentar o programa Tô sabendo, que será veiculado nacionalmente pela TV Brasil, a partir do próximo mês. O anúncio ofi cial foi feito pelo Ministro da Cultura, Juca Ferreira, durante o Terceiro Encontro de Dirigentes de Cultura da Bahia, realizado em abril último, em Salvador. O programa se propõe a ser uma revista eletrônica de educação e cultura. O público-alvo é o estudante da rede pública que busca uma "vaguinha" na escola de nível superior. O Tô Sabendo contará ainda com uma competição de conhecimentos (uma espécie de game cultural) a ser disputada por estudantes da rede pública de todo o país, com premiação para alunos, professores e diretor da escola campeã. O projeto também conta com a participação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e está orçado em R$ 7,9 milhões, dos quais, R$ 6,32 milhões caberão ao MinC e o restante ao governo da Bahia.

200 anos de Darwin na Bahia

su� ciente para render homenagens e histórias. Mas,

O livro de Guerreiro e Assis reúne

PARA A ESTANTE

que será veiculado nacionalmente pela TV Brasil, a partir

Tô sabendo, Jorge Portugal

De Cajazeiras a Tel Aviv

Os fi lmes de curta metragem fi caram como o destaque do XIII CINE-PE/Festival do Audiovisual do Recife. Essas exibições sempre atraíam maior público e aplausos. Logo na primeira noite, a abertura da Mostra de Cur-tas, com o fi lme de Fernan-do Spencer, “Nossos Ursos Camaradas”. Aos 82 anos, o

diretor continua a empolgar. Seu fi lme procura informar, de forma bem humorada, sobre a presença dos “ursos” no carnaval pernambucano. Outros “maurícios” muito aplau-didos foram “Eiff el”, de Luiz Joaquim, “Superbarroco” de Renata Pinheiro, “O Muro”, de Tião e “Um Artilheiro de meu coração”. Este último, realizado por três jovens de Recife Diego Trajano, Lucas Fitipaldi e Mellyna Reis, resgata a his-tória do jogador de futebol Ademir Menezes, artilheiro da seleção brasileira na Copa de 1950. Entre os longas, apenas “Alô, Alô, Teresinha”, de Nélson Hoineff , chamou maior aten-ção . O cineasta cearense Francis Vale conferiu o festival e lançou seu livro “Cinema Cearense - Algumas Histórias” (Editora Assaré), no Café do Cinema, da Fundação Joaquim Nabuco. Na foto, Francis aparece ao lado do cineasta per-nambucano Fernando Spencer.

FRANCIS E OS CURTAS DO RECIFE

LEMBRANÇAS DO SABER VIVER

MAR E VENTO, DE LUCIANO MAIA

ASSUCAR CHEGA AOS 70 ANOS

Prova do gênio multifacetado do escritor Gilberto Freyre é um rebento prodigioso que chega aos 70 anos, com doçura incomum. O mundo dos livros comemora o lançamento de As-sucar — um abordagem em torno da etnogra� a, da história e da sociedade doce do Nordeste ca-

navieiro. Nele, Gilberto Freyre assinalou que o açúcar ”adoçou tantos aspectos da vida brasileira que não se pode separar dele a civilização nacional”. O antropólogo e museólogo Raul Lody, comemora o jubileu a� rmando que Assucar é livro sempre atual, e tem especialmente o olhar sensível do autor, motivando e dirigindo o leitor a descobrir em texto farto. O livro em sua primeira edição está à venda na rede mun-dial de computadores.

“Neste livro, o consagrado poeta Luciano Maia retoma a mística do Mar e do Vento, me-táforas do desconhecido e dos impulsos, justa-mente sob aquela perspectiva da incerteza dos destinos e das histórias, quer individuais, quer

coletivas, deixando à mostra suas lembranças do passado, como se fosse um continente, um território de onde partiram suas naus, abrindo as velas ao sopro de um terral (célebre expressão do Pe. Antônio Tomás) que as leva para as distâncias, mas sem apagar delas (das naus) os resquícios de terra nativa e de plantas rústicas, de modas violadas e de manhãs imaculadas, de sentidos e espaços unidos numa indissolúvel e mesma coisa, como se revela no soneto Relembro da Pátria IV, em que essas idéias vêm explicitamente maduras”.

Do prefácio de Napoleão Nunes Maia Filho, escritor e ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ)

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antônio Gonçalves da Silva, o batizado pelo povo como Patativa do Assaré, dava o primeiro ar de sua graça

em 5 de março de 1909, na Serra de Santana, distrito rural de Assaré, cida-de do Sul do Ceará. Aos quatro anos de idade, � cou cego de um olho. Decor-rência de um “mal que lhe acometeu a vista”, dizem.

O revés não o tirou da lida árdua na roça ainda menino. Com oito anos, perdeu o pai. Seguiu com a mãe e os irmãos mais novos a cultivar seu chão, “resmungar” seus versos e inspirar a alma sertaneja. Escola formal só por um semestre, o su� ciente para juntar letras, formar palavras e fazer poesia.

Da Assaré para a beleza do mundo, há 100 anos nascia o menino-agricultor que se tornou um mestre da lírica brasileira. Daquele tipo de versejar abordado do preconceito à exaltação extrema, mas sempre digno da consagração porteiras afora. Um fazer poético ainda alvo de reducionismos cá entre nós, quando referenciado apenas como “popular”. A vida, a extensa obra e a sua genialidade numa homenagem da NORDESTE VINTEUM ao maior poeta que essas terras já conheceram.

muito alÉm do repente100 anos

Casou-se com a dona Belinha (Belarmina Paes Cidrão) e entregou também à roça sete � lhos. A essa época, já fervilhava o cantar do sertão em sua memória. Junto à inclemên-cia da seca, a esperança da chuvas e a súplica por um mundo mais justo. É também o início de seu passeio pela literatura, das poesias de Olavo Bilac e Castro Alves aos romances de Eça de Queiroz, Machado de Assis e José de Alencar. Sem esquecer o preferi-do: Luís Vaz de Camões.

As freqüentes viagens ao Pará, levando a cantoria do sertão cearen-se e trazendo o apelido de patativa – referência aos poetas populares em suas idas e vindas, tal qual a revoada

“Eu sou de uma terra que o povo padeceMas não esmorece e procura vencerDa terra querida, que a linda caboclaDe riso na boca zomba no sofrêNão nego meu sangue, não nego meu nomeOlho para a fome , pergunto: que há?Eu sou brasileiro, � lho do Nordeste,Sou cabra da Peste, sou do Ceará.”

Por Carolyne Barros - [email protected] - Fotos: Tiago Santana

cultura

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mais de 100 horas de gravação da vida e obra do amigo para produzir o documentário “Patativa do Assaré – Ave Poesia” (2007).

A genialidade de Patativa, mesmo destoando do rigor acadêmico, deu origem a enredos rebuscados da mais pura � loso� a. Com o saber de homem do campo, ele relatou a natureza, a crença e a economia em um discurso atemporal e sem limites geográ� cos.

“A poesia de Patativa traz as marcas da grande enun-ciação dos problemas que a� igem os homens de todos os lugares, em todos os tempos”, a� rma o professor Gilmar de

de pássaros da espécie – consagraram o menino violeiro.

Mas, ele não foi uma patativa qual-quer. Há quem diga que o reconheci-mento veio tarde. O violeiro-agricultor não era mestre apenas em criar. Recitava sua poesia com maestria, ao pedido de cada povo. Guardava na memória a letra e a métrica de todos os versos, como um catálogo atualizado e sempre e� ciente.

Já passava dos 53 anos quando viu a primeira leva do plantio de suas palavras brotar em livro. “Inspiração Nordestina” revela a autobiogra� a do “poeta de mãos calosas”. Daí para ganhar o mundo, Pata-tiva não silenciou. Continuava a formar versos, sem se importar muito com a idéia de sucesso. A poesia vinha da terra, dos problemas e alegrias ali vividos. E era por terra que ecoava.

“Cantos de Patativa”, “Patativa do Assaré: Novos poemas comentados”, “Cante Lá que Eu Canto Cá”, “Ispinho e Fulô”. E entre tantas outras publicações, o semeador de palavras se fez notável além das fronteiras do sertão cearense. É fato que nasceu poeta, mas se fez um gênio pela construção de sua obra. No trajeto, além dos livros, versos musicados e imagens poéticas em fotogra� as e tam-bém no vídeo.

Apesar da beleza e grandeza desses trabalhos, nosso Patativa, patrimônio cul-tural e afetivo do Brasil, foi e se perpetua como um artista genuinamente oral. Por vezes, retratando as problemáticas da vida sertaneja, Patativa fez política. Em seus poemas, as raízes da temática so-cial, as injustiças e desigualdades.

Para o pesquisador Luiz Tadeu Fei-tosa, doutor em Sociologia e autor dos livros “Patativa do Assaré: A trajetória de um Canto” (2003) e “Digo e Não Peço Se-gredo” (2001), a crítica mordaz, para além das inclinações partidárias ou ideológicas, deu o tom da poesia de Patativa. “Ele � n-gia ser limitado para, na hora certa, atacar. Seus poemas são como um chicote ideo-lógico que ele usava quando achava que era necessário fazer”, explica.

De seus versos vigorosos, compro-metidos com as causas do povo, o hino nordestino “Triste Partida”, entoado em todo o país pelo “rei do baião”, Luiz Gonzaga (1964). Raimundo Fagner, com Sina (1973) e Vaca Estrela e Boi Fubá (1980). Rosemberg Cariri, cineasta cea-rense e afeto antigo do poeta, reuniu as

O canto do poeta segue em ebulição. De Sorbon-ne, na França, onde ainda nos anos 1970, o professor Raymond Cantel estudou os versos de Patativa e apre-sentou trechos de sua obra, até estudos mais recentes, com Martine Kunz, que esmiuça os cordéis de nosso “pássaro”, a poesia de Patativa desperta a atenção de pesquisadores em todo o mundo.

Por aqui, já pesquisaram Ria Lemaire, Sylvie Debs, Ismael Pordeus Jr. e François Laplantine. Todos encantados pelas criações. “Patativa tem esse dom de encantar, não pela frivolidade, não por modismos, mas por cantar as verdades essenciais, aquilo que temos de mais profundo”, pontua Gilmar de Carvalho.

E, de fato e de direito, Patativa encantou. Foi homenageado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), recebeu cinco títulos Doutor Honoris Causa - pela Universidade Regional do Cariri (CE), Univer-sidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Estadual do Ceará (Uece), Universidade Tiradentes (SE) e Universidade Federal Rural do Semi-Árido (RN) —, vi-rou patrimônio cultural do Brasil em 1995, entre tantos outros títulos, comendas e homenagens. É leitura obri-gatória para o vestibular da UFC e objeto de estudo de quem não se cansa de redescobrir sua poesia.

O fotógrafo Tiago Santana conviveu com o poeta em Assaré e por vários momentos tornou-se foco de suas lentes. Em parceria com o professor Gilmar de Car-valho, responsável pelos textos, Tiago prepara o livro “ABC do Patativa”, que deve ser lançado em julho e se desdobrará em exposição de fotografia no Centro Dra-gão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza.

Carvalho, com autoridade de quem organizou seus versos e esquadrinhou sua vida em sete livros: “Patativa do Assaré” (2000), “Patativa Poeta Pássaro do Assaré” (2000), “Antologia Poética” (2001), “Patativa do Assaré Pássaro Liberto” (2002), “Cordel Canta Patativa” (2002), “Córdeis e Outros Poemas” (2006) e “Patativa do Assaré – Poeta Cidadão” (2008).

Sua obra, regionalista e universal, se confunde com o cenário do sertão, mas é atual e vanguardista. “Os ver-sos trazem marcas de nossas ancestralidades ao mesmo tempo em que têm dicção contemporânea”, acrescenta Tadeu Feitosa.

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Artigo

O caminho que liga os municípios de Assaré a Anto-nina do Norte, são 17 quilômetros de estrada asfaltada, na chamada “Rodovia Patativa do Assaré”. Para o embar-que e desembarque dos ônibus, o “Terminal Rodoviário Assaré do Patativa” anuncia as muitas marcas do poeta que circulam pela cidade.

Nas placas de rua, os versos estampados. Na praça da Igreja Matriz, a réplica da silhueta do poeta fica em cima de um pedestal, no mesmo quarteirão da casa que abrigou sua família, a partir dos anos 1970. À frente da estátua, o Memorial Patativa do Assaré, um casarão antigo, de três andares.

É lá que a neta Isabel guarda os objetos pessoais do avô e parte de sua obra, entre discos, livros e cordéis publicados. O auditó-rio, com capacidade para 70 pessoas, leva o nome de Dona Belinha, esposa de Patativa,

Esse Patativa abençoado por versos poéticos, com astúcia sertaneja e pensamentos ligeiros, ainda vive na lembrança da neta Isabel Cristina, depois de sete anos de sua morte. Em 08 de julho de 2002, o poeta se despediu de Assaré, mas deixou viva sua história na cidade. Aos 93 anos, Patativa, prejudi-cado pelas doenças da velhice, levou seu canto para longe da terra.A falência múltipla dos órgãos nos apartou de sua voz.

“Mas, é como se ele estivesse entre nós. Sua obra é viva!”. A voz de Isabel ecoa o canto da esperan-ça. Responsável por administrar o Memorial Patativa do Assaré, Isabel sabe da imortalidade dos versos de Patativa. “Quem vem de fora visita o memorial e se apaixona por sua obra”, explica. É também a neta, de 32 anos, herdeira de dona Lúcia, fi lha mais nova do poeta, quem administra os direitos auto-rais das publicações de Patativa. Há uma leva de poemas inéditos, que a família um dia vai publicar.

que faleceu em 1994. Nos andares superiores, “uma sala de exposição para homenagem a outros artistas” e a bi-blioteca de cordéis.

Na Serra de Santana, distrito rural que ouviu os pri-meiros versos, a casa em que o poeta nasceu foi reforma-da para as festividades do centenário, fruto da parceria entre a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará e a Prefeitura de Assaré. “A casa continua simples, de barro

e chão batido, mas está toda arrumadinha”, comenta a neta Isabel, que esteve presente na inauguração do espaço, junto com os tios e os primos.

Para estrear os novos espaços, Isabel quer organizar uma exposição, já para maio deste ano, com todo o material publicado na ocasião do centenário do avô. A exposição deve acon-tecer no próprio Memorial, mas remetendo também a casa onde nasceu Patativa.

Patativa não era “analfa”

Barros AlvesEscritor e funcionário público

ntônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, é, indubitavelmente, � gura pree-minente na história do povo nordestino, ponti� cando como um gênio do verso improvisado entre tantos que se alteiam

através do tempo, nos sertões adustos do Nordeste, can-tando as mágoas, os sonhares e alegrias de sua gente. En-tre estes rapsodos do povo, Patativa foi poeta singular, improvisador de alto dom criativo que construiu versos matutos em rima aprumada e ritmo escorreito. Mas, sou-be também escrever poemas do mais � no lavor métrico e rítmico, sonetos verdadeiramente petrarquianos ou ale-xandrinos de fazerem inveja. E aqui reside a outra face do poeta que se vivo fosse no último dia 5 de março comple-taria cem anos de existência. A face oculta de Patativa, por assim dizer.

O poeta do Assaré, autor de jóias do cancioneiro popular como “Triste Partida” não era aquela � gura anal-fabeta estereotipada por alguns intelectuais de esquerda que queriam por � na força transformá-lo em um Maiako-vski sertanejo. A prova concreta disto é que um criador literário que burila versos perfeitos à moda clássica, ja-mais seria analfabeto. Patativa, homem nascido e criado na roça, mantinha o seu código lingüístico e disto fazia uso para agradar à platéia, aos a� ccionados da chama-da poesia matuta. Na verdade, uma “parapoesia”, porque algo caricaturesco e não original. Quantos não deram de mão desse artifício para fazer este tipo de versos agradá-veis aos ouvidos, aos turistas ávidos de nordestinidade, além de deixar boquiabertos os esquerdistas juramenta-dos. Exemplo: Carneiro Portela, advogado, jornalista, ra-dialista, apresentador de televisão e autor de vários livros de poemas no estilo moderno, não é nem de longe um analfabeto, mas sabe como poucos tecer os � os de uma boa poesia matuta. Tem talento poético e a convivência com poetas populares e cantadores incutiu-lhe o código lingüístico deles.

F. S. Nascimento, crítico literário da melhor cepa, � lho do mesmo Cariri de Patativa, certa feita ao ser por mim provocado, escreveu-me observando que Patativa

do Assaré não era, de fato, o analfabeto que se queria impingir ao povo através da orquestração midiática feita por políticos interesseiros. Ele estudara Teoria do Verso com J. de Figueiredo Filho, respeitado intelectual cari-riense. Daí, não ser surpresa a qualidade da poesia que escreveu nos moldes clássicos. De igual modo, também à vista de provocação minha, escreveu-me há alguns anos sobre o mesmo tema o professor Sânzio de Aze-vedo, escritor, poeta e doutor em Literatura. Segundo aquela autoridade em História da Literatura Cearense, Patativa quando jovem teria recebido aulas de metro e rima do Poeta Júlio Maciel, destacado magistrado cea-rense que esteve à frente de comarcas caririenses, entre as quais Juazeiro do Norte e Lavras das Mangabeiras. De sorte que Patativa do Assaré, era sim, homem rústico do sertão, dotado daquela ingenuidade que não signi� ca estultícia, um crédulo na boa vontade dos homens do poder. Mas, não analfabeto. A poesia matuta que fazia era uma invenção bem arquitetada na forma e no con-teúdo. Para os radicais estudiosos do assunto, uma farsa bem urdida por um matuto que mesmo dominando a norma culta da língua, sabia escrever poesia com um pa-lavreado próprio da gente ignara, cuja prosódia encanta os citadinos letrados.

E aqui um dado que merece ser explorado pelos biógrafos do poeta. Patativa foi explorado – com toda a carga de maldade e ideologia marxista que este vocábulo possa ter – por políticos da esquerda e da direita. A es-querda o apresentava como o denunciador das misérias e mazelas do sistema capitalista mantenedor das imensas distorções econômicas e sociais do povo nordestino. E ainda hoje existe intelectuais de esquerda ganhando uns bons trocados em cima da obra e da � gura emblemática do velho poeta. A direita, pragmática, o levava a reboque para os palanques e o paparicava com mimos que, na ver-dade, o deixavam por demais grato na sua simplicidade de sertanejo sem vaidades pessoais e sem maiores ambi-ções. Neste aspecto, abstraindo qualquer juízo de valor, Patativa foi um inocente útil para ambos os lados ávidos de poder. O poeta morreu pobre.

a

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A Braskem desenvolveu uma tecnologia para fabricar plástico a partir do álcool. A empresa anunciou que usará nos próximos meses o etanol de cana-de-açúcar para fabricar polietileno de alta densidade linear, usado na fabricação de embalagens e outros produtos. Segundo a empresa, a resina é a primeira no mundo a conter 100% de matéria-prima renovável, atestada pelo laboratório americano Beta Analytic. (Fonte: www.inovacaotecnologica.com.br)

A China terminou a construção do seu acelerador de partículas, o SSRF (Shangai Synchrotron Radiation Facility), ou acelerador de partículas de Xangai, que já nasce como a maior plataforma de pesquisas na China na área de física, biologia e materiais. O acelerador do SSRF mede 432 metros de circunferência, opera com uma energia de 3,5 gigaeletron-volts (GeV). Sua construção levou cinco anos e custou US$176 milhões.

O SSRF possui sete feixes e estações experimentais, permitindo que múltiplos experimentos sejam conduzidos em diversas áreas, como ciências biológicas e médicas, novos materiais, física e bioquímica. Os raios X superfortes produzidos pelo acelerador permitirão a análise detalhada em altíssima resolução de diversos tipos de materiais, incluindo proteínas e compostos destinados ao desenvolvimento de novos medicamentos. (Fonte: www.inovacaotecnologica.com.br)

Uma mudança no processo de produção do açúcar cristal vai melhorar a qualidade do produto para o consumidor e poderá também abrir as portas do mercado mundial. Uma usina já produz o açúcar cristal sem usar o dióxido de enxofre, também chamado de sul� to, que serve para deixar o açúcar branco. No lugar do enxofre, é usado o ozônio, obtido na própria usina em uma máquina. (Fonte: jornalnacional.globo.com)

Cinco pacotes tecnológicos, fruto de pesquisas do Dnocs, prontos para a aplicação pela sociedade, extraídos do banco de projetos da Coordenação de Pesca e Aqüicultura (CPA), foram apresentados em maio em Fortaleza, no seminário de atração de parceiros institucionais para � nanciar as atividades. Depois da apresentação, os projetos serão encaminhados a instituições de fomento para a captação de

recursos. Foram mostrados os projetos de microalgas de açudes, do super macho da tilápia e da sardinha de água doce, que estão prontos para ser repassados ao setor produtivo, assim como o do camarão canela. Jeanette Koch, professora do Instituto Centec do Ceará, discorreu sobre a necessidade de criação de um Centro de Referência de Água a ser instalado no Castanhão. “Não temos no Nordeste nenhum centro de pesquisa integrado que tenha uma complexidade total em termos de análise de água”, disse ela. (Fonte: Dnocs)

As ONU elegeu 2009 o Ano Internacional da Astronomia (IYA 2009), e designou a Unesco a agência líder nas comemorações. A União Astronômica Internacional (IAU) atuará na implementação das atividades da celebração

Um material especial composto por nanotubos � exíveis de carbono, poderá ser usado como músculo sintético. O músculo arti� cial, quando aplicado eletricidade, expande em mais de 200%. O músculo arti� cial conserva cerca de 70% da energia aplicada. Com os movimentos de contração muscular, será possível gerar energia elétrica através do rearranjo destes nanotubos, que por � m, poderá ser utilizado para alimentar dispositivos externos ou até mesmo em outros módulos musculares para sustentar locomoção de robôs ou sistemas avançados de próteses. (Fonte: www.inovacaotecnologica.com.br)

Você sabia que sua Carteira de Identidade vai mudar? Ao longo de 2009, os órgãos emissores do documento passarão a disponibilizar o RIC (Registro Único de Identidade Civil). Muito mais seguro e tecnológico, o RIC traz um chip, igual ao dos cartões de banco, que guarda várias informações. Não só o seu biotipo (digitais, altura, cor dos olhos, etc.) mas também número de outros documentos (CPF, título de eleitor, carteira de habilitação e de trabalho) estarão reunidos em um mesmo lugar. (Fonte: www.olhardigital.com.br)

Eletrodos instalados em uma espécie de capacete � exível detectam os sinais elétricos do cérebro e os transformam em ações físicas, como mover o cursor na tela do computador. Entre os alvos dessas novas tecnologias estão pessoas que sofrem de esclerose amiotró� ca lateral, vítimas de derrames ou de danos na medula espinhal. (Fonte: www.inovacaotecnologica.com.br)

Plástico de cana-de-açúcar produzido no Brasil

China � naliza acelerador de partículas

Brasileiros conseguem fabricar açúcar sem enxofre

Dnocs apresenta pacotes tecnológicos para captação de recursos na SEAP

2009: Ano Internacional da Astronomia

Músculo arti� cial de aerogel e nanotubos: superforte e super-rápido

Sua Carteira de Identidade vai mudar!

Interface cérebro-Twitter permite twitar usando o pensamento

“A única saída para atingir as metas ambientais é o início de uma terceira revolução industrial, que garanta a redução do consumo energético”. As palavras do secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente da Alemanha, Matthias Machnig, ditas durante o Congresso Ecogerma 2009, re� etiram a urgência atribuída por cientistas, gestores públicos e empresários à busca de tecnologias e soluções sustentáveis para a redução dos efeitos das mudanças climáticas no mundo. (Fonte: www.inovacaotecnologica.com.br)

Economia ecológica exige Terceira Revolução Industrial

mundial que comemora os 4 séculos desde as primeiras observações telescópicas do céu feitas por Galileu Galilei. Esta será uma celebração global da Astronomia e suas contribuições para o conhecimento humano. As atividades vem dando forte ênfase

à educação, ao envolvimento do público e ao engajamento dos jovens na ciência, através de atividades locais, nacionais e globais. Destacará os méritos da ciência e seus métodos. (Fontes: www.astronomia2009.org.br/ e Unesco Brasil).

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CIÊNCIA E DESEQUILÍBRIO REGIONAL SE EXPLICAM

D e dez anos para cá, a produção científica brasileira deu um salto significativo. Mesmo questionados por pesquisadores como parâmetros de avaliação do pa-norama científico nacional, face ainda a imprecisão e desatualização dos da-dos, alguns levantamentos se mostram expressivos. Segundo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o Brasil ocupa o 15º lugar no ranking do número de publicações em veículos científicos internacio-nais. A marca é de 2,2% de todos os artigos científicos publicados no mundo.

Os 40 primeiros países da lista concentram 98% da produção científica global. Atual-mente, estamos entre os 25 primeiros.

Com cerca de 80 mil doutores, sendo entre 12 mil e 14 mil formados a cada ano, po-de-se considerar que a ciência brasileira cresce a uma taxa anual média de 20%. Perde apenas para China e Coréia. A preço de hoje, o Brasil chega a 1,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em financiamento público à ciência e tecnologia. Um patamar aproximado ao de diversos países desenvolvidos.

torado, recém-doutor e PNPD (Programa Nacional de Pós-Doutorado) concedidas pela Capes subiu de 16,5 mil para 41 mil, somente no período de 1999 e 2008. O total de bolsas de formação e pesquisa no país ou-torgadas por agências federais – entre elas a própria Capes – dobrou, no mesmo período, atingindo 60 mil no ano passado.

Para a próxima década, projeta-se uma proporção de doutores por 100 mil habitantes semelhante à dos Estados Unidos e do Japão. Segundo o ex-secretário re-gional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ci-ência (SBPC), doutor em Teoria da Computação e atual presidente da Fundação Cearense de Apoio ao Desen-volvimento Científico e Tecnológico (Funcap), Tarcísio Pequeno, se os países do mundo fossem divididos pela

é “sustentável” e se deve, primeiro, à fundação, em 1951, de duas instituições “extremamente importantes para a área”. No caso, o Conselho Nacional de Desenvolvimen-to Científico e Tecnológico (CNPq) e a Capes.

"Apesar das flutuações de financiamento e das des-continuidades, nunca sérias o suficiente para desmante-lá-las”, coloca. O segundo motivo foi a criação, em 1999, ao final do governo Fernando Henrique Cardoso, dos Fundos Setoriais de Ciência e Tecnologia. “A ciência e a tecnologia fizeram uma verdadeira revolução interna com a criação desses instrumentos”, considera Tarcísio, acrescentando que os fundos permitiram ao Brasil mais que duplicar a aplicação dos recursos em C&T.

Os Fundos Setoriais de Ciência e Tecnologia, criados em 1999, são a maior fonte de financiamento de projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação do país. Até 2007, os fundos aplicaram R$ 5,1 bilhões. Por lei, 30% desses recursos deveriam financiar iniciativas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Só que o percentual não vem sendo cumprido. Resultado: deixaram de ser aplicados nessas áreas, pelo menos, R$ 460 milhões. Por outro lado, somente o Sudeste abocanhou no período mais de R$ 3 bilhões, ou seja, 60,41% do total

BRIO BRIO REGIONAL SE EXPLICAMREGIONAL SE EXPLICAM

torado, recém-doutor e PNPD (Programa Nacional de torado, recém-doutor e PNPD (Programa Nacional de Pós-Doutorado) concedidas pela Capes subiu de 16,5 Pós-Doutorado) concedidas pela Capes subiu de 16,5 mil para 41 mil, somente no período de 1999 e 2008. mil para 41 mil, somente no período de 1999 e 2008. O total de bolsas de formação e pesquisa no país ou-O total de bolsas de formação e pesquisa no país ou-torgadas por agências federais – entre elas a própria torgadas por agências federais – entre elas a própria

Por Marcel [email protected]

FUNDOS SETORIAISFUNDOS SETORIAIS

62 Maio/2009 63Maio/2009

Page 33: Nordeste VinteUM

período. Para se ter uma idéia des-se desequilíbrio, do total de R$ 5,1 bilhões empregados no país entre 1999 e 2007, a região Sudeste, maior pólo de produção cientí� ca brasileira, abocanhou R$ 3 bilhões, ou seja, 60,41% do total. Enquanto isso, os projetos do Nordeste rece-beram R$ 734,4 milhões (14,32%), os do Norte R$ 234,6 milhões (4,57%) e os do Centro-Oeste R$ 103,1 milhões (2,01%).

Para chegar à cifra que deixa de vir às três regiões, os recursos apresentados na execução orça-mentária relativos ao Distrito Fe-deral – R$ 351,93 milhões – foram desconsiderados pelo deputado no cômputo do percentual da região Centro-Oeste. “Esse dinheiro vai para atividades-meio de custeio, como pagamento de pessoal, entre outras, do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e do CNPq, em Brasília. Não vão diretamente para � nanciar projetos”, explica o depu-tado. Pela conta do todo aportado, ao N/NE/CO caberia a fatia de R$ 1,5 bi. Entretanto, vieram pouco mais de R$ 1 bi.

SEM MASSA CRÍTICA, NÃO VAI

“EDITAIS TRATAM IGUALMENTE OS DESIGUAIS”

Ex-secretário de C&T do Ceará em duas gestões e depu-tado federal no quinto mandato, Ariosto Holanda defende uma política de editais que estejam mais de acordo com as realida-des da região. “Quando se faz nacionalmente um edital, pas-samos a tratar igualmente os desiguais. Na distribuição dos recursos há uma desigualdade total”, revela.

“O Semi-árido aqui no Nor-deste, por exemplo. São pou-quíssimos editais que enfocam esse aspecto”, pontua a geógrafa com mestrado em Gestão Públi-ca, Lene Malveira, estudiosa do assunto. Não bastasse a dispari-dade entre as regiões, há ainda uma desigualdade dentro da ou-tra. Entre os estados do Nordes-te, o Piauí recebeu no período R$ 12 milhões e o Maranhão R$ 21 milhões, bem menos que Ce-ará (R$ 127 mi), Bahia (R$ 151 mi) e Pernambuco (R$ 187 mi).

De acordo com Ariosto, o CT-Petro despendeu no perío-

do R$ 858 milhões no país, dos quais, por lei, deveria aplicar 40% no Nordeste – R$ 343 mi-lhões –, contudo a soma atingiu R$ 210 milhões na região. Cien-te do descompasso na distribui-ção de recursos de ciência e tec-nologia no país, o MCT iniciou, desde o ano passado, discussões no sentido de fortalecer o setor no Nordeste. Em julho, o mi-nistro Sérgio Resende teve um encontro com parlamentares da bancada nordestina em Brasília, quando foi formada uma comis-são com objetivo de elaborar um plano de C&T para a região. Uma proposta de Ariosto, que apresentou os números dos fun-dos setoriais.

O deputado cearense diz que na época a discussão cen-trou num ponto: a necessidade de respeitar o planejamento dos Estados que não conseguem par-ticipar de alguns editais dos fun-dos setoriais pela falta de base cientí� ca. Ele elaborou ainda o termo de referência para as dis-

“Antes o pesquisador apro-vava o projeto, e as parcelas a Finep desembolsava, por exemplo, em seis vezes. Li-berava uma, o pesquisador aplicava o recurso, fazia o re-latório e a prestação de con-tas. O que acontecia: faltava dinheiro, enquanto ele estava no meio da pesquisa. Era hor-rível, porque não tinha conti-nuidade, o dinheiro ia para o lixo. Com os fundos setoriais, não. O projeto sendo aprova-do, o recurso está garantido”,Lene Malveira, geógrafa com mestrado em Gestão Pública e estudiosa dos Fundos Setoriais de Ciência e Tecnologia.

FUNDOS ESTABILIZAM CURSO DOS PROJETOS

DESARMONIA DISTRIBUTIVA

Principal instrumento do Go-verno Federal para alavancar o sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) do País, através do � nanciamento de projetos de pesquisa, desenvolvimento e ino-vação, os fundos setoriais surgiram na esteira do processo de privatiza-ção de alguns setores da economia nacional, como exploração de pe-tróleo, telecomunicações e energia elétrica. Eram uma resposta à ne-cessidade de aumentar os recursos destinados ao setor e garantir cons-tância em seu � uxo.

Os fundos erigiram um novo modelo de gestão, com a partici-pação de vários segmentos sociais, além de apoiar o desenvolvimento e consolidação de parcerias entre universidades, centros de pesquisa e o setor produtivo. O objetivo foi induzir o aumento dos investimen-tos privados em C&T e impulsionar o desenvolvimento tecnológico dos setores considerados.

Hoje, há 17 fundos, sendo 15 relativos a setores especí� cos e dois transversais. Destes, um é voltado à interação universidade-empresa – Fundo Verde-Amarelo –, e o ou-tro, o CT-Infra, destinado a apoiar a melhoria da infra-estrutura das Instituições Cientí� cas e Tecnoló-gicas (ICTs).

Um dos objetivos especí� cos dos fundos setoriais é reduzir as desigualdades regionais por meio da destinação de, no mínimo, 30% dos recursos para projetos a serem implementados nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, “estimu-lando um desenvolvimento mais harmônico para o País”. Mas, é jus-tamente nesse ponto onde reside um problema do setor de CT&I.

De acordo com o deputado fe-deral Ariosto Holanda (PSB/CE), desde a concepção dos fundos até 2007, deixaram de ser aplicados nas três regiões R$ 465 milhões a que elas teriam direito durante o

R$ 465 MILHÕES NÃO CHEGARAM AO NE, NORTE E CENTRO-OESTE

Investimento. Fundos Setoriais aumentaram recursos para a ciência

É preciso respeitar o planejamento de Estados que não participam dos editais dos fundos setoriais por falta de base científi ca

Fonte: MCT

EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA DOS FUNDOS SETORIAIS

RegiõesRecursos (em milhões

R$)

Norte 234,67

Nordeste 734,47 Centro Oeste 103,10

Sudeste 3.096,51

Sul 603,45

Distrito Federal 351,93

TOTAL 5.125,53Observação: 30 % 5.121,00 1.537,65

Por região (1999-2007)

EstadoPercentual Brasil (%)

Recursos (em milhões

R$)

AL 0,54% 28,13

BA 2,95% 151,34

CE 2,51% 127,09

MA 0,41% 21,19

PB 1,42% 72,79

PE 3,64% 187,34

PI 0,23% 12,14

RN 2,17% 111,24

SE 0,45% 23,21

TOTAL 14,32% 734,47Observação: Total Brasil R$ 5.125,53 bi

Por estado - Nordeste (1999-2007)

4,59%

14,32%

2,03%

60,41%

11,78% 6,87%

25,50%

1,65% 15,14% 3,16%3,82%

20,60%

17,30%2,88%

9,91%

*20,94%Foto: Flam

ínio Araripe

Foto: Flamínio Araripe

Percentual Nordeste (%)Percentual

Nordeste (%)

É preciso respeitar o planejamento de Estados que não participam dos editais dos Estados que não participam dos editais dos Estados que não participam dos editais dos fundos setoriais por falta de base científi ca

Ariosto Holanda, deputado federal (PSB/CE)

64 Maio/2009 65Maio/2009

Page 34: Nordeste VinteUM

Ao mesmo tempo em que de-monstram vigor quanto ao cresci-mento da produção, as estatísticas não deixam de re� etir alguns desa� os que a ciência no Brasil ainda preci-sa superar. Na opinião do professor Tarcísio Pequeno, se por um lado, na ciência, é o 15º, o país ainda ocupa a 70ª posição no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

“Isso permite a seguinte leitura: nós ainda não somos realmente bem sucedidos em transformar o conhe-cimento cientí� co em bem-estar geral da sociedade. Como costumo dizer em palavras mais cruas, co-nhecimento cientí� co em felicidade humana”, reconhece.

Apesar do aporte público em rela-ção ao PIB equivalente ao de nações desenvolvidas, o Brasil ainda não vê na iniciativa privada o mesmo comporta-mento, o que, de acordo com Tarcísio, eleva os investimentos totais em C&T nessas nações a percentuais que vão de 3% a 3,5%.

A pesquisa é considerada pelo presidente da Funcap como uma das alternativas em tempos de crise eco-nômica. Com o susto provocado por ela, o orçamento da área foi cortado

em R$ 1,2 bilhão pelo relator da pro-posta no ano passado, o senador Del-cídio Amaral (PT/MS). Cerca de R$ 500 milhões a comunidade cientí� ca já conseguiu recuperar. “Enquanto isso, no centro da crise, nos EUA, o presidente Barack Obama está pro-pondo aumentar para 4,2% do PIB o investimento em C&T naquele país”, contrapõe Tarcísio Pequeno.

Não obstante o reconhecimento desses obstáculos, o professor aponta também o agronegócio e o petróleo como áreas em que a ciência brasileira tem re-gistrado importantes avanços. Onde as pesquisas, realizadas em parcerias com universidades, registram resultados prá-ticos no aumento da produtividade e conseqüente elevação do superávit da balança comercial do país.

Outro aspecto, na visão dele, é que o crescimento tem proporcionado a elevação da qualidade do ensino supe-rior, principalmente nas universidades públicas. “Com a pesquisa que se faz, você incrementa bastante a qualidade dos formandos, que hoje, inclusive, participam muito mais de programas de iniciação cientí� ca. Isso ou os direciona para se tornarem cientistas, ou melhora a qualidade do ensino”, considera.

DESAFIO

Tarcísio elenca quatro grandes desequilíbrios da produção cientí� ca brasileira atualmente, que “urge com-bater e harmonizar, se a gente quiser realmente nos � rmar e ter um progres-so a longo prazo”. O primeiro deles é o desequilíbrio “profundo” entre a qualidade do ensino público superior, especialmente na pós-graduação, e o ensino público da escola básica.

“O Brasil faz sua ciência a partir das suas elites educadas na escola par-ticular e dos heróis das classes baixas educados nas escolas técnicas e nos colégios militares”, assevera. O segun-do é o já citado desequilíbrio entre a pesquisa realizada e � nanciada pela esfera pública versus a pesquisa feita pela esfera privada. Problema que tem razões mais fortes no modelo industrial brasileiro, de substituição de impor-tação. “Nossa indústria foi construída em cima de empresas multinacionais, que tem suas sedes fora do país, onde fazem sua pesquisa. Fazem muito pou-co dentro do Brasil, e é preciso políti-cas que possam mudar isso”, sugere.

O terceiro desequilíbrio está na graduação e na pós-graduação uni-versitárias, que na interpretação do professor formam mais pesquisadores em áreas do conhecimento que não re� etem as demandas da sociedade. “Em países como a Coréia, 70% das pessoas que estão nas universidades, na pós-graduação, são das áreas de tecnologia, e no Brasil, o nosso mix tem uma quantidade enorme nas ci-ências humanas, que são importantes, mas talvez não na quantidade que nós nos formamos, vis-à-vis a necessidade

cussões de um Plano de De-senvolvimento Cientí� co e Tecnológico para o Nordeste.

A proposta colocou um modelo para discussão que previa a constituição de um conselho de desenvolvimen-to da área para o Nordeste (CDCTN), a de� nir a políti-ca regional de C&T e a apli-cação dos recursos, dispostos em um fundo regional (FDC-TN). Os recursos desse fun-do teriam origem nos fundos setoriais, das fundações de apoio à pesquisa dos estados (FAPs), nas emendas ao Or-çamento da União e outras fontes. Seriam administrados por uma instituição da região – inicialmente foi ventilada a possibilidade de o Banco do Nordeste, que tem o Fundo de Desenvolvimento Cientí-� co e Tecnológico (Fundeci), ser o agente � nanceiro. Mas, os instrumentos de ação a se-rem utilizados teriam como base instituições do Nordeste que trabalham com C&T.

Só que nas reuniões subse-qüentes com a participação de representantes do ministério, a proposta não avançou no to-cante à retirada dos recursos da administração da Finep. “Está se caminhando para a criação de uma instância direcionada para o Nordeste, que pode ser através de uma diretoria na Fi-nep ou de uma secretaria no ministério. A única coisa que está fechada é a disposição do ministro em criar um fórum permanente de aplicação dos recursos dos fundos setoriais na região”, a� rma Ariosto.

Há ainda, relata o depu-tado, a disposição do coorde-nador da bancada nordestina, Zezéu Ribeiro (PT/BA) de colocar o assunto em pauta. Outro que se interessou pelo tema foi o ministro de Assun-tos Estratégicos da Presidên-cia, Mangabeira Unger.

O modelo de gestão concebido para os fundos é baseado na existência de Comitês Gestores (CGs), um para cada. Cada CG é presidido por represen-tante do MCT e integrado por represen-tantes dos ministérios afins, agências reguladoras, setores acadêmicos e em-presariais, além da Finep do CNPq.

Com exceção do Fundo para o De-senvolvimento Tecnológico das Teleco-municações (Funttel), gerido pelo Minis-tério das Comunicações, os recursos dos demais Fundos são alocados no Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDTC) do Ministério da Ci-

ência e Tecnologia (MCT) e administrados pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) empresa pública ligada ao minis-tério, como sua secretaria executiva.

Os fundos atendem a áreas di-versificadas, mas têm características comuns em relação a sua operaciona-lização, como vinculação de receitas, plurianualidade, gestão compartilhada, fontes diversas e programas integrados. Além disso, podem ser acessados por meio de editais públicos, cartas-convite e encomendas.Saiba quais são os Fundos Setoriais em: www.finep.gov.br.

Como funciona a gestão dos Fundos Setoriais

Além disso, ele defende ações institucionais in-dutoras para atender as reais necessidades de regiões e microrregiões, em alguns casos com estrutura para pesquisa e em outros com o incentivo à formação de mais doutores que se � xem nas regiões, por exemplo. Em relação aos fundos setoriais, Tar-císio se diz a favor de uma proposta que permita tratar das necessidades cientí� -cas do Nordeste.

“Seria a favor de que fosse criado um fundo das três regiões para aqueles recursos residuais quando a aplicação não atinge os 30%, os 35% ou os 40%, confor-me o caso. Esse fundo poderia aplicar dinheiro em pesquisa no Nordeste, e seria gerido por um comitê, composto, de maneira predominante, por pesquisadores, titula-dos e renomados dessas regiões. E não por insti-tuições alheias à pesquisa cientí� ca”, explicita.

Tarcísio Pequeno, professor e presidente da Funcap

O Brasil faz sua ciência a partir das suas elites educadas na escola particular e dos heróis das classes baixas

educados nas escolas técnicas e nos colégios militares.

“TRANSFORMAR CIÊNCIA EM FELICIDADE HUMANA”QUATRO PONTOS FUNDAMENTAIS DE DESEQUILÍBRIO EM CIÊNCIA

de um país em desenvolvimento”.O quarto e último é o próprio

desequilíbrio regional. Embora avalie como de boa qualidade a pesquisa cientí� ca feita no Nordeste, Tarcí-sio Pequeno não deixa de ressaltar a concentração da ciência produzida no Brasil na região Sudeste. Nesse sen-tido, ele concorda com a destinação de uma cota dos fundos setoriais para Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e aponta saídas para equacionar o pro-blema. Uma delas seria estimular, ao lado das políticas competitivas dos editais, projetos de institutos que objetivam formar recursos humanos, como os Institutos Nacionais de C&T (INCTs), e os Programas de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex).

Foto: Jaime M

uro Llosa

Foto: Flamínio Araripe

Fotos: Flamínio Araripe

66 Maio/2009 67Maio/2009

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PoderLocal&Cidadania

69www.nordestevinteum.com.br — Maio/2009

Por Lucílio Lessa – Texto e [email protected]

dois expedientes. “Passava em frente às faculdades e achava que não era capaz de estar ali”, a� rma. Numa realidade um pouco diferente das duas, estava Bru-no, 23 anos. Filho de funcionários de uma multina-cional, Bruno havia iniciado discreta carreira pro� s-sional, mas sonhava em alçar vôos mais altos.

Três jovens à procura de dias melhores, dis-tintas histórias de vida, um cenário em comum: o Pirambu, bairro mais populoso de Fortaleza, com 350 mil habitantes. É uma antiga favela formada pelos ajuntamentos em terrenos ocupados próximos

ao mar na zona oeste da Capital. Teve sua história construída à custa de grandes con� itos entre polí-cia e comunidade no cotidiano da luta por moradia. Falta de infraestrutura urbana e índices de violên-cia sempre crescentes deixaram profundas marcas na identidade do lugar, que há décadas também é espreitado pelo trá� co de drogas.

Hoje, a comunidade ainda cresce, o que leva o bairro possuir a maior densidade populacional do país, com 40 mil habitantes por quilômetro quadra-do e um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)

raneide, 21 anos. Filha de uma doméstica e de um vendedor de água de coco. Ao concluir o ensino fundamental em escola pública, não tinha noção do que faria. A falta de perspectiva também era um problema para a costureira Patrícia, 31 anos, que, embora tenha herdado a pro� ssão da mãe, sonhava em ir mais longe. Só esbarrava nos desestímulos da vida real de quem, mesmo em casa, obrigava-se disciplinadamente a trabalhar os

Como a cooperativa Pirambu Digital, projeto implantado num bairro pobre da periferia de Fortaleza (CE), mudou a perspectiva de dezenas de jovens e melhora a vida de toda uma comunidade, vítima do preconceito e de inúmeros problemas sociais dois expedientes. “Passava em frente às faculdades e

achava que não era capaz de estar ali”, a� rma. Numa realidade um pouco diferente das duas, estava Bru-no, 23 anos. Filho de funcionários de uma multina-cional, Bruno havia iniciado discreta carreira pro� s-

ao mar na zona oeste da Capital. Teve sua história construída à custa de grandes con� itos entre polí-cia e comunidade no cotidiano da luta por moradia. Falta de infraestrutura urbana e índices de violên-cia sempre crescentes deixaram profundas marcas raneide, 21 anos. Filha de uma doméstica e de um vendedor

Como a cooperativa Pirambu Digital, projeto implantado num bairro pobre da periferia de Fortaleza (CE), mudou a perspectiva de dezenas de jovens e melhora a vida de toda uma

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Três jovens à procura de dias melhores, dis- Três jovens à procura de dias melhores, dis-tintas histórias de vida, um cenário em comum: o tintas histórias de vida, um cenário em comum: o Pirambu, bairro mais populoso de Fortaleza, com Pirambu, bairro mais populoso de Fortaleza, com 350 mil habitantes. É uma antiga favela formada 350 mil habitantes. É uma antiga favela formada pelos ajuntamentos em terrenos ocupados próximos

cia sempre crescentes deixaram profundas marcas na identidade do lugar, que há décadas também é espreitado pelo trá� co de drogas.

Hoje, a comunidade ainda cresce, o que leva o bairro possuir a maior densidade populacional do país, com 40 mil habitantes por quilômetro quadra-do e um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)

dois expedientes. “Passava em frente às faculdades e dois expedientes. “Passava em frente às faculdades e achava que não era capaz de estar ali”, a� rma. Numa achava que não era capaz de estar ali”, a� rma. Numa realidade um pouco diferente das duas, estava Bru-realidade um pouco diferente das duas, estava Bru-no, 23 anos. Filho de funcionários de uma multina-no, 23 anos. Filho de funcionários de uma multina-cional, Bruno havia iniciado discreta carreira pro� s-cional, Bruno havia iniciado discreta carreira pro� s-

ao mar na zona oeste da Capital. Teve sua história construída à custa de grandes con� itos entre polí-cia e comunidade no cotidiano da luta por moradia. Falta de infraestrutura urbana e índices de violên-cia sempre crescentes deixaram profundas marcas

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Antevisão solidária na França

As iniciativas da Pirambu Digital têm êxito reafir-mado e possibilitam contribuição efetiva ao desenvol-vimento do bairro. Retribuir é palavra de ordem e valor multiplicado quando se trata da forma de pagamento dos cursos. Cada aluno recompensa a oportunidade, ao se comprometer em repassar algum conheci-mento a pessoas do Pirambu. Seja sobre o conte-údo do curso ou mesmo habilidades adquiridas e potencializadas no decorrer das atividades dos projetos de ensino. Resultado: cerca de 600 pes-soas circulam, por dia, na cooperativa.

Tudo começou em 1993, durante um dou-torado na França, quando Mauro Oliveira fi cou fascinado com o modelo educacional do país. “A minha fi lha, que é classe média, estudava com o fi lho do vigia e, ao mesmo tempo, com o fi lho do presidente da Câmara de Comércio. Então tive vontade de fazer alguma coisa assim no Brasil”, ressalta Mauro. No mesmo ano, pro-fessores voluntários liderados pelo pesqui-sador iniciaram uma parceria com a ONG Emaús, em atividades sócio-educativas no Pirambu.

Cursos pagos com repasse deconhecimentos e esperanças

Mauro Oliveira, pesquisador e ex-secretário do Ministério das Comunicações

A grande ‘sacada’ do projeto é que os talentos revelados

aqui podem mudar a vida da comunidade

Inclusão Digital. Cooperativa democratiza acesso à Tecnologia da Informação.

sador e ex-secretário do Ministério das Comunica-ções, Mauro Oliveira, idealizador da cooperativa à época em que foi diretor do Cefet.

As atividades sociais realizadas pela Pirambu Digital primam pela originalidade. Um dos projetos é o Casa do Saber, trabalho realizado junto às famí-lias, através da orientação aos pais sobre o valor das propostas educacionais. Ao todo, são atendidas 100 crianças com atividades sócio-educativas como tea-tro e xadrez. A seleção das famílias é feita após visita de professores voluntários às residências.

Outra opção da cooperativa é o Agente Digi-tal. O projeto forma jovens em informática básica ou avançada. Alunos universitários e do Ifet são os monitores. Já o Pirambu Business School trata da ca-pacitação de alunos com potencial empreendedor para o mercado de trabalho, através de aulas de Por-tuguês, Matemática, Inglês e Informática. O ciclo se fecha com a Universidade do Trabalho, que prepara jovens para ingressarem no ensino superior e postos de trabalho dentro do contexto de� agrado a partir da Pirambu Digital.

de 0,391, entre os piores da capital cearense. Em 2008, � cou entre as 11 comunidades recordistas em assassinatos na Grande Fortaleza, ocupando o quinto lugar. Uma realidade a que Iraneide, Patrícia e Bruno tiveram que se habituar desde crianças. E foi nesse contexto que surgiu a coo-perativa Pirambu Digital.

Criada pelo Centro Federal de Educação e Tecnologia do Ceará (Cefet), hoje Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (Ifet), a cooperativa está ligada ao Movi-mento Emaús - Amor e Justiça, ONG católica situada no coração do Pirambu. A parceria possi-bilitou à cooperativa ocupar o segundo andar do galpão da ONG. A proposta é criar soluções em Tecnologia da Informação (TI) para empresas de dentro e fora do Ceará. Ou seja, provar que o desenvolvimento de software pode ser feito em qualquer lugar, desde que haja oportunidades.

A cooperativa possui quatro empreendi-mentos: o Pólo de Desenvolvimento de Softwa-re (Podes), responsável pelo desenvolvimento de sistemas e sites, bem como programas de alta tecnologia para o comércio local; o Fábrica de

Computadores (Fácil), que opera na recuperação de computadores doados, que em seguida são alugados à comunidade; o Treinamentos e Even-tos (Trevo), criado para promover treinamentos e eventos em tecnologia da informação e comuni-cação; e o Negócios de Administração (Nega), o administrador dos negócios da cooperativa.

O principal mérito da empresa consolida-se ao democratizar o acesso à Tecnologia da Informa-ção no bairro. Tudo começa a partir de ações soli-dárias dos jovens, que totalizam 50% da população local. A perspectiva é simples: oferecer capacitação para que os alunos possam repassar conhecimen-tos, agregados ao valor do fruto de seus talentos, para outras pessoas do bairro. Uma espécie de re-ação em cadeia para construção de uma realidade local diferente.

“A gente desenvolve mecanismos para os jovens contribuírem e serem felizes no bairro em que moram. O papel de uma instituição de ensino não é simplesmente resolver o problema de meia dúzia de pessoas. A grande ‘sacada’ do projeto é que os talentos revelados aqui podem mudar a vida da comunidade”, a� rma o pesqui-

PoderLocal&Cidadania

71www.nordestevinteum.com.br — Maio/200970 Maio/2009

Page 37: Nordeste VinteUM

Projetos especiais

“Condomínio Virtual”, “Personal Trainner de Informática”, “Biblioteca - Lan House” e “Agente Digital”

A Pirambu Digital também possui os projetos es-peciais intitulados Condomínio Virtual, Personal Trainer de Informática, Biblioteca Ligada a Lan House (Bila) e Agente Digital. O primeiro centra na aquisição de uma antena viabilizada por uma empresa de internet, com sinal via rádio. O destaque se dá pela dinâmica do ser-viço. Ao adquirir a antena, o custo (R$ 230) é divido por três vizinhos. A mensalidade é de R$ 25 e, atualmente, 23 condomínios estão cadastrados.

O despreparo das pessoas ao lidar com as ferra-mentas de acesso à internet, fez surgir o Agente Digital, programa que possibilitou também a criação de outro, o Personal Trainer de Informática. O mecanismo é sim-ples. Após receber o treinamento e retribuir as aulas com orientações à comunidade, o jovem começa a dar aulas particulares de informática a clientes de outros bairros, previamente agendados pela Pirambú Digital. O valor das aulas é divido meio a meio entre a coope-rativa e o personal.

A provar que estímulos criativos ajudam o apren-dizado, surgiu a Bila. O projeto, sucesso entre as crian-ças, também serviu para contradizer involuntariamen-te quem acredita que as facilidades da internet irão diminuir a procura pelo livro. Funciona assim: após uti-lizar uma hora de internet, o usuário deve ler um dos livros da biblioteca e realizar uma espécie de resumo, conferido por uma das duas monitoras do local. Diaria-mente, o local recebe a visita de aproximadamente 150 crianças. “O mais interessante é que a grande maioria já vem diretamente em busca dos livros”, revela a auxiliar administrativa, Marilu Alves.

E sobre Patrícia, citada do início da matéria, após um excelente trabalho como instrutora da cooperativa em diversas empresas, a costureira, que tinha o sonho de vencer na vida, hoje vive bem mais dignamente, trabalhando em um negócio próprio na Itália. “Todos precisam de uma chance. E quando ela vem, cabe a gente fazer valer a oportunidade”, conclui.

A Bila, projeto de sucesso entre as crianças de incentivo à leitura. Após utilizar a internet, o usuário deve ler e realizar um resumo da obra

LG Eletronicsapostou no projeto

A professora Dalci Souza Araújo lembra que no co-meço, apesar do esforço da equipe, as crianças tinham difi culdades em se sentir incluídas. Dez anos depois, 30 jovens foram selecionados para um curso de preparação de alunos para o Cefet. Nesse período, a LG Eletronics pro-curou o centro para fazer investimentos sócio-educativos, por meio da Lei da Informática. Com o incentivo, o projeto, hoje prestes a concluir a formação do segundo grupo, pas-sou de 30 para 120 o número de jovens entre 18 e 24 anos, matriculados na primeira turma. Os cursos oferecidos são de Desenvolvimento de software e o de Conectividade. O projeto ainda inclui transporte, fardamento, 25% do salário mínimo aos estudantes, equipamentos de última geração e construção de um novo prédio no Cefet.

A primeira etapa do processo foi aplicar provas desti-nadas a alunos oriundos de escolas públicas. Iraneide tirou de letra . “A seleção não era restrita a pessoas do bairro, mas o fato de estar ligada ao Pirambu praticamente anulou a procura de candidatos de outras localidades”, lembra. Ao fi nal dos dois anos de curso da primeira turma, o professor Mauro Oliveira fez a proposta da Pirambu Digital. A idéia era fazer com que os jovens se realizassem com um negó-

cio próprio dentro do bairro, auxiliando no desenvolvimen-to sócio econômico da comunidade. “Foi um verdadeiro sonho o que ele colocou na cabeça da gente naquele dia”, ressalta a hoje coordenadora de projetos.

Em janeiro de 2006, surge, então, a cooperativa. O empreendimento agora é composto por 48 cooperados, dois estagiários e 15 voluntários. Boa parte dos alunos do projeto optou por procurar empregos e estágios fora do bairro. Bruno está entre os que fi caram, com a obstinação de encarar desafi os e deixar o antigo emprego, sob a críti-ca dos pais. O esforço foi recompensado. Hoje, o rapaz de discurso articulado e projetos ambiciosos é diretor de ges-tão estratégica da cooperativa. Em meio às explicações so-bre o funcionamento da empresa, ele ainda se emociona. “Lembro de quando pintamos essas paredes. Hoje, meus pais têm certeza de que tomei a decisão certa”.

A emoção de Bruno se justifi ca na dimensão e credi-bilidade alcançadas pela Pirambu Digital. Mas, tantos talen-tos não poderiam de fato fi car restritos ao bairro. Há pouco tempo a empresa deu passo importante para o seu cresci-mento, ao fechar convênio com a Universidade de Evry, na França, para intercâmbio de negócios no campo da infor-mática. A iniciativa possibilitará estágios para integrantes da cooperativa. O presidente da Pirambu Digital, Gildenis Rodrigues, também aluno da primeira turma do Cefet, será um dos primeiros a investir na empreitada. Ele comemora o fato da empresa já possuir 15 clientes empresarias, além de dezenas na categoria pessoa física.

Jovens participam de cursos dentro da Pirambu Digital

PoderLocal&Cidadania

73www.nordestevinteum.com.br — Maio/2009

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Pintura a óleo sobre tela do artista plástico Mino Castelo Branco74 Maio/2009

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Meio ambiente

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