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MargeM. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Ciências Sociais e História da PUC-SP.
Nº 20, dezembro de 2004, p. 195-201.
Norberto Bobbio, a dúvida metódica
como condição permanente do humano
Marco Aurélio Nogueira
Poucos pensadores refletiram tão bem os dilemas políticos,
culturais e ideológicos do século XX quanto Norberto Bobbio (1909-2004).
Liberal e socialista, acadêmico disciplinado e protagonista
ativo da cultura de sua época, não houve debate ideológico
de que não participasse, não houve tema crucial sobre o qual não tivesse se debruçado, beneficiado por sua longa
trajetória de vida distribuída por quase todas as
movimentadas décadas do século. Laureado em Direito e
Filosofia na Universidade de Turim nos anos de 1930, deu início a sua carreira como professor na Universidade de
Camerino (1935-38), de onde se transferiu para Siena
(1938-40) e depois para Padova (1940-48). Tal
peregrinação o colocou em contato com vários grupos antifascistas. Em 1942, aderiu ao Partido de Ação, pequena
organização política composta basicamente por intelectuais
liberais e socialistas. Terminada a guerra, retornou a
Turim, onde ensinará Filosofia do Direito (1948-72) e
depois Filosofia da Política (1972-79). Em julho de 1984, foi nomeado Senador vitalício pelo então Presidente da
República Italiana Sandro Pertini.
Ao longo desses anos, escreveu dezenas de livros e artigos,
recobrindo de modo particular as áreas do direito, da filosofia, da ética e da teoria política, juntamente com um
esforço memorialístico dedicado a resgatar a história de
sua geração. Atento ao debate teórico-metodológico e à
história das idéias, interessado tanto no funcionamento dos sistemas políticos democráticos quanto na dinâmica das
relações internacionais, foi um autor prolífico, de grande
regularidade, sempre impulsionado pela combinação
cruzada de três características emblemáticas: a erudição
humanista, a clareza expositiva e o senso de oportunidade.
Sua contribuição para o estabelecimento de uma teoria
geral da política (como se pode ver no volume com este
título organizado por Michelangelo Bovero, Rio de Janeiro,
Editora Campus, 2001) foi de extraordinária envergadura, tanto pela que nela há de esforço para compor
normativismo e realismo, Estado, governo, direito e
sociedade, quanto pela extensão dos temas e dos campos
que procurou recobrir.
Bobbio combinou com rara habilidade as tarefas do homem
de cultura e do político. Circulou com desenvoltura por
diferentes campos intelectuais. Após a rica mas frustrada
experiência do Partido de Ação, manteve-se à margem de partidos ou organizações políticas, ainda que sem ocultar
suas afinidades eletivas com a esquerda, que sempre viu
em chave moderada e eticista, guiada pela “estrela polar”
do ideal da igualdade. Seu apaixonado socialismo liberal não implicou qualquer tipo de recusa ao convívio político e
intelectual com os comunistas, nem nunca o levou a
diminuir a relevância do marxismo na cultura
contemporânea.
Foi acima de tudo um polemista, dedicado a cobrar coerência de seus interlocutores, a provocá-los com
perguntas incômodas, a forçá-los a uma mais rigorosa
explicitação de argumentos. Empenhou-se para deixar
claras as razões dos distintos campos ideológicos e dos distintos enfoques com o objetivo declarado de fazer com
que o diálogo fluísse com maior transparência e
intensidade. Particularmente na Itália, mas também fora
dela, operou como um intelectual público, preocupado em fornecer argumentos acessíveis a todos sobre questões que
dizem respeito à vida comum, à coletividade e ao Estado.
Viveu debruçado sobre os fatos cotidianos da política e da
cultura, pronto para abordá-los em termos polêmicos, com
o intuito de demarcar espaços e educar. Seguiu à risca uma espécie de código ético de sua geração: ser intelectual era
agir para esclarecer e para persuadir, fazendo vibrar a
força das idéias, da razão e dos bons argumentos.
Participou de embates memoráveis com liberais, socialistas e social-democratas e de modo particular com os
comunistas, com quem protagonizou duas decisivas
rodadas de discussões, uma nos anos 1950, quando
polemizou com Palmiro Togliatti em torno da questão da liberdade, e outra nos anos 70, quando a questão central foi a das relações entre marxismo e teoria do Estado. Nessas
diversas situações, procurou contrapor a tradição liberal ao
pensamento comunista e o socialismo autoritário ao
socialismo democrático, cogitando da possibilidade e
mesmo da necessidade estratégica de um partido unitário
das esquerdas italianas. Sua idéia (ou sua aspiração)
sempre foi a de que se pudesse chegar a uma política de esquerda que se preocupasse menos com o
estabelecimento de identidades socialistas ou comunistas e
mais com a fixação de valores que trouxessem consigo a
proteção dos direitos humanos em sentido lato. A ininterrupta produção histórica de carecimentos e
necessidades caminha junto com a conversão de algumas
dessas necessidades em direitos. E a esquerda, posicionada
em favor da emancipação do homem de todas as formas de sujeição, de ignorância e de preconceito, cumpre sua
função quanto se põe como força que dá sustentação,
protege e ajuda a que os direitos se traduzam em
realidade.
Ainda que não tenha sido um escritor particularmente
virtuoso em termos de elegância estilística, como ele
mesmo reconheceu em algumas de suas entrevistas (Cf.
“Duvidar é o meu credo”, infra), Bobbio distinguiu-se pela
posse de uma clareza e de um didatismo arrebatadores, mas que jamais concederam à facilidade. Adotou para si
aquilo que mais apreciava nos escritores: o culto às “idéias
claras e distintas”, expostas de modo limpo e ordenado.
Seus livros são encadeamentos lógico-analíticos entremeados de paixão cívica e empenho compreensivo.
Certamente por isso (ainda que não somente por isso),
transitou sem maior esforço nas universidades, onde
ajudou a manter viva a lição dos clássicos: tratar a política como momento de uma totalidade que é histórica, se põe e
se repõe permanentemente, e por isso mesmo não pode
ser compreendida por nenhum pensamento estreitamente
especializado ou formalista.
Rejeitando os dogmatismos e misturando convicções liberal-democráticas e idéias socialistas, Bobbio converteu-
se numa referência importante não só para a ciência
política e social como também para o liberalismo
progressista e para os setores da esquerda preocupados com o encontro de uma nova identidade. Apenas Antonio
Gramsci, com seu marxismo surpreendente e sua
envergadura temática, conseguiu disputar com ele esta
função.
Sempre se pôs diante do “vastíssimo campo dos problemas
do Estado”, considerando-os do ponto de vista jurídico e do
ponto de vista político, ou seja, o Estado como
ordenamento jurídico e como poder soberano.
Metodologicamente falando, Bobbio foi um pensador de
construções dicotômicas e de temas recorrentes. Sua
reflexão procede por antíteses, mediante o exame daquelas
“grandes dicotomias” que segundo ele povoam o pensamento político clássico e contemporâneo: público e
privado, Estado e sociedade civil, democracia e ditadura,
direita e esquerda. Em sua concepção, tal tratamento
ofereceria a vantagem de permitir que um dos dois termos jogasse luz sobre o outro, tanto que freqüentemente um
deles (o termo fraco) é definido como a negação do outro
(o termo forte) -- por exemplo, o privado como aquilo que
não é público --, colocando ao mesmo tempo em evidência o juízo de valor positivo ou negativo atribuído a cada um
deles e praticamente delineando uma filosofia da história,
ao possibilitar que cada época seja vista como estruturada
em torno da prevalência de uma ou outra daquelas dicotomias.
Seu método, portanto, apoiou-se quase obsessivamente na
busca de distinções rigorosas, num esforço para fazer com
que os termos, dispostos em confronto entre si, se
esclarecessem reciprocamente e explicassem não apenas as idéias, mas também os processos vivos, os conflitos
históricos, as curvas e sinuosidades da história. É um
método analítico e racional que busca classificar e fazer
comparações (como quando estuda, por exemplo, as formas de governo), ao mesmo tempo em que procura
entrar nos meandros mais íntimos e lógicos dos conceitos,
como fez nos diversos textos que dedicou à teoria
democrática e particularmente à sua idéia “procedimental” da democracia dos modernos, que ele sempre entendeu
como sendo essencialmente uma realidade formal e um
conjunto de regras e valores universais. Dos inúmeros
autores que estudou, quis sempre extrair aquilo que os
tornava mais singulares, que os havia convertido em “clássicos” ou em passagem obrigatória, importando-se
menos com a maior ou menor validade de suas profecias
ou de suas utopias. Foi exatamente assim que leu e
interpretou Marx e Gramsci, por exemplo. Foi também assim que buscou, em 1994, repor e atualizar a dicotomia
esquerda/direita, naquele Direita e esquerda que ele
mesmo definiu como tendo sido seu maior sucesso
editorial.
Bobbio fez de seus estudos e reflexões um caminho para
articular e manter em sintonia a filosofia, a ciência, a
política e a cultura, de modo a consubstanciar não apenas
uma explicação abrangente dos fatos, mas também uma visão ética da política e uma visão política da ética.
Incorporou uma conhecida imagem de Benedetto Croce:
seria preciso manter sempre viva aquela “força não-
política” que é a força moral, uma força que a política
jamais pode suprimir com radicalidade e com a qual a “boa política” terá sempre de se entender. Quanto mais,
portanto, a própria política tiver consciência dessa força e
souber assimilá-la, mais poderá cumprir uma função
dignificadora e operar como fator de organização democrática e de emancipação.
Ao assim proceder, Bobbio jogou muita luz sobre o século
XX. Seus temas foram recorrentes não apenas porque o
filósofo os considerava universais e os convertia em recurso metodológico, mas também porque dialogavam
com o presente, com as sociedades que, justamente por
serem depósitos de muitas experiências históricas, trazem
em si todos os temas e todos os problemas. Como pensar o mundo de hoje, ele parecia perguntar, sem considerar os
contraditórios mas complementares processos de
“publicização do privado” e de “privatização do público” que
atravessam as sociedades do capitalismo industrial de
massas, o capitalismo tardio? A partir deles, é a forma atual do Estado – o Welfare State, o Estado assistencial ou
de justiça social – que vem à tona com seus traços
próprios, sua dinâmica, sua crise. Ambos são processos
que espelham as grandes transformações por que passam as sociedades de hoje, cortadas por conflitos grupais que
se renovam sem cessar, por processos de complexificação,
de “desterritorialização” e de ativação do associativismo
que praticamente proíbem o Estado – entendido tanto como um conjunto de organismos de decisão (parlamento e
governo) e de execução (o aparato burocrático), quanto
como a expressão ética e jurídica de uma comunidade
politicamente organizada – de reiterar de modo simples e
imediato a sua condição de detentor do poder de império, conforme previam os teóricos da soberania.
Bobbio tentou fazer o diagnóstico do seu tempo. Mas
também quis propor soluções ou ao menos privilegiar as
perspectivas capazes de construir soluções. Descartou com firmeza qualquer hipótese de “desmantelamento” do Estado
social ou de “eliminação do excesso de Estado”. Diante da
“crise” do Estado, a alternativa seria democrática, ética e
político-social, ou seja, direcionada para valorizar a sociedade civil como espaço no qual poderiam ser
encontradas novas fontes de legitimação e portanto novas
áreas de consenso. Em vez de contenção das demandas,
como queriam neoliberais e conservadores, seria preciso recuperar as instituições representativas, combiná-las e
integrá-las com formas novas de democracia direta,
consolidar e ampliar as regras do jogo democrático – as tão
conhecidas e precisas “regras procedimentais” que
embasam a “definição mínima” de democracia formulada por Bobbio e que, no seu entender, são indispensáveis para
que se formem decisões coletivas e se assegure a ampla
participação dos cidadãos.
Tratava-se de um racionalista, de um iluminista militante mas sempre tocado por um inquietante pessimismo. Bobbio
várias vezes se declarou pertencente ao grupo dos homens
que “nunca estão satisfeitos”, que prezam o valor da
humildade e da modéstia diante do profundo “mistério” inerente à existência e às coisas humanas. Sua visão laica
da vida levava-o a dar grande relevo à idéia de que “a
razão é a única luz de que podemos dispor para iluminar as
trevas em que estamos imersos”. (Cf. “Duvidar é o meu credo”, infra.). Como não há lugar para certezas absolutas,
nossa condição permanente é a da dúvida metódica, a do
entusiasmo contido.
Foram muitos os que o viram como a encarnação viva de estados de
espírito opostos – um iluminista pessimista, um realista insatisfeito, um
analítico historicista, um historiador conceitualista, um positivista jurídico
móvel e inquieto, um empirista formalista, um tolerante intransigente.
Nunca deixou de se definir como alguém vocacionado para ter dúvidas e
fazer perguntas, posição que de certo modo casou bem com as formas
paradoxais que foram sendo assumidas pela própria aventura da
modernidade tardia, com sua sociabilidade esgarçada e dinâmica, com as
transformações surpreendentes da democracia, com as metamorfoses da
esquerda, do socialismo e do liberalismo.
De resto, Bobbio sabia bem o que a história italiana (o fascismo) continha de risco, trevas e ameaça. A tendência,
porém, era universal: o homem, ser ambíguo e
contraditório, não podia avançar sem conhecer misérias,
perigos e retrocessos, nem dando por superada, por um
ato de vontade ou de ingenuidade, a necessidade de se defender e de lutar contra poderes ameaçadores, mais ou
menos ocultos, mais ou menos ostensivos. A conquista
sucessiva, ininterrupta mas não-definitiva dos direitos
humanos representaria a construção de uma decisiva plataforma de progresso e civilização, ainda que não
pudesse ser tomada como garantia segura de futuro.
Hoje, dizia ele (Cf. “Os direitos humanos hoje”, infra), “as
ameaças à vida, à liberdade e à segurança provêm do poder da ciência e das suas aplicações técnicas”. Os
direitos humanos são um “novo ethos mundial”, mas
enquanto tais, estão alojados no mundo do dever ser, não
no mundo do ser, que sempre nos oferece um espetáculo
bem diferente. Proclamados de modo solene em inúmeras
declarações, os direitos humanos são sistematicamente
violados em quase todos os países do mundo. Afinal, a vontade de potência continua a dominar o curso da
história. A única razão de esperança reside no fato de que
a história conhece tempos longos e tempos breves, e a
história dos direitos humanos é a história dos tempos longos. Diante dela, o entusiasmo contido, a dúvida
metódica e um sereno desencanto seriam sempre
indispensáveis. Não estávamos à beira do abismo e a
humanidade avançava, mas seus passos seriam sempre claudicantes e encontrariam pela frente terrenos sempre
acidentados e inesperados. De resto, se é verdade que os
“profetas da desgraça” sempre anunciam a tragédia
iminente, nos enchem de receio e nos convidam a ser vigilantes, os “profetas do tempo feliz” nos oferecem
castelos nas nuvens e quase sempre lançam os olhos para
um futuro indeterminado e impreciso demais.
“Como nos salvaremos, quem nos salvará?”, questionou-se
incansavelmente um Bobbio desesperançado, convicto das conquistas inerentes aos “tempos longos” mas atônito,
como todos, perante o ritmo frenético do progresso
científico e tecnológico que, de tão intenso e fora de
controle, conseguia antecipar o futuro, alongar o passado e turbinar de modo quase irracional o presente.
Posicionou-se assim também diante da esquerda, dos
socialistas e dos comunistas de quem nunca quis se
afastar. Fiel a seu pessimismo, convidou-os insistentemente a ver o mundo com lentes mais realistas, a
não trocar a trágica contingencialidade da práxis pelo brilho
inebriante mas pouco operativo do “sol do futuro”, a não
minimizar a força sufocante e o “rosto demoníaco” do
poder, a desfazer-se sistematicamente de falsas crenças e de convicções infundadas. Nem sempre conseguiu
fundamentar com suficiente clareza suas posições. Sua
conclamação muitas vezes permaneceu abstrata e genérica
demais e não se compreende por inteiro em que base social concreta ele imaginava ancorar sua visão de política
e particularmente sua política de esquerda. Mas Bobbio
jamais pretendeu ser um propositor de programas de ação
imediatamente realizáveis. Sua intenção sempre foi a de abrir clareiras, instigar a que se visse o outro lado da lua,
emprestar clareza teórica e vigor doutrinário aos difíceis e
nem sempre transparentes embates políticos dos nossos
dias.
O pensador liberal-socialista permaneceu sempre fiel à
concepção individualista do mundo. A esperança repousaria
nos direitos humanos, que se referem antes de tudo aos
direitos dos indivíduos entendidos não como parte de grupos particulares ou de comunidades específicas, mas
como cidadãos de um Estado. O indivíduo singular era a
base da democracia liberal, procedimental, e precisaria ser
defendido diante de qualquer forma de multidão, massa ou comunidade. Sua postulação do indivíduo como prius
insubstituível, porém, não o impediu de reconhecer a força
dos processos coletivos e o valor dos direitos sociais, nem o
levou a se aproximar de posições niilistas ou egoístas.
Seu pessimismo ilustrado não o cegou para os avanços
obtidos em termos políticos, científicos, ideológicos e
sociais, nem o impediu de se projetar por inteiro no campo
do debate político e filosófico. Sua contribuição para a autoconsciência do século XX foi expressiva. Suas lições
sobre a postura e a missão do intelectual continuarão a nos
fazer pensar. Sua disposição para agir como um seguidor
da razão, não como um homem de fé, nos transmitiu uma
nova reiteração dos limites da razão, que, como ele observou várias vezes, “somente pode iluminar uma
pequena parte da escuridão que nos cerca”.
Trata-se de um legado grandioso, construído no correr de
setenta anos de uma militância intelectual integralmente
dedicada à filosofia, à teoria política, ao entendimento do
homem e do mundo contemporâneo. Sua morte, aos 94 anos, em vez de um vazio, cristalizou um exemplo de
coerência e manteve aberta a perspectiva da civilização.
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