NOITE DE OUTONO de Luís Mestre · Mas eis que o infeliz pai, da desgraça ignaro, entra de súbito...

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NOITE DE OUTONO de Luís Mestre 2017 Noite de Outono estreou no Porto, no Auditório Isabel Alves Costa, Teatro Municipal do Porto.Rivoli, a 30 de Março de 2017, com encenação de Luís Mestre, cenografia de Ana Gormicho, assistência de cenografia de Sofia Oliveira, desenho de luz de Joana Oliveira, e interpretação de Ana Moreira e António Durães, numa co-produção Teatro Municipal do Porto e Teatro Nova Europa.

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NOITE DE OUTONO

de

Luís Mestre

2017

Noite de Outono estreou no Porto, no Auditório Isabel Alves Costa, Teatro Municipal do Porto.Rivoli, a 30 de Março de 2017, com encenação de Luís Mestre, cenografia de Ana Gormicho, assistência de cenografia de Sofia Oliveira, desenho de luz de Joana Oliveira, e interpretação de Ana Moreira e António Durães, numa co-produção Teatro Municipal do Porto e Teatro Nova Europa.

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Personagens: DURÃES, cinquenta e muitos ANA, trintas

nota 1: as indicações cénicas aparecem entre parêntesis simples.

nota 2: algumas porções do diálogo aparecem entre parêntesis duplo, e servem para marcar uma pequena mudança de perspectiva por parte do emissor – uma mudança momentânea para um modo mais introspectivo.

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0 (Uma sala. Noite)

ANA (para o público) não vou contar tudo, esta noite. na verdade não há uma história, mas uma série de acontecimentos, acasos, coincidências, como acontece geralmente na vida e o sentido e ordem que têm… bom, são os que me apeteceu dar-lhes. (pausa) o meu nome é Ana e tenho trinta anos… ((mais ou menos.)) este aqui é o António. ele é muito mais velho do que eu. (silêncio) noite de outono. (silêncio curto)

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1 ANA (para o público) um: o ensaio.

(pausa)

DURÃES (dando algumas folhas a ANA) toma. não apresses.

ANA (para DURÃES) não apresso?

DURÃES lê com calma.

ANA (lendo. nervosa e apressada) Depois que os teus dois filhos chegaram com seu pai e…

DURÃES (interrompendo-a) lento!

(silêncio curto)

ANA (lendo. nervosa e apressada) Depois que os teus dois filhos chegaram com seu pai e entraram nos aposentos nupciais, a senhora que antes tinha…

DURÃES (interrompendo-a) está igual. (pausa) muito mais lento.

(silêncio muito curto)

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ANA (lendo. ainda nervosa e apressada) Depois que os…

DURÃES (interrompendo-a) mais lento.

(silêncio)

ANA (lendo. menos nervosa e menos apressada) Depois que os teus dois filhos chegaram com seu pai e… (para DURÃES) está bem assim?

DURÃES porque é que paraste? eu não te disse para parares. (pausa) disse? (silêncio) eu é que interrompo. sempre. (pausa) de novo.

(silêncio. ANA olha para as páginas)

ANA o que é que quer dizer exangue?

DURÃES sem sangue.

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ANA e peplos?

DURÃES é uma túnica sem mangas.

ANA e…

DURÃES (interrompendo-a) lê.

ANA eu não sei o que é que isto quer dizer.

DURÃES vais descobrindo. começa. (pausa) não apresses.

ANA (lendo. menos nervosa e menos apressada) Depois que os teus dois filhos chegaram com seu pai e entraram nos aposentos nupciais, a senhora que antes tinha o olhar ardente preso em Jasão, cobriu os olhos e voltou para o lado a face branca, tocada pela aversão que lhe causara o ingresso das crianças. Porém o teu marido dissipa as iras e a fúria da donzela, dizendo-lhe: Não sejas hostil a quem…

DURÃES (interrompendo-a) está uma merda. (pausa) tem de parecer real. tens de sentir o que estás a dizer.

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ANA não percebo metade do que digo.

DURÃES dobra a língua.

ANA dobrar a língua?

DURÃES é uma expressão. (pausa) sente a palavra. o peso, a tensão… a textura. (silêncio) de novo. a partir do pai.

(silêncio)

ANA Cai no solo, vencida pela desgraça, perfeitamente irreconhecí... (interrompe-se. Silêncio. Lentamente) Mas eis que o infeliz pai, da desgraça ignaro, entra de súbito em casa e cai sobre o cadáver. Logo um grito soltou, e cingindo-a com os braços, beija-a, exclamando:

DURÃES (interrompendo-a. no tom certo) Ó desventurada filha, quem dos deuses te perdeu desta forma ignominiosa? Quem priva de ti este velho, ao pé da sepultura? Ai de mim! Possa eu, ó filha, contigo sucumbir!

ANA (silêncio curto. Após alguma hesitação continua a ler) Depois que cessou gemidos e lamentações, querendo erguer o velho corpo, ficava

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aderente ao peplos subtil, como a hera aos ramos do loureiro, e era uma luta temerosa. Ele tentava levantar o joelho, e ela retinha-o. E cada vez que fizesse força, separava dos ossos as suas velhas carnes. Por fim, desistiu e exalou, o infeliz, o seu espírito, pois já não era superior ao mal. Jazem os cadáveres ao pé um do outro, o da filha e o do velho pai, uma desgraça que clama pelas lágrimas… (silêncio) e agora?

DURÃES ((apesar do problema seguimos em frente.))

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2 ANA (para o público) dois: a festa. (silêncio. para DURÃES) é a tua festa.

DURÃES para que quero eu uma festa. (pausa) porque preciso eu de uma festa?

ANA vão premiar-te: uma vida dedicada à arte.

DURÃES vou ter de estar disponível, ser simpático. afável. discursar.

ANA sim.

(silêncio)

DURÃES o prémio não é sobre mim, sobre a minha vida, sobre a arte, o sacrifício… (pausa)

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é sobre eles, que vão lá estar: os senhores doutores, os dramaturgos, os críticos, os programadores… sobre essa gentalha toda. não faltarão, em fila, para me congratularem e me darem a última oportunidade de lhes lamber o cú. (pausa) coisa que nunca fiz e também não é agora que o vou fazer. (silêncio curto) e depois da sessão de lambedura terei de me mostrar feliz e orgulhoso em frente de toda a gente. terei de representar. actuar. fazer uma encenação de mim mesmo. e eu, já não sei fazer isso. já não sei… encenar, actuar, criar um organismo vivo.

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ANA vais à cerimónia e recebes o prémio. não precisas de ir à festa. não te preocupes com isso. a festa não importa.

DURÃES querem dar-me o prémio, por ter falhado. por estar só. aqui. pensam que eu estou doente. nas últimas. se andasse pelos palcos estavam-se nas tintas. eles sabem que eu não vou voltar, por isso o prémio. é indiferente para eles. não lhes faz mossa. (silêncio curto) se estivesse com saúde e nos palcos não me davam um caralho. (silêncio) na verdade, ((o pior, é que têm toda a razão.))

ANA não precisas de ir sozinho. eu vou contigo.

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DURÃES porque é que haverias de fazer isso?

ANA porque não?

DURÃES não poderei pagar-te.

ANA não precisas.

(silêncio)

DURÃES não. seria pior.

ANA pior?

DURÃES sim.

ANA pensariam que eu era uma actriz. que te acompanhava.

DURÃES não. (pausa) o meio é pequeno: toda a gente se conhece.

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(silêncio)

ANA um jantar. (pausa curta) organizas um jantar, aqui. (pausa) com amigos.

DURÃES eles não apareceriam.

ANA porquê?

DURÃES já se foram embora.

ANA foram-se?

DURÃES desapareceram… (pausa) e agora, depois deste tempo todo, se cá voltassem seria estranho. esquisito. anormal. ((que jantar seria…))

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(silêncio) não. ficarei aqui. (pausa) para que preciso eu de um prémio?

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3 ANA (para o público) três. (pausa) ...blackout. (escuro)

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4 ANA (para o público) quatro.

(silêncio)

DURÃES conta-me qualquer coisa verdadeira.

ANA (para DURÃES) qualquer coisa verdadeira?

DURÃES qualquer coisa verdadeira sobre ti.

ANA o que quer saber? (silêncio) já não sinto nada.

DURÃES nada?

ANA nada. ninguém.

(silêncio)

DURÃES continua...

ANA um dia acordei de manhã e senti-me numa redoma.

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numa espécie de bolha de protecção. que me anestesiou, consumiu, e que me esgotou. era... um buraco negro. (silêncio) tentei sair dele, mas já não tinha as forças que me caracterizavam, quando tinha vinte, vinte e cinco anos. elas já lá não estão. e então, não consegui sair. debati-me um pouco, muito, mas nunca o suficiente. fiquei esgotada. (silêncio) depois, o torpor e a contemplação. fiquei como que hipnotizada durante semanas, meses... até que dei por mim a olhar para fora da redoma. desse buraco. não vi ninguém. e não está lá ninguém. onde estava toda aquela gente que me acompanhava? ((aonde foram?)) sozinha. só posso contar comigo. e foi nesse momento que percebi…

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que estou irremediavelmente fodida. tenho um corpo que já não é, a cabeça num pântano…

DURÃES como foste aí parar?

ANA perguntei-me isso: como vim aqui parar? o que fiz para estar aqui? (sorri levemente) não sei. (silêncio) nessa redoma, neste buraco, não há dimensão temporal. o tempo não existe. é um blur contante.

DURÃES blur?

ANA uma névoa confusa. obscura. e por isso, (rindo) tenho tempo. para pensar. para navegar na minha cabeça.

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DURÃES e o que é que encontras?

ANA o caminho, toda a longa viagem que me trouxe até aqui.

DURÃES e o que vês nessa viagem?

ANA episódios merdentos. todas as merdas que fiz até este instante.

DURÃES apenas isso?

ANA nunca percebi, em momento algum... nunca percebi que todo o caminho vinha parar a esta... obscuridade. ((como é que não percebi isso antes.))

DURÃES perdeste-te algures...

ANA perdi-me completamente algures. e pensava que estava no trilho certo.

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(sorri) estava tão enganada. tão perdida. tão desorientada. (pausa) como é que nunca percebi?

(silêncio)

DURÃES e agora?

ANA agora... aprendi a não esperar nada dos meus dias. e das noites. (pausa) não suporto a noite. (silêncio longo) mas... estou bem. acho. (pausa) habituei-me. dei por mim a perceber e a aceitar esta nova personagem. estranhei mas agora já me é próxima. íntima. (pausa) esta é a minha nova vida.

DURÃES (sorrindo) podes dizer que viveste duas vidas.

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ANA já não espero nada. não procuro nada.

(silêncio)

DURÃES parece que escolhi a pessoa certa para estar aqui.

ANA (pausa) já amanheceu?

DURÃES ...sim.

ANA vou dormir. (pausa. vai sair. pára e volta-se) tenho um sonho recorrente: estou a vestir-me. é um belo vestido, de sonho. (sorri) saio de casa e dirijo-me a um cemitério. é enorme, belo para quem gosta, cheio de jazigos e capelinhas de pedra. movo-me por entre elas. algo perdida, sem destino certo. até que, após uma caminhada demorada, sinto-me exausta.

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decido sentar-me. e sento-me, num canto, à sombra. está tudo em silêncio. fumo um cigarro. é bom. sabe-me bem. momentos depois, aparece um caixão segurado por quatro homens. cangalheiros. à frente deles o padre. e mais ninguém. é estranho não haver mais ninguém, não é? (silêncio) então decido acompanhá-los. e sem demora, num frenesim mudo, começam a descê-lo para a campa. e num ápice, desaparecem.

DURÃES quem era?

ANA fico curiosa e decido ver a campa. (pausa curta) é a minha. (silêncio) eu levei a minha morte àquele cemitério.

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(silêncio) morro sempre nos meus sonhos. e depois, já de manhã, acordo morta para o mundo. estou morta na minha nova vida. e é por isso que não suporto a noite. (silêncio longo) ((porque é que lhe contei isto?)) (sai)

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5 (silêncio)

DURÃES Sansão foi à cidade de Gaza, onde conheceu uma prostituta e passou a noite com ela. então comentou-se na cidade: Sansão está cá! fizeram rondas toda a noite vigiaram a porta de Gaza. mantiveram-se imóveis na noite até que decidiram descansar. argumentaram: esperemos até ao romper do dia, e nessa altura, matamo-lo. Sansão, porém, permaneceu deitado só até meio da noite. levantou-se, e para poder sair agarrou a porta da cidade de Gaza com toda a firmeza, pelos dois batentes, e arrancou-a, trancas e tudo. carregou a pesada peça sobre os ombros para o alto da colina, em frente à cidade de Hebrom. após estes acontecimentos, Sansão apaixonou-se por uma mulher do vale de Soreque. chamava-se Dalila.

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os senadores filisteus procuraram-na e propuseram-lhe: seduz Sansão e descobre de onde vem a sua força extraordinária, e de que modo poderíamos subjugá-lo. cada um de nós te dará treze quilos de prata! Dalila indagou Sansão: conta-me de onde vem a tua maravilhosa força e de que maneira podes ser vencido. Sansão explicou-lhe que se o amarrassem com sete tiras de couro novas, húmidas, ficaria tão vulnerável quanto qualquer outro ser humano. os líderes dos filisteus trouxeram a Dalila sete cordas de arco tão frescas que não tinham secado, e ela usou-as para amarrá-lo. e depois gritou: os filisteus vêm sobre ti, Sansão! ele arrebentou as tiras de couro frescas como se fossem fios de estopa que se aproximam do fogo. e ela não descobriu de onde vinha a sua poderosa força. mais tarde Dalila disse a Sansão: zombaste de mim e contaste-me mentiras. suplico-te, dá-me a conhecer o que seria necessário para te amarrar e subjugar. Sansão explicou-lhe: se me amarrassem firmemente com cordas novas

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que nunca tivessem sido usadas, eu seria tão fraco como qualquer homem! Dalila, de seguida, tomou cordas novas e conseguiu amarrar os braços dele. gritou: Sansão! os filisteus estão a atacar-te! ela tinha escondido alguns homens no quarto. mas ele rompeu as cordas como se fossem frágeis linhas. depois disso, Dalila voltou a pedir-lhe: até agora brincaste e iludiste-me com mentiras. conta-me com que devo amarrar-te. então ele declarou: se teceres sete tranças com a minha cabeleira, as embrulhares num pano e as prenderes com um pino de tear, ficarei vulnerável. noite dentro, com Sansão a dormir, Dalila teceu as sete tranças e gritou: Sansão! os filisteus!!! ele saiu do sono rapidamente e arrancou o pino com o tecido. Dalila protestou: como podes dizer que me amas se o teu coração não está comigo?

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três vezes fizeste de mim tola e não me revelaste a verdade sobre onde reside a tua grande força. todos os dias ela insistia, importunando-o. e ele foi se cansando dia após dia, ao ponto de se angustiar até à morte. e foi então que decidiu abrir o coração, revelando-lhe o seu segredo: nunca passaram uma navalha sobre a minha cabeça, pois sou nazireu, quer dizer aquele que é por inteiro, consagrado a Deus desde o ventre da minha mãe. se fosse rapado todo o meu cabelo, a minha força extraordinária desapareceria. finalmente, Dalila sentiu que Sansão havia aberto o coração e revelado o seu segredo. mandou logo chamar os líderes dos filisteus que lhe levaram toda a prata prometida. com Sansão adormecido no seu colo, ela rapou-lhe todo o cabelo e as sete tranças. vendo as suas forças a esvaírem-se, acordou-o e humilhou-o. os filisteus prenderam-no, furaram-lhe os olhos e levaram-no para Gaza. amarraram-no com algemas de bronze e, no cárcere, obrigaram-no a girar um moinho. seguem-se os festejos,

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as comemorações e os sacrifícios aos Deuses. até que deciciram exibi-lo para que o povo possa divertir-se com ele. o cabelo da sua cabeça, logo depois de rapada, começou a crescer rapidamente. colocaram-no em pé entre as colunas do templo. Sansão pediu ao jovem que o guiava pela mão que o deixasse apoiar nas colunas em que se baseia o templo. estava repleto de filisteus que tinham vindo para o ver: homens e mulheres, príncipes e líderes. de repente, Sansão ergue um clamor a pedir, pela última vez, forças ao seu soberano. imediatamente forçou as duas colunas centrais sobre as quais o templo todo se firmava. apoiando-se nelas, com a mão direita numa coluna e a esquerda noutra, exclamou: que eu morra com os filisteus! o templo desaba de uma só vez, com toda a sua extraordinária força, sobre todos os que ali se reuniam. um povo inteiro deixou de existir. Sansão,

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na hora da sua morte, matou mais gente do que em toda a sua vida. (silêncio) não sou Sansão. já não sou Medeia.

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6 ANA (para o público) seis. (silêncio) Erbarme dich, mein Gott um meiner Zähren willen! Schaue hier, Herz und Auge weint vor dir bitterlich Erbarme dich, mein Gott. (silêncio) Tende piedade, meu Deus, pelo meu pranto! Vede aqui, perante vós, coração e olhos choram amarguradamente. Tende piedade, meu Deus.

(ANA dirige-se a um velho gravador de fita magnética. liga-o. ouve-se uma gravação de 25 de Junho de 1950, Bach 'Erbarme Dich' com Kirsten Flagstad. enquanto se ouve a música, DURÃES move-se pela sala como um fantasma, realizando várias acções. ANA testemunha-o. escuro após o final da música)

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7 ANA Depois que os teus dois filhos chegaram com seu pai e entraram nos aposentos nupciais, a senhora que antes tinha o olhar ardente preso em Jasão, cobriu os olhos e voltou para o lado a face branca, tocada pela aversão que lhe causara o ingresso das crianças. Porém o teu marido dissipa as iras e a fúria da donzela, dizendo-lhe: Não sejas hostil a quem me é caro, aplaca a tua ira, torna a volver o rosto, e tem por amigos aqueles que o são para o teu esposo; recebe estes presentes e roga a teu pai que perdoe o exílio a estas crianças, por amor de mim. E ela, ao ver o adereço, não resistiu, e deu ao marido o seu consentimento para tudo. E, mal se tinham afastado de casa o pai e os filhos, pegou no peplos matizado e vestiu-o e, colocando a áurea coroa sobre os anéis do cabelo, compõe o penteado a um espelho brilhante, sorrindo à imagem inanimada do seu corpo. E depois, levantando-se do trono, passeia pela casa, caminhando leve, com seus alvos pés, muito feliz com as dádivas e, muitas e muitas vezes, retesando a perna, olhava para trás, a ver se caía bem. Então um espectáculo terrível se pôde ver: a cor se lhe muda, e avança cambaleante, os membros trementes, e a custo consegue deixar-se cair sobre o trono, antes de tombar por terra. Uma das criadas antigas soltou um grito, antes mesmo de ver pela boca golfar alva espuma, as meninas dos olhos reviradas e o corpo exangue. Então um grande lamento em contrário respondeu àquele grito. Logo uma se precipitou para a casa do pai, outra para o esposo de há pouco, a contar a fatalidade da noiva. E toda a casa ressoava com o ruído das correrias apressadas. E ela, no meio do seu silêncio e de olhos semi-cerrados, despertou, pobre donzela, com um gemido. Uma dupla aflição a atacava: o diadema de ouro, colocado na cabeça, a largar uma torrente mágica de fogo omnívoro, e o peplos subtil, dádiva dos teus filhos, lacerava as brancas carnes da desventurada. Do trono se ergue, em chamas, agitando o cabelo e a cabeça em todas as direcções, querendo arrancar a coroa. Mas, solidamente, o ouro retinha a sua presa, e o fogo, depois de ela sacudir a cabeça, brilhava com outro tanto fulgor. Cai no solo, vencida pela desgraça, perfeitamente irreconhecível, excepto a quem a gerara. Pois já nem dos olhos era visível a bela forma, nem a nobreza do

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seu rosto, mas sangue à mistura com fogo que gotejava do alto da cabeça, e dos ossos as carnes lhe escorriam, tal a lágrima que cai do pinheiro, consumidas pelas fauces ocultas dos venenos – um espectáculo pavoroso! Todos tinham medo de tocar no cadáver. Mas eis que o infeliz pai, da desgraça ignaro, entra de súbito em casa e cai sobre o cadáver. Logo um grito soltou, e cingindo-a com os braços, beija-a, exclamando: Ó desventurada filha, quem dos deuses te perdeu desta forma ignominiosa? Quem priva de ti este velho, ao pé da sepultura? Ai de mim! Possa eu, ó filha, contigo sucumbir! Depois que cessou gemidos e lamentações, querendo erguer o velho corpo, ficava aderente ao peplos subtil, como a hera aos ramos do loureiro, e era uma luta temerosa. Ele tentava levantar o joelho, e ela retinha-o. E cada vez que fizesse força, separava dos ossos as suas velhas carnes. Por fim, desistiu e exalou, o infeliz, o seu espírito, pois já não era superior ao mal. Jazem os cadáveres ao pé um do outro, o da filha e o do velho pai, uma desgraça que clama pelas lágrimas. Parece que muitos foram os males que com justiça... (interrompe-se)

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8 ANA (para o público) oito. a penúltima. (sai. a luz muda. fora de cena para DURÃES) está aí alguém? (silêncio) ei. ninguém? (silêncio) está aqui alguém?

(DURÃES não responde. pausa. ANA entra e vê DURÃES)

DURÃES não tenhas medo. (pausa) entra. está à vontade.

(silêncio)

ANA a porta estava aberta.

DURÃES aberta?

ANA sim. (pausa curta) muitas vezes. (pausa) passo aqui na rua muitas vezes

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e está aberta. quase sempre aberta.

DURÃES e hoje decidiste entrar.

ANA hoje, não resisti. não sabia que era o senhor.

DURÃES o senhor… eu?

ANA sim, você. (pausa) não fazia ideia que vivia nesta casa. (sorrindo) a da porta aberta.

DURÃES vives aqui perto?

ANA porquê?

DURÃES disseste que passavas muitas vezes por aqui.

ANA não. não vivo por aqui.

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DURÃES diz-me, o que fazes por estes lados?

ANA a porta estava aberta...

DURÃES trabalhas neste bairro? (ANA não responde) o que procuras aqui?

ANA (pausa) comida.

DURÃES tenho bastante comida. fui hoje ao mercado. (pausa) és vegetariana?

ANA eu sei. por isso entrei.

DURÃES sabes o quê?

ANA vi-o a regressar do mercado. (pausa curta) vejo-o sempre.

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(pausa) a porta ficou aberta.

DURÃES porque não entraste nessa altura? quando eu estava no mercado.

ANA porque não tinha comida. (pausa) você não é vegetariano.

DURÃES tu és?

ANA gastou uma fortuna em carne vermelha.

DURÃES arranjo-te um bife. (ANA não responde) qual é o teu nome?

ANA como é que me quer chamar?

DURÃES quero saber o teu nome.

ANA Ana.

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DURÃES é o teu nome verdadeiro?

ANA sim.

DURÃES queres beber alguma coisa?

ANA uma cerveja. (pausa curta) com o bife.

DURÃES costumas fazer isto?

ANA isto o quê?

DURÃES entrar na casa de desconhecidos.

ANA ninguém deixa a porta aberta. e você não é propriamente um desconhecido. (pausa) pelo menos para mim.

DURÃES ah não?

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ANA você é aquele homem do teatro.

DURÃES (sorri levemente) já não sou. (pausa) o que faz de mim um perfeito desconhecido.

ANA já não é?

DURÃES não. (pausa) perdi-me algures.

ANA perdeu-se? como é isso? perder-se...

DURÃES eu gosto dos meus bifes bem passados. e tu?

ANA já não faz teatro?

DURÃES já não faço teatro. na verdade, já não faço nada.

ANA nada?

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DURÃES nada mesmo.

ANA então... faz o quê?

DURÃES já o disse: nada.

ANA anda por aí.

DURÃES sim. vagueio.

ANA à espera que o tempo passe?

DURÃES às vezes vou ao mercado. (pausa) afinal, como queres o bife?

ANA eu não engulo.

DURÃES não engoles?

ANA não. chupo mas não engulo.

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(silêncio) não é isso que quer pelo bife?

(silêncio)

DURÃES queres o teu bife bem ou mal passado?

ANA tanto me faz. desde que seja o bife primeiro.

DURÃES o bife é oferta da casa.

ANA não quer nada? pelo bife.

DURÃES não.

ANA toda a gente quer alguma coisa de toda a gente.

DURÃES toda a gente...

ANA alguém quer sempre alguma coisa de alguém.

DURÃES e tu queres o quê?

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ANA comida. (pausa curta) já o disse.

DURÃES parece-me pouco.

ANA estou esfomeada.

DURÃES não tenho nada de valor aqui.

ANA o quê?

DURÃES só livros, papelada. coisas velhas sem importância.

ANA eu não sou nenhuma ladra.

DURÃES és apenas uma esfomeada.

ANA arranja-me um bife ou não?

DURÃES só queres o bife? mais nada?

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ANA e a cerveja.

DURÃES (pausa) aqui estás tu. uma porta aberta... e uma casa desconhecida. arriscas entrar por um bife e uma cerveja.

ANA estou...

DURÃES ...esfomeada. já sei. (pausa) ias ao mercado.

ANA não tenho dinheiro. dá-me o bife ou não?

DURÃES bem ou mal passado?

ANA vou-me embora.

(ANA dirige-se para a saída)

DURÃES proponho-te uma coisa.

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(ANA pára. volta-se)

ANA alguém quer sempre alguma coisa de alguém. (silêncio) e o que quer? (pausa longa) por trás? (pausa curta) por cima? (pausa) por baixo? (pausa) com a mão. (pausa longa) quer meter o punho? ou meto-o eu? (silêncio) chuva dourada? (silêncio longo) qual é a sua fantasia?

DURÃES a minha fantasia não te inclui.

ANA ahh...

(silêncio)

DURÃES não tens poder de negociação aqui.

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ANA vou voltar para a rua.

DURÃES porque haverias de fazer isso? (pausa) ainda não ouviste o que eu tenho para te propôr.

ANA que tipo de proposta é?

DURÃES queres o bife bem ou mal passado?

ANA mal passado. vai dizer-me?

DURÃES gostas de mostarda?

ANA mostarda?

DURÃES sim. molho de mostarda a acompanhar.

ANA oh foda-se.

DURÃES não és lá muito paciente, pois não?

ANA nunca fui.

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DURÃES a minha proposta é simples.

ANA óptimo.

DURÃES e quanto ao molho?

ANA é essa a sua proposta. o molho?

DURÃES não.

(silêncio)

ANA sabe fazer molho de cerveja?

DURÃES sei.

ANA quero molho de cerveja para acompanhar o bife... e a cerveja.

DURÃES parece-me coerente.

ANA e a sobremesa?

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(pausa) não tem nada para a sobremesa?

DURÃES só café.

ANA mais nada?

DURÃES mais nada.

(silêncio)

ANA vai dizer-me alguma coisa?

DURÃES onde é que vives?

ANA onde é que durmo?

DURÃES sim. onde é que dormes.

ANA em qualquer sítio com colchão e tecto.

DURÃES então, és nómada.

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ANA nunca ouvi chamarem-lhe isso.

DURÃES se não tens lugar fixo, és uma nómada.

ANA eu tenho um lugar fixo. mas não onde durmo. (pausa) é onde me encontram todos os dias.

DURÃES podes dormir aqui.

ANA aqui?

DURÃES porquê a surpresa? (pausa) tenho tecto e colchão.

(silêncio)

ANA eu não sou faxineira. nem cozinheira.

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DURÃES eu já tenho quem me limpe a casa. vem às quintas.

ANA eu não sei cozinhar.

DURÃES sei eu.

ANA não estou a perceber... (pausa) o que quer de mim?

DURÃES quero que fiques por aqui.

ANA o quê?

DURÃES quero que fiques aqui.

ANA só isso?

DURÃES só isso.

ANA você está completamente fodido da cabeça.

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DURÃES já há muito tempo que não ouvia algo tão verdadeiro.

ANA foda-se. agora percebo porque deixa a porta sempre aberta. (pausa) para uma estúpida como eu entrar. (pausa curta) adeus.

(ANA dirige-se para a saída)

DURÃES preciso que me testemunhes. (ANA pára. pausa) quero que fiques aqui e me testemunhes.

(ANA pára. volta-se)

ANA o que é que essa merda quer dizer? (pausa) quer que eu fique a vê-lo a bater uma?

DURÃES não.

ANA precisa de gente a assistir.

DURÃES não é isso.

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ANA não consegue fazê-lo sozinho.

DURÃES nada disso.

ANA então?

(silêncio)

DURÃES preciso que fiques aqui.

ANA a vê-lo a fazer nada.

DURÃES exactamente.

ANA só isso.

DURÃES apenas isso. (pausa) preciso que testemunhes, valides, e confirmes a minha existência. diariamente.

(pausa)

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ANA está feito. agora, o bife e a cerveja. (pausa curta) é para levar.

DURÃES quero que fiques aqui sempre.

ANA está doido.

DURÃES ficas a viver cá.

ANA e vamos jogar à canasta.

DURÃES não. só presenciar. (pausa) atestar...

ANA ...que você existe.

DURÃES exactamente.

ANA diariamente.

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DURÃES constantemente. (silêncio) preciso que me confirmes que eu existo.

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9 ANA (para o público) nove. a última.

DURÃES (lê, em voz alta, o poema EMPÉDOCLES de Holderlin. ANA vai tirando algumas fotografias com uma máquina fotográfica analógica) É a vida que buscas, e eis que brota e brilha Vindo das profundezas da terra um fogo divino, E tu, em ânsia transida de pavor, Mergulhas nas chamas do Etna.

Assim diluiu pérolas no vinho a arrogância Da rainha; e podia fazê-lo! Ah, se apenas Não tivesses sacrificado a tua riqueza, ó Poeta, Lançando-a no cálice em fermentação!

Porém és para mim sagrado como o poder da terra Que te arrebatou, ó audaz morto! E gostaria de ao herói me juntar Nas profundezas, não fosse o amor a prender-me.

(fim de poema. pausa. ANA pousa a máquina fotográfica analógica e dirige-se ao velho gravador de fita magnética. liga-o. ouve-se, de novo, a gravação de 25 de Junho de 1950, Bach 'Erbarme Dich' com Kirsten Flagstad. ANA sai. pausa longa. para ele próprio)

já não te reconheço. em mim só há tristeza, pois tudo o que dizes é um enigma. que te fiz, que te fiz eu para que me aflijas? (silêncio)

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não era isso o que eu esperava, quando, desprezado, passava, timidamente, pelas casas dos homens... caminhando numa noite selvagem. (pausa) e não foi para isso, meu caro, que fiquei contigo quando, junto com as lágrimas, a chuva do Céu rolava do meu rosto; e contemplei-te quando, sorrindo, secava ao sol quente do meio-dia as minhas vestes de escravo; e quando, sobre a areia sem sombra, como um animal ferido, desenhava horas a fio as minhas pegadas. ai! eu não deixei tudo para que tu, no lugar onde queres viver e descansar, me pusesses de lado como um vaso já usado. (pausa) queres ir para longe? mas onde? (mais alto) para onde?

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(silêncio longo) continuas, continuas a tentar-me, e vens ter comigo, mau espírito, nesta hora. porque não me deixas em paz? e ousas falar comigo e irritar-me para que em fúria percorra os teus caminhos. (silêncio) já homem, não sabia o que de estranho diante dos meus olhos à luz diurna se movia. com assombro ouvia muitas vezes o fluir das águas e via o sol florir e inflamar-se. então nasceu em mim um canto e iluminou-se o meu coração. assim me fiz, quando, aparentemente, já outro destino me esperava. pois mais violenta do que a água, a indómita onda humana da traição rebentou-me no peito, e dessa deriva chegou-me aos ouvidos a tua voz, quando, eu em silêncio me encontrava no átrio, a erguer à meia-noite os lamentos da revolta,

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assaltado em calafrios. ouvi-te e ergui o meu olhar para o astro silencioso, de onde outrora vieste. avancei. ainda passei muitos dias belos. tudo parecia rejuvenescer. mas, estranhamente, ao recordar a idade de ouro, a plena confiança, a manhã clara, vigorosa, desvaneceu-se tudo. aconteceu. (silêncio muito longo) agora caminharei contigo. (silêncio) ainda que desças do cimo da montanha até ao vale sem fundo para aí visitares, conciliador, os violentos, os Titãs que nas profundezas se encontram, e ousares entrar no santuário do abismo, onde se oculta do dia o coração sofredor e as suas dores, eu seguir-te-ei na tua descida. (silêncio muito longo) ah! aproxima-se cada vez mais a minha hora, a hora dos abismos. vem, caro mensageiro da minha noite, vento do entardecer.

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está a chegar o momento! oh, agora bate, meu coração, agita as tuas ondas, por cima de ti está o astro luminoso, enquanto as nuvens do céu, sem pátria, sempre em fuga vão passando. (pausa) oh, tenho de me assombrar, pois tudo é diferente, e só agora... (pausa) sou eu. sou. (silêncio) vou morrer? apenas para o escuro. ((onde estão os meus amigos?)) aqui estou eu, na hora nova, há tanto tempo predisposta. oiço o silêncio em redor. (silêncio) oh...que noite esta. (escuro)