N.O456/7 SET./OUT. NOV./DEZ. 1983 - … Nome da...Crítica de Livros UMBERTO Eco - «11nome della...

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N.O456/7 SET./OUT. NOV./DEZ. 1983

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N.O456/7 SET./OUT. NOV./DEZ. 1983

RBVISTA DE CuLTUllA E ARTE

Revista bimestralDep6sito Legal n.O 1408/82

Vol. XLIlI, n.O 456/457Coimbra, Set./Out., Nov.//Dez. 1983

Director: Ivo CoRTESÃO

Propriedade: VÉR TI CE,Empresa Jornalistica, SARL

Direcção, Redacção eAdministração: Rua Fer-nandes Tomás, 55/A-2.03000 Coimbra Te!. 24904

Composição e impressão:Imprensa de Coimbra, Lda,Largo de São Salvador, 1-33000 Coimbra

Distribuição: VÉRTICE,Empresa Jornallstica SARL

Redactores :

Albert o Januário, AnlbalAlmeida, A. J. AvelãsNunes, Car/os Santarém An-drade, Guilherme Figuelredo,Herlander Tomás, lvo Corte-são, João Gouveia Monteiro,João Pau/o Monteiro, JorgeAraújo, Jorge Leite, José Ba-rata, J. Gomes Canotilha,Maria José Vitorino Gon-çalves, Maria Manuel LeitãoMarques, Nuno Ribeiro, Se-vero de Meio, Vital Moreira

Capa: Armando Alves

Gravura da capa: Gravurade J. Abel Manta

PORTEPAGO

sumário

3 EDITORIAL

ESTUDOS E ENSAIOS

5 A. Carlos Santos, Crise da critica e ideologia dacrise

27 Nelson RibeirojAnt6nio Mendonça, A Critica daCrise

55 Alfredo Marques, Do carácter estrutural da crisee da sua especificidade em Portugal

69 Henrique Meireles, A Crise da Filosofia marxistae o Marxismo

100 Miguel Baptista Pereira, Crise e Critica

CRIAçÃO LITERÁRIA

143 Eufrásio Filipe, Em cada seixo se move144 Orlando da Costa, Recordemos Alentejo146 João Vário, Fragmento de EXEMPLOS, Livro VI148 Pepe Cáccamo, Rio das Pedras149 Jorge dos Santos, Dimensão ultra-sensorial

REVISTA

PERFIL

154 Ana Cristina Bartolomeu D'Araújo, A propósito do5.0 Centenário de Martinho Lutero -+

Preço deste número: 250 ESCUDOS

OUTROS MODOS

163 Nunes Carneiro, Notícias do Porto

167 João Quaresma, Festival Internacional de Expres-são ibérica - FITEI/83

CRITICA DE LIVROS

\69 Rita Marnoto, «Il nome della Rosa: a aberturade um texto fechado» de Umberto Eco

178 Orlando Cardoso, «Os Meninos de Ouro» deAgustina Bessa Luís

\81 João Paulo Monteiro, «Desnudez Uivante» deJosé Marmelo e Silva

REVISTA DAS REVISTAS

183 J.P.M., Serpente

184 J.P.M., Mealibra

184 J.P.M., Crisol

185 J.J.G.C., Sistema

187 S.M., Encuentro

CRÓNICA

188 Jaime Rodrigues Viana, Crónica de Lisboa - II

190 NOTIcIAS VÉRTICE

VÉRTICE agradece to-da a colaboração que lheseja enviada, mas não seobriga a publicá-Ia. Ostextos devem vir dactilo-grafados e acompanha-dos de uma cópia. Ostextos enviados não se-rão devolvidos.

Os textos assinados sãoda responsabilidade dosseus autores, não se com-prometendo a Redacçãocom os respectivos pon-tos de vista.

Preço das Assinaturas(ANUAL: 6 números)

Portugal.. 630$00

A/rica de LlnguaPortuguesa eEspanha • • • 900$00

Outros palses es-trangeiros:Individual .

Insti tuições

25 dólaresU.S.A.

35 dólares

Nota: via aérea para o es-trangeiro

Crítica e Crise

1- No n." 453 (Março/Abril de 1983) prometeu Vértice dedicar-se àanálise dos problemas actuais do marxismo e do estado actual da discussãomarxista em vários dominios teóricos. Impunha-se recordar Marx sem come-morar Marx; questionar os paradigmas marxistas para regressar ao marxismocomo paradigma teórico-crítico; testar as referências marxistas para descobriros novos «referentes»; consciencializar o imaginário histórico marxista parapenetrar nos labirintos do novo «lmaginârie».

2 - Discutir «paradígmas», «referentes» e «imaginários» em termos abs-tractos não se afigurava ser o caminho metodologicamente mais frutuoso parapontualizar criticamente problemas de teoria e praxis do último quartel doséc. XX. Fazer a fenomenologia da crise e utilizar a arma da crítica paracompreender com rigor a sociedade e o Estado do seu tempo foi um dos legadosanaliticos de Marx que tem sobrevivido às «crises do marxismo» e às mudançasde estilo do discurso teórico-prático. Crise e crítica, eis dois tópicos paradigmá-ticos susceptíveis de uma aproximação moderna, mas cuja compreensão postulaum «rigor arqueológico» necessariamente recorrente a Marx e aos «íntertextos»que o informaram e formaram. Não se trata de debater apenas problemas emmoda, demasiado banalizados e deliberadamente codificados pelas novas ideo-logias dominantes. O objectivo é antes demonstrar que, afinal, as críticase as crises continuam a ser objecto da história apaixonada dos homens, na sualuta contra as várias formas de alienação.

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3 - O número que Vértice oferece aos leitores e à publicidade crítica nãocorresponde aos projectos iniciais da redacção. Torna-se cada vez mais difícilmobilizar pessoas em tomo de uma prática teórica que os novos formalismose academismos pretendem lançar para os dominios da marginalidade estéticae cultural e para as áreas de menoridade intelectual. O desafio aqui está:a crise do nosso tempo pode e deve ser «iluminadax através da adaptação dosinstrumentos analíticos marxistas aos mundos de referência do nosso país e donosso tempo. A estagnação do pensamento de esquerda só pode ser vencidase o discurso retomar vigor e rigor e se a ruptura, quando necessária, for clara-mente assumida.

4 - As crises podem transformar-se em momentos adequados para opera-ções simbólicas de regresso às fontes e constituir a ocasião propícia para re-cria-ções dos problemas colectivos e dos elementos constitutivos da sociedade. Apro-veitemos estes momentos e esta ocasião para criticar as novas simbolizaçõesmesmo que o preço a pagar seja o de uma difícil mas inadiável reavaliação decertas representações arcaicas e ultrapassadas.

A Redacção

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Crítica de Livros

UMBERTO Eco - «11nome della rosa»: a abertura de um texto fechado

Nada é mais aberto do que umtexto fechado

UM1lERTO Eco

o romance de Umberto Eco 11 nomedella rosa (I) nasce da tensão intelectualque tem levado o seu conhecido autor aanalisar os processos de cooperaçãointerpretativa (leitor/autor) nos textosliterários. Não será de modo algumirrelevante, a este propósito, o facto deque na nota impressa na badana dasobrecapa deste romance apenas sejammencionados dois momentos da carreiraensaística de Eco: o terminus a quo, umestudo sobre estética medieval queremonta a 1956, e o terminus ad quem,o seu último livro, que analisa a situaçãodo leitor nos labirintos da narratividade,publicado em 1979.

Áreas estas que, desde os exórdiosdeste estudioso, de modo algum seapresentam como campos de investigaçãoestanques. Ao mesmo tempo que sededica ao estudo de questões de estéticamedieval, Eco prepara Opera Aperta,trabalbo este que o virá a consagrar comoteorizador dos movimentos de neovan-guarda e como precursor da problemati-zação literária elaborada pela críticaeuropeia nas duas décadas seguintes - anoção de arte como produção discursiva,

como metáfora epistemológica, comomodelo formal e formativo resultante de

(Capa da edição original)

uma relação fruitiva, o papel do leitorna leitura-interpretação.

(1) Milano, Bompiani, 101983. Todas as referências a esta edição serão dadas paren-teticamente no texto. Vd. a recente tradução portuguesa O nome da rosa, Lisboa, Difel, s.d ..

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Poética medieval e teorização dastendências da novíssima literatura reve-lam-se, no trabalho de Eco, núcleos deinteresse em constante relação dialéctica.Se o ensaio que dedica à poética de Joycese estrutura a partir da análise das analo-gias mantidas entre os princípios estéticosdo aquinense e o universo literário joy-ciano (1), no prefácio à segunda ediçãoda sua tese de licenciatura, em cujocapítulo final, aliás, modelo cognoscitivoe método tomistas são confrontados comos do estruturalismo, Eco não deixa desublinhar o relevante papel que na suabiografia intelectual desempenha a liçãometodológica de rigor e lucidez de Tomásde Aquíno (2).

Ora, li nome de/la rosa, ao pôr emjogo a vasta e complexa experiência inte-lectual do seu autor - do interesse porproblemas de estética medieval a incursõesnos labirintos da narratividade, de ensaiossobre o feuilleton e o policial à actividadejornalística - apresenta-se como umaespécie de «curriculum vitae» do próprioEco. Logo na nota de apresentação dolivro, dificilmente atribuível a outra penaque não seja a de Eco, o leitor é advertidoem relação à dificuldade em definir li nomedella rosa: gothic novel, crónica medieval,romance policial, conto ideológico comchave de leitura, ou alegoria?

11 nome de/la rosa conta a história deuma cadeia de delitos levados a cabo emfins de Novembro de 1327 numa abadiabeneditina situada na Itália setentrional,ao mesmo tempo que sérios problemasopõem João XXII a Luís da Baviera.

É encarregado de desvendar a trama osagaz frade-semiólogo Guglielmo de Bas-kerville, um franciscano inglês amigo deOccam e de Marsílio de Pádua, admiradordas máquinas do seu conterrâneo RogerBacon, tendo por ajudante um noviçobeneditino, Adso de Melk, amanuenseda narrativa.

Mas voltemos de novo à nota impressana badana do livro. Aí são previamentesugeri das ao leitor três vias propedêuticasde leitura. A primeira categoria de lei-tores será proeminentemente atraída pelasperipécias do desenrolar da trama, eseguirá com a maior atenção as longasdiscussões de carácter filosófico e livresco.A segunda senda de leitura, respeitanteàs conexões com a actualidade, é apresen-tada para logo ser negada. A últimacategoria de leitores considerará 11 nomede/la rosa enquanto livro feito de outroslivros, «policial de citações».

Surpreendente tutela do teorizador deOpera aperta. «É uma obra fechada»,exclama Maria Corti (3). 11 nome dellarosa é estruturado de forma a observarrigorosamente as unidades aristotélicasde acção, tempo e lugar. Assim temos:uma cadeia de acontecimentos enigmáticosque se desenrola ao longo de sete diaspontualmente escandidos pelas horascanónicas da vida monástica, numaabadia separada do século por muralhase escarpas. Clausura esta corroboradade processos de hipercodifícação, como otítulo-resumo incipit de cada capítulo,ou o recorrente uso da citação. Alémdisso, o prestígio da abadia advém damagnlfíca biblioteca que se encontra

(1) UMBERTOEco, Le poetiche di Joyce. Dalla «Summa» ai «Finnegans Wake»,Milano, Bompiani, 1965.

(2) 10.,11 problema estetico in Tommaso d'Aquino, MiJano, Bompiani, 31970.(3) <<E un'opera chiusa», in L'Espresso, 19-10-80.

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alojada no seu Edifício, uma das melhoresbibliotecas medievais, todavia de estruturalabiríntica e cuja entrada é peremptoria-mente interdita.

Mas do adequado manejo de umanota de apresentação podem resultar osmais subtis jogos de cooperação interpre-tativa. «[... ] un testo e un prodotto laeui sorte interpretativa deve far parte deiproprio meeeanismo generativo: generareun testo significa attuare una strategiadi cui fan parte le previsioni delle mossealtruí», afirma Eco (1), mestre de jogos deleitura, comparando o processo de coope-ração interpretativa, tal como ocorreno texto narrativo, ao que norteia asprevisões da estratégia bélica do inimigonum confronto entre Napoleão eWellington,

Ao leitor ponderado de 11 nome de/larosa, que se sabe nas mãos de um espe-cialista de estratégias e labirintos decooperação textual, não resta senão obe-decer e aceitar humildemente as regrasdo jogo propostas. Vejamos então a quedomínios pode conduzir uma leitura doromance de Eco que leve à risca o métodosugerido na referida nota de apresentação,isto é, uma leitura cúmplice que se deixefielmente tutelar pelas três vias de inter-pretação apresentadas.

Das três sendas de leitura, uma delasé logo à partida negada. Seria de prever

que uma abordagem de li nome della rosacomo paródia da Itália de hoje se revelariapor demais aliciante (o ideário dos heregesque não pilham para possuir, não matampara pilhar, mas matam para punir, parapurificar os impuros através do sangue(cf. p. 387) parece um decalque das tesesdefendidas pelas Brigadas Vermelhas; nãobastasse isso, é ainda apresentada aconfissão de um pentito, Remigio, queenfim reconhece que também se peca porexcesso de amor de Deus (ib.); as ordensmenores, cujas prédicas não poderãodeixar de reenviar para o «compromisso»,o «projecto» e a «via alternativa» propa-gandeados pelo P.C.I.; o papado e osgrandes centros do poder económico;e o itinerário seria longo). Mas Ecodesde logo tentou controlar o domíniomonopolizador desta via de leitura, e nãosó através da nota de apresentação doromance, negando-se a legitimá-la, mastambém através de declarações feitas àimprensa (2). A questão será outra.

A grande erudição do medievalistaEco é de facto egregiamente demonstradapelas densas páginas onde se acumulamdensos conhecimentos de filosofia, teo-logia, botânica e magia negra, e por entreas quais decorrem doutas disputas acercada dissensão Papa/Imperador, do pro-blema da heresia, do credo professadopelas ordens menores, da pobreza de

(1) Lector in fabula. La cooperazione interpretativa nei testi norrativi, Milano,Bompiani, 1979, p. 54 (<<[ •.. ] um texto é um produto cuja sorte interpretativa deve fazer partedo próprio mecanismo gerativo: gerar um texto significa actuar uma estratégia da qualfazem parte as previsões das movimentações do ourto»).

(2) Cf. LAURALILLI, «Quest'Eco che giunge dal passato», in La Repubblica, 15-10-80;Mário Frusco (entrevista de), «Umberto Eco: 'Um romance não é uma questão de linguagemverbal mas de construção cosmológica'», in Jornal de Letras Artes e Ideias, 14-9-82; «Sherlockin der Kutte», in Der Spiegel, 29-11-82; UMBERTOEco, «Postille a '11 nome deIla rosa'»,in Alfabeta, giugno 83 (algumas destas declarações são retomadas na entrevista feita porRogério Petinga, «Um romance é uma máquina para gerar interpretações», in Diário deNotícias, 5-11-83).

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Cristo, reconstruindo escrupulosamentesabedoria e hábitos de vida de umaépoca. O talento divulgador de Eco nãoé novidade para ninguém. No casoespecífico de Il nome della rosa, é a formacomo este material se entrelaça com asequência da acção a cativar a atençãodo leitor, empenhado em descortinar o fiocondutor da aventura por entre tão densaspáginas de erudição.

Eco conhece bem as regras do romancede acção, como demonstram os trabalhosdedicados ao mais popular tipo de romancede acção, o policial. Num ensaio sobreFleming, Eco nota que a rígida mecânicaque enforma os seus romances, aliada aofacto de que o leitor tenha prévio conhe-cimento de planos e características do cul-

pado, favorecem um baixo índice coope-rativo (1). Não é isto o que se passa emli nome della rosa, já que o mistério queenvolve os delitos se mantém até aoúltimo momento, de forma a instigar acooperação interpretativa do leitor.

li nome della rosa reúne um repertóriodos mais famosos topoi do romancepolicial. O livro de Eco encontra-serepleto de situações que parecem inspira-das em The Hound of lhe Baskervilles,a começar pelo apelido de Guglielmo,que, por sua vez, continuamente apostrofao seu ajudante como «Caro Adso»,expressão esta que não poderá deixar dereenviar, quanto mais não seja pela ana-logia fonética, para o «My dear Watson»de Sherlock Holmes. A escansão dotempo por dias recorda Ten days' wonderde Ellery Queen, se bem que em 11nomedella rosa os dias sejam sete, o mesmonúmero dos dias da Criação.

Porém, a leitura de 11nome della rosaenquanto policial cairia por terra perantea não observância de uma das principaisregras deste tipo de romance, da qual,aliás, no referido ensaio sobre Fleming,Eco se revela um exímio conhecedor.Trata-se da norma que prescreve que aacção de um policial se deve desenvolverde acordo com um plano de acontecimen-tos logicamente encadeados por um códigoanteriormente estabelecido, cujos nexos ecuja chave virão a ser descobertos pelodetective. Ora Guglielmo esclarece oenigma «[... ) attraverso uno schemaapocalittico che sembrava reggere tutti idelitti, eppure era casuale» (p. 495) (2).

(1) «Le strutture narrative in Fleming», in L'analisi dei racconto, MiJano, Bom-piani, 1969; cf. a distinção feita entre Kriminalroman e Detektivroman por RICHARDALEWYN,«Anatomie des Detektivrornans», in JOCHENVOOT, Der Kriminalroman lI, München,W. Fink, 1971.

(2) «l ... ) através de um esquema apocaliptico que parecia reger todos os delitos,e no entanto era casual».

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Guglielmo pensava que a cadeia dedelitos obedecia à ordem das sete trom-betas do Apocalipse, quando afinal talrelação era mera coincidência. Tudogira à volta de um livro nunca chegadoà actualidade, o segundo volume daPoética de Aristóteles, um tratado sobrea comédia cuja divulgação é a todo ocusto impedida pelo fanático mongeJorge de Burgos (clara alusão a Borges),não sacrificando o livro, mas os seusleitores. Quem tente desfolhar as páginascoladas humedecendo os dedos com salivaserá vitimado pelo veneno que as unta.Um tratado que defende «[... ) J'idea chela Iingua dei semplici sia portatrice diqualche saggezza» (p. 482) (I) e onde éfeita a apologia do riso põe por terra alei do temor de Deus e qualquer dosideais de Jorge. Para este velho cego,o domínio da verdade e da ciência deveser apanágio da classe dominante. Aossimples e humildes compete a submissãoaos desígnios da ordem temporal eespiritual. Se a verdade fosse 'risível',ou se encontrasse apenas nos signos,como ensinavam os nominalistas, nenhumacerteza seria alcançável, e o mistério doVerbo divino desabaria sobre o nada.

Não é que, esclarecido o mistério,Guglielmo ponha em causa a verdade dossignos, único instrumento de que ohomem dispõe para se orientar no mundo.A interpretação dos signos era correcta,errada a hipótese da relação que os sus-tinha. A tarefa de Guglielmo é constan-temente complicada pela dificuldade emdistinguir logicamente causalidade e neces-sidade, ordem e desordem, aparecimentodos signos, relativo significado e inten-cionalidade. A sua investigação pros-segue ao longo do livro através de um

sábio manejo do silogismo aristotélicoe da lógica tomista (cf. p, 320), mas éa partir do momento em que a lógicaintuitiva do seu amigo Occam se lhessubstitui que o mistério se esclarece.

Todavia, nem só a Guglielmo competerelacionar elementos in praesentia comelementos in absentia. O mesmo sepassa com as aventuras editoriais do textodo romance, que passa por várias mãos,qual esquema de caixas chinesas, o mesmoacontece em relação à identidade dotratado cuja leitura é obstinadamenteimpedida por Jorge. E também o leitorde Il nome del/a rosa se encontra in prae-sentia de um texto tecido de outros textosin absentia.

Nas primeiras páginas do romanceAdso louva o Criador, que estabeleceutodas as coisas em peso, número e me-dida (p. 34). Eco não desconhece, comcerteza, que este é um passo que seencontra na Bíblia - Sabedoria, 11, 2l.Não será este um convite a que a atençãovigilante do leitor ao plano intertextualseja reforçada? 11nome della rosa colocade facto o leitor perante intrincados labi-rintos de intertextualidade, e isto nãotanto em virtude das citações explícitas,extraídas de textos que constituem osaber da época, quanto em virtude dascitações implícitas.

Quando Adso menciona os três atri-butos da beleza - integritas, propor tio eclaritas - testemunha o saber do homemmedieval que conhece o pensamento deS. Tomás de Aquino (p. 80). Mas oleitor não poderá deixar de lembrar ainterpretação da mesma tríade que, naobra de Joyce, é levada a cabo peloprotagonista Stephen. O topos do des-concerto do mundo parafraseia versos dos

(1) «[... ) a ideia que a língua dos simples é portadora de uma certa sabedoria».

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Carmina Burana (p. 23). Curiosamente,Eco serve-se da paráfrase dos CarminaBurana elaborada por Ernst-Robert Cur-tius em Europãische Literatur und latei-nisches Mittelralter. Mas atenção: o autornão autoriza conexões com a realidade.

Se o universo do discurso intervémlimitando o universo da enciclopédia, asrelações entre textos corroboram e alar-gam as possibilidades do universo dodiscurso, e tal permanente polissemiaactiva um processo de semiose ilimi-tada (1). 11 nome della rosa contémreferências de vária ordem à imagem dorelicário. Mas se a multiplicação derelíquias igualmente valiosas retiraria acada uma delas o seu preço singular,o conjunto de todos os possíveis invali-daria o conceito de possível. Ora asvárias possibilidades narrativas actuantesem li nome della rosa não se esgotam emsi mesmas, já que investidas num romancecujas regras compositivas têm em contaa sua funcionalidade, um romance emque formas e modelos a partir dos quaiso género romanesco se tem vindo a desen-volver através dos séculos confluem nummodelo elaborado que regenera e eviden-cia o próprio processo narrativo. A obrade arte converte-se então em summaepistemol6gica de processos narrativos,metáfora de uma situação cultural emacto, os anos post neovanguardas, a épocado pós-moderno.

É a linguagem o veículo que pos-sibilita a reunião e expressão de umtão vasto repertório de sabedoria. AfirmaEco, por conseguinte, «[ ... ] che di ciodi cui non si puõ teorizzare, si devenarrare» (2). Il nome della rosa pareceocultar, com a sua estrutura narrativa,uma vasta rede de metáforas cuja especi-ficidade escapa ao ensaista, e que porisso mesmo, ao contrário do que diziaWittgenstein, não se deve calar. Adso,escrivão, desconhece o nome da únicamulher da sua vida. O editor afirma noprefácio ter reescrito o respectivo textodepois de se ter visto separado da cópiaque anteriormente possuia e de uma carapresença feminina. É a linguagem omodo de libertação «[... ] da numerosee antiche ossessioni» (p. 15) (3).

Mas tudo o que ficou dito acerca deli liame della rosa como romance que põeem relevo processos narrativos e pos-sibilidades da linguagem poderá sersimulado por um dos elementos doromance de mais profundo significadomítico, a biblioteca enquanto arquétipo,alfa e omega, Eros e Tánatos.

A biblioteca é um modelo de simulaçãodo universo, como diz Jorge «La bibliotecae un gran labirinto, segno dei labirintodeI mondo» (p. 163) (4). Por outro lado,quando Guglielmo, logo no inicio doromance, explica ao perplexo Adso ométodo que o levou a deduzir itinerário,

(1) UMBERTO Eco, Lector in Fabula [.... ], pp. 59-60. Eco entende a noção de enci-clopédia como competência de um falante enquanto socializada na vivacidade das suascontradições (cf. lo., Trattato di semiotica generale, MiJano, Bompiani, 61978, pp. 143 ss.).

(2) Nota impressa na badana da sobrecapa (<<[ .•. ] acerca do que não se pode teo-rizar, deve-se narram).

(3) «[ ... ] de numerosas e antigas obsessões». Cf. lo., «Generazione di messaggiestetici in una Iingua edenica», que agora se pode ler in Opera aperta, MiJano,Bompiani, 41976, onde é apresentado, segundo afirma o próprio autor, um modelo cons-truído em laboratório que demonstra a forma prática de funcionamento da semiose.

(4) <<Abiblioteca é um grande labirinto, sinal do labirinto do mundo».

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aspecto e até nome de um cavalo nuncavisto (encontramos uma cena semelhanteem Zadig ; no presente caso, é o magníficocavalo do abade a ser procurado comafã), fundamenta a validade do seu pro-cesso de inferência semi6tica no factode que «[ ... ] i1 mondo ci paria come ungrande libro» (p. 31) (1), apoiando-sena citação de um poema de AJain deLilIe - «omnis mundi creatura / quasiIiber et pictura / nobis est in speculum»(ib.) - uma das melhores definições dacondição alegórica da Criação dada pelohomem medieval. Se a biblioteca é sím-bolo do universo, o universo é simbolizadopelos seus livros. Ora a particular ordemque preside à disposição labirintica dassalas da biblioteca, uma ordem misteriosa,ou uma ordem diversa - «Il massimodi confusione raggiunto con i1 massimodi ordine» (p. 220) (2) - toma pormodelo, afinal, como vem a descobrirGuglielmo, a ordem da linguagem.

Além disso, a biblioteca comunicacom a Igreja por um caminho secreto,e no seu Edifício encontra-se instaladoo refeitório, local das pulsões libidinosasde Adso. Jorge preserva o manuscritoatravés da própria morte, devorando-o,enquanto Guglielmo exclama «Presto [... ]se no queIJo si mangia tutto l'Aristotele»(p. 485) (3), e li nome della rosa, 'demanda'de um manuscrito mortal e ausente, cele-bra assim a palavra, e a fruição oferecidapela sua leitura, com todas as implicaçõesde místico e de sagrado daí decorrentes.E se à verdade dos signos se alia a incon-gruência do sentido, são sempre os signosque conduzem à procura do sentido.É a escrita a nomear a rosa que perdura

mercê do nome que tem - «stat rosapristina nornine» (p. 503) -, é a leituraa procurar a rosa para além do seunome - «[ ... ] nomina nuda tene-mus» (ib.).

li nome della rosa apresenta-se entãocomo um romance semiótico. «Perchévi sia specchio dei mondo occorre che i1mondo abbia una forma» (p. 12) (4),reflecte Guglielmo; e para que existali nome della rosa é necessária a existênciado fen6meno semi6tico e cultural 'livro'.

Assim, é o próprio livro, lato sensu,a erigir-se motivo do romance, o livroconsiderado no que tem de mortal ecompensador, de falso e verdadeiro, deinteligência crítica e dogma, o livro comoproduto de consumo que põe em jogo oestatuto do seu produtor e do seu con-sumidor - o livro como função sígnica,para utilizar a terminologia crítica de Eco.

Como vemos, a nota de apresentaçãodo romance abre sub-repticiamente sendas

(1) «]... ] o mundo fala-nos como um grande livro».(2) «O máximo de confusão conseguido com o máximo de ordem».(3) «Depressa [... ] senão aquele come o Aristóteles todo».(4) «Para que haja espelho do mundo é preciso que o mundo tenha uma forma».

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de leitura que vão muito mais além doque à primeira vista poderá parecer.A suposta autoridade do autor converte-seafinal, mesmo para quem a leve à letra,num apelo à cooperação textual. Mas aanálise desta questão deve passar pelaconsideração de um outro nível textual,respeitante ao papel reservado a leitore autor pelos mecanismos da fábula.

o leitor vai penetrando no mistérioguiado pelas elucubrações semióticas deGuglielrno, intelectual envolvido em fortescontradições. Como logo no início doromance adverte Adso, o seu mestre oraparece dotado de uma energia inesgotável,ora se deixa vencer pela mais profundainércia. Durante o inquérito, Guglielmodesloca-se constantemente entre o livreexercício da razão crítica e o respeitopelas instituições em obediência aoscompromissos de carácter político dasua missão, entre a contestação da into-lerância, a apaixonada atenção à verdadedos simples, o direito à interpretaçãoaberta de pistas, e a aceitação da intole-rância como regra prática, a defesa daobscuridade da linguagem e do sabercomo privilégio. ote-se que a ekpirosis(incêndio) que no final do livro destróia abadia é acelerada seja pela cegueirade quem detém o silogismo do poder,seja pelo fanatismo de quem o pretendedestruir de uma vez por todas. OraGuglielmo, aquando da disputa acerca dapobreza de Cristo ocorrida no quinto dia,

furta-se a intervir, visto tratar-se de umapolémica sem saída. Como explica aAdso, «[oo.] la questione non e se Cristofosse povero, e se debba essere poverala chiesa» (p. 349) (1). Em qualquer umdos casos as questões levantadas são pro-blematizadas pelas partes em litígio detal modo que as respostas concretas sãoiludidas.

A erudição de Guglielmo é a do homemmedieval, mas a forma como maneja essereservatório de saber é bastante maisactual, processo este susceptível de seridentificado com o do próprio curso dacultura desde a Idade Média até hoje.Guglielmo reúne a sabedoria do huma-nista, a astúcia do detective e a agilidadedo político numa figura cuja cosmovisãovai muito mais além do período histó-rico em que vive. Algumas das suasafirmações parecem mesmo inspiradasnum tratado do neopositivismo lógico(cf. p. 210) (2). um mundo em quetodos têm certezas, Guglielmo recusa arnilitância obsessiva, e é o único a pôr-seproblemas, a interrogar-se. A sua liçãode método passa pela apologia da própriaverdade, aquém das manipulações dopoder - «[oo.] perché Iunica verità eimparare a liberarei dalla pa sione insanaper la verità» (p. 494) (3).

As analogias entre frade-semiólogo eautor-semiólogo são por demais evidentes- a propo ta de uma inserção crítica eactiva na situação (4), a necessidade deconsiderar a função do signo em correla-

(1) «A questão não é se Cristo era pobre, é se deve ser pobre a igreja».(2) A analogia entre as teses do neopositivismo lógico e alguns pontos de vista par-

tilhados por Eco não tem deixado de ser notada pela crítica; cf. M. SANTAMBROGIO

e G. USBERTI, «1 rnondi, se possibili», in Alfabeta, dicembre 1979.(3) «[oo.] porque a única verdade é aprender a libertar-nos da paixão insana pela

verdade».(4) Cf. o ensaio de Eco «Dei modo di formare come impegno sulla realtà», inicial-

mente publicado in 11Menabà, 5, 1962, e que agora se pode ler in Opera Aperta. É notória

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ção com a situação comunicativa, asrelações entre semiótica da significaçãoe semiótica da comunicação, a ironia deinspiração racionalista com que Ecoobserva «[oo.] che la semiotica non esoltanto la teoria di ogni cosa che servaa mentire ma anche di ogni cosa che possaessere usata per far ridere o per inquie-tare» (1).

11 nome della rosa assenta, por conse-guinte, num sólido esquema de cooperaçãotextual: como se conclui a partir do queficou dito, as estratégias interpretativasde autor empírico e Leitor Modelo têmcomo ponto de convergência a personagemde Guglielmo. O que quer dizer que oproblema crítico que nos colocámos,a análise do género de cooperação textualactuante neste texto, não é susceptívelde receber, uma vez mais, uma respostaunívoca. Guglielmo é, como vimos, umapersonagem clivada por fortes contra-dições.

11liame della rosa não é, então, ou umtexto aberto ou um texto fechado. Pode-remos afirmar que o processo interpretativoactuante poderá ter por S-c6digo a relaçãoautoridade/cooperação. Ora eu creio quea coexistência harmonizada destes dois

termos num romance com a solidez estru-tural de 11 nome della rosa decorre doinvestimento de um tipo particular deratio, que diria ratio irónica.

Afirma Eco a propósito de De Amicis:«[oo.] l'ordine o lo si ride dal di dentroo lo si bestemmía dal di fuori, o si fingedi accettarlo per farlo esplodere, o sifinge di rifiutarlo per farlo rifiorire inaltre forme; o si ê Rabelais o si e Car-tesio» (2). Responde Guglielrno : «Forseil compito di chi ama gli uominí e di farridere della verità, fare ridere la verità»(p. 494) (3). E o leitor de 11 liame dellarosa concorda com os resultados didácti-cos obtidos mediante o investimento deuma estrutura dialógica bakhtiniana dealto grau de complexidade estética emque a ironia é elevada à categoria de armasuprema de desmitificação dos erros aque os extremismos da razão conduzem.

Em li nome della rosa o processo decrise da razão é levado até às suas últimasconsequências com a final ekpirosis, masneste momento nasce uma outra razão euma outra cultura, em concomitãnciacom as transformações da vida. asúltimas páginas do romance, Jorge, o

a importância dessa revista, dirigida por Vittoriní e Calvino, no âmbito do debate culturaldaqueles anos. Os no. 4 e 5 são dedicados aos problemas literatura/indústria/alienação,e é neste contexto que os pontos de vista defendidos por Eco irão provocar acesas polémicas.Pontos de vista estes que virão a ditar o critério da recolha Apocalittici e integrati, MiJano,Bompiani, 41977.

(1) Tais posições teóricas são sistematicamente expostas por Eco in Trattato disemiotica generale, de cuja p. 95 se cita (<<[oo.]que a semiótica não é apenas a teoria de tudoo que serve para mentir mas também de tudo que pode ser usado para fazer rir ou parainquíetar»).

(2) Diario minimo, Milano, Mondadori, 31975, p. 96 (<<[oo.]ou se ri da ordem pordentro ou se rogam pragas contra ela de fora, ou se finge aceitá-Ia para a fazer explodir,ou se finge recusá-Ia para a fazer refiorir sob outras formas; ou se é Rabelais ou se é Des-cartes»),

(3) «Talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir da verdade, fazer rir averdade»,

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instrumento diabólico, autodestrôi-se, eGuglielmo, o investigador, autocritica-se(note-se uma vez mais: fim não conformeàs regras do policial). «Nulla e piúaperto di un testo chiuso. Salvo che lasua apertura e effetto di iniziativa esterna,un modo di usare il testo, non di essernedolcemente usa ti», afirma Eco (1), dandocomo exemplo de tal violência, veja-se só,o caso do apóstolo de Patmos que comeum livro. Ora Jorge, ao devorar o tratadode Aristóteles, coloca nas mãos do leitorum livro a re-criar e a sua atitude abreassim espaços de alta problematicidadee de alto indice de possibilidade. Quantoa Guglielmo, quando este, no último dia,

se dá conta da ausência de uma ordem nouniverso e reconhece o puro valor instru-mental da verdade (apoiado pela citaçãode Wittgenstein em alemão antigo, iden-tificado como um místico das terras deAdso (p. 495)), descobre afinal que aobra é aberta.

Num romance semiôtico, uma sólidaestrutura que diríamos exemplo do rigormetodológico do aquinense alia-se àabertura e polissemía que caracterizam ouniverso joyciano. E uma obra fechadapode então revelar-se um subtil modode celebrar a obra aberta.

Rrra MAR OTO