No Reino Do Maravilhoso - Coimbra Matos.pdf
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Seminário Científico e Cultural - Régua, 22 a 24 de Outubro 2010
Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica (AP), com a colaboração da Associação EsPASSOS de Vivência.
Amor em Tempos de Inverno
NO REINO DO MARAVILHOSO: DOURO E AMOR *
António Coimbra de Matos
* Palestra no Seminário “O amor em tempos de Inverno”, Peso da
Régua,
22-24 de Outubro, 2010.
O tema deste Seminário – O amor em tempos de Inverno , ou
seja, o amor em clima emocional difíci l – cruza-se com a intenção
subjacente às minhas palavras de abertura. Com efeito, No reino do
maravilhoso: Douro e amor , pórtico do nosso Encontro, pretende
mostrar que o encanto do Douro não se resume ao rio e paisagem
envolvente nem se limita à festa das vindimas. Tal como o amor, o
esplendor do Douro é eterno enquanto dura, isto é, enquanto na
memória e no desejo dos amantes, a história e o projecto dos seus
momentos altos perdura e matura.
O amor não se diz; faz-se, burila-se e embala-se. O Douro não
se vê; vive-se, saboreia-se e entranha-se. Um e outro, obra do
Homem e prenda para o Homem, realizam-se e realizam os viventes
no beijo dos amantes e no abraço do duriense à natureza que lhe foi
dada.
Natural e espontaneamente somos atraídos pela estranheza e
pela beleza do que topamos; a nossa curiosidade é infinita. Não o é o
Universo, nem sequer o pensamento. É-o também a transformação
das coisas, a mudança – o movimento é eterno e tudo muda com o
tempo, sendo infindável a mudança. Os seres nascem, crescem,
definham e morrem; outros seres, e sempre algo diferentes,
aparecem. A evolução do mundo, como a dos mundanos, é contínua.
E o pensamento adapta-se e intervém sobre o já mudado, aquilo que
se apresenta como diverso. Ele próprio, o pensamento, muda: os
conceitos – como os seres vivos – nascem, crescem, adoecem e
morrem; novos conceitos surgem.
Estranho e inquietante porque enigmático, belo e fascinante
porque promissor, o novo – fenómeno e coisa, acontecimento e
acontecido, onda e partícula atraem a atenção, indagação e
exploração de Homo sapiens sapiens com a prudência da docta
ignorantia (humilde ignorância) e o desafio da docta spes (sábia
esperança). Balizado pelo medo e pelo desejo, no alerta e no
entusiasmo, o Homem traça e percorre o seu caminho, fechando e
abrindo o horizonte de possibi l idade consoante predomina a inibição
ou o ímpeto a agir, a tendência ocnofíl ica – preso ao adquirido – ou
fi lobática – a dançar no espaço ao ritmo da circunstância. Na
linguagem psicopatológica, obsessivos ou histéricos; para o vulgo,
sedentários ou nómadas; alapados no já pensado ou montando o
pensamento pensante. A culpa, costumo dizer, foi da agricultura
(não a do Douro!) que nos agachou sobre a terra, contrariando o
nomadismo original. Mas não. A culpa é da escolástica, da doutrina,
do esparti lho do dogma e do l iame do rito; do axioma e do doxema
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(unidade mínima de crença); da ausência de pensamento divergente,
fonte da criatividade; de não ousar pensar l ivremente.
No Douro, o homem fez e faz jardins entre as fragas, pula entre
montes e vales afagando as videiras que o premeiam com o seu
néctar dos deuses, acorda com o Sol e deita-se com a Lua, faz amor
ao relento no braseiro do estio, à lareira quando o cincelo pende dos
beirais. Amor faz sempre: com a mulher, os fi lhos, a terra amada;
com as cepas, as uvas, o vinho... E com a alma, com a alma de
obreiro deste extraordinário nicho ecológico, o País Vinhateiro.
Nove meses de Inverno, três de inferno, diz-se no Douro. Ao
Verão de brasa do vale do rio, segue-se um Inverno longo e rigoroso
– fr io de fazer tremer a queixada, vento que assobia pelas fr inchas
das janelas, portas e telhados, geada nos campos e gelo nos
caminhos, chuva que enlameia a terra solta. Mas também o Inverno
das histórias ao serão, quando as noites são longas e os dias curtos,
de recordação do vivido e antecipação do que se vai viver, de contas
à vida e cálculos para a vida, de estruturação de laços criados na
estação primaveri l e na primavera das relações pessoais. Ao tempo
de devaneio segue-se o tempo de meditação; ao fulgor do
enamoramento, a doçura do companheirismo; à exaltação do
orgasmo, o relaxamento dos corpos. Assim na alma, assim na terra: a
pujança dos vinhedos cheios de parra e uva dá lugar às fi leiras de
cepas despidas, gotejando pequenas lágrimas de seiva pelos cortes
da poda.
E o homem do Douro, amante das suas donzelas espalhadas
pelas encostas, acarinha-as com assiduidade e desvelo; não fossem
elas a base do seu sustento, o produto dos seus cuidados, as musas
da sua criatividade e, por últ imo mas não o menos importante, a
fábrica das suas pérolas – os Vinhos do Douro e do Porto, a jóia
entre as jóias da coroa de glória do povo português. De facto, para
além dos Descobrimentos no passado longínquo, produzimos, ainda
na actualidade, o melhor vinho do mundo.
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É nesta relação de complementaridade criadora – porque
insaturada e por isso aberta à inovação – que o par de amantes
descobre, constrói e alimenta o amor, a esperança e a fel icidade.
Sempre inovando, em criação ou recriação contínua; jamais
desistindo, apenas recuando uma ou outra vez para dar balanço a
saltos mais ousados. Por tal, bem aventurados os que ousam – amar
mais e melhor, amar sempre, eternamente...
O amor – o verdadeiro – é chama que não se apaga, como o
fogo sagrado do templo de Vesta. Mas para que assim seja é preciso
que os amantes, seus guardiões, o alimentem com a pureza do
desejo renovadamente nascente. O amante, o verdadeiro amante, tal
como as vestais guardiãs do altar da deusa romana do fogo, mantém
a virgindade, não do corpo mas do amor, porque, nele o vero amante,
o amor é sempre novo e inovador – virgem, impoluto e criativo.
Porém, o amor é feito não só na complementaridade e para a
criação, como na cumplicidade e para a comunhão. O que significa
ter e dar prazer em afinação afectiva e sintonia emocional,
reciprocidade de desejos, intenções e actos. Só a relação recíproca é
válida, construtiva e enlaçante. Todavia, não chega dar e receber em
medida idêntica; importa a construção do nós como unidade, novo
conjunto-universo – o que os autores americanos designam por
weness , mal traduzido por estar com ; um pouco melhor, por ser com
(être avec , na tradução francesa). 1
É dessa integração dos elementos do par numa unidade
englobante – em que o todo é maior que a soma das partes, um
integral com novas propriedades e funções –, é dessa união
majorante com o outro que brota um sentimento de nova e maior
vital idade, o entusiasmo – que significa inspirado pela divindade, a
divinal pessoa, Deus dentro de mim e eu dentro de Deus, o objecto
em mim e eu no objecto: constância do bom objecto interno e
constância do sujeito no interior do seu objecto – esta últ ima, a
primeira e principal aquisição do relacionamento amoroso.
1 “Nosteridade” (de noster) seria uma sugestão.
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“Não te vais esquecer de mim, pois não?” – é o que
perguntamos todos quando nos despedimos da pessoa amada, pois
esse é o certi f icado de que somos amados e a garantia de que não
seremos abandonados. O narcisismo essencial fala mais alto que a
objectalidade. Na realidade, a relação começa no sentimento de ser
amado, amado e reconhecido; a necessidade conexa de
reconhecimento tem tanta ou mais veemência que a de afecto.
Somos animais narcísicos, que nos revemos no olhar do outro.
Assim, a série desenvolvimental é: ser amado/reconhecido, amar-
se/reconhecer-se, amar/reconhecer o outro.
É curioso que, das línguas mais faladas, só o japonês usa um
verbo pleno (não recorrendo ao verbo auxil iar) para exprimir o
conceito de ser amado – amore . Na generalidade das línguas, o
sujeito amado é reduzido à condição passiva de objecto do desejo do
outro, retirando-se-lhe por conseguinte o poder intencional, decisório
e agencial de senhor do seu destino. A introdução do verbo auxil iar
“ser” muda a aspectualidade da acção do verbo principal “amar”,
invertendo o sentido da acção – quando digo “sou amado” perco a
categoria de agente, quando efectivamente fiz ou valho alguma coisa
para ser amado, pelo menos, mostrei-me amável, gostável,
introjectável e, não menos importante, tenho valor, significado e
carisma – encantei o objecto. Talvez seja este o verbo activo:
encantar; ou, criando um neologismo, “amorar” – uma vez que existe
o adjectivo amorável, que suscita amor.
Estranha, esta desvalorização do próprio? Talvez não, já que
desde a antiguidade persa, passando para a cultura judaico-cristã, a
culpabilidade dominou as relações sociais. Até há bem pouco tempo
– anos 60 do século passado –, ainda se distinguiam as culturas da
culpa (ocidentais) das culturas da vergonha (a japonesa uma delas).
De facto, é uma vergonha não ser amado. E só depois da segunda
guerra mundial se expandiram os códigos de direitos; até então eram
os códigos de deveres – desde os mandamentos de Moisés às leis
fascistas. Na pós-modernidade, é a cultura do espectáculo e do
5
sucesso; ninguém se deprime por culpa, mas por insucesso; não
conta a honestidade e a honra, só o lucro e o êxito. Contudo, à
sobrecarga de culpa não sucedeu a l iberdade de pensar e amar –
como os melhores imaginaram e quiseram –, mas o vazio do
pensamento e a ausência de empatia e generosidade.
É na ousadia e determinação que o espírito humano – criador
do seu universo de cultura – se realiza e imortaliza, pela herança
cultural que transmite às novas gerações.
Que todos nós saibamos – e tenho a certeza que o sabemos –,
mulheres e homens do Douro, associadas e associados da
Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalít ica,
que está nas nossas mãos segurar o destino de progresso sustentado
e sustentável da Região do Douro e da Associação Psicanalít ica são
os meus votos e as minhas saudações.
Com paixão pela arte que é a nossa, pela vida que é de todos e
pela total idade dos seres intra-mundanos, pela biodiversidade e
psicodiversidade – o diferente é sempre o melhor, o mais belo e mais
verdadeiro –, iremos continuar estas Jornadas sobre o amor – e a
esperança – em tempos de crise, mas também de oportunidade, no e
para o Douro e na e para a Psicanálise.
Com coragem, todos os obstáculos se vencem. Os durienses
sabem-no; os psicanalistas também.
Boa viagem pelo Douro; e com amor! Esperamos um agradável
e frutuoso encontro da alma do Douro com a alma da Psicanálise.
Ambas transpiram desejo de relação e exalam perfume de sabedoria;
por isso, não temos dúvidas que assim será.
As explicações totais são falsas e conduzem a práticas
totali tárias; por isso, estão condenadas à extinção. Uma teoria total
não se apoia na evidência mas numa falsa evidência, pois não
existem evidências totais; logo, não é científ ica mas mítica.
Por outro lado, uma teoria certa não é uma teoria, é um dogma.
Uma teoria é sempre relativista.
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Todo o conhecimento é parcial e relativo; incerto. E efémero,
válido enquanto novos conhecimentos não o contradizem ou
modificam. Donde se conclui que o conhecimento científ ico está
aberto à crít ica, é refutável e falsif icável. Não lhe chega ser
verif icado pela experimentação ou demonstrado pela lógica – esta é
apenas a primeira prova de cientif icidade, a segunda é a
refutabilidade e falseabil idade.
“É assim enquanto se não demonstrar ou verif icar que não pode
ser assim”. “É assim no estado actual dos nossos (incompletos e
imperfeitos) conhecimentos”. Dizemos – nós, os não crentes.
Por outro lado ainda, no quadro dos sistemas dinâmicos
complexos, auto-regulados e poiéticos – como o é a vida mental e
relacional –, os factores são imensos e variam com o tempo e a
circunstância, sendo que a aleatoridade domina sobre o
determinismo, o caos sobre o cosmos, o acaso sobre o previsto, a
criação do novo sobre a repetição do mesmo 2, a aventura da
descoberta sobre o cumprimento da necessidade.
O modelo relacional da psicanálise moderna baseia-se na
evidência e na prova, na crít ica e na interrogação (“a resposta é o
infortúnio da pergunta”, dizia Blanchot), rejeitando dogmas,
desconstruindo mitos e dissolvendo rituais, substituindo doutrinas e
escolas por corpo de conhecimentos e trabalho de investigação.
O fanatismo é o inimigo número um da l iberdade, da cultura e
da ciência. O fanático não tem dúvidas. Por isso impõe a sua
verdade; se necessário for, pela violência. Mas sem dúvidas, não
construímos nada de novo, vivemos de ideias fossil izadas.
No amor, como atrás dissemos, frui-se e dá-se, em plenitude do
ser e comunhão dos seres, ultrapassando a simples relação de dar e
receber, de troca – na sua versão mais dura, a relação simbiótica – e
2 Caberia aqui uma nota sobre transferência e nova relação. Mas porque demasiado especializada, prescindimos de a fazer.
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ultrapassando também a simples relação de parceria, de
colaboração.
O amor une, com laço forte, pela comunhão de projectos para a
construção de um futuro comum: um filho, uma famíl ia, uma
instituição, uma nação, a sociedade global. Somos seres do amanhã,
olhos postos no horizonte de novas possibi l idades e realizações
outras. É o princípio da possibi l i tação.
Seres reflexivos e poiéticos, elaborando o que foi para construir
o que há-de ser. Sem isso, a vida é nostalgia e melancolia, vazio e
sem sentido; ou preenchimento ilusório: delír io e delusão,
obscurantismo e idolatria. É a atitude de possibil i tação que faz de
nós seres de cultura, seres-para-a- cultura. A nossa finalidade
última, teleológica, é produzir conhecimento. Isso chega; haverá
sempre quem dele aproveite.
Longe do regalismo psicanalít ico ortodoxo – a auto-atribuição
de regalias de controlo do conhecimento, da técnica e da actividade
–, a psicanálise contemporânea está aberta ao diálogo, à mudança e
ao progresso. Por isso e para isso, fundamos há quase três anos a
nossa nova associação psicanalít ica, federada desde Março de 2008
no Forum Internacional para a Formação em Psicanálise .
Para Platão, o Homem é o brinquedo de Deus. Para nós, não é
o brinquedo de ninguém, nem faz de ninguém seu brinquedo. É livre
e responsável, amante e respeitador. Só assim é digno da sua
condição de Homo sapiens sapiens , que sabe e sabe que sabe;
senhor de razão racional e raciocinante, como soi dizer-se em
filosofia.
“Eu sei que tu percebes o que eu sinto, e que tu sabes que eu
percebo o que tu sentes” – ou, na sua forma primeira, “eu sinto que
tu sentes o que eu sinto” –, o princípio da intersubjectivadade intra-
específica3 , é a base sobre a qual se desenvolve a relação amorosa.
Eu sinto que existo em ti, e, daí, tu passas a existir em mim: a
3 Dentro da mesma espécie
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constância do sujeito no interior do objecto 4 precede e determina a
constância do objecto no interior do sujeito. “Olhas-me com tal
encanto que eu me encanto por ti” – é a precessão e primazia do
bonding (l igação, envolvimento, abraço); o attachment (apego) vem
na sequência. É assim na vida, é assim na análise: o investimento do
analista no analisando é primário e mais importante.
O amor nasce e desenvolve-se: entre ajustamentos,
desajustamentos e reajustamentos. A relação amorosa não é l inear,
mas por ondas. Também tem marés. Na maré baixa – “tempos de
Inverno”, na nossa metáfora –, pode ser a indiferença ou a ausência
de desejo. Mas não só: a ternura 5 é um poderoso ingrediente do
amor, assim como a confiança e o cuidar (no sentido restri to e amplo
de “tomar conta de” 6). É aí, em tempos mais difíceis, que o
verdadeiro amor se revela e confirma. No Verão mostra-se, no
Inverno demonstra-se.
No amor à terra bendita do Douro – do vinho e das uvas –, o
homo duriensis coloca toda a sua energia, arte e engenho, tal como o
povo de Moisés colocou a sua fé e esperança na Terra Prometida do
mel e do leite. É um amor diferente do amor do casal e diferente
também do apego das crias. Está mais próximo do amor incondicional
dos pais pelos fi lhos – verte sangue, suor e lágrimas pela pátria
amada, gasta o que não tem (individa-se), consome-se com as dores
das videiras, sofre pelo risco dos vinhos, e só pede, em troca, que os
deuses lhe dêem saúde para continuar a mourejar – tal como uma
mãe e um pai se afainam para que nada falte aos seus fi lhos.
Só que o poder central anda distraído – está cansado, coitado!
– e não repara que sem mais apoios, estímulos, dedicação,
admiração e, já agora, amor por este prodigioso torrão do todo
nacional não é só o Douro que não será aquilo que pode vir a ser –
um importante polo de desenvolvimento agro-industrial, cultural e 4 Quero sublinhar que o termo “objecto”, oriundo da teoria pulsional, é incorrecto; devemos substitui-lo por o “outro sujeito”. Não é uma “relação de objecto” mas sim uma “relação intersubjectiva” – entre dois sujeitos.5 E recordamos o Teorema da ternura de Sullivan.6 Sentido mais carregado no to care anglo-saxónico.
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turístico – como é o país inteiro que perde o seu mais valoroso e
significativo quinhão de prata lavrada. Impõe-se o turismo de média-
longa duração, bem como o turismo de Inverno; a indústria de
derivados da uva e do vinho, e não só; a expansão de actividades
científ ico-culturais de permanência; a realização de congressos,
seminários, encontros nacionais – como este – e internacionais.
Longe do bulício das grandes metrópoles trabalha-se muito melhor e
com mais proveito. Promover a região e os seus produtos e dar-lhes
visibil idade mundial é tarefa e responsabilidade, inicial e
principalmente, do Governo da Nação. Será preciso outro Marquês de
Pombal? Se menos ditador e concentracionista, e não explorador,
que venha ele!
Só deste modo se criará emprego, empresariado, f ixação de
populações; trabalho, festa e desenvolvimento.
Festa. Porque o amor também é isso: ludus , brincadeira. Quem
não sabe brincar não sabe amar; nem trabalhar, tão pouco.
Brincar e cuidar são as actividades de topo da hierarquia
comportamental espontânea e afectivo-relacional; o pensamento
conceptual e a invenção, a cúpula da razão e da praxis .
O trabalho surge-nos como imperativo categórico – racional e
ético – para sustentar o lúdico e o empatico-compassivo. Sem
trabalho, não há fundos nem para o gozo nem para a assistência.
E o amor? Esse enlaça tudo: está no começo, no percurso e no
destino. É o segredo: da alegria e da fel icidade. Portanto, amar – não
“amar loucamente”, como dizia Florbela Espanca – mas amar mais e
melhor; e sempre.
No Inverno, na doença e na crise, a memória do passado serve-
nos de consolo e alívio; mas o que nos salva é um presente
transformador e, ipso facto , criador de um futuro promissor. É isso
que fazemos na análise, é isso que devemos fazer na vida, é isso
que as gentes do Douro estão fazendo.
A análise clássica vive da recordação; a análise
contemporânea, do projecto e da iniciativa. Mais iniciativa é do que
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este país precisa; sofre de inibição da acção, tal como o doente
mental.
Amor, determinação, acção – eis a tr i logia do sucesso. Não fora
o Homem um bicho extraordinariamente emotivo e relacional (de
intel igência social), neofíl ico – interessado nos acontecimentos que
decorrem no seu largo mundo –, poiético (sonhador) e construtor, o
autêntico Arquitecto Supremo de que os maçons falam.
Façamos do aparentemente impossível o realmente possível.
Já! – como diziam os “anarcas” e querem os irrequietos.
A irrequietude, pese embora a má-língua, pode ser, e é de certo
modo, uma virtude.
O amor tem tempos de fulguração e tempos de quietude. São os
ciclos do amor, como os ciclos da Natureza: de beleza luxuriante, de
suave e fresca tranquil idade; também de tempestade, que exige força
para aguentar o barco e destreza de pensamento para saber navegar.
A tensão gerada nas mudanças de ciclo – amor nascente/amor
morno, Primavera/Outono – tanto preparam o úti l catabolismo e o
necessário anabolismo, como podem levar à exaltação maníaca (a
louca paixão) ou à depressão melancólica (a retirada narcísica). A
saúde depende do desiquilíbrio à procura de equilíbrio entre a força
de expansão l ibidinal e a força de adaptação à realidade do trabalho
construtivo. O mediador é a busca de coerência entre o desejo e a
realidade, a emoção e a razão – o uso conjugado da bi-lógica : lógica
simétrica ou da emoção, lógica assimétrica ou da razão.
Descobrir um futuro melhor é o objectivo do caminho a traçar.
Com afecto, imaginação e esforço chegaremos lá 7.
7 Os hábitos organizam-se em estruturas mais ou menos fixas – a estrutura de personalidade (ou de identidade) e de relação intersubjectiva, explícita e implícita. Como dizia Konrad Lorenz: “a estrutura paga tributo à cristalização”. Quanto mais antigos, induzidos por alguém influente e respeitável e assimilados por amor e dedicação, mais rígidos e imutáveis esses modos de ser – sentir, pensar e agir – serão. Como corolário, mais difícil, lento e penoso será o processo de mudança – quer na análise, quer na vida. O que significa também que a mudança é mais rápida e eficiente quanto maior o carisma do analista e a flexibilidade do analisando. O mesmo para o povo do Douro e seus líderes.
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