NO PORTO DO CEARÁ NÃO SE EMBARCA MAIS ESCRAVOS!”: … · 2020. 1. 17. · De modo mais direto,...

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1 NO PORTO DO CEARÁ NÃO SE EMBARCA MAIS ESCRAVOS!”: PERCEPÇÕES E REAÇÕES AO COMÉRCIO INTERNO DE ESCRAVOS NO CEARÁ 1 Rafael da Cunha Scheffer 2 Em 27 de Janeiro de 1881, comerciantes cearenses que tentavam embarcar escravos para o Sudeste tiveram uma desagradável surpresa: os jangadeiros encarregados de levar cargas e passageiros aos navios do porto se negaram a embarcar os escravizados. “No porto do Ceará não se embarca mais escravos!”, teriam dito os jangadeiros, apoiados pela população local. A partir do sucesso dessa ação, os escravizados no Ceará não seriam mais comercializados para os mercados do Sul. A célebre frase e um dos principais articuladores do movimento, Francisco José do Nascimento (conhecido como Dragão do Mar), tornaram-se parte da história oficial do Ceará, que destaca a abolição local como um movimento de vanguarda nacional. Devido à importância atribuída a esse movimento, a presente comunicação busca entender como esse evento foi visto pelos contemporâneos, e como ele se conecta à percepção e reação ao comércio de escravos na região. Como se tratou de uma ação que bloqueou as transações dos comerciantes de escravizados, esse movimento e sua repercussão nos ajudam a entender como esses negociantes e suas atividades eram vistos no início da década de 1880. Ou seja, qual o papel que o comércio interprovincial tinha na região e por que abolicionistas e populares se voltaram contra essa prática. Entender as justificativas da ação dos jangadeiros e sua repercussão nos permite perceber as características associadas a essa atividade e seus impactos. Além disso, através da análise desse comércio em momento anterior, poderemos também entender os impactos diretos do fechamento do porto de Fortaleza para essa atividade. Para o seu desenvolvimento, essa discussão utiliza como fontes 1 Texto apresentado no 9º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis (UFSC), de 14 a 18 de maio de 2019. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/ 2 Doutor em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor adjunto da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). E-mail: [email protected]. Essa produção faz parte de um projeto de pesquisa mais amplo, inti tulado “O comércio de escravos no Ceará, 1850- 1888: atuação de negociantes, direções de comércio e perfil de negociados”, que conta com o auxílio do CNPq, instituição a qual agradeço pelo apoio.

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    “NO PORTO DO CEARÁ NÃO SE EMBARCA MAIS ESCRAVOS!”:

    PERCEPÇÕES E REAÇÕES AO COMÉRCIO INTERNO DE ESCRAVOS

    NO CEARÁ1

    Rafael da Cunha Scheffer2

    Em 27 de Janeiro de 1881, comerciantes cearenses que tentavam embarcar escravos para o

    Sudeste tiveram uma desagradável surpresa: os jangadeiros encarregados de levar cargas e

    passageiros aos navios do porto se negaram a embarcar os escravizados. “No porto do Ceará não se

    embarca mais escravos!”, teriam dito os jangadeiros, apoiados pela população local. A partir do

    sucesso dessa ação, os escravizados no Ceará não seriam mais comercializados para os mercados do

    Sul. A célebre frase e um dos principais articuladores do movimento, Francisco José do Nascimento

    (conhecido como Dragão do Mar), tornaram-se parte da história oficial do Ceará, que destaca a

    abolição local como um movimento de vanguarda nacional. Devido à importância atribuída a esse

    movimento, a presente comunicação busca entender como esse evento foi visto pelos

    contemporâneos, e como ele se conecta à percepção e reação ao comércio de escravos na região.

    Como se tratou de uma ação que bloqueou as transações dos comerciantes de escravizados,

    esse movimento e sua repercussão nos ajudam a entender como esses negociantes e suas atividades

    eram vistos no início da década de 1880. Ou seja, qual o papel que o comércio interprovincial tinha

    na região e por que abolicionistas e populares se voltaram contra essa prática. Entender as

    justificativas da ação dos jangadeiros e sua repercussão nos permite perceber as características

    associadas a essa atividade e seus impactos. Além disso, através da análise desse comércio em

    momento anterior, poderemos também entender os impactos diretos do fechamento do porto de

    Fortaleza para essa atividade. Para o seu desenvolvimento, essa discussão utiliza como fontes

    1 Texto apresentado no 9º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Florianópolis (UFSC), de 14 a 18 de

    maio de 2019. Anais completos do evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/ 2 Doutor em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor adjunto da Universidade

    da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). E-mail: [email protected].

    Essa produção faz parte de um projeto de pesquisa mais amplo, intitulado “O comércio de escravos no Ceará, 1850-

    1888: atuação de negociantes, direções de comércio e perfil de negociados”, que conta com o auxílio do CNPq,

    instituição a qual agradeço pelo apoio.

    http://www.escravidaoeliberdade.com.br/http://www.escravidaoeliberdade.com.br/mailto:[email protected]:[email protected]

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    diferentes jornais da época (em especial o Libertador, Pedro II e a Gazeta do Norte), escrituras de

    compra e venda de cativos e registros de passaportes de escravizados.

    É importante destacar que o assunto do bloqueio do porto não é, de forma alguma, uma

    temática nova na região. Memorialistas e historiadores vêm se debruçando sobre esse movimento e

    seus significados desde o fim do século XIX. Autores contemporaneos aos fatos como o Barão de

    Studart e João Cordeiro, assim como autores posteriores como Edgar Morel narraram esses fatos,

    ligando-os a uma “heróica” luta abolicionista.3 Na historiografia, só para citar alguns exemplos,

    Pedro Alberto de Oliveira Silva, Patrícia Pereira Xavier, José Hilário Ferreira Sobrinho e Tshombe

    Miles, entre outros, já se voltaram a dicussão desse contexto.4 O objetivo da discussão aqui

    apresentada, contudo, é focar esse debate especificamente na percepção que ele nos fornece dos

    negociantes de escravos e do seu negócio.

    Os episódios de bloqueio do porto de Fortaleza - 1881

    O envio de escravizados através do porto de Fortaleza foi algo corriqueiro no Ceará da

    segunda metade século XIX, com a província sendo apontada pela historiografia como uma

    fornecedora desses trabalhadores para o mercado interno.5 No início de 1881, por exemplo, a

    Gazeta do Norte noticiava que “durante o ano passado foram despachados para fora da província

    1.348 escravos, sendo: Em janeiro 50, fevereiro 74, março 149, abril 159, maio 105, junho 62, julho

    171, agosto 171, setembro 76, outubro 183, novembro 92, dezembro 56. De 1872 até dezembro do

    3 João Cordeiro produziu diversos artigos de jornal, sendo uma das lideranças do movimento abolicionista. STUDART,

    Guilherme (Barão de Studart). Datas e fatos para a história do Ceará. Fortaleza: Instituto do Ceará, 1924; MOREL,

    Edmar. Dragão do mar: o jangadeiro da abolição. Rio de Janeiro: Edições O Povo, 1949. 4 SILVA, Pedro Alberto de Oliveira. História da Escravidão no Ceará: das origens à extinção. Fortaleza: Instituto do

    Ceará, 2002; XAVIER, Patrícia Pereira Xavier. O Dragão do Mar na “Terra da Luz”: a construção do herói jangadeiro

    (1934-1958). Mestrado em História Social – PUC São Paulo: 2010; FERREIRA SOBRINHO, José Hilário. “Catirina,

    minha nêga, tão querendo te vende…”: escravidão, tráfico e negócios no Ceará do século XIX (1850-1888). Fortaleza:

    SECULT/CE, 2011; MILES, Tshombe L.. A luta contra a escravatura e o racismo no Ceará. Fortaleza: Edições

    Demócrito Rocha, 2011. 5 SLENES, Robert W. “The demography and economics of Brazilian slavery: 1850-1888”. Tese de

    doutoradoemHistória, Stanford, Sanford University, 1976; SLENES, Robert W. The Brazilian internal slave trade,

    1850-1888: Regional economies, slave experience and the politics of a peculiar market. In: JOHNSON, Walter (ed.).

    The Chattel Principle: internal slave trade in the Americas. New Haven: Yale UniversityPress, 2004, 325-370;

    GRAHAM, Richard. Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil. Afro-Ásia, 27

    (2002), pp. 131-132.

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    ano passado tem [sic] saído para fora da província 11.093 escravos.”6 Contudo, apesar do

    reconhecimento desse comércio e de seu volume, nos mesmos periódicos acompanhamos o

    desenvolvimento de ações abolicionistas e a divulgação dessa causa, com o debate da situação (e

    dos ganhos com a abolição) de países como os Estados Unidos, além de elogios aos senhores que

    alforriavam seus cativos.

    Antes de entrarmos diretamente no evento a ser comentado, cabe um pequeno

    esclarecimento sobre as condições do porto de Fortaleza no período. Devido às limitações do porto

    e aos fortes ventos, muitas vezes a atracação dos navios não poderia ser realizada com segurança.

    Dessa forma, os navios geralmente fundeavam longe da praia e todo o movimento de embarque e

    desembarque era realizado em embarcações menores. As lanchas e, principalmente, as jangadas

    eram as principais responsáveis pelos embarques e desembarques de seus passageiros e

    mercadorias, que eram realizados em frente ao centro da cidade.7

    De modo mais direto, o enredo de nossa discussão se inicia com a ação dos jangadeiros, cuja

    narrativa pelos jornais locais nos permite discutir não apenas como o evento se desenvolveu, mas

    também sua repercussão. Em sua edição de 7 de fevereiro de 1881, o jornal Libertador: órgão da

    Sociedade Cearense Libertadora divulgava da seguinte forma os acontecimentos dos dias

    anteriores:

    No dia 27 de Janeiro uns senhores que não conhecem outro meio de vida, senão comprar e vender criaturas

    humanas, trataram de exportar para os portos do sul quatorze homens e mulheres.

    Quando, à luz da civilização, a sociedade inteira se levanta contra a escravidão, o povo cearense não podia

    ficar aquém do seu século e colocar-se na retaguarda dos tempos que já foram.

    Assim entendeu ele de seu dever protestar contra o desumano tráfico, e um por um afluíram à praia mais de

    1.500 homens de todas as classes e condições.

    Lá já estavam os jangadeiros prestando os valiosos e indispensáveis serviços de sua profissão.

    A eles, pois, se dirigiram os negreiros solicitando o embarque dos infelizes que destinavam vender ao sul.

    - No porto do Ceará não se embarca mais escravos!

    Esta resposta terminante e decisiva partiu ao mesmo tempo de todos os lábios.

    Não se sabe mesmo quem primeiro a proferisse.

    Era uma ideia que estava em todas as inteligências, um sentimento que brotava em todos os corações.8

    Surgindo em meio à multidão, sem um autor declarado, essas palavras de ordem teriam logo

    tomado conta da praia e informado a suspensão das atividades dos jangadeiros, que não mais

    6 Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (HD-BN). Gazeta do Norte, n.4, 06/01/1881, p. 2. 7 XAVIER, Op. Cit., p. 8. 8 HD-BN. Libertador: órgão da Sociedade Cearense Libertadora, n. 3, 07/02/1881.

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    transportariam cativos para as embarcações. Construída no órgão de divulgação da Sociedade

    Libertadora Cearense, a narrativa acima destaca o movimento como algo espontâneo e partindo de

    diversos grupos sociais, esclarecidos pelo espírito do tempo e cientes da desumanidade desse

    comércio. Esse espírito de unidade teria sido fundamental para resistir as pressões que se seguiram a

    esse primeiro momento, por parte dos negociantes.

    Por sua vez, o periódico liberal Gazeta do Norte traz uma narrativa um pouco diferente:

    Tentando afrontar a onda de indignação pública contra o infame comércio de carne humana o Sr. João

    da Fonseca Barbosa, procurador da câmara municipal, mandou dar embarque a 23 escravos com destino às

    províncias do sul.

    Constando a nobre diretoria da Libertadora Cearense este fato, que entre nós é um atentado, esta

    conseguiu depois de embarcados 9 daqueles infelizes, convencer os lancheiros e jangadeiros do porto que era

    aviltar a profissão prestarem-se a esse serviço repugnante e desumano.

    Uma revolta operou-se imediatamente entre eles e nenhum prestou-se a conduzir para bordo as pobres

    criaturas que a ambição ia atirar para muito longe da terra natal, afastar de todas as afeições, além do muito que

    lhes pesava o martírio da escravidão.

    O dono (?) dos escravos recorreu a autoridade policial, mas esta, não podendo obrigar os catraeiros a

    um serviço que lhes repugnava, nenhum auxílio pode dispensar e assim triunfou o intrépido movimento dos

    abolicionistas.9

    Nessa leitura, a ação dos jangadeiros foi provocada pelos abolicionistas, visto que eles ainda

    executavam “esse serviço repugnante e desumano” até a ação da diretoria da associação.

    Convencidos pelos abolicionistas, os jangadeiros adotaram uma posição não negociável, apesar das

    reconhecidas pressões que os comerciantes exerceram sobre eles, inclusive acionando as

    autoridades para que essa os obrigasse a executarem o embarque. É interessante notar que, apesar

    de falar dessa ação de convencimento, essa narrativa não nega a atuação desses trabalhadores,

    inclusive destacando posteriormente o empenho dos mesmos nessa direção.

    A notícia publicada na Gazeta do Norte vai ainda mais longe discorrendo sobre as ações do

    dia. Denunciam que ainda pela manhã os abolicionistas haviam frustrado a tentativa de se embarcar

    uma escrava com pecúlio, fazendo a mesma retornar a terra e depositar suas economias. E, além

    disso, noticiaram que um passageiro do vapor denunciou que um dos escravizados que se

    encontrava a bordo, vindo do norte, “protestava ser livre”. “(...) sem demora, e pelos meios que a lei

    garante, foi trazido a terra e achava-se em depósito para as indispensáveis averiguações.”10 Com a

    9 HD-BN. Gazeta do Norte, n. 21, de 28/01/1881. 10 Idem.

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    rígida tomada de decisão por parte dos jangadeiros, com o apoio da população, o porto de Fortaleza

    se encontraria fechado para esse “comércio de carne humana”.

    Nas semanas seguintes, os periódicos locais destacaram a manutenção desse bloqueio, com a

    resistência a uma tentativa de embarque já no dia 30 de janeiro. O periódico Libertador narra que

    nesse dia devia seguir para o Sul o vapor Espírito Santo, e “lá correram à praia os Srs. Telesphoro

    Caetano de Abreu, José da Fonseca Barbosa e o italiano Vicente Ferreira & Irmão levando consigo

    38 criaturas humanas para exportá-las ao mercado do sul.”11 Contrariando os planos dos

    negociantes os jangadeiros mantiveram a sua posição e o embarque não foi efetuado. “O Ceará não

    tem mais escravos, e o paquete teve de voltar com os beiços em que mamou para levar a ingrata

    notícia ao sul escravocrata. Os negreiros perderam também a última esperança, e à noite ajoujaram

    suas vitimas e sob a guarda da polícia (!!!) fizeram-nas seguir para o porto de Aracaty.”12

    A posição e a afirmação do bloqueio do porto foi mantida nas semanas seguintes, com os

    periódicos destacando esse fato. Em sua edição de 2 de fevereiro, a Gazeta do Norte destacava que

    a Libertadora Cearense mantinha-se ativa “contra o vergonhoso tráfico de escravos.” Essa

    sociedade teria impedido novos embarques, com o apoio de mais adeptos. “É para crer que em

    breves dias estará de todo extinto o comércio de carne humana em nossa província.”13

    Nos meses seguintes, em periódicos como o Libertador, Gazeta do Norte e O Cearense,

    artigos e notícias que destacavam que no porto de Fortaleza não se embarcavam mais escravos

    foram recorrentes, frequentemente discutindo ou divulgando o reconhecimento nacional dessa

    posição. Além disso, os editores demonstravam estar atentos ao cenário nacional que envolvia essas

    negociações. Destacando as leis provinciais que estabeleciam altas taxas para a averbação da

    entrada de escravos nas províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, os autores do

    Libertador destacavam que ia se “convertendo em lei de todas as províncias a abolição gradual do

    comércio interprovincial de escravos. (...) Tudo isso significa que: Acabou-se o comércio

    interprovincial de escravos.”14

    11 HD-BN. Libertador, n. 3, 07/02/1881, p. 2. 12 Idem. 13 HD-BN. Gazeta do Norte, n. 25, 02/02/1881, p. 3. 14 HD-BN. Libertador, n. 3, 07/02/1881, p. 3.

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    O contínuo dessa discussão só foi modificado em agosto de 1881, quando novos conflitos

    ocorreram em Fortaleza. Em geral, os jornais não fazem uma cobertura com muitos detalhes,

    comentando apenas os excessos por parte dos jangadeiros e dos abolicionistas. Pelo que se

    compreende da discussão, os jangadeiros e abolicionistas teriam tentado impedir o embarque de

    escravos que estariam acompanhando seus senhores em viagem. Segundo a Gazeta do Norte, essa

    discussão vinha mobilizando a cidade nos últimos dias. Apontam que excessos haviam sido

    cometidos, mas nada muito grave, e que as autoridades haviam sido acionadas para garantir a lei.

    Defendem, dessa forma, as autoridades, mas também os jangadeiros e abolicionistas.15

    Também no início de setembro de 1881, O Cearense discute os fatos ocorridos no dia 30,

    em resposta ao último editorial do Constituição. Fala de alguns excessos pelos abolicionistas, mas

    que a atuação do chefe de polícia e do presidente da província, com a demissão de alguns

    funcionários, teria sido correta e resolvido a situação.16 No geral, os jornais comentam sobre a

    reafirmação do bloqueio do porto ao embarque de escravos, inclusive com a tentativa de radicalizar

    esse movimento.

    Na esteira dos comentários sobre o movimento de bloqueio do porto, uma série de notícias e

    comentários a respeito do comércio interno de escravos e dos negociantes responsáveis por essas

    transações foi veiculada nos periódicos locais. Para entender os significados dados a esse comércio

    e a atividade desses comerciantes, nos voltamos agora a forma como esses indivíduos e seu negócio

    foram tratados pelos jornais de Fortaleza.

    Comerciantes de carne humana

    O episódio do bloqueio do porto e sua repercussão foi percebido como uma vitória da crítica

    e do combate ao sistema escravista, colaborando para a construção de uma imagem depreciativa da

    escravidão e dos comerciantes de escravos nesse período. E isso mesmo partindo de uma presença

    que era bastante corriqueira e tratada de forma neutra nos jornais da época. Em geral, podemos

    perceber a presença de anúncios da negociação de escravos e a descrição da atividade desses

    comerciantes nos mais variados periódicos publicados no Brasil no século XIX. Nas seções que

    15 HD-BN. Gazeta do Norte, n. 188, de 02/09/1881: p. 1. 16 HD-BN. O Cearense, n. 191, 06/09/1881: p. 1.

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    descreviam o movimento do porto de Fortaleza, por exemplo, entre os passageiros de navios que

    partiam temos a frequente indicação de “escravos a entregar” entre eles.17 Conforme apontam

    Herbet Klein e Robert Slenes, esses homens e mulheres escravizados eram enviados nas linhas

    regulares de vapor por seus senhores ou comerciantes, para serem entregues a intermediários ou

    negociantes nos portos de destino.18 No caso cearense, predominantemente foram enviados ao Rio

    de Janeiro.

    Em órgãos de imprensa críticos da escravidão temos um discurso marcado pela construção

    de uma narrativa de intolerância para com esses comerciantes já no início da década de 1880. O

    jornal Libertador passa a descrever ao longo de 1881 as ações e reações à presença de diversos

    “negreiros”, como os comerciantes de escravos passam a ser textualmente citados. Isso quando não

    eram citados como“comerciantes de carne humana”, em um tom ainda mais claro de crítica.

    Em sua edição de 17 de março, o Libertador noticiou a passagem de três negreiros pelo

    porto de Fortaleza: Antônio Figueira Linhares, José Figueira Saboia e Antônio de Mello Marinho, a

    bordo do navio Ipojuca. Juntos eles levavam 52 escravos para os portos do sul. Segundo a narrativa

    do jornal, sabendo do sentimento local contrário a essa atividade, os dois primeiros negociantes

    desceram à terra, mas procuraram se proteger ficarando sem aparecer em público. Já Antônio de

    Mello Marinho teria se apresentado publicamente, tendo sido repelido pela população e retornado

    ao navio.19 As formas dessa hostilidade ou repulsa não foram textualmente citadas, infelizmente.

    Ainda sobre esses comerciantes, em uma edição de maio o mesmo jornal noticiou a passagem

    desses negociantes pela Paraíba, indicando que também lá eles teriam sido muito mal recebidos pela

    população.20

    Na Gazeta do Norte, logo em seguida ao primeiro bloqueio do porto, uma carta publicada

    assinada por “um seu lancheiro” critica o “escravagista Narciso Cunha”. Na publicação foi criticada

    a disponibilização ao “Carcamano negreiro”de lanchas para embarcar escravos, não ficando claro

    quem realizou essa disponibilização. Apontam ainda que, caso o negociante decidisse seguir adiante

    17 Na edição de 14 de junho de 1877 do jornal Pedro II, sob o título “Passageiros”, foi informado que no vapor

    Pernambuco, partindo para os portos do Sul, estavam “70 escravos a entregar”. HD-BN. Pedro II, n. 46, de 14/06/1877,

    p.4. 18 Slenes, Op. Cit., pp. 123-125; Klein, Op. Cit.. 19 HD-BN. Libertador, n. 6, 17/03/1881. 20 HD-BN. Libertador, n. 7, 24/03/1881.

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    com seus planos, “rogamos, por amor dos seus brios negreiros, que no dia do embarque dessa

    infeliz gente, se digne chegar até a praia afim de ser posta em exposição a sua candura.”21 Na leitura

    de cartas como essas, percebemos como a identificação e o constrangimento público dos envolvidos

    com esse comércio surgiam como estratégias para combater tais ações.

    Além de identificar os comerciantes de escravos que permanecessem em atividade,

    buscando ainda demonstrar a insatisfação popular com esses indivíduos e suas atividades, os

    periódicos e os autores abolicionistas procuraram ainda associar esse grupo de pessoas a uma série

    de práticas nocivas e mesmo criminais. A maior parte das referências aos “negreiros” que aparecem

    nos periódicos analisados em 1881 trazem consigo uma série de ilações sobre o caráter desses

    negociantes e sua atuação, como se verá na sequência.

    Entre as muitas acusações realizadas contra os “negreiros”, dois grupos delas chamam a

    atenção: a venda ilegal de crianças, abaixo da idade mínima permitira para a separação dos pais; e a

    negociação de pessoas escravizadas ilegalmente. A respeito da primeira linha de acusações, temos

    notícias ou a reprodução de notícias como a publicada pelo Libertador de 29 de maior de 1881.

    Segundo o jornal, diversos escravos haviam sido apresentados na secretaria de polícia da Corte para

    verificação. Entre eles “(...) acham-se 9 menores de cor acaboclada, de nomes Mathias, Marcolino,

    Faustino, Rufino, Antonio, Felippe, José, Ursula e Maria” que foram embarcados em Acaraú, na

    província do Ceará. Segundo a nota, “esses menores, que visivelmente parecem ter menos de 12

    anos, foram por ordem do Sr. Dr. Chefe de polícia interrogados e 7 dentre eles declararam ter

    deixado suas mães na província do Ceará.” As autoridades teriam feito o depósito das crianças para

    verificar o real estatuto legal dos mesmos, buscando identificar se eles era cativos, libertos, ou

    ingênuos, e se foram ilegalmente separados de suas mães.22

    Em abril do mesmo ano uma notícia semelhante já havia sido reproduzida pelos editores do

    Gazeta do Norte. Segundo notícia divulgada em jornal da Corte, escravos cearenses embarcados a

    partir de Acaraú haviam chegado a pouco na capital, e segundo o autor da nota “uma grande parte

    21 HD-BN. Gazeta do Norte, n. 22, 29/01/1881, p. 3. 22 HD-BN. Libertador, n. 9, 29/05/1881, p. 3-4.

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    dos escravos ontem chegados é constituída por crianças, todas elas denunciando à primeira vista

    não ter idade maior de nove anos.”23

    A esse respeito, cabe ressaltar que desde 1869 a separação de crianças escravas de suas mães

    era proibida por lei, o que foi reforçado na Lei do Ventre Livre de 1871. Dessa forma, a denúncia da

    idade dos jovens escravizados negociados tinha um forte respaldo legal. Além disso, como é

    destacado na notícia, havia dúvida sobre o próprio estatuto legal das crianças, visto que elas

    poderiam inclusive ser ingênuos negociados ilegalmente. Ser negociado com nove anos de idade em

    1881, de fato, não só os colocaria como ilegalmente separados de suas mães, já que o mínimo legal

    para isso era 12 anos, mas também os colocaria no limite do nascimento prévio a lei de 1871. A

    investigação desses casos, dessa forma, mostraria-se muito pertinente.24

    Por outro lado, a respeito da escravização ilegal, denúncias diretas da atuação de “negreiros”

    foram realizadas em alguns momentos.

    Em 1876 ou 1877 Marcos Barbosa Laborão, traficante de carne humana, vendeu ao Dr. José Gonçalves de

    Moura, hoje juiz de direito do Baixo Meamin, uma mulher livre de nome Esperança, a qual ainda hoje está

    sofrendo os duros efeitos de um cativeiro bárbaro e atroz, apesar das muitas tentativas por ela feitas em prol de

    sua liberdade.

    Chamamos a atenção do Sr. Dr. Chefe de polícia para este fato muito do conhecimento dos habitantes do

    Saboeiro e da Barbalha.25

    A responsabilidade e má fé do comerciante de escravos é destacada nessa nota. E de forma

    semelhante o Libertador faz uma análise siginificativa da atuação desses comerciantes nos últimos

    anos, partindo de uma declaração do novo presidente da província do Ceará. Ao assumir o governo

    provincial em meados de 1881, o Senador Leão Velloso surpreendeu-se “com a diminuta, ou antes

    nula, diferença entre a população escrava atual e a de 6 anos anteriores!”.26 Podemos acreditar que

    essa surpresa do Sr. Senador se deu pois, apesar do grande movimento de venda de cativos e de um

    contexto de crise da escravidão, essa população não teria sido reduzida conforme o esperado. Para

    23 HD-BN. Gazeta do Norte, n. 90, 28/04/1881. 24 Para concluir esse tópico, fica somente a dúvida do pagamento de imposto sobre a averbação dessas crianças na Corte, já que elas teriam sido negociadas após a definição de altos impostos provinciais, o que para muitos historiadores

    teria provocado o fim do mercado interprovincial de cativos (falaremos mais disso na última parte dessa discussão). 25 HD-BN. Libertador, n. 11, 16/06/1881: p. 2. 26 Idem, p. 1.

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    os redatores do Libertador a causa dessa permanência não seria outra que a atuação criminosa

    desses negociantes, conforme se observa nas partes transcritas do artigo abaixo reproduzido:

    Os escravagistas, os miseráveis especuladores de carne humana, estes pequenos miseráveis, que tem

    acumulado fortuna à custa de tantas lágrimas e gemidos, acossados por todos os flancos pela grande e

    simpática onda do movimento abolicionista, vendo que a cada momento lhes fugirá das mãos essa nova espécie

    de velocinio de ouro – não tem mesmo trepidado ante o crime...!

    Já não são os pobres e inocentes ingênuos, os felizes, que receberam o batismo da liberdade da lei de 28 de

    setembro, os únicos que estão sujeitos às ciladas e torpes insidias desses mercadores infames – eles assaltam

    mesma a boa fé e a ingenuidade de desgraçadas vítimas procurando por meio de subterfúgios indecorosos

    reduzí-las à escravidão!27

    Seguindo o artigo, são denunciados casos de pessoas livres que foram negociadas como

    escravas por comerciantes radicados no Ceará, como Joanna Adelina de Oliveira, mulher livre de 31

    anos, natural de Icó/CE, que foi vendida como escrava ao Rio de Janeiro. Segundo as investigações

    solicitadas, o registro de batismo de Joanna foi localizado, comprovando que havia nascido livre.

    “Como esse crime audaz, quantos não se terão dado igualmente em toda a província, devido à gana

    e indecorosa ganância de tantos e tão astuciosos escravocratas?!”. O artigo é concluído indicando:

    Eis claramente patente a razão, por que o ilustre Senador Leão Velloso mostrava-se surpreso ante a atual

    estatística da população escrava...

    É que os infames negociantes de negros rastejam-se até o crime, reduzindo pessoas livres à escravidão!

    Mas, não nos abandona a fé na generosa e grandiosa propaganda, que levamos por diantes. Um dia o escalbelo

    de réu há de ser o trono de ouro desses nojentos e asquerosos egoístas e ambiciosos vulgares, que tem os

    esgares do avarento, a alma na lama, e que são conhecidos por – traficantes de carne humana!28

    Da minha perspectiva, a motivação de comentários como esse foi claramente atacar as ações

    desses indivíduos como grupo. Em outras denúncias desse mesmo veículo outros casos são

    denunciados ao longo do ano. Chamo a atenção para a divulgação de casos que estariam sendo

    intermediados na justiça pela Sociedade Libertadora Cearense. Sob o título “Questões de

    liberdade”, são apresentados os casos de quinze indivíduos Entre eles, destacam os casos de

    Francisca e seus sete filhos, todos reduzidos ilegalmente ao cativeiro, assim como “José, livre,

    vendido por Joaquim Ferreira de Alencar de parceria com João Tavares do Espírito Santo Junior,

    27 Idem 28 Idem;

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    em maio de 1878 na cidade do Crato”. Temos ainda os casos de “Marcos, livre, vendido em 1876

    por Clementino de Hollanda Lima, sendo delegado e Baturité o alferes de polícia Joaquim José dos

    Prazeres Junior”, e de “Fausta, livre, dada em pagamento de uma dívida” a uma firma comercial.29

    De forma semelhante, mas trazendo novamente um comerciante de escravos para o primeiro

    plano, em correspondência publicada “pede-se a um negociante negreiro, desta capital, que restitua

    a uma sua escrava a quantia de 145$000 que mandou tomar emprestados por uma outra sua escrava

    (Filomena) para por este meio alforriar pela junta classificadora a de menos valor e ficar com a

    outra mais robusta e sadia (linda peça), no cativeiro.”30 Terminando a denúncia, os autores ainda

    fazem uma ameaça “Olhe a justiça, homem, liquide este negócio antes que os baleguius lhe peguem

    pelos babados.”31 É interessante notar que outras críticas com temática semelhante não tem um final

    agressivo, o que nos leva a pensar que o endereçamento dela a um negreiro possa estar envolvida

    nisso.

    Denunciando a falsificação de documentos, a ação de comerciantes de escravos, e a

    conivência de autoridades, a crítica realizada nos periódicos demonstrava uma série de ameaças aos

    escravizados e à população livre de cor da província do Ceará. Essa é uma temática ainda pouco

    desenvolvida nas discussões locais, apesar de já citadas por autores como José Hilário Ferreira

    Junior, e nos leva de volta a questão de como esse evento foi significado na região.

    O bloqueio do porto, seus significados e o abolicionismo

    Como evento histórico, o bloqueio do porto de Fortaleza por parte dos jangadeiros e do

    movimento abolicionista foi e continua sendo lembrado como uma ação fundamental para o fim

    desse comércio. Mas, para compreendermos melhor essa questão, é importante discutirmos a

    posição de Fortaleza como entreposto para a negociação de cativos. Nesse aspecto, a análise das

    escrituras de compra e venda de escravos na capital cearense indica, ao longo de toda a década de

    1870, uma constante busca por trabalhadores escravizados no interior da província e sua

    disponibilização no mercado nacional de escravizados. 29 HD-BN. Libertador, n. 5, 03/03/1881, p. 2. 30 HD-BN. O Cearense, n. 52, 09/03/1881: p. 4. 31 Idem.

  • 12

    Na realidade, a análise do Livro de Lançamento de Passaportes para escravos, entre 1856 e

    1861, já deixava clara a relação do Ceará com os principais centros escravistas brasileiros.

    Negociantes sediados em Fortaleza, como Jacob Cohn, surgiram repetidas vezes como solicitantes

    de passaportes para que jovens escravizados fossem enviados ao Sudeste, principalmente ao Rio de

    Janeiro.32 Completando essa relação, percebemos nas escrituras de compra de escravos a atuação de

    negociantes de Fortaleza na aquisição de cativos no interior da província. No início da década de

    1870, por exemplo, para os cativos negociados na capital cearense, 60,6% dos trabalhadores

    estavam sendo adquiridos por compradores da cidade de Fortaleza, com 73,5% dos cativos

    negociados sendo transferidos dentro da província. Diretamente, apenas 11,3% dos escravizados

    foram negociados com diferentes províncias.33

    Apesar desses números indicarem inicialmente uma atração de escravos para a capital, cabe

    ressaltar que grande parte das compras foi realizada por negociantes lá estabelecidos. A firma Luiz

    Ribeiro da Cunha & Sobrinhos, por exemplo, foi compradora de 20,9% de todos os negociados

    nesse livro. Jacob Cohn, citado anteriormente e ainda ativo no início da década de 1870, foi

    responsável pela compra de 5,3% dos trabalhadores registrados.34 Apesar dessa fonte não registrar

    adequadamente a saída dos escravizados, a relação que se faz com a presença das firmas e

    negociantes, a falta de atividades econômicas de vulto na capital cearense, e as indicações de envio

    já vistas em registros do porto, passaportes e notícias de jornais, indicam claramente que essas

    compras tinham como finalidade abastecer o mercado nacional de trabalhadores escravizados.

    Jovens e crianças representaram grande parte dos negociados (cativos de até 14 anos

    representaram 34,8% dos escravizados cujas vendas temos registros no início da década), com

    muitas crianças desacompanhadas sendo vendidas. Foram observados muitas vezes casos como o de

    “Isidro, caboclo, de nove anos de idade, e natural da freguesia de Granja”, que foi negociado sem

    que fosse feita qualquer referência a seus pais para a capital da província, em 23 de abril de 1872.35

    A falta de informação aos pais, assim como a idade abaixo do permitido por lei para a separação,

    32 Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Fundo: Chefatura de Polícia; Livro 5 A, Lançamento de concessão de

    Passaportes de Escravos (1856-1861); 33 APEC; Tabelionato de Fortaleza; Cartório Feijó, Livro 357. Nesse livro foram registradas as compras e vendas de

    302 escravos entre 1871 e 1873. 34 Idem; 35 Idem, p. 70v.

  • 13

    são indícios de irregularidades que nos ajudam a entender a crítica que os jornais fizeram contra os

    negreiros. A esse respeito, José Flávio Motta explora em um artigo as diversas formas utilizadas

    pelos negociantes para burlar a lei, discutindo também, em outro momento, a significativa presença

    de crianças nas fases mais intensas desse comércio.36

    Quando entendemos o grande volume de cativos negociados localmente, além desse perfil

    próximo à ilegalidade de parte dos cativos transferidos, percebemos o interesse dos jornais em

    divulgar essas denúncias, assim como publicar correspondências e notícias de outros jornais do país

    que destavam a ação dos jangadeiros e abolicionistas cearenses. A Gazeta do Norte, reproduzindo

    um jornal da Corte, segue essa linha indicando que “não é hoje ignorado que no porto do Ceará não

    se efetua embarque de escravos, já pelo espírito de hostilidade que a população de Fortaleza

    declarou a este ato, já porque os jangadeiros negam-se absolutamente a leva-los para bordo dos

    paquetes.”37

    De forma complementar, além da propaganda dessa ação o fim desse comércio é discutido a

    partir dos impostos proibitivos à entrada de escravos estabelecidos a partir de 1881. Desde janeiro

    de 1881 as principais províncias que adquiriam escravos no mercado interprovincial – Rio de

    Janeiro, São Paulo e Minas Gerais – impuseram elevadas taxas para a averbação de escravos que

    entravam nas províncias. Com isso, como apontam vários historiadores e os próprios articulistas, o

    comércio interno de escravos perdeu sua força e entrou em franca decadência.38

    A partir dessas percepções, e caminhando para a conclusão, compreende-se que os próprios

    jornais e articulistas que defenderam a importância do bloqueio do porto, reconheciam ainda que

    seu efeito no fim desse comércio deveu-se também ao contexto nacional, que se voltou contra essas

    transferências. É importante destacar, por outro lado, que os próprios jornais apontavam que o

    transporte de escravos continuou acontecendo na província, utilizando outros portos. Em artigo já

    citado, reproduzido na Gazeta do Norte, foi dito que escravos chegados à Fortaleza não puderam ser

    36 MOTTA, José Flávio. A lei, ora a lei! Driblando a legislação no tráfico interno de escravos no Brasil (1861-1887). História e Economia Revista Interdisciplinar, v. 10, n. 1, pp. 15-28, 1º semestre de 2012b; MOTTA, José Flávio. Crianças no apogeu do tráfico interno de escravos (Piracicaba, província de São Paulo, 1874-1880). História econômica & história de empresas, vol. 18 no 2 (2015), 291-322. 37 HD-BN. Gazeta do Norte, n. 90, de 28/04/1881 38 Slenes, Op. Cit., pp. 124-125, 161; Graham, Op. Cit., pp. 140.

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    embarcados ali, e foram levados para Acaraú, no litoral Oeste da província, para dalí serem

    embarcados.39

    Dessa forma, é preciso entender que o destaque dado ao evento está muito mais ligado à sua

    repercussão e seu peso para o movimento abolicionista, do que necessariamente ao seu papel no

    encerramento do comércio interno de escravos na província. Fortaleza, o principal porto e centro do

    comércio negreiro do Ceará – uma província que forneceu muitos escravos para o mercado interno

    – teve seu porto fechado para esse comércio. Essa foi uma vitória do movimento abolicionista, com

    uma participação popular significativa, e deve ser pensanda a partir desse ponto na sua divulgação e

    imagem pública, que perdura até os dias de hoje no imaginário e memória histórica do Ceará.

    Nas paginas de periódios como o Libertador, as ações realizadas no porto de Fortaleza

    ganham destaque como o posicionamente de um povo que estaria na vanguarda do sentimento

    humanista no país, que se colocava ao lado do progresso. Ocorre até a descrição do cearense como

    “Yankee” brasileiro, um amante defensor da liberdade.40 Para o movimento abolicionista no Ceará,

    esse evento foi marcante para afirmar um espírito de vanguarda da região no cenário nacional, que a

    tornou um ponto de referência significativo nessa luta. As referências ao Ceará “terra da luz”

    também se relacionam com isso, mostrando a narrativa vitoriosa constituída pelo movimento

    abolicionista.

    Fontes

    Hemeroteca Digital – Biblioteca Nacional:

    - Periódicos: Pedro II; Libertador: órgão da sociedade libertadora; Gazeta do Norte; e O Cearense;

    Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC)

    - Fundo: Tabelionato de Fortaleza; Cartório Feijó: Livro 357; Livro 359;

    - Fundo: Tabelionato de Fortaleza; Cartório Severo: S/N;

    - Fundo: Chefatura de Polícia; Livro 5 A, Lançamento de concessão de Passaportes de Escravos

    (1856-1861);

    39 HD-BN. Gazeta do Norte, n. 90, de 28/04/1881. 40 HD-BN. Libertador, n. 6, 17/03/1881, p. 4

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    Bibliografia

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    GRAHAM, Richard. Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no

    Brasil. Afro-Ásia, 27 (2002), p. 121-160.

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    importations into Rio de Janeiro in 1852. The Hispanic American Historical Review, vol. 51, n. 4

    (nov. 1971).

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    Demócrito Rocha, 2011.

    MOREL, Edmar. Dragão do mar: o jangadeiro da abolição. Rio de Janeiro: Edições O Povo, 1949.

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    cafeeira paulista (Areias, Guaratinguetá, Constituição/Piracicaba e Casa Branca, 1961-1887). São

    Paulo: Alameda, 2012.

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