Nº. 87/2008 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS...

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i Nº. 87/2008 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA ÁREA ANÁLISE AMBIENTAL E DINÂMICA TERRITORIAL Ivie Nunes de Santana O planejamento turístico como instrumento de legitimação cultural em território quilombola Dissertação apresentada ao Instituto de Geociências como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Geografia. Orientadora: Profª Dra. Maria Tereza Duarte Paes CAMPINAS / SP Agosto 2008

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Nº. 87/2008

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

ÁREA ANÁLISE AMBIENTAL E DINÂMICA TERRITORIAL

Ivie Nunes de Santana

O planejamento turístico como instrumento de legitimação cultural

em território quilombola

Dissertação apresentada ao Instituto de

Geociências como parte dos requisitos para

obtenção do título de Mestre em Geografia.

Orientadora: Profª Dra. Maria Tereza Duarte Paes

CAMPINAS / SP

Agosto 2008

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© by Ivie Nunes de Santana, 2008

Catalogação na Publicação elaborada pela Biblioteca

do Instituto de Geociências/UNICAMP

Santana, Ivie Nunes de.

Sa59p O planejamento turístico como instrumento de legitimação

cultural em território quilombola / Ivie Nunes de Santana--

Campinas, SP.: [s.n.], 2008.

Orientadora: Maria Tereza Duarte Paes.

Dissertação (mestrado) Universidade Estadual de Campinas,

Instituto de Geociências.

1. Turismo - Planejamento. 2. Turismo – Aspectos culturais.

3. Território nacional. I. Paes, Maria Tereza Duarte.

II. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geociências

III. Título.

Título em inglês: The tourist planning as an instrument of cultural legitimization in

the quilombola territory.

Keywords: - Tourism - Planning;

- Tourism - Culture;

- Territory use;

Área de concentração: Análise Ambiental e Dinâmica Territorial

Titulação: Mestre em Geografia.

Banca examinadora: - Maria Tereza Duarte Paes;

- Celso Costa Lopes;

- Regina Célia Bega dos Santos.

Data da defesa: 29/08/2008

Programa: Geografia

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“Eu necessitava de teoria para estruturar meu pensamento, e argumentava com você

que um pensamento não estruturado sempre ameaça naufragar no empirismo e na

insignificância. Você respondia que a teoria sempre ameaça se tornar um constrangimento que

nos impede de perceber a complexidade movediça da realidade”.

(GORZ, 2008)

Ao meu pai.

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Agradecimentos

A Deus, pela vida.

A minha família, que com a mínima noção do que eu fazia durante os meses em campo, me

apoiou espiritual e materialmente durante todo o tempo de curso, porque afinal, parecia mesmo

importante concluir esse mestrado.

Aos meus amigos, aos já existentes e aos conquistados nesse período, agradeço a companhia na

minha busca de sentido pra toda e qualquer coisa.

Ao pessoal do IGE e da UNICAMP. As conversas durante os cafés, os bandecos e as festinhas

foram os melhores motivos que me mantiveram na pós-graduação. Aos professores, alunos e

funcionários pela atenção, pelo carinho, pelas idéias. Um abraço pro seu Aníbal.

A querida sala 6. Aos veteranos e aos novatos que sempre me acolheram e me auxiliaram. À

Josita, sempre amiga.

Aos amigos de entrada, ao presente Cris e a saudosa Clau.

A super Val, por vezes você foi a razão que me animou a concluir o mestrado. A leal Edinalva, a

secretaria do IGE só se completa com você.

A professora Tereza, por me ensinar o valor de um conceito e pela parceria durante o curso.

Ao professor Celso, por me levar ao Vale do Ribeira e por trabalhar pela extensão comunitária.

A professora Regina, pela atenção dada a este trabalho.

A professora Angela, orientadora pra vida.

Ao pessoal do PCQ, pela vidinha no Vale do Ribeira.

Às comunidades de André Lopes e Sapatu, meu sincero agradecimento por me permitirem

intervir como pesquisadora e partilhar como pessoa.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

PARTE I: O TURISMO NA BASE DA PRODUÇÃO TERRITORIAL 3

Capítulo 1: A conformação do território turístico 3

Capítulo 2: O turismo como proposta para o desenvolvimento local: limites e potencialidades 10

Possibilidades conceituais acerca de desenvolvimento 25

Capítulo 3: O olhar do turista sobre o território 34

PARTE II: O TERRITÓRIO CONSTRUÍDO: IDENTIDADE E CONCEPÇÕES DE USO 45

Capítulo 4: Definição política e cultural do território quilombola 45

Concentração quilombola no Vale do Ribeira 52

Capítulo 5: Histórico da ocupação negra regional: origem dos bairros de André Lopes e Sapatu 59

Origem do bairro de André Lopes 61

Origem do bairro de Sapatu 64

Capítulo 6: Territorialidade como expressão material de uma identidade cultural 69

Associações de Remanescentes de Quilombos das Comunidades de André Lopes e de

Sapatu

76

Capítulo 7: Da agricultura ao turismo: o território normatizado por políticas desenvolvimentistas

e legislação ambiental

84

PARTE III: PLANEJAMENTO COMUNITÁRIO DO TURISMO: POSSIBILIDADES DE

INTERVENÇÃO TERRITORIAL

97

Capítulo 8: Relação entre universidade e comunidades: Oficinas de Planejamento Comunitário

do Turismo

97

Capítulo 9: O caso das comunidades de André Lopes e Sapatu 109

Capítulo 10: O planejamento turístico como instrumento de legitimação cultural em território

quilombola.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 150

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Alojamento do PCQ na comunidade de André Lopes

Figura 2. Mapa de localização do município de Eldorado no estado de São Paulo

Figura 3. Placa para visitantes na comunidade de André Lopes

Figura 4. Estrada de acesso à caverna na comunidade de André Lopes

Figura 5. E.E. Maria Antonia Chules Princesa

Figura 6. Igreja e centro comunitário (ao fundo) de André Lopes

Figura 7. Bairro de André Lopes

Figura 8. Rodovia SP-165 na comunidade de Sapatu

Figura 9. E.E. do bairro de Sapatu

Figura 10. Bairro de Sapatu

Figura 11. Rio Ribeira no trecho entre as comunidades de André Lopes e Sapatu

Figura 12. Espécie de palmito Juçara

Figura 13. Mapa do Mosaico de Unidades de Conservação do Jacupiranga

Figura 14. Centro comunitário de Sapatu

Figura 15. Centro de artesanato de André Lopes

Figura 16. Parque Estadual do Jacupiranga

Figura 17. Placa de anúncio da cachoeira Queda do Meu Deus

Figura 18. Área de acesso à cachoeira Queda do Meu Deus

Figura 19. Trilha de acesso à cachoeira Queda do Meu Deus

Figura 20. Praça central do município de Eldorado

Figura 21. Praça em Eldorado

Figura 22. Placa de informações turísticas em Eldorado

Figura 23. Espaço público Aldeia Cultural – Eldorado

Figura 24. Núcleo Caverna do Diabo – PEJ

Figura 25. Acesso à Caverna do Diabo

Figura 26. Restaurante do núcleo Caverna do Diabo

Figura 27. Espaço para exposição de artesanato comunitário no núcleo

Figura 28. Entrada para a caverna

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LISTA DE SIGLAS

AAGEMAN – Associação de Guias e Auxiliares de Ecoturismo

ABA – Associação Brasileira de Antropologia

ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

AMAMEL – Associação dos Monitores Ambientais do Município de Eldorado

APA – Área de Proteção Ambiental

ASPAC – Associação Comunitária pela Preservação do Meio Ambiente de Silves

AVIVE – Associação Vida Verde da Amazônia

BIRD – Banco Interamericano de Desenvolvimento

CBA – Companhia Brasileira de Alumínio

CEB – Comunidades Eclesiais de Base

CESET – Centro Superior de Educação Tecnológica

CESP – Companhia Energética do estado de São Paulo

CNPQ – Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia

CNUMAD 92 – Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento

COMTUR – Conselho Municipal de Turismo

COOPECANTUR – Cooperativa de Artesanato e Turismo

COOPTUR – Cooperativa de Trabalho em Turismo da Amazônia

CPT – Comissão Pastoral da Terra

DADE – Departamento de Apoio ao Desenvolvimento das Estâncias

DFID – Department for International Development

DPRN – Departamento de Proteção aos Recursos Naturais

E.E. – Escola Estadual

EEM – Estação Ecológica Mamirauá

FCP – Fundação Cultural Palmares

GA-PCQ – Grupo de Apoio - Programa Comunidades Quilombolas

IBAMA – Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis

ICMS – Imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços

IDESC – Instituto para o Desenvolvimento Sustentável e Cidadania do Vale do Ribeira

IDH – Índice de Desenvolvimento Humano

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IDSM – Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá

IF – Instituto Florestal

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

IPAAM – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia

ISA – Instituto Sócio-Ambiental

ITESP – Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva”

MCT – Ministério da Ciência e Tecnologia

MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário

MOAB – Movimento dos Ameaçados por Barragens

MPF – Ministério Público Federal

ONU – Organização das Nações Unidas

PCQ – Programa Comunidades Quilombolas

PDDTA – Plano Diretor de Desenvolvimento Turístico e Agrícola

PEC – Programa de Ecoturismo

PEJ – Parque Estadual do Jacupiranga

PETAR – Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira

PIB – Produto Interno Bruto

PREAC – Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários

RDS – Reserva de Desenvolvimento Sustentável

RDSM – Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá

RPPN – Reserva Particular do Patrimônio Natural

RESEX – Reserva Extrativista

RTC – Relatório Técnico-Científico

SBPC-AM – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - Estado do Amazonas

SCM – Sociedade Civil Mamirauá

SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação

UFPA – Universidade Federal do Pará

UHE Tijuco Alto – Usina Hidrelétrica Tijuco Alto

UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas

WCS – The Wildlife Conservation Society

WWF – World Wilf Fund for Nature

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

ÁREA ANÁLISE AMBIENTAL E DINÂMICA TERRITORIAL

Ivie Nunes de Santana

RESUMO

“O planejamento turístico como instrumento de legitimação cultural em território

quilombola”.

Através deste trabalho buscamos identificar se o planejamento turístico pode servir a

comunidades quilombolas como instrumento para a gestão territorial das áreas que ocupam, de

acordo com sua lógica cultural de apropriação, em um contexto onde o turismo é uma das

atividades potenciais para aproveitamento do território. Especificamente, procuramos identificar

as possibilidades de conformação de uma prática turística diferenciada, atrelada antes aos

preceitos comunitários de uso do território que aos de consumo sobre o território, característica

marcante do turismo contemporâneo. Por isso a noção de legitimação cultural, ao considerarmos

o uso do território afinado às concepções definidas pelas próprias comunidades frente a formas de

intervenção territorial de outras naturezas.

Palavras-chave: turismo, planejamento, cultura, território.

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

ÁREA ANÁLISE AMBIENTAL E DINÂMICA TERRITORIAL

Ivie Nunes de Santana

ABSTRACT

“The tourist planning as an instrument of cultural legitimization in the quilombola

territory”

Through this work we’ve tried to identify if the tourist planning can be useful to

quilombolas communities as an instrument for the territorial management of the areas which

occupy according to the cultural logic of appropriation, in a context where the tourism is one of

the potential activities to make a good use of the territory. To be more specific, we’ve tried to

identify the possibilities of consolidating a distinguished tourist practice more attached to the

community first concepts of using the territory than the consumption over the territory, notorious

characteristic of the contemporary tourism. What leads us to the idea of cultural legitimization,

considering the use of territory connected to the conceptions defined by the same communities

facing forms of territorial intervention of new natures.

Keywords: tourism, planning, culture, territory.

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APRESENTAÇÃO

Este trabalho baseia-se na análise do planejamento turístico empreendido na esfera

comunitária e voltado à gestão territorial de áreas reconhecidas como pertencentes a populações

quilombolas. Tomamos por pressuposto a idéia de que o planejamento do turismo pode

configurar-se como instrumento para a gestão territorial comunitária, tornando essas

comunidades, portanto, menos vulneráveis a riscos e a impactos provenientes de uma atividade

turística estruturada principalmente por concepções externas.

Buscamos, de forma geral, identificar se o planejamento turístico pode servir às

comunidades como instrumento para empreender a gestão territorial das áreas que ocupam de

acordo com sua lógica cultural de apropriação, em um contexto onde o turismo é uma das

atividades potenciais para aproveitamento do território. Por isso a noção de legitimação cultural,

ao considerarmos o uso do território afinado às concepções definidas pelas próprias comunidades

frente a formas de intervenção territorial de outras naturezas.

Especificamente, procuramos identificar as possibilidades de conformação de uma prática

turística diferenciada, atrelada antes aos preceitos comunitários de uso do território que aos de

consumo sobre o território, característica marcante do turismo contemporâneo. E ainda,

identificar a partir das concepções construídas pelas comunidades em torno do planejamento

turístico, o quão representativa pode ser sua lógica cultural em relação a outros sujeitos

envolvidos na construção do território.

Para tanto, o trabalho foi desenvolvido por meio da realização de Oficinas de

Planejamento Comunitário do Turismo com duas comunidades remanescentes de quilombos do

município de Eldorado, no Estado de São Paulo. As oficinas integraram o trabalho de extensão

comunitária realizado pelo Programa Comunidades Quilombolas (PCQ) da Universidade

Estadual de Campinas (UNICAMP), que por sua vez, compreende o desenvolvimento de

atividades e projetos em parceria com comunidades remanescentes de quilombos do Vale do

Ribeira, visando seu desenvolvimento sócio-cultural.

Em setembro de 2005, o programa apresentou algumas demandas das comunidades

parceiras do programa; nessa ocasião foram apresentadas demandas referentes à formação de um

possível Grupo de Trabalho de Turismo e Educação Ambiental. Entre outubro e novembro de

2005, foram feitos os primeiros contatos entre os alunos responsáveis pelo grupo de trabalho e as

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comunidades; a proposta desde o início foi trabalhar o turismo local com base no planejamento

comunitário. O trabalho se organizaria através de oficinas com os representantes interessados de

cada comunidade onde as demandas apresentadas por elas seriam tratadas como temas para o

planejamento turístico. Em dezembro de 2005, a Associação de Remanescentes de Quilombo do

Bairro de André Lopes e a Associação de Remanescentes de Quilombo do Bairro de Sapatu

manifestaram interesse pela realização das oficinas.

De janeiro a março de 2006, aconteceram as primeiras reuniões com as comunidades para

a definição de projetos, calendário e participantes das oficinas. As Oficinas de Planejamento

Comunitário do Turismo foram organizadas em forma de reuniões com grupos definidos pelas

associações de André Lopes e de Sapatu. Essas reuniões foram chamadas “oficinas” pelo caráter

de discussão e construção coletiva sobre propostas e conceitos que se apresentou inicialmente e

que orientou as atividades desenvolvidas durante todo o processo. No período de abril a julho de

2006, foram realizadas 20 reuniões envolvendo 23 moradores na comunidade de André Lopes; na

comunidade de Sapatu, foram realizadas 15 reuniões envolvendo 21 moradores.

Como resultados deste trabalho, as comunidades de André Lopes e Sapatu produziram: o

diagnóstico da situação atual do turismo nas comunidades; o levantamento de demandas para o

desenvolvimento do turismo comunitário; a participação na discussão sobre o Plano Diretor

Municipal e o Conselho Municipal de Turismo de Eldorado; a elaboração de planos para atrativos

turísticos já em utilização; a elaboração de projetos de desenvolvimento local para submissão a

editais. Este último resultado se refere ao estudo de um edital para financiamento de projetos e à

construção de uma proposta que pudesse ser a ele submetida, visto que o financiamento via

editais é, atualmente, uma das principais formas para a viabilização de projetos comunitários.

O processo de realização das oficinas, bem como os resultados produzidos através delas,

subsidiaram a dissertação aqui apresentada. Este estudo considera especialmente as noções de

planejamento do turismo construídas por cada comunidade, com base no contexto local e no

histórico de intervenções que configuram atualmente o território quilombola. As comunidades,

reconhecidas como proprietárias de uma porção territorial da região do Vale do Ribeira, vêm

assumindo posturas de regulação sobre tais intervenções, das quais o turismo, proposto como

alternativa para o desenvolvimento local, também faz parte. Nesse caso, as noções construídas

através das oficinas de planejamento comunitário da atividade representam as concepções que

cada comunidade possui para orientar a gestão dos territórios em que vivem.

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INTRODUÇÃO

A Parte I trata do desenvolvimento do turismo sob a perspectiva territorial. No capítulo

primeiro, analisamos as repercussões espaciais da atividade, considerando a relação entre

concepções distintas de apropriação territorial, tomadas pelos turistas e pela população local, e as

territorialidades construídas nessa relação. Identificamos, dentro dessa relação ainda, a presença

de um campo de poderes que se materializa a partir dos usos e das funções que os sujeitos

determinam ao território.

No capítulo segundo, discutimos estudos de caso de turismo desenvolvidos com base na

participação de comunidades no processo de gestão territorial. Analisamos os limites e as

potencialidades de estudos realizados sobre a Prainha do Canto Verde, no Estado do Ceará, e

sobre a Reserva Mamirauá e Silves, ambos no Estado do Amazonas. Esses estudos, pelo fato de

se constituírem em referências distintas de práticas turísticas envolvendo comunidades,

subsidiaram algumas das discussões realizadas durante as Oficinas de Planejamento Comunitário

do Turismo. Através de sua análise, discutimos ainda em que medida a sobreposição de lógicas

distintas de apropriação territorial pode gerar processos mais ou menos legítimos de

desenvolvimento para as comunidades em questão.

No capítulo terceiro, discutimos as motivações que orientam a prática contemporânea da

viagem, considerando-se os critérios de significação e representação social nela embutidos.

Analisamos a natureza dessas motivações através de uma referência geográfica e outra

antropológica e buscamos, na interação entre elas, identificar as razões que regem a produção do

turismo a partir das concepções de ordem cultural existentes na relação entre turistas e território.

Consideramos especialmente a discussão em torno da apropriação de recursos materiais e

simbólicos derivada da prática turística, relacionando-a a representação e ao significado que esses

mesmos recursos dispõem para a população residente e para a população visitante.

A Parte II do trabalho trata do processo de construção do território a partir de diferentes

concepções de uso e apropriação. No capítulo quarto, discutimos o reconhecimento das

comunidades como remanescentes de quilombo; analisamos o processo de identificação social

como recurso político de acesso a terra, garantido segundo artigo da Constituição Brasileira.

Buscamos também identificar de que forma a identidade quilombola se constrói a partir da

produção do território dessas comunidades.

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No capítulo quinto, apresentamos o processo de formação territorial das comunidades de

André Lopes e Sapatu, considerando o histórico de ocupação das comunidades negras na região.

Na seqüência, no capítulo sexto, discutimos as relações que as comunidades estabelecem com o

espaço que habitam, no sentido de identificar componentes culturais presentes na produção do

território. Analisamos os usos e as funções que são atribuídas a este território como forma de

interpretação da dinâmica cultural das comunidades, onde os preceitos de sociabilidade,

identidade e uso social da terra estão atrelados às características ambientais e conformam um tipo

específico de produção social.

No capítulo sétimo, apresentamos o processo de normatização conferido ao território

através de sujeitos e ações que condicionam as formas de uso atual de seus habitantes.

Analisamos, nessa perspectiva, as formas de adaptação e resistência que as comunidades

envolvidas manifestam diante da instituição de determinadas normas e como elas se relacionam

nessa arena de conflitos. Introduzimos a perspectiva do desenvolvimento turístico nas

comunidades como atividade econômica e forma de intervenção territorial.

A Parte III trata da proposta de planejamento comunitário do turismo com base no

trabalho de extensão comunitária realizado. No capítulo oitavo, descrevemos o processo de

trabalho construído entre universidade e comunidades, especificamente a partir das Oficinas de

Planejamento Comunitário do Turismo.

No capítulo nono, apresentamos os resultados das oficinas realizadas durante o ano de

2006 com as comunidades de André Lopes e Sapatu. Analisamos esses resultados como

indicativos de um modelo de territorialização gerido nas comunidades e representativo de sua

ordem cultural. Analisamos também a conformação de territórios específicos em um espaço

contínuo de ocupação territorial.

No capítulo décimo, discutimos em que medida o instrumento de planejamento turístico

pode auxiliar na definição de funções do território que sejam representativas de uma visão

comunitária, especialmente em relação aos conflitos de ordem territorial que envolvem as

comunidades. Analisamos também, como esse instrumento pode conferir maior legitimidade ao

processo de desenvolvimento concebido pelas comunidades, característico de sua própria lógica

cultural.

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PARTE I: O TURISMO NA BASE DA PRODUÇÃO TERRITORIAL

Capítulo 1: A conformação do território turístico

O turismo, à medida que se caracteriza por um processo de deslocamento de pessoas,

mesmo temporário, confere ao espaço um atributo especial, quando este é, ao mesmo tempo,

condicionante das relações estabelecidas pela atividade turística e condicionado por meio das

transformações por ela causadas. O próprio deslocamento necessário para a prática do turismo é

tanto um produto da existência de diferentes subespaços, como um fator determinante na

produção dos mesmos.

A apreensão simultânea de recursos estabelecidos socialmente pela população local e

adaptados para o exercício da atividade turística, orienta as relações em torno das quais o turismo

se manifesta, comportando-se como condicionante do ordenamento territorial (CRUZ, 2001, p.7).

O turismo incorpora novos usos e novas funções à dinâmica sócio-espacial já existente; a

diferença na forma de conceber o uso do espaço encontra no turismo uma via de expressão

política de onde são apreendidos os variados discursos e racionalidades que regem a organização

da atividade. O espaço, dessa forma, passa a se conformar sob um caráter híbrido, marcado pela

sobreposição de fatores internos e externos, que conflituosos ou convergentes, terminam sempre

por se relacionar dando origem ao território, produzido material e simbolicamente pela sociedade.

Da passagem do espaço ao território, Raffestin (1993) nos fala de uma relação de

produção que une uma categoria à outra por meio de processos sociais caracterizados pela

representação do espaço que, ao se tornar concretamente organizada, se transforma em território.

A representação do espaço, por si só, já compreende um sistema de relações, através das quais,

segundo o autor, o território é idealizado. “Portanto, o espaço representado não é mais espaço,

mas a imagem do espaço, ou melhor, do território visto e/ou vivido. É em suma o espaço que se

tornou o território de um ator, desde que tomado numa relação social de comunicação”

(RAFFESTIN, 1993, p.147).

A atividade realizada por turistas que procuram viver experiências inéditas ou exóticas em

áreas dotadas de ricos ecossistemas e habitadas por populações diferenciadas quanto ao modo de

produção social é uma expressão da materialização do território turístico. Esse território por sua

vez, encerra tanto a perspectiva do turista, com suas possíveis aspirações e expectativas

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projetadas sobre o território de forma pontual, quanto à perspectiva de seus habitantes, formada

pelos usos e pelas funções atribuídos ao território de forma permanente, que se mantém após a

passagem do turista e que contém essa passagem em sua conformação.

O turismo promove o diálogo entre distintas representações territoriais, formadas a partir

de códigos culturais heterogêneos. Uma das bases dessa relação reside na diferença entre a

“territorialidade sedentária” da população local e a “territorialidade nômade” dos turistas

(KNAFOU, 1996, p.64). O condicionante temporal que determina, nesse caso, algumas das

circunstâncias de apropriação do território, contrapõe formas de produção espacial originadas sob

perspectivas distintas que, para além dos efeitos positivos ou negativos que podem significar para

um ou outro sujeito, manifestam, sobretudo, a existência de um campo de poder entre eles

(RAFFESTIN, 1993).

Parece ainda contraditório o fato de que os viajantes que procuram no turismo uma forma

de abstração do seu cotidiano desejem encontrar no lugar visitado as mesmas referências que têm

diariamente no lugar onde vivem. “Assim, fugindo-se do cotidiano pelo anticotidiano, a pessoa

fatalmente se descobre no cotidiano” (KRIPPENDORF, 2001, p.55). Segundo o autor, para o

turista estar em férias, basta não trabalhar e não estar em casa, porém todas as demais atividades

do seu dia-adia devem seguir normalmente, do contrário, a experiência da viagem pode ser

desconfortante e até ameaçadora.

“Mesmo quando o turista acredita estar viajando para “consumir o clima” de um dado

destino tropical, o conjunto da infra-estrutura turística e da infra-estrutura suporte

(acesso, saneamento básico, energia elétrica, telefonia) desempenha papel fundamental

na sua decisão. Quantos turistas iriam para o Caribe ou para o litoral do Nordeste se

tivessem que dormir em barracas, utilizar banheiros coletivos e tomar banho em rios ou

no mar?” (CRUZ, 2001, p.25).

Na busca por um ambiente familiar fora de casa, os turistas estimulam a criação ou a

reutilização de espaços que atendam as suas necessidades habituais. O turismo compõe o espaço

a partir da inserção de bens e serviços por vezes externos ao lugar e utiliza-se deste para a

configuração de objetos desejados pelos turistas e que irão compor a paisagem, a cultura, o lazer.

“Assim, estabelece-se uma relação entre antigas paisagens e velhos usos e novas formas

e funções. E este movimento entre o velho e o novo impulsiona a relação do lugar com o

mundo que atravessa com novos costumes, hábitos, maneiras de falar, mercadorias,

modos de agir... Assim, também a identidade do lugar é constantemente recriada,

produzindo um espaço social híbrido, onde o velho e o novo fundem-se dando lugar a

uma nova organização sócio-espacial” (LUCHIARI, 2000, p.108-109).

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Na concepção do turismo, a dinâmica existente entre o velho e o novo pode ser

comparada à dinâmica existente entre o local e o global. As demandas externas, baseadas nos

critérios de uma atividade turística padronizada permitem que o turista seja satisfeito quanto às

expectativas de um ambiente acolhedor e que ainda possua certas especificidades no que diz

respeito à cultura, à população e ao ambiente local. Para que a viagem seja completa, o turista

deseja vivenciar experiências exclusivas e peculiares que dêem identidade ao lugar que visita,

mesmo que essas experiências não sejam, talvez por força do turismo, realmente autênticas. As

paisagens são transformadas, manifestações culturais são encenadas e relações sociais são

produzidas; todas se constituem em um atrativo turístico, este sim, autêntico.

Como movimento expressivo da conexão entre o local e o global presente no contexto das

viagens está o turismo de massa. Este pressupõe a idéia de uma sociedade de massa pronta a

praticar o turismo sob a forma de consumo com características definidas a partir de um conceito

padrão de qualidade. Salvo a diferença quantitativa de turistas que compõe esse movimento,

razão que se justifica no próprio nome, o turismo de massa mantém uma identidade muito

próxima com as outras modalidades (ecológico, rural, cultural...) turísticas, podendo até ser

considerado um subproduto delas (KRIPPENDORF, 2001, p.61). Nesta interpretação, à medida

que novos lugares são descobertos por formas alternativas de turismo e vão ao longo do tempo se

popularizando, o turismo de massa instala-se como motor das trocas entre as dinâmicas local e

global.

Nem tanto pelos números, mas pelas proporções que o turismo de massa compreende, as

repercussões derivadas da sua prática são bastante complexas. A presença excessiva dos turistas,

bem como as transformações decorrentes dela, influem sobremaneira na construção do novo

espaço. As trocas exercidas entre diferentes realidades se ampliam, se intensificam e dão novo

rumo à vida local. A população residente se vê envolvida, queira ou não, por um processo do qual

também é integrante; ela participa da mudança, mas tem seu papel de sujeito questionado,

especialmente quando percebe que a mudança se orienta principalmente em função da

comunidade turística.

A partir da caracterização do “olhar do turista” como prática social, Urry (1996, p.16-18)

argumenta que este olhar é composto por signos pré-estabelecidos, difundidos através da mídia e

da propaganda e reforçados pelos discursos da viagem e do turismo. Esses signos representam o

objeto do olhar que torna a experiência da viagem extraordinária, rompendo com o sistema

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ordinário/cotidiano da vida do viajante. Já a formação de tais signos e objetos é, por sua vez, uma

característica própria do turismo, destinada a atender as expectativas das populações visitantes.

A artificialidade de muitas atrações turísticas é fruto de complexas relações estabelecidas

entre turistas e população local e compreende um dos desdobramentos derivados deste processo.

Outro diz respeito à organização da indústria turística, que no intuito de servir ao “olhar de

massa”, pode entrar em conflito com a forma de organização social da população local no que se

refere à gestão da atividade turística, à conservação ou ao desenvolvimento da localidade, à

influência da atividade sobre as tradições e os costumes locais, às formas de trabalho geradas

pelo turismo (URRY, 1996).

Nesse sentido, Luchiari (2000, p.124-127) faz uma exposição sobre os possíveis efeitos

que a urbanização turística tende a gerar aos grupos locais. Ao considerar a urbanização turística

dotada de uma característica peculiar, em que o espaço é marcado a partir do consumo e não da

produção, a autora discorre entre uma série de repercussões sentidas permanentemente pela

comunidade local, mas das quais não foi precursora.

O trabalho gerado pelo turismo, tão aclamado por sua capacidade em absorver mão-de-

obra local, descortina-se como um processo que aliado à urbanização turística, promove o

crescimento populacional e gera subempregos sazonais para uma parcela da população que se

caracteriza freqüentemente por ser feminina, infantil ou jovem, com baixa qualificação, ou ainda

por um grande número de trabalhadores clandestinos. Já a demanda por cargos especializados é

suprida muitas vezes pela contratação de profissionais de outros lugares.

A gestão da atividade turística, geralmente empreendida por grupos que possuem maior

capacidade administrativa, política ou financeira, acaba por segmentar o acesso da população

local à condução dos rumos da atividade. Os interesses dos grupos eleitos, nem sempre comuns,

favorecem a marginalização de outros grupos sociais também sensíveis às repercussões causadas

pelo turismo.

A valorização seletiva do solo, estimulada pela especulação imobiliária, determina

espaços de uso turístico que têm seu acesso livre ou restrito conforme o valor que lhe é atribuído

e aos grupos que podem pagar por esse custo. O espaço se reconfigura na busca pela atratividade

turística, natural ou artificial e incorpora relações de uso permeadas pelo consumo.

O aumento da demanda por produtos nos períodos de alta temporada turística eleva

também o custo de vida da população local. Esse aspecto remete ainda aos efeitos causados pelo

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aumento do consumo de outros recursos, tais como água e energia e pela deposição de resíduos

provenientes dos recursos e produtos consumidos. Tais efeitos compreendem desde a poluição de

ambientes até a escassez ou o contingenciamento de recursos, tanto durante as temporadas

turísticas, como fora delas.

O uso do espaço dentro de uma lógica produtiva orientada para a valorização turística de

determinados lugares denota a presença de diferentes sujeitos e de suas respectivas intenções,

sejam elas consensuais ou não; enquanto isso, a característica de valorização amplia as

possibilidades de realização da atividade turística de forma que quaisquer recursos, sejam

naturais ou culturais, se transformem em atrativos dentro de um período histórico específico

(CRUZ, 2001, p.17).

Enquanto prática social, o turismo também abre precedentes para a incorporação

espontânea ou planejada de ordenamentos territoriais. Segundo Rodrigues (1996, p.17), a

atividade pode assumir tanto um caráter artesanal como global, variando conforme o poder de

representação predominante à organização do território. O autor desenvolve sua idéia ressaltando

que através de alguns centros de comando, como por exemplo, grandes empresas de capital

internacional, inúmeras áreas passam a ser valorizadas e destinadas como potenciais atrativos

turísticos.

Diante das primeiras ações de comando, outras ações surgem como reflexos,

representativas de outros comandos, advindas de outros sujeitos. Essa relação produtiva,

localizada no espaço, não se estabelece por uma dinâmica puramente econômica, mas antes, por

uma dinâmica política, que integra os diferentes sujeitos e planos em um mesmo processo social.

A política enquanto recurso pode ser apreendida por qualquer sujeito, variando diante das

circunstâncias e do poder de intervenção que cada um possui. É através da prática política,

inerente “a todo ser que pertence à coletividade” (RAFFESTIN, 1993, p.34), que se estabelecem

as relações de produção do espaço, e que envolvem na constituição do território, os demais

recursos, como os de ordem econômica, por exemplo. Essas relações, por sua vez, são também a

arena de disputas, conflitos e manifestações de poder, e quando se tratam da apropriação ou da

representação do espaço, expressam a “multidimensionalidade” dos sujeitos, incluindo as

dissimetrias sociais, resultantes de processos de dominação e resistência entre eles (RAFFESTIN,

1993, p.53).

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O planejamento do turismo figura nesse quadro como um instrumento de ordenamento

territorial que, no plano operacional, se orienta pelo princípio de equacionar diferentes sistemas

de ação que regulamentam o uso turístico do território. A esses diferentes sistemas de ação

correspondem algumas representações que partem, segundo Rodrigues (1996), de condições

fundamentais para a realização do turismo. Seriam elas: “a satisfação das necessidades do

turista, os custos e os benefícios que o turismo traz à população residente e a preservação do

patrimônio cultural e ambiental” (RODRIGUES, 1996, p.26).

Os processos sociais decorrentes da incorporação territorial do turismo são alvos de

muitas críticas, geralmente voltadas contra a natureza da atividade e em muitos casos, deram

forma a relações conflituosas entre turistas e população local, norteadas por concepções de

diferenciação e marginalidade social. Na base dessa relação reside um sentimento de “recusa do

outro”, manifestado por um lado pelas populações locais que não apreendem a passagem do

turista, efêmera e fugidia (KNAFOU, 1996, p.64); e por outro, pelos próprios turistas, que

buscam se apropriar temporariamente de um território, sem reconhecer a identidade cultural que a

população residente construiu em um espaço secundariamente turístico.

Baseado nessa prerrogativa surgem inúmeros casos onde a prática do turismo segrega

espacialmente populações e seus contextos culturais, criando formas territoriais fragmentadas,

alheias à presença dos sujeitos pertencentes ao espaço vivido. E mesmo somando-se a acusação

do turismo como “devorador de recursos e paisagens” (KNAFOU, 1996, p.67), o discurso de

afirmação da atividade vai ganhando forma, especialmente quando se trata de considerá-la como

alternativa de desenvolvimento de determinadas áreas, reguladas por noções conservacionistas.

Mais ainda, quando seriam essas áreas caracterizadas por ecossistemas complexos, as zonas de

maior apelo turístico na atualidade (RODRIGUES, 1996).

A vocação turística como mecanismo de desenvolvimento é uma das razões para a

promoção da atividade no Vale do Ribeira, região que concentra as maiores áreas conservadas de

Mata Atlântica do Estado de São Paulo e onde se localiza o estudo apresentado neste trabalho. As

possibilidades de desenvolvimento do turismo, envolvendo duas comunidades rurais pertencentes

ao município de Eldorado, caracterizam a natureza da atividade aí empreendida, bem como os

sujeitos e as formas de relacionamento mantidas por eles no processo de construção do território.

Em contextos como o do Vale do Ribeira, marcados pela necessidade de desenvolvimento

social aliado às práticas de conservação ambiental, surgem alternativas de gestão voltadas à ação

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local, pensadas na tentativa de conferir um caráter conciliatório e socialmente mais justo ao

território. A ação local subentende uma lógica territorializada, que mantém vínculos identitários

com o lugar, o que reforçaria por sua vez, a manifestação do poder local, mais consistente e

representativo e menos dependente e vulnerável em relação a sujeitos e a ações externas.

Entretanto, a conformação de um poder local não está isenta de distorções; uma vez exercido

pelos homens, o poder compreende a pluralidade de concepções que são construídas

territorialmente a partir de relações produtivas e que são em sua essência contraditórias,

diferenciadas e sobrepostas umas às outras no próprio campo relacional do poder (RAFFESTIN,

1993, p.36).

As relações sociais constitutivas do processo de produção territorial criam, através da

prática do turismo, novas possibilidades de que o território seja representativo em maior ou

menor medida das causas e dos interesses dos sujeitos relacionados, determinando, dessa forma,

o grau de positividade e negatividade com que a atividade é sentida. O mesmo espaço, portanto,

passa a conformar noções de uso e significados diferenciados de apropriação territorial, que

renovam o sistema produtivo local, construído sobre uma base prévia de sociabilidade, que volta

e meia é submetida a intervenções culturais fragmentadas e temporalmente circunscritas, dado o

tempo de uso e permanência dos turistas no lugar (CRUZ, 2001).

Sendo assim, o turismo, instituído como prática ou concebido como atividade potencial de

uso territorial, se transforma também numa possibilidade de intermediação e construção de outros

processos sociais. Com base na reflexão sobre lugares onde o turismo despontou como alternativa

para o desenvolvimento local, buscamos identificar referenciais teóricos e práticos, similares ao

contexto do Vale do Ribeira, que permitam enriquecer essa discussão. A similaridade desses

referenciais reside na relação de apropriação política e cultural das comunidades sobre os

territórios que habitam, visto que suas formas de reprodução social baseiam-se fundamentalmente

na possibilidade de acesso aos recursos naturais existentes nesses territórios.

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Capítulo 2: O turismo como proposta para o desenvolvimento local: limites e

potencialidades

A possibilidade do turismo se converter em alternativa para o desenvolvimento de

algumas localidades já supera a idéia de crescimento econômico que reduziu, por muito tempo, a

concepção de desenvolvimento. Hoje, a atividade turística pode ser vista não só como

dinamizadora da economia local, mas como elemento estruturante de uma ordem cultural e

ambientalmente responsável, abrindo caminho para as reflexões sobre a sustentabilidade.

Essa prerrogativa amplia consideravelmente as expectativas quanto ao turismo; os bons

frutos da atividade são proclamados por seus promotores – governos, sociedade civil, iniciativa

privada –, esperados pela população local e desejados pelos turistas. É em torno desses sujeitos

também que a atividade turística se conforma, privilegiando os interesses hora de um, hora de

outro e criando novas territorialidades decorrentes desse processo. O turismo se relaciona com o

lugar e essa condição amplia mais uma vez sua escala de influência, à medida que para se

realizar, envolve elementos das ordens política, cultural, econômica e ambiental do território em

que está instalado. Dessa forma, a proposta de sustentabilidade a partir do turismo está submetida

a essa estrutura integradora que compreende a produção social do espaço.

Com o objetivo de analisar propostas que, partindo do pressuposto de sustentabilidade,

orientaram projetos alternativos de uso e gestão do território, incluindo o turismo como atividade

potencial dentro de seus planos estratégicos, destacamos três estudos de caso representativos do

turismo comunitário no Brasil, quais sejam: Prainha do Canto Verde, em Beberibe – Ceará,

Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Silves, ambos no Estado do Amazonas. De

forma geral, todos se caracterizam por processos culturais peculiares, cuja base de produção das

populações está centrada nos ajustes ecológicos, tornando necessária a conservação dos recursos

naturais para a manutenção da estrutura social desses grupos.

Os preceitos de conservação ambiental passam também pela gestão dos projetos que

contemplam o desenvolvimento das comunidades, e o turismo aparece como atividade

complementar de geração de renda entre outras finalidades. Esses estudos representam

referências distintas quanto à forma como o turismo usualmente acontece em lugares de

reconhecido potencial natural – através de processos bruscos de urbanização, privatização de

áreas e seleção de paisagens, segregação da população local, danos ambientais e conflitos sócio-

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culturais –, e contém igualmente as possibilidades e os limites de conformarem novas estratégias

ao processo de produção sócio-espacial.

A gestão do território, apropriada como direito e exercício de representatividade política

das populações, imprime um tom diferente aos projetos e pode se aproximar da idéia de

desenvolvimento baseado em preceitos válidos de sustentabilidade. O interesse parte, portanto, da

busca de contribuições que esses projetos podem oferecer a outras populações, em outros

territórios que abrigam contextos sócio-culturais similares, salvaguardadas as especificidades

locais de cada processo.

As especificidades locais por sua vez, se encontram permanentemente em contato com

racionalidades externas e num movimento dialético de apreensão e dispersão compõem novas

territorialidades. Assim, faz-se importante discutir essa tendência à luz do conceito de

desenvolvimento, envolvendo os discursos e as idéias embutidos no conceito de sustentabilidade.

E ainda, identificar como esses exemplos, somados ao estudo empreendido no Vale do Ribeira,

podem subsidiar a discussão do turismo como vetor para o desenvolvimento local.

O primeiro exemplo nos remete à discussão do desenvolvimento do turismo na Prainha do

Canto Verde em Beberibe (CE), a partir da forma como a comunidade local se insere no

planejamento e na gestão da atividade.

As características morfológicas do ambiente que compõe a Prainha estão diretamente

associadas ao modo de produção local; a adaptação das práticas culturais aos sistemas naturais

configura a base da estrutura social da comunidade (MENDONÇA, 2004; SILVA, 2003). No

caso da Prainha do Canto Verde, a divisão das atividades produtivas é espacializada pelo

conjunto terra e mar, a partir do qual se estabelecem as relações sociais, a divisão do trabalho e a

diferenciação sócio-econômica entre os comunitários, esta última tida como baixa devido ao

caráter de solidariedade que permeia a atividade pesqueira (SILVA, 2003). Além da pesca, a

agricultura de subsistência, as atividades artesanais e as demais práticas comunitárias reforçam

essa estrutura social, marcada essencialmente pela relação de dependência quanto aos recursos

naturais, característica que fundamenta a construção da territorialidade local (MENDONÇA,

2004).

No caso da pesca, algumas mudanças relacionadas à forma de manejo foram geradas em

resposta, sobretudo, a determinadas ações externas que trouxeram a necessidade de se reordenar a

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atividade e a própria estrutura social dos grupos. Com a construção de um entreposto de venda,

de uma fábrica de gelo e da aquisição de um veículo, os pescadores puderam eliminar

atravessadores que comercializavam o pescado, melhorando o rendimento das famílias

envolvidas com a atividade. Silva (2003) diz que, nesse processo, foi fundamental o apoio do

senhor René Schärer, ex-executivo suíço que se integrou à comunidade em 1991 e se tornou uma

de suas principais lideranças políticas. Por intermédio dele, foi criada a Fundação dos Amigos da

Prainha do Canto Verde, formada por empresários suíços e alemães que, juntamente com a

associação de moradores, propiciou a compra do veículo e a construção do entreposto e da

fábrica de gelo, em 1993. Já em 1996, surge o primeiro regulamento da pesca e em 2001, a

comunidade solicita ao IBAMA a criação de uma reserva extrativista marinha visando o controle

sobre a pesca predatória e a gestão da atividade pesqueira (MENDONÇA, 2004).

Contudo, a organização política constituída na Prainha do Canto Verde está relacionada

ao trajeto histórico da comunidade que ocupa suas terras desde o século XIX. Silva (2003) e

Mendonça (2004) concordam que a população se fortaleceu política e institucionalmente a partir

da ameaça de perda da posse de terra desencadeada por um processo de grilagem que começou

em 1979. Desde então, a comunidade começou a se organizar; inicialmente, junto a um

movimento de direitos humanos da Arquidiocese de Fortaleza e mais tarde, com a participação

do senhor René Schärer. Em abril de 1989 foi constituída a Associação de Moradores da Prainha

do Canto Verde e em dezembro de 1991, iniciou-se o projeto de desenvolvimento comunitário da

Prainha do Canto Verde apoiado pela Fundação dos Amigos da Prainha (MENDONÇA, 2004).

Enquanto aguardava a decisão judicial sobre a posse das terras, a comunidade instituiu o “Direito

de Costume”, um regulamento tácito sobre o uso e a ocupação do território da Prainha (SILVA,

2003, p.57). O documento que cumpre o mesmo propósito aparece no trabalho de Mendonça

(2004) denominado “Regulamento para uso da terra”, criado em 1996 e baseia suas disposições

no objetivo de “organizar a ocupação do espaço e garantir o uso da terra pelos nativos de forma

eqüitativa, sem a inserção de agentes externos, mesmo que a terra ainda não seja de propriedade

da comunidade”1 (MENDONÇA, 2004, p. 101).

A prática política, decorrente da ameaça de expropriação de suas terras, envolveu grande

parte da comunidade que acolheu a luta comunitária como elemento cultural de afirmação

política. Essa característica, segundo Silva (2003), é o que mantém a comunidade unida em torno

1 Nesta citação, Mendonça (2004) se utiliza de documento disponibilizado pela comunidade.

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dos projetos de desenvolvimento que existem na Prainha.

Além das questões produtiva e fundiária, a comunidade passou a empreender ações e

projetos voltados, de forma geral, à melhoria da qualidade de vida local. As primeiras iniciativas

políticas parecem haver ampliado a escala de atuação comunitária para outras áreas, tais como

saúde, educação e infra-estrutura que estão diretamente associadas ao modelo de

desenvolvimento que se deseja realizar no território.

Essa movimentação denota claramente o rearranjo da territorialidade local decorrente do

contato e da relação entre territorialidades distintas no mesmo território. A racionalidade de

mercado, representada pelos empreendedores do processo de grilagem e pelos atravessadores e

pescadores externos à comunidade se impõe sobre a dinâmica cultural da mesma e a faz

responder, por sua vez, através de uma racionalidade local, norteada pelo objetivo de manter a

posse sobre a terra e regular a pesca, porém apoiada em racionalidades externas de organização

social e produtiva representadas pela Arquidiocese de Fortaleza e pela figura do senhor René

Schärer.

Em 1993 iniciam-se as discussões acerca da organização da atividade turística que

chegaria mais cedo ou mais tarde à comunidade, ano em que a mesma recebe pela primeira vez, a

visita informal de “turistas amigos”, apoiadores de projetos desenvolvidos na Prainha

(MENDONÇA, 2004, p. 77). Com base nas referências de outras praias do litoral cearense, a

comunidade adquiriu ciência dos prejuízos e dos benefícios trazidos pela atividade turística

(SILVA, 2003). Através de pesquisas e da organização de grupos de trabalho para discutir o

desenvolvimento do turismo na comunidade, foi criado em 1997 o Conselho de Turismo, cujo

objetivo é “desenvolver o turismo ecológico de forma comunitária para melhorar a renda e o

bem estar dos moradores: preservando nossos valores culturais e os recursos naturais de nossa

região” 2 (MENDONÇA, 2004, p.108).

Já em 1998, junto à Fundação Amigos da Prainha e ao Instituto Terramar, a comunidade

organizou o “Seminário de Eco-turismo Comunitário”, onde foram elaboradas as primeiras

proposições para a fundamentação e a operação do turismo na comunidade. Fruto deste

seminário, foi elaborado o projeto “Turismo Socialmente Responsável da Prainha do Canto

Verde”, proposta base para a estruturação do turismo na comunidade, cuja implementação ficaria

a cargo da Cooperativa de Artesanato e Turismo (COOPECANTUR), organização que

2 Idem 1.

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substituiria o Conselho de Turismo na função de operacionalizar a atividade (MENDONÇA,

2004, p. 110; SILVA, 2003, p.64). A escolha pela cooperativa como forma de organização reflete

a preocupação da comunidade em incluir o maior número de moradores na gestão da atividade,

bem como na participação dos rendimentos que ela pode prover. A COOPECANTUR foi criada

em 2001, a partir da estrutura pré-existente do Conselho de Turismo, e combina juridicamente, o

caráter de propriedade privada e de administração coletiva. Para seu melhor funcionamento,

foram criados sete grupos de trabalho de acordo com as categorias de prestação de serviço:

“hospedaria, barraqueiros, cozinheira e merendeiras, guias de turismo e trilhas, excursões e

passeios, artesanato e estagiários” (MENDONÇA, 2004, p.116).

A cooperativa aparece como instrumento de articulação política da comunidade e em

relação à atividade turística, orienta sua gestão, bem como a sua inserção no território. A

cooperativa, por exemplo, a partir das sobras geradas pela prestação de serviços, realiza diversas

ações de contrapartida à comunidade. Existem dois fundos criados com recursos provenientes da

atividade turística; o Fundo Social foi criado durante o seminário realizado em 1998 e

compreende 20% da receita gerada através do turismo, cujo investimento se destina a obras

comunitárias relacionadas a saúde, educação, eventos sociais, infra-estrutura, etc. Já o Fundo de

Reserva compreende 80% da receita e é destinado a ações de melhoria relacionadas ao turismo

como infra-estrutura, capacitação e equipamentos. Essas atitudes conferem por sua vez, maior

unidade e senso de responsabilidade à comunidade a respeito de sua participação na gestão da

atividade e do próprio território.

Percebe-se também que há um consenso comunitário em torno das idéias sobre o tipo de

atividade turística e de turistas que se deseja para a Prainha. Segundo relatório elaborado durante

o seminário, a escolha do tipo de turismo passa fundamentalmente pela escolha da população que

a comunidade espera receber:

“São pessoas que procuram a tranqüilidade e a beleza natural da região, que se

interessam pela cultura e tradição dos Povos do Mar e se engajam na preservação do

meio ambiente. São ecologistas, membros de ONG, estudiosos e estudantes de Geografia

e Turismo, movimentos de direitos humanos e grupos de igrejas. São pessoas que

possam abrir mão de piscinas, butiques e da vida noturna agitada.” 3 (SILVA, 2003,

p.65).

A comunidade trabalha a idéia do turismo sob o caráter comunitário, o que lhe dá maior

autonomia para definir segundo sua própria lógica, a abrangência e a importância da atividade

3 Nesta citação, Silva (2003) se utiliza de documento disponibilizado pela comunidade.

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turística no território. De forma geral, o turismo é considerado como atividade que agrega

melhorias à qualidade de vida local através da geração de trabalho e renda, da possibilidade de

fixação dos jovens na comunidade, do impulso dado à economia local, da capacitação

profissional da comunidade, do aumento da auto-estima da população (SILVA, 2003).

A atividade turística, de acordo com a comunidade, não deve se tornar atividade principal,

a pesca se mantém nessa categoria envolvendo mais de 60% da comunidade e garantindo sua

principal fonte de renda (MENDONÇA, 2004); no entanto, ela pode ser potencializada a partir de

melhorias eleitas pela própria comunidade durante seus processos de avaliação interna. A

comunidade observa que há necessidade de melhor infra-estrutura dos serviços – qualitativa e

quantitativa –, de profissionalização e capacitação dos moradores para os serviços turísticos, de

maior oferta e diferenciação de produtos turísticos, de campanhas de promoção direcionadas a

públicos específicos, de maior estruturação interna da comunidade para a realização de eventos,

de maior ocupação turística durante as temporadas do ano, de políticas públicas direcionadas a

projetos de turismo comunitário, de maior concessão de linhas de crédito, de maior articulação

regional junto a outras comunidades.

Contudo, a população da Prainha tem consciência sobre as formas de se alcançar tais

melhorias; no caso das campanhas de promoção turística, ela considera o risco de aumento

exagerado do fluxo de visitantes. A comunidade tem a intenção de fortalecer sua articulação

política na região para aumentar seu poder de barganha frente a órgãos públicos e a outras

instituições e tem buscado se envolver em encontros, parcerias e convênios com outras

comunidades, ONG e universidades no intuito do efetivar seus projetos. Sua estratégia em relação

ao turismo é dinamizá-lo internamente, respeitando as normas e as regras locais e fortalecer uma

rede de turismo comunitário brasileiro, unindo diferentes comunidades em torno da proposta do

turismo como fonte de trocas culturais, estimulando turistas a conhecer as comunidades e a forma

como vivem, ao mesmo tempo em que contribuem para o desenvolvimento das mesmas (SILVA,

2003).

Devido à capacidade organizativa e à autonomia política desenvolvidas pela comunidade,

o projeto de turismo não sofre influência das políticas públicas voltadas para a atividade que são

implantadas no município de Beberibe. Contudo, a Secretaria Municipal de Turismo demonstrou

interesse em desenvolver projetos em parceria com a comunidade para difundir o modelo de

turismo comunitário pela região (MENDONÇA, 2004).

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Como resultados do projeto “Turismo Socialmente Responsável da Prainha do Canto

Verde”, a comunidade recebeu o prêmio TODO!99 da ONG alemã Studienkreis für Turismus und

Entwicklung durante a Feira Internacional de Turismo em Berlim; o prêmio TOURA D‟OR 2000

pela produção de documentário sobre turismo sustentável; é indicada no guia de turismo The

good alternative travel guide, produzido pela ONG inglesa Tourism Concerns e em novembro de

2003 recebeu menção honrosa do prêmio British Airways Tourism for Tomorrow Awards da

Federação de Operadores Turísticos.

O segundo exemplo trata da organização comunitária dentro do plano de manejo da

Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Mamirauá (RDSM), especialmente quanto à

participação das comunidades no projeto de ecoturismo, uma das atividades produtivas

empreendidas na reserva.

A RDSM está localizada no estado do Amazonas, próxima ao município de Tefé e é

considerada a maior reserva dedicada à proteção da várzea amazônica (PINTO, 2004;

VASCONCELOS, 2007). A origem da reserva se deu a partir do Projeto Mamirauá, elaborado

por cientistas e pesquisadores no final da década de 1980 e que em 1990 consolidou-se na

Estação Ecológica Mamirauá (EEM), unidade de conservação que, por concessão estadual,

passou a ser gerida pela Sociedade Civil Mamirauá (SCM), organização não-governamental

criada em 1991 pelo grupo de pesquisadores na época envolvidos com o projeto. Desde o início

até a fase atual, o projeto passou por algumas transformações que com o passar do tempo

definiram a configuração da reserva, os objetivos e os sujeitos participantes de seu processo de

gestão. Inicialmente pensado como projeto para garantir a reprodução do macaco Uacari Branco,

as pesquisas se iniciaram na área quando ela ainda era considerada estação ecológica. Em 1996, é

instituída a RDSM, em 1997 o plano de manejo da reserva é concluído e em 1999 é criado o

Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), centro de pesquisas especializado

em áreas de várzeas, cujos objetivos, dentre outros, são "desenvolver e administrar a realização

de projetos que objetivem a conservação e especialmente a preservação de florestas inundadas;

promover o desenvolvimento sustentável da região em articulação com a população local” 4

(PINTO, 2004, p. 84-86; VASCONCELOS, 2007, p.32).

A partir da definição da área como Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), o

4 Nesta citação, Pinto (2004) e Vasconcelos (2007) se utilizam de documento disponibilizado pelo IDSM.

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plano de manejo começou a ser implementado e ela foi dividida em duas partes: Zona de

Preservação Permanente e Zona de Uso Sustentável. Em 2001, o IDSM assume a administração

da reserva através de um contrato de gestão com o Governo Estadual do Amazonas e no mesmo

ano, a reserva passa a integrar o SNUC, Sistema Nacional de Unidades de Conservação (DIAS,

2005).

A trajetória de constituição da reserva reuniu a participação de diversos sujeitos. Dentre

esses, encontram-se instituições financiadoras internacionais tais como World Wilf Fund for

Nature (WWF), The Wildlife Conservation Society (WCS), Department for International

Development (DFID) e União Européia. Essas instituições, consideradas parceiras do projeto,

foram fundamentais para sua viabilização e são representativas de uma lógica global,

fundamentada nos critérios de conservação da natureza que ultrapassam as fronteiras

administrativas dos países e influenciam localmente a dinâmica territorial (PINTO, 2004). As

instituições públicas nacionais por sua vez, assumiram caráter regula tório sobre o projeto,

fornecendo apoio legal e operacional a sua execução. Dentre essas instituições, estão o Conselho

Nacional de Ciência e Tecnologia (CNPq), o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), o

Ministério das Relações Exteriores, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (IPAAM), a

Universidade Federal do Estado do Pará (UFPA), o Museu Paraense Emílio Goeldi, o Governo

do Estado do Amazonas e secretarias e órgãos vinculados. Esse quadro de institucional idade é

representativo da manutenção da soberania nacional sobre o território (PINTO, 2004) que

congrega na sua organização, distintas racionalidades e formas de intervenção política.

O conselho administrativo atual do IDSM conta com representantes do MCT, do CNPq,

do IPAAM, da Sociedade Brasileira para o Progresso de Ciência (SBPC-AM), da Academia

Brasileira de Ciências, representantes dos funcionários da RDSM e representantes das

comunidades, um para cada uma delas. Na atual fase de gestão, o IDSM renovou seu contrato

junto ao Governo Estadual do Amazonas e ao IPAAM para dar continuidade ao projeto até 2009.

O projeto também conta com verba vinda do Governo Federal e de instituições da iniciativa

privada (DIAS, 2005).

A área de reserva, formada por florestas alagadas, abrange o constante movimento de

cheias e secas que determina a dinâmica social das comunidades ribeirinhas a partir

fundamentalmente do processo de mobilidade espacial em busca de habitação e áreas produtivas.

Dias (2005) diz que a partir da década de 1960 alguns fatores de incentivo ao aumento da pesca

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deram origem à exploração intensa da atividade na Amazônia e os lagos de várzea se tornaram

alvo de pescadores comerciais. Esse fato, aliado à urbanização que se intensificou também nesse

período, causou grande aumento da demanda por peixes.

Os conflitos gerados por sua vez, produziram uma articulação entre as comunidades que

juntamente com a Comissão Pastoral da Terra de Tefé, começaram a discutir formas de

intervenção territorial para conter a pesca predatória. A partir daí, surge a proposta de regulação

de dois lagos, um destinado à preservação das espécies e outro à pesca de subsistência. Contudo,

Dias (2005) descreve que a falta de unidade comunitária e a própria necessidade de subsistência

dos grupos comprometeram a proposta. Paralelo a isso, a falta de apoio e regulamentação do

IBAMA abriu precedentes para a continuidade da pesca comercial. Diante da ausência

governamental frente à questão, as comunidades decidiram por sua conta, fechar os lagos para

uso próprio.

A prévia organização da comunidade para a defesa da causa dos lagos foi uma boa

oportunidade para que a SCM iniciasse suas pesquisas quando a área ainda era considerada

estação ecológica. As discussões sobre o ordenamento do território e o uso de áreas destinadas

para a preservação eram as mais urgentes para as comunidades, visto que sob a forma de estação,

o território seria dividido em duas porções: 90% destinados à preservação e os 10% restantes,

destinados a pesquisas. Essa determinação posta em prática excluiria as comunidades da área;

dessa forma, os gestores da antiga estação se empenharam para que as alterações na legislação

incluíssem o modelo segundo o qual a reserva se constituiu em 1996.

Entretanto, a estrutura social das comunidades não garantiu adesão às propostas da reserva

sem resistências. Dias (2005) conta que mesmo os processos de articulação política das

comunidades não desfizeram um modelo organizacional em que sujeitos hegemônicos locais –

patrões e comerciantes – se sobrepunham às comunidades através da manobra de ações de

poderes públicos e privados. Esse fato, no entanto, é visto como uma prática política da própria

região, marcada por relações de “clientelismo” (DIAS, 2005, p.17) que influenciam o contexto

social e produtivo regional. No caso da instalação da reserva, esses grupos hegemônicos locais,

cujos interesses seriam os mais comprometidos pelos planos de manejo – exploração

indiscriminada de recursos como peixe e madeira – formaram maior resistência ao projeto,

coibindo as comunidades de aderirem à causa através de ameaças.

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Segundo Dias (2005), a dificuldade do instituto em sensibilizar as comunidades decorria

da falta de envolvimento das mesmas com um projeto elaborado externamente, não atrelado

propriamente as suas demandas locais. Isso, aliado à estrutura socialmente dispersa, constituída

com base no conflito de interesses entre as comunidades e em relações de parentesco e

clientelismo, determinou em parte a dificuldade de participação e identificação das comunidades

com os projetos da reserva.

A estrutura espacial do território que compõe a reserva abriga diferentes discursos e

ordens que não estão necessariamente relacionados a uma lógica definida, onde as ações locais

comportam o caráter de sustentabilidade e as ações externas, o caráter de exploração sócio-

ambiental. Pode-se observar que há não só uma inversão das ordens, mas uma troca que produz

um território difuso, apropriado por inúmeros sujeitos. Os grupos comerciais de madeireiros e

pescadores, por exemplo, instituem uma ordem divergente, se apropriando dos recursos naturais

segundo a demanda de mercado que não contempla a manutenção dos processos ecológicos da

reserva. Contudo, esses grupos fazem parte da sociedade local, pelo relacionamento que

estabelecem com as comunidades e pela proximidade que mantêm com a área.

O IDSM por sua vez, representa uma lógica igualmente externa, voltada à conservação

dos recursos naturais e à manutenção das formas de reprodução social das comunidades. Para

isso, utiliza técnicas e informações diferentes das locais, mas busca potencializar a dinâmica

social local, baseada nos conhecimentos e no sistema produtivo das comunidades. O IDSM ainda

representa a instituição de outras ordens, as advindas dos financiadores, dos governos, da

iniciativa privada, de cientistas e pesquisadores que impõem sua racionalidade através do

processo de configuração territorial.

A atividade turística faz parte desse contexto flutuante de interesses manifestos por cada

grupo social envolvido. Ela está inserida dentro do Programa de Manejo Sustentável da RDSM

como atividade econômica complementar às atividades tradicionais das comunidades, a

agricultura, a pesca e a extração madeireira.

Para todas essas atividades, o IDSM desenvolve junto à comunidade, planos de manejo

sustentável e o turismo como tal, foi instituído sob a forma de “ecoturismo” (DIAS, 2005, p.69).

Vasconcelos (2007) diz que o plano de manejo da reserva impõe restrições quanto ao uso dos

recursos naturais, todavia, esse plano é condizente com o modo de uso tradicional dos recursos e

é estabelecido junto às comunidades habitantes da reserva. O turismo e o artesanato são exemplos

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de atividades propostas como alternativas econômicas compensatórias às restrições impostas pelo

plano de manejo.

O turismo é realizado em uma área especificamente determinada para sua prática,

denominada Zona de Manejo Especial de Ecoturismo, onde está localizada a Pousada Uacari. As

comunidades que participam do projeto de ecoturismo da reserva estão próximas à zona de

manejo e se organizam através da Associação de Guias e Auxiliares de Ecoturismo

(AAGEMAN) para exercerem quaisquer funções em relação à atividade, seja quanto à prestação

de serviços (condução, recepção, venda e atendimento aos turistas), seja quanto à participação

nas decisões sobre o gerenciamento da pousada (PERALTA, 2007, p.3).

A renda gerada através do ecoturismo é dividida entre as comunidades envolvidas na

atividade; elas recebem 50% do total e os outros 50% restantes são destinados ao “sistema de

fiscalização da atividade”. Dias (2005) não trata da formação desse sistema, mas o processo de

divisão sugere que nesse sistema, chamado Setor Mamirauá, não há participação das

comunidades. Peralta (2007, p.4) por sua vez, diz que para se ter acesso aos recursos desse

sistema, as comunidades devem elaborar projetos e submetê-los à aprovação de uma comissão

comunitária.

A geração de renda através do turismo motivou, logo no primeiro ano de repasse, um

processo de organização comunitária referente ao destino dos recursos. As comunidades

envolvidas elaboraram “normas de conduta” para distribuir os recursos recebidos de acordo com

a avaliação e a atuação de cada uma. Essas normas incluem diretrizes de gestão da atividade

turística como maior envolvimento da comunidade em relação ao turismo, participação das

comunidades nos trabalhos de fiscalização ambiental, qualificação no atendimento ao turista,

proibição para receber turistas clandestinos, obediência às normas de uso e ocupação da reserva,

entre outros (DIAS, 2005).

Os recursos recebidos por cada comunidade, de acordo com os dados apresentados por

Dias (2005), foram aplicados em infra-estrutura para as atividades sociais e produtivas de cada

comunidade.

E no caso de algumas comunidades, a renda gerada pelo turismo superou a renda gerada

pelas atividades tradicionais como pesca, agricultura e extração madeireira, direcionando o

turismo como principal atividade produtiva comunitária em termos de ocupação e rendimento,

mesmo que essa não fosse a proposta inicial quando da implantação do projeto de ecoturismo na

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reserva (PERALTA, 2007, p.5).

A autora sugere os riscos de algumas comunidades priorizarem o turismo como atividade

produtiva em detrimento de suas práticas tradicionais. Esses riscos estão relacionados à forma de

ocupação da terra, mantida tradicionalmente através da agricultura, ou à dependência constituída

em relação à atividade turística. De qualquer forma, o turismo é considerado como atividade

produtiva potencial para as comunidades da reserva, visto que associada a outras atividades como

o artesanato – para venda aos turistas –, a pesca e a própria agricultura – para abastecimento da

pousada –, tem gerado expressivos aumentos da renda local (PERALTA, 2007, p.7-8).

A prática do ecoturismo na RDSM parece reproduzir a configuração político-institucional

presente na reserva mediante o uso do território. Nota-se que as comunidades, ainda que

beneficiadas pela geração de renda e pela articulação política, têm a ação e a participação restritas

ao uso que lhe é determinado pela gestão do projeto. As normas de conduta são um exemplo

disso, visto que sua escala de ação não ultrapassa ou contraria os limites de uso instituídos pela

reserva. A divisão da renda gerada pela atividade demonstra que há um controle administrativo e

financeiro do turismo, como no caso da destinação dos 50% do lucro ao Setor Mamirauá e da

forma de organização da pousada, em que a comunidade aparece como prestadora de serviços.

O contexto de produção da atividade turística e de estruturação da própria reserva

apresenta um rearranjo institucional diferenciado, onde as funções de gestão do território são

compartilhadas de diferentes formas; através da regulação das instituições públicas, do

financiamento de instituições internacionais e da execução de ações por uma organização não

governamental criada para tanto. As comunidades habitantes da reserva são componentes desse

projeto e sua participação na gestão territorial é um dos critérios considerados para dimensionar a

sustentabilidade do empreendimento.

A ação local, no caso da RDSM, é composta pela união de todas essas lógicas que

refletem uma territorialidade dúbia, onde a política comunitária, a dinâmica cultural, os

conhecimentos e as formas sociais de produção das comunidades são incorporados por um

sistema de normalização hegemônico, afinado aos preceitos da conservação ambiental, de

controle e uso do território. Uma territorialidade que enquadra a dinâmica comunitária dentro de

certos limites; sua garantia de permanência está condicionada às formas de uso territorial

empreendidas na reserva.

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O terceiro exemplo aqui destacado refere-se à organização do turismo comunitário no

município de Silves (AM), a partir da análise da atividade realizada por ribeirinhos na pousada

Aldeia dos Lagos.

Silves está sediado na região nordeste do estado do Amazonas, distante cerca de 300 km

de Manaus. Comporta população de aproximadamente 8.000 habitantes e caracteriza-se por ser

um município predominantemente rural, com a maior parte da população concentrada nessa área,

e pela dependência econômico-administrativa em relação à capital estadual (FARIA, 2005;

PINTO, 2004). Silves é uma ilha fluvial, cercada pelas águas do rio Urubu e do lago Sacará. O

rio Urubu dá origem a um dos maiores lagos da região, o lago do Canaçarí. Esse lago, pelo

regime de cheia e seca que sofre anualmente, tem importância estratégica para a reprodução de

variadas espécies de peixes e constitui-se na principal fonte de recursos para as comunidades

ribeirinhas localizadas na região (PINTO, 2004).

A pesca por sua vez, também é considerada a principal atividade produtiva das

comunidades ribeirinhas de Silves. Foi em torno da necessidade de conservação dos recursos

pesqueiros que as comunidades da região se uniram, originando um movimento de defesa dos

lagos contra a pesca predatória (FARIA, 2005; PINTO, 2004; SANSOLO, 2003). Esse

movimento iniciou-se na década de 1970, quando houve aumento da demanda por pescados para

abastecimento dos principais municípios da região, que na época passavam por intenso processo

de urbanização. A prática comercial da pesca, feita com base em instrumentos que permitem a

captura de grande quantidade de espécies, comprometia diretamente a pesca artesanal realizada

pelas comunidades ribeirinhas.

Nessa mesma época, a Igreja Católica atuava na formação das chamadas Comunidades

Eclesiais de Base (CEB), com o objetivo de fortalecer a população rural frente aos impactos das

migrações impulsionadas pelo processo de urbanização regional. Essa iniciativa tinha como

propósito promover condições para a permanência dessa população na área rural através da

reorganização dos assentamentos existentes. Com base no trabalho de estruturação social e

política da população rural, conformou-se o conceito de comunidade na região, constituído em

torno de características como convivência, solidariedade, parentesco e posse coletiva da terra

(PINTO, 2004).

Dotadas de certa capacidade político-organizativa, as comunidades ribeirinhas uniram-se

a partir da década de 1980 para combater a pesca comercial predatória nos lagos da região.

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Apoiados em um decreto estadual que proibia a pesca comercial nos rios da região,

representantes das comunidades de Silves e do município vizinho de Itapiranga decidiram criar

um sistema de fiscalização e controle da pesca nos lagos, entre outras iniciativas. Esse

movimento, apoiado pela Igreja Católica e pela Associação dos Trabalhadores Rurais de Silves

originou em 1993, a ASPAC, Associação Comunitária pela Preservação do Meio Ambiente de

Silves (PINTO, 2004).

Desde sua legalização, a ASPAC vem consolidando ações em prol da conservação dos

recursos naturais da região. Dentre essas ações, destaca-se a aprovação de uma lei municipal que

regulamenta a atividade pesqueira de acordo com a função e a importância dos lagos para a

conservação ambiental e a manutenção das atividades comunitárias. Dessa forma, foram

definidas três categorias de uso para os lagos da região; os lagos de procriação, cuja proteção é

integral e não se admite nenhum tipo de pesca; os lagos de manutenção, onde somente a pesca

artesanal de subsistência é permitida, e os lagos de exploração pesqueira, onde a pesca comercial

também é permitida, respeitando-se os limites impostos por lei (FARIA, 2005, p. 70; PINTO,

2004, p. 131; SANSOLO, 2003, p. 45).

A mobilização em torno da fiscalização sobre a conservação dos recursos pesqueiros da

região envolveu outros participantes além da própria ASPAC, como a Associação Profissional

dos Pescadores do Município de Silves, a Associação Vida Verde da Amazônia (AVIVE), a

Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais

Renováveis (IBAMA) e a Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Silves (PINTO, 2004, p.

131).

Nesse contexto, o turismo figura como atividade econômica também relacionada à

conservação ambiental dos recursos naturais e ao fortalecimento comunitário dos ribeirinhos. A

construção da pousada Aldeia dos Lagos, por iniciativa da ASPAC, teve como objetivo promover

fonte alternativa de renda para as comunidades através do “ecoturismo“, aproveitando-se o

incipiente potencial já identificado durante visitas realizadas às comunidades, relacionadas à

causa da conservação dos lagos (PINTO, 2004).

A pousada foi construída com financiamento da organização WWF – Brasil, Fundo

Mundial da Natureza, viabilizado através da apresentação de projeto elaborado por um

pesquisador da CPT. As obras tiveram início em 1994 e as primeiras operações da pousada foram

realizadas em 1996 com a visita de turistas italianos. No mesmo ano, a ASPAC recebeu apoio da

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WWF – Brasil para o desenvolvimento do Programa de Ecoturismo (PEC), cuja finalidade era

capacitar as comunidades em técnicas de manejo do ecoturismo relacionadas à educação e à

conservação ambiental (PINTO, 2004).

A partir daí, a ASPAC continuou a realizar parcerias com outras instituições voltadas ao

financiamento, à capacitação técnica e à estruturação do turismo comunitário. No ano de 2000,

foi criada a Cooperativa de Trabalho em Turismo da Amazônia (COOPTUR), que juntamente

com a ASPAC, é responsável pela organização dos roteiros turísticos e pela administração da

pousada.

A pousada é de pequeno porte, composta por 12 quartos, além de cozinha, restaurante e

loja. Essa característica delimita a quantidade e a qualidade da visitação na pousada; o turismo

praticado é considerado ecoturismo de base comunitária (PINTO, 2004, p.141) e tem como

fundamento a participação comunitária na definição de todo o processo de operação turística, da

gestão à prestação de serviços.

Quanto à legitimidade da participação comunitária no processo de constituição do turismo

local, Pinto (2004) e Sansolo (2003) atestam que a estruturação da atividade foi iniciativa das

próprias comunidades, que vislumbraram a possibilidade de se consolidar uma alternativa

econômica para a população afinada aos preceitos de conservação ambiental já adotados. A

iniciativa comunitária deu origem às negociações que viabilizaram o próprio empreendimento;

além do financiamento via projeto concedido pela WWF – Brasil, as comunidades conseguiram

junto ao Governo Municipal, a concessão do terreno e a viabilização do acesso para a construção

da pousada, realizada em regime de mutirão pelos comunitários (PINTO, 2004).

A participação das comunidades na prestação dos serviços turísticos é definida segundo as

“aptidões” (PINTO, 2004, p.143) de cada uma que variam entre atividades de hospedagem,

alimentação, condução dos passeios, pesca, entre outras que compõem os roteiros turísticos

elaborados. Sobre a renda obtida através do turismo, 20% é destinado a um fundo para a

conservação e 10% a um fundo de reposição e expansão comunitária da atividade (PINTO,

2004).

Destaca-se também a natureza do turismo empreendido pelas comunidades, baseada na

valorização da cultura ribeirinha, de caráter extrativista e condicionada à dinâmica ambiental

local. Essa característica determina a concepção dos roteiros turísticos, voltados à promoção do

contato entre comunitários e visitantes e à disseminação dessa cultura em sua essência, sem os

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tradicionais artifícios de representação turística.

Ao invés de atrativo turístico, a cultura local conforma-se como canal de afirmação de um

modelo específico de reprodução social. Através dos valores e conceitos construídos dentro dessa

cultura, realiza-se também a intermediação e a negociação sobre a gestão do território. As

comunidades vêm consolidando, através de projetos e ações, a racionalidade local, já composta

por referências técnicas e instrumentais advindas da troca com os diferentes sujeitos partícipes do

processo de gestão territorial.

O modelo comunitário resiste delineando um processo de desenvolvimento que incorpora

ordens externas em favor da manutenção de formas históricas de uso e ocupação territorial. Essas

formas também se atualizam, mas mantêm essencialmente as funções e as características

inerentes à reprodução da cultura ribeirinha, associada ao meio rural e à conservação dos recursos

naturais. O turismo comunitário é representativo do processo de evolução da ordem local;

instituída por escolha das comunidades, a atividade apresenta-se como alternativa econômica e de

agregação de valor às práticas locais, realçadas sob a perspectiva cultural de uma população em

relação às outras.

Possibilidades conceituais acerca de desenvolvimento

Tomando esses três exemplos como referência, buscamos compreender em que medida os

processos de territorialização vivenciados por cada comunidade se traduzem em processos de

desenvolvimento, onde as noções comunitárias de uso territorial são legitimadas e as condições

de reprodução social das comunidades locais são respeitadas.

A concepção do desenvolvimento pautada no crescimento econômico e representada por

índices como Produto Interno Bruto (PIB) e Renda Per Capita tornou-se restrita e ineficiente

para justificar um conceito que, com o passar do tempo e das conquistas sociais, ganhou

abrangência quanto ao seu significado. Comparando-se a evolução dos indicadores sociais que

servem justamente como instrumentos para mensurar o nível de desenvolvimento em que uma

sociedade ou população se encontra, pode-se observar a evolução do conceito de

desenvolvimento que, baseado no desempenho econômico em décadas anteriores, hoje é

concebido segundo uma ótica social que vai desde a satisfação das necessidades básicas do

indivíduo até as necessidades subjetivas do ser humano.

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Segundo JANUZZI, P. M. et al (2002, p.40-41), até meados da década de 1950, o

conceito de desenvolvimento esteve atrelado ao de nível de vida, representado pelo nível de

consumo, baseado na idéia de ter; nos anos 1960, esse conceito passa de nível de vida a estado de

bem-estar e mantém a noção de desenvolvimento associada à capacidade de consumo dos

indivíduos, mas agora representada não só pelo acesso aos bens de consumo, como também aos

serviços, e expressa por números referentes ao grau de escolaridade, nutrição, saúde e emprego. É

na década de 1970 que o redirecionamento das análises e dos estudos é mais fortemente sentido e

a concepção de desenvolvimento passa a ser medida também pela incorporação dos aspectos

sociais aos econômicos, incluindo uma abordagem mais subjetiva sobre os tradicionais

indicadores quantitativos. Já na década de 1970, a questão ambiental entra nessa discussão e a

noção de desenvolvimento é influenciada pelas concepções de ecodesenvolvimento e

sustentabilidade, tomando-se a relação entre produção e uso dos recursos naturais.

A partir daí, o conceito de desenvolvimento passa a ser pensado de forma integradora,

contemplando aspectos econômicos, sociais e ambientais. Como expressão desse pensamento, a

Organização das Nações Unidas (ONU) cria, no início da década de 1990, o Índice de

Desenvolvimento Humano (IDH). Este seria o parâmetro para medir o desenvolvimento a partir

de três indicadores: expectativa de vida, taxa de analfabetismo e nível de renda, que

representariam a saúde, o conhecimento, e o acesso a bens materiais, elementos fundamentais

para a conquista da qualidade de vida (JANUZZI, P. M. et al, 2002, p.41).

A despeito do processo de evolução do conceito de desenvolvimento, Oliveira (2002) fala

da criação do IDH ser uma tentativa da ONU em recuperar o significado do termo de

desenvolvimento, admitindo que “[...] a disputa do campo semântico apresenta-se como uma

arena política da hegemonia ideológica que não se pode desconhecer” (OLIVEIRA, 2002, p.11).

Acerca das diferentes abordagens em que o desenvolvimento é trabalhado, há uma idéia

generalizada embutida em todas elas que o caracteriza como um processo de transformação e

mudança dotado, via de regra, de um caráter de positividade. O desenvolvimento seria assim

sempre pensado sob a égide do progresso e como um caminho para superar a estagnação e o

atraso de uma sociedade em movimento (OTH, 1997, p.88). Dessa forma, concebe-se o

desenvolvimento como isento de responsabilidades sobre efeitos e conseqüências que por vezes,

agravam um quadro social ou que ainda, possam gerar uma crise.

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“Não se imagina um único instante que o que vai mal hoje é efeito de um modo de

desenvolvimento determinado. Não se pode representar o desenvolvimento como a

destruição de fontes naturais, o empobrecimento, o desemprego, o subemprego, o

fechamento de fábricas. Entretanto, todos esses fatos fazem parte do processo de

desenvolvimento” (OTH, 1997, p.88).

Na contramão desse consenso em que o desenvolvimento seria necessariamente um

processo gerador de efeitos positivos, a proposta de desenvolvimento sustentável surge como

alternativa a um modelo que entre outras conseqüências geradas, conformou uma crise ambiental

mundial.

Após um longo período em que o processo desenvolvimentista se norteou pelos rumos do

crescimento econômico, potencializando as distâncias sociais e destruindo culturas de

subsistência e processos de manutenção dos sistemas naturais (SHIVA, 1989), estas mesmas

culturas de subsistência que viviam da reprodução da natureza com técnicas que respeitavam um

relativo ajuste ecológico, foram utilizadas para se pensar um novo modelo de desenvolvimento –

desenvolvimento sustentável – que aparece na década de 1970, ainda como ecodesenvolvimento,

proposto como um modelo de crescimento que leva em conta os limites do meio ambiente, a

diminuição da pobreza e da desigualdade social e a provisão de melhores condições de vida para

a população, agora em escala global.

Essa proposta foi formalizada com a publicação do Relatório Nosso Futuro Comum,

elaborado pela Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1987. Com base na

proposta, a ONU solicitou à comissão a elaboração de uma série de medidas relacionadas à

efetivação do conceito dentro de planos e critérios da política internacional. Essas medidas

atrelavam o conceito a um modelo de desenvolvimento que preconiza o crescimento econômico

como indutor da sustentabilidade sócio-ambiental a partir da disseminação de tecnologias e

informações adequadas (LUCHIARI & SERRANO, 1993, p.23).

No entanto, algumas críticas apontaram que o conceito de desenvolvimento sustentável,

estruturado na lógica do crescimento econômico, inclusive como uma necessidade para se prover

os recursos que sanariam ou minorariam a crise ambiental em curso, legitimava a continuidade do

processo de produção de mercado baseado no lucro e na acumulação de capital. O mesmo

processo que por sua vez, dá também continuidade à exploração dos recursos naturais e ao

agravamento da pobreza e da desigualdade social (SHIVA, 1989).

O discurso da sustentabilidade sugere, portanto, que o crescimento econômico continua

sendo a chave para a solução dos problemas sociais e ambientais. Segundo Frey (2001, p.117), o

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próprio Relatório Nosso Futuro Comum apresenta a pobreza como causa da degradação

ambiental, relevando a importância dos processos desenvolvimentistas de alto consumo dos

países industrializados, e conclui que o crescimento econômico poderia então reverter esse ciclo.

Sob este ponto de vista, o desenvolvimento sustentável desqualifica as culturas de

subsistência (SHIVA, 1989), a “[...] possibilidade de uma vida sustentável em condições de

pobreza [..]” (FREY, 2001, p.117) e coloca o crescimento econômico como determinante para o

desenvolvimento humano (GUIMARÃES, 1997).

A discussão sobre o conceito é reforçada durante a Conferência das Nações Unidas para

o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD 92), mais conhecida como Rio 92 ou Eco 92, a

partir de outras perspectivas, tais como as das organizações da sociedade civil. Essas

organizações redefinem a questão com base no questionamento sobre o próprio modelo de

desenvolvimento, propondo alternativas de produção, de cooperação internacional e de

relacionamento político entre governos e sociedade, norteadas pela retomada da ética nas relações

humanas (LUCHIARI & SERRANO, 1993).

Guimarães (1997), por sua vez, analisa o desenvolvimento sustentável como um discurso

que acomoda os ânimos diante da crise e da necessidade de uma mudança estrutural quanto às

formas de organização social. Nesse caminho, ele desvenda as contradições inerentes a esse

processo e demonstra que a sustentabilidade propagada inclusive pelas instituições de referência

como a ONU fica no plano da retórica, à medida que tais instituições se orientam prioritariamente

pelas regras do sistema econômico e financeiro mundial e validam ações diretamente nocivas ao

meio ambiente e à sociedade.

Essa discussão nos interessa particularmente considerando o contexto dos exemplos

apresentados, bem como o contexto do Vale do Ribeira, região do estudo em questão. A

combinação dos termos desenvolvimento e sustentabilidade está presente na definição dos

modelos e das propostas apresentadas em todas as situações, não só como conceitos explicativos,

mas como parâmetros das ações dos sujeitos envolvidos. Igualmente, em todas as situações, pela

relação de dependência produtiva das comunidades locais com o ambiente, os processos de

desenvolvimento passam necessariamente pelas condições de provisão de recursos naturais. Em

especial, no caso do Vale do Ribeira, as considerações de que existe um conflito entre

desenvolvimento e conservação ambiental da região, remetem à discussão sobre o caráter do

desenvolvimento, da sustentabilidade desse processo e de sua abrangência social, considerando-

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se os diversos grupos e interesses aí existentes.

Sem se perder nas limitações da proposta de desenvolvimento sustentável, tanto Frey

(2001), como Guimarães (1997) procuram fazer propostas de adequação dos termos de

sustentabilidade a políticas efetivas. Frey (2001) fala das formas de reação de grupos organizados

da sociedade frente a processos de destruição ambiental sentidos muito de perto. Essa ação, de

caráter fortemente civil, deu origem, muitas vezes, a planos e medidas voltados à questão

ambiental. A participação social, no entanto, não poderia segundo o autor, estar alijada da

participação do Estado como ator fundamental na promoção de políticas de desenvolvimento

sustentável, mesmo porque os processos de desenvolvimento compreendem dimensões maiores

quanto ao cenário político e econômico mundial que caberia somente a um Estado forte e ativo

colocar-se como interlocutor (FREY, 2001, p.141).

Guimarães (1997) recupera essas mesmas noções a partir da proposição da

sustentabilidade política. Esta se constitui em um processo que favorece a construção da

cidadania através da participação dos indivíduos nos projetos de desenvolvimento, da

democratização do Estado e de sua abertura ao controle cidadão, bem como de seu fortalecimento

como “[...] ator privilegiado para ordenar a luta de interesses, orientar o processo de

desenvolvimento e forjar um pacto social que ofereça alternativas de solução à crise de

sustentabilidade” (GUIMARÃES, 1997, p.39).

Na mesma direção do desenvolvimento sustentável, o desenvolvimento local é retomado

como resposta a um processo de profundas mudanças do sistema produtivo que se caracterizou,

entre outras coisas, pela reestruturação capitalista com a liberalização de fluxos e bens de capitais

e pela crise dos estados nacionais com a diminuição de sua participação na economia (JANUZZI,

P. M. et al, 2002, p.47).

Na prática, esse processo de mudança é descrito por fatos como a retração das políticas

sociais e desenvolvimentistas, a desvalorização das atividades industriais tradicionais, o aumento

da concorrência, do desemprego e das desigualdades sociais nos níveis regional e internacional.

Dessa forma, o desenvolvimento local ganha corpo ao se configurar como proposta que substitui

os modelos vindos de cima para baixo desde o Estado e fortalece aspectos próprios, baseados na

singularidade local para construir políticas de desenvolvimento (JANUZZI, P. M. et al, 2002,

p.48).

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Ainda que o desenvolvimento local esteja baseado em princípios como a promoção dos

sujeitos locais, a utilização de recursos próprios, a valorização da identidade local e a execução

de políticas voltadas às necessidades das comunidades locais, o nível local não pode se

desvincular dos demais – regional, nacional ou global – porque não está isolado no plano das

ações e intervenções. Dessa forma, os projetos dos quais uma comunidade, por exemplo, faz

parte, estão condicionados também a outros níveis de decisão em que a dimensão local é apenas

parte do processo no qual procura se afirmar (OTH, 1997).

“Num contexto em que as empresas, organizadas em redes, procuram localizações que

combinem vantagens comparativas e capacidades de inovação e organização dos meios

territoriais, o local está, portanto, longe de ser oposto ao global. Ao contrário, ele

constitui a “armadura social” e espacial de base. Desta concepção, resulta não mais

uma distribuição bipolar e linear do espaço, mas uma multiterritorialidade com

contornos variados, constituídos ao mesmo tempo por novas formas de concentração e

desconcentração” (OTH, 1997, p.96).

Para não restringir o conceito de desenvolvimento local a simples representação ou a um

“[...] conceito „fluido‟, fonte de incertezas práticas e teóricas [...]” (OTH, 1997, p.86), Oliveira

(2002) propõe uma discussão em que o desenvolvimento local, para não se conformar na

reprodução de uma forma estrutural, pode constituir-se em alternativa, baseada na dimensão da

cidadania. Esta por sua vez, deve se expressar pela ação do “[...] indivíduo autônomo, crítico e

reflexivo [...]” (OLIVEIRA, 2002, p.12), que possa atuar efetivamente na reforma do aparelho

administrativo do Estado e juntamente com ele, constituir um governo local que direcione as

políticas necessárias à obtenção do bem-estar social e da qualidade de vida.

Nesse sentido, o autor apresenta a luta pela cidadania como a forma contemporânea de

luta de classes, onde os direitos à fala e à política são instrumentos de transformação e resistência

a um modelo dominante de desenvolvimento que é concentrador e antidemocrático (OLIVEIRA,

2002, p.18). No entanto, Oliveira (2002) alerta que o desenvolvimento local sem o rompimento

com o processo dominante, agindo a partir de negociações pacificadoras e da inexistência do

conflito, pode substituir a cidadania e dar continuidade ao processo dominante, apenas sobre

outra configuração, o que seria uma forma de postergar o problema e não de combatê-lo.

Os exemplos aqui tratados – Prainha do Canto Verde, Reserva Mamirauá e Silves –

revelam a importância da escala local para a caracterização dos processos de desenvolvimento

relacionados a cada comunidade. Esses processos são resultados da mediação entre diferentes

ordens culturais que se relacionam historicamente por meio dos objetos e ações, normatizando o

espaço e, na escala local, conformando o território. A partir desta concepção de território, o

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conceito de desenvolvimento é apreendido, bem como outros discursos e idéias que estão nele

contidos, como no caso da sustentabilidade.

O turismo, bem como outras atividades produtivas, se realiza sobretudo na escala do

território e mesmo que sua ordem de comando tenha origem em uma escala diferente, é no

território que as relações entre as possíveis ordens culturais e de comando se formalizam e dão

seguimento à produção do espaço.

Santos (2004), ao descrever a trajetória e a natureza das ações na produção do espaço

mundializado diz:

“Ao mesmo tempo, a possibilidade atual de mundialização de um grande número de

ações, acarreta, para muitos lugares, o problema da superposição neles, de ações com

escalas diversas, portadoras de contextos com diversa abrangência geográfica e força

ativa (ou reativa) diversa” (SANTOS, 2004, p.225).

Entende-se, portanto, que são as ações em relação dialética com os objetos, que produzem

uma territorialidade carregada de formas e conteúdos específicos, expressos espacialmente por

meio do processo de produção social. Santos (2004) chama a atenção para o fato de que na

atualidade as ações assumem uma racionalidade instrumental, que intermediada pela técnica, se

sobrepõe à noção simbólica, relativa aos valores culturais e se difunde mundialmente como

norma social. Contudo, o autor abre espaço para a atuação da escala local, onde:

“Velhos objetos e ações menos informadas e menos racionais constroem paralelamente

um tecido em que a vida, inspirada em relações mais diretas e mais freqüentes e menos

pragmáticas, pode ser vivida na emoção e o intercâmbio entre os homens é criador de

cultura e de recursos econômicos” (SANTOS, 2004, p.232).

No caso da Prainha do Canto Verde, da Reserva Mamirauá e de Silves, o turismo não foi

fator estruturante da configuração territorial local, mas, por estar presente em todos, serve como

representação do processo social de produção de cada um. As comunidades tanto da Prainha,

quanto da Reserva e de Silves, têm em comum o fato de vincularem suas práticas culturais às

regulações naturais dos territórios que habitam. Dessa forma, o acesso ao uso e à ocupação

territorial é um fator fundamental para a sobrevivência e a reprodução de seus processos sociais

internos. A ameaça a esta condição – pelo processo de grilagem de terras na Prainha ou de

concorrência sobre a pesca na Reserva e em Silves – por ordens externas e contrárias à

racionalidade comunitária local, desencadeou reações das comunidades que foram determinantes

para a formação dos territórios e para a continuidade dos processos sociais de produção de cada

uma delas.

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Fundamentalmente nesse aspecto, reside a diferença entre a ordem local de cada

comunidade. No caso da Prainha do Canto Verde, a comunidade se articulou politicamente em

torno da luta pelo direito a terra e essa articulação resultou num processo mais abrangente de

gestão territorial, norteada pelos valores comunitários de uso e ocupação do espaço. No caso da

Reserva Mamirauá, as comunidades se desestruturaram frente às inúmeras intervenções sobre o

território, dividindo-se social e espacialmente em grupos com interesses diversos e sem unidade

para se apropriarem culturalmente do território. A falta de afirmação política comunitária abriu

espaço para a incorporação do território sob a lógica da institucionalidade conservacionista que

têm as comunidades locais como apoiadoras da proposta. No caso de Silves, a ameaça à

manutenção da pesca comunitária estimulou a organização política das comunidades em torno de

ações de controle e uso do território, com base em princípios de conservação ambiental

originados nesse movimento e formalizados pelos parceiros institucionais com os quais as

comunidades se relacionam.

Em relação ao turismo propriamente, na comunidade da Prainha, a atividade foi

organizada comunitariamente, favorecendo a inclusão e a participação da população, e

estruturada a partir dos limites e das possibilidades de atuação do turismo no território. Na

Reserva Mamirauá, as comunidades envolvidas com o turismo, estão a partir de um plano de

manejo do território que se tornou reserva administrada por instituições externas, segundo uma

política de desenvolvimento sustentável. E no caso de Silves, a atividade eleita como alternativa

econômica pelas comunidades, é estruturada através de uma rede de parcerias na qual as

comunidades assumem a gestão e a participação diretas.

Os processos de conformação territorial demonstram que não há linearidade no curso das

ações e das reações desencadeadas em cada comunidade. Isso fica claro a partir da relação de

similaridade histórica existente entre a Reserva Mamirauá e Silves, que habitam áreas de várzea e

sofreram ameaça às condições de subsistência pela pesca predatória, mas que apresentam

diferenças expressivas quanto à forma de organização política comunitária empreendida frente às

intervenções sobre o território e quanto às formas atuais de uso e ocupação territorial.

O encontro muitas vezes conflituoso das diferentes racionalidades dos grupos gera, por

conseguinte, novas territorialidades. As comunidades se relacionam com ordens culturais

externas e impõem de formas diferentes as próprias ordens culturais, assumindo ativa ou

passivamente a gestão do território (SANTOS, 2004).

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Não há tampouco homogeneidade no curso desses processos considerando-se o caráter

comunitário que lhes é inerente. Nas referências sobre os exemplos considerados, as iniciativas

de resistência e discordância dentro da própria ação comunitária é fator comum. Essas iniciativas,

segundo demonstram os exemplos, quando contidas, o são pela própria coesão existente entre as

comunidades que privilegiam a noção comunitária de uso da terra em detrimento da ação

particularizada. Isso não elimina a existência de interesses difusos ou predominantes dentro das

comunidades, mas as coloca como sujeitos determinantes sobre os desdobramentos derivados da

gestão territorial.

Contudo, as três referências demonstram a preponderância das formas de acesso a terra

para as comunidades. Esse aspecto remonta à questão de posse territorial, não necessariamente a

posse no seu estado jurídico legal, visto que as comunidades de Mamirauá e Silves habitam áreas

de várzea, que segundo legislação, são consideradas como sendo de posse da União, enquanto a

comunidade da Prainha do Canto Verde obteve a posse definitiva das terras após 30 anos de luta

judicial (FONSECA, 2006, p.4). A posse, entretanto, encerra a dimensão da apropriação

simbólica e material do território, estabelecida pelos laços de sociabilidade aí desenvolvidos e

pela prática das atividades produtivas, condição essencial para a reprodução da cultura

comunitária.

Estes exemplos sugerem que à medida que as condições de reprodução da cultura

comunitária são reforçadas pelas próprias comunidades, afirma-se um modelo de uso e ocupação

territorial e amplia-se o poder e a influência política de um grupo social e de uma escala de ação

na dinâmica espacial. Quando a ação comunitária encontra-se dispersa, o território conforma-se

sob normas de territorialização mais organizadas e articuladas politicamente, representativas de

outros grupos e sujeitos sociais.

A relação entre as distintas lógicas de territorialização é o que determina a natureza dos

processos de desenvolvimento de cada comunidade e se enquadra na noção de desenvolvimento

local de Oliveira (2002), ou de sustentabilidade proposta por Guimarães (1997), e mesmo de

ordem local de Santos (2004). Qualquer uma das denominações considera a expressão da

cidadania por meio da prática política, um instrumento de resistência e legitimidade que pode

garantir justiça social aos processos de desenvolvimento de grupos, populações e comunidades.

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Capítulo 3: O olhar do turista sobre o território

A relação entre distintas racionalidades, no caso da atividade turística, acontece

inicialmente ou mais expressivamente, a partir do contato entre população local e turistas. Os

reflexos dessa relação se materializam nas formas de apreensão e uso do território e são

representativos de determinados modos culturais de reprodução social. As comunidades do Vale

do Ribeira, tal qual as comunidades tratadas nos exemplos trabalhados anteriormente, apresentam

modos de reprodução social específicos, em geral, diferentes dos modos de reprodução social

praticados pelos turistas que as visitam. Dessa forma, buscamos identificar a natureza dessa

diferenciação que constitui a essência da relação mantida por esses sujeitos no processo de

construção do território.

No livro “O olhar do turista”, Urry (1996) inicia a discussão partindo da definição

pragmática do turismo como atividade de lazer, caracterizada pelo abandono momentâneo dos

indivíduos em relação aos seus respectivos locais de trabalho e moradia, destinado à visitação de

outros lugares, apreciados através do consumo de uma rede de bens e serviços específicos. O

autor, a princípio, sugere que esses bens e serviços não constituiriam uma necessidade humana

propriamente.

A partir deste ponto justamente, da ausência aparente de necessidade, o autor desenvolve

a discussão a respeito de quais seriam as motivações que levariam o viajante de outras épocas e o

turista contemporâneo a realizar a experiência da viagem. Essa diferenciação entre épocas e

contextos históricos nos quais a experiência da viagem vem acontecendo é realçada sob a

perspectiva do olhar do turista, na forma como ele se constrói culturalmente e nas implicações

sociais e espaciais derivadas de sua passagem pelos lugares e pelas populações (URRY, 1996).

Na associação entre a viagem de exploração realizada por Alexander von Humboldt à

América do Sul no século XVIII e sua visita aos pontos turísticos da cidade de Madri no século

XX, Botton (2003) compara o grau de liberdade com que os olhares do viajante e do turista se

orientam durante o reconhecimento dos lugares visitados. No ato da experiência, Humboldt,

segundo sua descrição, parece ter muito mais autonomia para direcionar seu olhar de acordo com

os interesses que livremente estabelecera, do que ele, que seguia um itinerário já proposto pelos

guias e agentes de turismo.

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A questão fundamental dessa comparação está situada no caráter de significação que é

atribuído aos objetos capturados pelo olhar, regido por uma “hierarquia de interesses subjetivos”

(BOTTON, 2003, p.125), relacionados às categorias de valor correspondentes. Na prática,

Humboldt seria o sujeito na eleição dos objetos e dos lugares significativos, de acordo com os

seus interesses e com o contexto histórico no qual estava inserido, ao passo que Botton (2003),

enquanto turista manobrado e condicionado por uma atividade turística estruturada, não

reconhecia valor nos objetos visitados já que não foram eleitos culturalmente por ele. A

experiência do turista ficaria dessa forma, marcada pela descontinuidade histórica e a valoração

dos objetos, ausente de significado.

Urry (1996) por sua vez, atesta que o olhar do turista, em qualquer época, é construído por

meio da diferença, o que não universaliza o caráter da experiência, e normalmente se estabelece a

partir de um relacionamento entre opostos.

“Esse olhar pressupõe, portanto, um sistema de atividades e signos sociais que

localizam determinadas práticas turísticas, não em termos de algumas características

intrínsecas, mas através dos contrastes implicados com práticas sociais não-turísticas,

sobretudo aquelas baseadas no lar e no trabalho remunerado” (URRY, 1996, p.16).

O rompimento com o caráter ordinário da vida social parece ser uma das mais importantes

motivações que leva o turista a viajar. De acordo com Krippendorf (2001), na sociedade

urbanoindustrial, houve uma forte separação entre o tempo do trabalho e do ócio, bem como entre

os espaços utilizados para ambos. Os conceitos de liberdade e dever, respectivamente ligados aos

de prazer e insatisfação, foram incorporados por esta sociedade de tal forma que o tempo e o

espaço se diferem mediante o uso para o trabalho e para o lazer. Nesse contexto, a viagem é

instituída como prática social necessária para a manutenção do processo em que o lazer exercido

fora do ambiente habitual recompõe o indivíduo para a volta ao trabalho e ao cotidiano.

O desejo de abstração e oposição ao cotidiano que marca as motivações do turista se

revela também na busca por experiências que manifestem a autenticidade dos ambientes

visitados, exercida através de códigos simbólicos que possam remeter o visitante a outros

contextos culturais, carregados de significados que se distanciem de sua vida cotidiana. Nesse

movimento, o turista, simbolicamente, institucionaliza determinados signos de culturas ou

práticas sociais distintas como representativas de autenticidade e de objetos desejados de sua

experiência, no entanto, ao estruturar a experiência a partir das suas prévias expectativas e

desejos, dá origem ao que Urry (1996) denomina de “pseudoacontecimentos”.

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As populações visitadas, integrantes do processo cultural tornado objeto do olhar do

turista, reagem a essa demanda estruturando-se por sua vez, de forma a oferecer uma

autenticidade encenada, como tentativa de defesa e de aproveitamento do retorno financeiro que a

curiosidade desse olhar pode proporcionar (URRY, 1996).

No caso das comunidades consideradas nesse estudo, constata-se, a princípio, uma

diferença fundamental quanto à forma com que elas e os turistas que as visitam interpretam os

mesmos recursos que conformam o território. O próprio território, enquanto constitui a base para

a prática do turismo, representa, para as comunidades, seu espaço de trabalho, convivência e

sociabilidade. Esses recursos por sua vez, podem vir a constituir atrativos turísticos e enquanto

são representativos do caráter cotidiano da vida das comunidades, tornam-se substrato da

experiência turística que se pretende extraordinária para os visitantes. Sem considerar, no

momento, a existência de algum conflito nessa relação, a inversão dos valores atribuídos a esses

recursos está claramente presente.

Estabelece-se a partir daí, uma relação de produção destinada a manter e recriar o olhar do

turista e a autenticidade dos eventos testemunhados por esse olhar reside sobretudo na inversão

da ordem social cotidiana. A experiência do extraordinário é ampliada pelo desejo do olhar que

pode abarcar qualquer objeto a partir da sua noção de significação, noção essa imbuída de um

caráter de “sacralização” (MACCANNELL apud URRY, 1996, p.26) e simbolismo, muitas

vezes avessa aos modos de vida que procura representar.

Urry (1996) sustenta que a origem e a motivação do olhar do turista não advêm de uma

relação materialista mediada pelo consumo, mas antes é gerada pela busca de satisfações que

“nascem da expectativa, da procura do prazer, que se situa na imaginação” (URRY, 1996,

p.29). No entanto, como a satisfação desses desejos está condicionada a um sistema de códigos

culturais real e imprevisível, não raras são as vezes em que as expectativas do olhar são frustradas

e geram novos desejos remetidos a uma próxima viagem.

Para incorporar a idéia do olhar do turista ao estudo da Geografia, é necessário

especializar essa referência de modo a visualizar e compreender a dinâmica da esfera cultural e

dos processos sociais que caracterizam a produção do espaço no caso da atividade turística.

O espaço na compreensão de Santos (2004) seria o lugar de realização dos processos de

produção, esses por sua vez, seriam “o resultado da relação entre homem e mundo, entre homem

e seu entorno” (SANTOS, 2004, p. 90). O que determina e ordena o processo de produção no

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espaço, segundo a concepção de Santos (2004), é o caráter de intencionalidade, que está presente

tanto na produção do conhecimento, como na produção material. A intencionalidade é o que

marca a noção de experiência, é o que rege e orienta a ação e no caso do espaço, é o que está

contido nele, bem como o que o contém.

Com base no processo de produção espacial, o autor demonstra através da noção de

intencionalidade, como a ação de produzir e o produto encontram-se imiscuídos, dissolvidos um

no outro. Essa relação de reciprocidade produtiva, contudo, se realiza por meio da experiência

vivida, da “empiricidade” (C. DIANO apud SANTOS, 2004, p.92), constitutiva da relação entre

sujeito e objeto. “A intencionalidade humana seria uma espécie de corredor entre o sujeito e o

objeto” (SANTOS, 2004, p.91).

O autor analisa o processo produtivo do espaço por meio da perspectiva histórica e afirma

que esse movimento de inter-relação entre sistemas de objetos e ações vai se reformulando

historicamente e reconfigurando a ordem espacial a partir de alterações na forma e na função dos

objetos, relativas a alterações também no campo da ação. Esse movimento contínuo de

interferência mútua é que renova e dá significado ao espaço, bem como determina sua atualidade.

É possível, portanto, identificar na composição do espaço o caráter simbólico da ação,

aquele que imprime significado ao objeto e o caráter funcional do objeto, que condiciona a ação,

ao passo que é determinado por ela. Assim, a categoria espaço se conforma em um híbrido de

conteúdos e funções inseparáveis que correspondem respectivamente às ações e aos objetos que

somente juntos e dialeticamente podem produzir um significado social representado

espacialmente (SANTOS, 2004).

A partir da análise da atividade turística, Luchiari (2000) chama a atenção para o processo

de segregação espacial ocorrido em torno da apropriação cultural de paisagens naturais, que são

destinadas ao consumo turístico de determinadas classes sociais. A autora inicia a discussão

partindo da idéia de que a razão simbólica projetada sobre a paisagem altera seu significado

natural enquanto elemento integrante de processos culturais específicos. Sendo assim, a paisagem

abrigaria na sua constituição não só a materialidade à espera da ação, mas significados concretos

de processos sociais já em curso (LUCHIARI, 2002).

A ilustração é feita com base, sobretudo, na análise das territorialidades produzidas pelo

turismo e que afetam estruturalmente sociedades consideradas tradicionais. A eleição e a

valorização de áreas de uso cultural de determinados grupos se dá por meio da escolha seletiva,

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que segundo a autora, é amparada por discursos de conservação ambiental e de desenvolvimento

local que preconizam a adoção de práticas de sustentabilidade. A atividade turística entraria nesse

rol de propostas alternativas, daí a possibilidade concreta de haver uma apropriação espacial das

áreas eleitas ao se tornarem objeto do olhar do turista que, social e culturalmente, busca

diferenciar-se em relação a outros olhares da sociedade. Os enclaves criados entre grupos

socialmente diversos e expressos espacialmente sob a forma de poder e diferenciação social, são

o que compõe a noção de territorialidade, correspondente à estrutura social vigente (LUCHIARI,

2002).

No caso de comunidades tradicionais, novas territorialidades são produzidas pelo embate

ocorrido entre sua antiga territorialidade, mantida por processos culturais vinculados a sua

própria base produtiva, e a territorialidade introduzida a partir da atividade turística,

culturalmente carregada de códigos significativos diferentes dos contidos em sua realidade social

anterior. Além disso, os objetos técnicos instaurados nessas áreas, para que elas possam atender à

função de paisagens apreensíveis ao olhar do turista, são determinantes em relação aos usos que

se farão nelas, bem como à população que poderá freqüentá-las, já que as relações aí instituídas

se darão por meio do consumo. Segundo Luchiari (2002), essas formas de manifestação da

atividade turística segregam a população local e não estimulam canais de comunicação entre as

distintas sociabilidades.

Contudo, o turismo, mesmo estruturado sob relações práticas de consumo, revela

conteúdos de significação e representação simbólica, manifestas no ato da experiência, que não

estão condicionados apenas a uma função utilitária ou à satisfação de alguma necessidade.

Sahlins (2003), ao descrever o materialismo histórico como a representação do conhecimento da

sociedade burguesa, diz:

“Ao tratar a produção como um processo natural-pragmático de satisfação de

necessidades, corre o risco de uma aliança com a economia burguesa no trabalho de

aumentar a alienação de pessoas e coisas para um poder cognitivo maior. Os dois de

uniriam para esconder o sistema significativo na práxis pela explicação prática do

sistema” (SAHLINS, 2003, p.166).

Sahlins (2003) demonstra que o caráter utilitário dos processos sociais de produção é

endossado pela noção de valor de troca. Essa, à medida que se realiza através da regulação do

mercado, ofusca o código cultural, originalmente determinante dos significados atribuídos aos

componentes do processo produtivo, ressaltando a economia como “conseqüência objetivizada

do comportamento prático, em vez de uma organização social das coisas, pelos meios

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institucionais do mercado, mas de acordo com um projeto cultural de pessoas e bens”

(SAHLINS, 2003, p.167).

Nesse sentido, o autor desvenda a razão cultural que está contida na organização do

sistema produtivo capitalista e na forma como ele se estrutura e tenta ignorar a presença desses

significados culturais, no intuito de manter o sistema produtivo – de criação e satisfação das

necessidades – a todo o vapor.

Na tentativa de romper com interpretações que dicotomizam cultura e economia, Peet

(1997) trabalha a “racionalidade econômica” como conceito capaz de interligar as duas

entidades. Nessa perspectiva, a racionalidade econômica é expressa pelo “conjunto de razões

pelas quais as pessoas, de certa forma, se comportam como agentes econômicos”. Essas razões

advêm de experiências sociais e culturais criadoras de identidades e de formas de manifestação

econômica, que reciprocamente se relacionam, se auto-reproduzem ou mesmo, se auto-sustentam

(PEET, 1997, p.118-119).

Com esta análise, reconhecemos que os códigos culturais são constitutivos do processo

social de produção e se manifestam na representação do olhar do turista, bem como nas

motivações que o direcionam. Ao perceber que mesmo o capitalismo, fundamentado na ordem

prática, revela sua dimensão cultural que justifica inclusive o discurso da “práxis aparentemente

objetiva” (SAHLINS, 2003, p.168), pode-se buscar o mesmo movimento original em relação ao

olhar do turista e à atividade que ele empenha.

O turismo, considerado como atividade de caráter lúdico, relativa à satisfação de desejos

marcados essencialmente pela representação simbólica, toma forma de atividade utilitarista,

destinada à recomposição da condição psicofísica do indivíduo e feita por intermédio do

consumo. Seu conteúdo simbólico se realiza no ato da experiência vivida, ou seja, no momento

em que turistas e população local se relacionam envolvidos por uma produção social específica,

definidora de determinado espaço. A atividade turística promove contatos íntimos entre os

conteúdos simbólicos e de significação social de diferentes populações, e através dessas trocas é

possível identificar a razão cultural que orienta as populações, bem como o processo produtivo

que integram.

Sahlins (2003) defende a idéia de que a produção constitui-se igualmente em uma

“intenção cultural” (SAHLINS, 2003, p.169). Comparando os conceitos de “valor de uso” e

“valor de troca”, o autor ressalta que, ao produzir, o homem imprime características aos objetos

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que sobrepassam a simples idéia de necessidade ou satisfação material. A escolha e a

determinação de tipos específicos de materiais para se compor um objeto representaria o valor de

uso, que por sua vez, “representa um processo contínuo de vida social na qual os homens

reciprocamente definem os objetos em termos de si mesmos e definem-se em termos dos objetos”

(SAHLINS, 2003, p.169).

Sendo assim, a produção pode ser vista como um canal de expressão cultural dos homens

em uma determinada época, ela atesta a existência histórica através de um sistema de ordem

material produzido socialmente pelos códigos significativos de uma sociedade. Nessa ordem de

raciocínio, as escolhas seriam culturais, enquanto as conseqüências seriam funcionais.

O consumo aparece então como uma dessas conseqüências funcionais, resultante de uma

ordem cultural e como mediador de trocas entre distintas sociedades através de seus respectivos

sistemas produtivos. A intermediação das trocas ganha caráter funcionalista, utilitário, mas o

princípio cultural, relativo aos significados sociais, mantém-se primariamente à ação.

Quanto ao olhar do turista, a relação de troca por meio do consumo está presente na base

da ação. Nos exemplos apresentados, as trocas mantidas entre turistas e população local se

estabelecem fundamentalmente em torno do modo de produção social local. A relação que as

comunidades mantêm com o ambiente, e que dá origem a um território culturalmente específico,

passa a ser um fim em si mesma, além de parte constituinte do modo de reprodução social dessa

população. Para os turistas, esse processo é a própria experiência turística, a representação do

extraordinário que se origina nas expectativas lançadas pelo seu olhar.

Urry (1996), ao definir o turismo contemporâneo como “pós-moderno”, apresenta

algumas características que, segundo o autor, dizem respeito a um “regime específico de

significações, no qual determinados objetos são produzidos, transmitidos e recebidos” (URRY,

1996, p.119).

Dentre as características do pós-modernismo que se refletem na atividade turística, o autor

destaca a de “desdiferenciação”. Ao passo que o modernismo se constituiu em um período

marcado pela noção de diferenciação, onde o valor era determinado dentro de esferas culturais

específicas, o pós-modernismo rompe as barreiras culturais para promover a imersão de uma

esfera na outra pelo artifício do “espetáculo” (URRY, 1996, p.120). O autor avança na discussão

ao dizer que na cultura pós-moderna o caráter de “contemplação” é substituído pelo de

“distração”, e isso faz com que as manifestações culturais identitárias de diferentes grupos

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possam circular livremente de uma esfera a outra. Diz também que esse movimento é bastante

impulsionado pelo mercado cultural que desenvolveu mecanismos de aproximação entre a esfera

artística e a comercial, de forma que o caráter de representação cultural se tornou mais expressivo

que a própria manifestação, construída social e significativamente.

Nesse contexto, a própria noção de significação passa a ser reconstruída; quando remetida

a uma representação, essencialmente manifestada pelo sentido visual, a realidade torna-se

também figurativa. O caráter identitário por sua vez, se conforma através de símbolos e a

realidade social é constituída em torno desse movimento entre representação e realidade. As

trocas culturais por fim, são mediadas pelo consumo dos símbolos e dos signos eleitos em uma

esfera de significação artificial.

O turismo parece caminhar bem no campo da representação cultural, considerando o

universo simbólico que envolve em torno da viagem e a forte sistematização da atividade,

organizada através de uma estrutura funcional de serviços. Urry (1996) diz que no turismo pós

moderno: “Aquilo que as pessoas “contemplam” são representações ideais da vista em questão

que elas internalizam a partir de cartões postais, dos guias de viagem, e cada vez mais, dos

programas de televisão” (URRY, 1996, p.122). Ao final, mesmo que a experiência não cumpra a

função esperada, os turistas acabam por reproduzir a imagem representativa como verdade

vivida.

Em contramão à “desdiferenciação” cultural que acontece no pós-modernismo, há

igualmente um processo de diferenciação social que é expressivo também nesse período. As

classes sociais se diferenciam através de um código classificatório de práticas culturais que

orientam sua reprodução social interna e, em relação umas às outras, disputam o posto de cultura

dominante. No caso do turismo, Urry (1996) analisa a diferenciação social através do “olhar

coletivo” e do “olhar romântico”; o primeiro refere-se ao turismo massivo, com demandas por

serviços e lugares mais ou menos padronizados, e o segundo busca fatores de diferenciação,

normalmente relacionados a conteúdos simbólicos e práticas contemplativas que exigem um nível

cultural mais desenvolvido.

No entanto, Urry (1996) chama a atenção para o fato de que com a expansão da mídia e a

ampla reprodução do mesmo sistema informacional a um número maior de grupos sociais, criou-

se a possibilidade de maior inserção dos grupos em outros universos culturais e essa relação

acontece através da representação.

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Sahlins (2003) por sua vez, reconhece os processos de segmentação social como sendo de

razão cultural e quando refletidos na produção capitalista, se manifestam por meio de

diferenciações objetivas, concretas, como objetos correspondentes a cada categoria social. Esta

lógica é contínua e valida códigos sociais emergentes, bem como mantém a produção de bens

distintivos e representativos de variados sistemas culturais.

Em relação ao turismo, nos interessa analisar a representação simbólica da natureza e sua

apreensão através da experiência da viagem. Diversas áreas que possuem reconhecido patrimônio

ambiental têm sido valorizadas como destinos turísticos. Muitas delas, como no caso do Vale do

Ribeira, mantêm populações cuja relação com o ambiente caracteriza sua cultura. O mesmo

ambiente contém a idéia de natureza genuína que os turistas constroem previamente a suas

visitas. Esse processo contínuo de desconstrução e reconstrução do território, a partir de códigos

culturais diferentes, determina muitas vezes a forma de uso e ocupação dessas áreas, quando

passam a exercer novas funções dentro de outros contextos sociais. O território por fim, passa a

abrigar formas de uso diversas, podendo ser, ao mesmo tempo, morada, paisagem e recurso para

a conservação ambiental.

Esse movimento é o que parece haver precedido a cultura de valorização de áreas naturais,

de costumes e códigos culturais tradicionais, significativos de uma ordem cultural genuína. Os

modelos de balneários, tão freqüentados anteriormente, se opõem à representação de natureza

original como “algo incivilizado, desprovido de gosto, animalesco, que deve ser contraposto à

civilização da cultura” (URRY, 1996, p.131).

O olhar do turista parece de fato se constituir de uma razão cultural livre de caráter

utilitarista, porém, na forma como ele se organiza, por trás de uma estrutura sistematizada de

serviços e de geração de desejos e fantasias, ele se tornou uma prática distintiva social e

culturalmente e, portanto, uma necessidade para determinados grupos sociais. Isso porque, como

foi visto, o processo de produção e de diferenciação social, sedimentado sobre o sistema

capitalista, mantém como ordem cultural a diferenciação social permanente. Ela é mantida pela

produção de signos culturais distintos, identitários de determinados grupos e representados

simbolicamente através de trocas culturais/comerciais.

Entre visitantes e visitados, essas trocas se dão através de seus respectivos sistemas

simbólicos, que correspondem, na análise de Bourdieu (1989), a instrumentos de conhecimento e

de comunicação estruturados que possibilitam o consenso sobre o sentido de mundo, mantendo

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através dele, a reprodução de ordens sociais específicas (BOURDIEU, 1989, p.9).

Esses sistemas, segundo o autor, contêm uma função política que é exercida à medida que

uma sociedade impõe determinada concepção de mundo social ou legitima outra, externa e

dominante à sua, de acordo com a predominância de interesses vigentes, que se materializam, por

sua vez, numa esfera de distintas categorias sociais (BOURDIEU, 1989, p.11).

O sistema simbólico construído revela o conteúdo cultural constituinte de determinada

sociedade e ainda que as relações em cada uma delas se desenvolvam em sistemas diferentes de

produção, a razão cultural permanece presente norteando as ações sobre os objetos. A despeito da

comparação entre sociedades burguesas e sociedades primitivas, Sahlins (2003) esclarece que as

duas ordens culturais se relacionam em uma dinâmica de poder e valoração, onde se conformam

culturas dominantes e dominadas, cada uma em seu contexto social ou mesmo dentro de uma

esfera comum.

A atividade turística promove o relacionamento entre diferentes sociedades e seus

respectivos contextos culturais dentro de uma esfera espacial comum. Já a dinâmica resultante do

poder de imposição que cada uma tem sobre a noção de mundo social compreende um campo de

luta simbólica pela afirmação e defesa de seus interesses próprios, e repercute na forma como o

turismo se estrutura territorialmente.

O que se nota, no entanto, é que a razão cultural presente em cada sociedade, constituinte

da produção social do espaço se diferencia, não só para manter o sistema produtivo – o capitalista

– ativo, mas, no caso de algumas populações, porque essa diferenciação constitui a própria base

do sistema produtivo. Ao mesmo tempo, é possível perceber que a razão cultural do sistema

capitalista é dominante na atualidade e que seu poder de alcance tem aumentado muito as

possibilidades de contato entre sociedades diferentes, bem como de troca e apropriação cultural

de novos códigos e novas práticas, representadas em contextos simbólicos e sociais.

No caso do turismo, o diálogo cultural se dá de forma especial, onde não somente a

cultura sofre intermediações, mas o espaço constituinte de uma produção social específica é

normalmente alterado. As conseqüências da apropriação cultural como representação social

podem ser sérias, à medida que transformam um modo cultural, existente significativa e

praticamente, em um modo de representação, deslocado do vínculo social local. O espaço, por

conseguinte, passa a abrigar funções que não respondem mais à ordem cultural local, sendo

transformado por uma razão cultural externa, privatizado ou tendo seu uso restrito e alterado.

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O exemplo das paisagens no caso do turismo é emblemático como referência de

apropriação do espaço e de apropriação cultural. Esses processos tendem a ser verticalizados e a

impor uma racionalidade externa à população diante da sua própria base produtiva. A questão

necessária nesses casos é avaliar não só a valorização de determinados símbolos dentro da

presente esfera cultural, reconhecendo e desmistificando seus códigos de significado e

representação, mas avaliar a existência destes mesmos códigos nas esferas em que originalmente

foram concebidos, a fim de que eles mantenham sua validade para a reprodução da ordem

cultural que compõem.

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PARTE II: O TERRITÓRIO CONSTRUÍDO: IDENTIDADE E CONCEPÇÕES DE USO

Capítulo 4: Definição política e cultural do território quilombola

As comunidades que compõem o tema deste estudo caracterizam-se por serem

remanescentes de quilombos e como tal, têm direito à propriedade e à titulação de suas terras,

emitida pelo Estado (SUNDFELD, 2002, p.15), segundo Artigo 68 do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Brasileira de 19885.

Contudo, as formas de apropriação territorial mantidas pelas comunidades vão muito além

da oficialização que o título da terra lhes pode conferir. Historicamente, as comunidades vêm

estabelecendo vínculos territoriais a partir de sua própria base social, conformando um território

sob noções culturais específicas. Tais noções se atualizam a medida que dialogam com noções

culturais distintas e se afirmam como práticas de reprodução social. A partir do reconhecimento

legal das comunidades como remanescentes de quilombos, esta identidade cultural torna-se

componente do processo de afirmação política que as comunidades empreendem em relação à

apropriação do território.

Nesse sentido, interessa-nos analisar sob quais aspectos o conceito quilombola vem sendo

constituído, não só dentro da esfera jurídica de concessão de direito constitucional, mas

especialmente como conceito classificatório de populações e de suas formas de reprodução

social. Mais ainda, analisar como as comunidades em questão apreendem o conceito que as

define e como esse conceito se torna representativo da territorialidade construída por elas.

Parecendo generalizada em relação ao conceito, essa discussão baseia-se

fundamentalmente no contexto de reconhecimento das comunidades quilombolas de André Lopes

e de Sapatu, ambas situadas na zona rural do município de Eldorado, Vale do Ribeira, Estado de

São Paulo.

A princípio, quando da aplicação ou cumprimento dos termos dispostos pelo artigo 68 do

ADCT, a própria definição remanescentes de quilombos passou a ser discutida, considerando-se

os critérios que orientariam o reconhecimento das populações. O texto constitucional remete à

idéia de remanescentes como parte de uma estrutura organizacional em desaparecimento ou

5 Segundo artigo 68 do ADCT: “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas

terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (SUNDFELD,

2002, p.19).

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inexistente (LEITE, 2000, p.341), atrelado à idéia de quilombo como agrupamento étnico,

caracterizado pela autosuficiência, pelo isolamento geográfico e pela resistência ao sistema

escravista colonial (SUNDFELD, 2002, p.77).

O conceito de quilombo vem sendo definido, historicamente, por versões que vão desde a

apresentada pelo Conselho Ultramarino6 ao Rei de Portugal, em 1740, até outras mais atuais que

apresentam os quilombos como estruturas socialmente organizadas, abrangendo aspectos

culturais e políticos dentro de contextos históricos específicos. Alguns questionamentos relativos

ao conceito empregado pelo texto constitucional alegam que ele se norteia por uma idéia

cristalizada de quilombo (SUNDFELD, 2002, p.77; ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000,

p.51), justamente a proposta pelo Conselho Ultramarino. O conceito de remanescentes por sua

vez, expresso por parâmetros conceitualmente restritivos, tornou-se insuficiente para representar

a “diversidade de situações envolvendo afro-descendentes” (LEITE, 2000, p. 340) no processo

de formação histórica do país.

Em 1994, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em atendimento à solicitação

do Ministério Público Federal, elaborou uma definição para quilombo, qual seja: “toda

comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos vivendo da cultura de subsistência

e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado7” (SUNDFELD, 2002, p.77).

Com essa definição, a associação pretendeu romper com o estereótipo fundamentado na idéia de

comunidades homogêneas, circunscritas a um contexto único de formação, e ressaltar a

atualidade do termo quilombo paralela à pluralidade de situações que deram origem a sua

existência. Nas palavras de Leite (2000, p.341): “(...) mais do que uma realidade inequívoca, o

quilombo deveria ser pensado como um conceito que abarca uma experiência historicamente

situada na formação social brasileira”.

6 O Conselho Utramarino definiu quilombo como sendo “Toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco,

em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (SUNDFELD, 2002,

p.77). 7 “O termo Remanescente de Quilombo, conforme deliberado pela ABA – Associação Brasileira de Antropologia,

em encontro realizado nos dias 17 e 18 de outubro de 1994, no Rio de Janeiro, embora tenha um conteúdo histórico,

designa hoje a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos e é utilizado para designar

um legado, uma herança cultural e material que lhe confere uma referência presencial no sentimento de ser e

pertencer a um lugar e a um grupo específico‟.” (GARCIA, 1995 apud ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000,

p.7)

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Os artigos 215 e 2168, associados à garantia de manifestação e defesa de direitos culturais,

inclusive dos afro-brasileiros, são parte das disposições permanentes da Constituição Federal,

enquanto o artigo 68 é parte do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (LEITE, 2000,

p.346). Nesse caso, a transitoriedade do dispositivo é também representativa de sua lógica

restritiva, quando condiciona o direito de reconhecimento à ocupação territorial pretérita e

presente, e não à dinâmica cultural constitutiva de um grupo social permanentemente em

formação na história brasileira.

O Decreto Federal nº. 3.912 de 10 de setembro de 20019, que trata do processo

administrativo para a concessão dos direitos garantidos pelo artigo 68, diz que a propriedade

sobre as terras será reconhecida somente nos casos em que houve ocupação por quilombos no ano

de 1888, ano de abolição da escravatura, e por remanescentes de quilombos em 05 de outubro de

1988, ano da promulgação da Constituição Federal (SUNDFELD, 2002, p.70). Nesse caso,

“A tarefa do Poder Público estaria circunscrita, tão somente, à outorga de títulos de

propriedade sobre posses prolongadas e incontestes”, visto que “Da posse prolongada e

pacífica (das comunidades), teria originado seu direito de propriedades sobre as terras,

que veio a ser simplesmente reconhecido pela Constituição de 1988 (SUNDFELD,

2002, p.31).

O decreto nº. 3.912/01 “centrou a discussão sobre as terras ocupadas pelos

remanescentes e, não sobre a relação dos remanescentes com a terra” (SUNDFELD, 2002,

p.80). O dispositivo é questionável pelo fato de que a dinâmica da produção social histórica

ultrapassa limites temporais definidos e a despeito da abolição da escravatura no ano de 1888, os

quilombos estariam em formação posteriormente a essa data. E ainda, pelo fato de que os

processos de ocupação territorial, fosse em 1888 ou em 1988, estariam sujeitos a situações outras,

8 Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura

nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. 1º. O Estado protegerá as

manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e de outros grupos participantes do processo

civilizatório nacional. 2º. A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os

diferentes segmentos étnicos nacionais.

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados

individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos

formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e

viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais

espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,

paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (CHAGAS, 2001, p. 2). 9 “Trata-se de decreto fundado nos dispositivos citados – art. 14, IV, c, da Lei n.º 9.649/98 e art. 2º, III e parágrafo

único da Lei n.º 7.668/88. Seu objetivo é, exatamente, regulamentar „as disposições relativas ao processo

administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos e para o reconhecimento, a

delimitação, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras por eles ocupadas‟” (SUNDFELD, 2002,

p.31).

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como conflitos por domínios territoriais ou a própria necessidade de deslocamento das

comunidades, fazendo com que a territorialidade criada não obedecesse a limites fixamente

estabelecidos (SUNDFELD, 2002, p.71-73).

A revisão dos conceitos que orientam a concepção dos dispositivos constitucionais

objetiva elucidar a aplicabilidade dos mesmos a partir do pressuposto de que as formas pretéritas

de territorialização derivadas dos quilombos encerram lógicas culturais específicas, associadas à

etnicidade de uma população que, como qualquer outra, atualizou-se ao longo da história, mas

mantém, através dessa, uma linearidade temporal manifesta na produção contemporânea de novas

territorialidades.

Nesse sentido, prossegue a discussão pela busca dos sujeitos depositários dos direitos

garantidos pelo artigo 68. O texto constitucional destaca a comunidade como sujeito de direito, a

partir da qual “derivam os „remanescentes‟, denominados posteriormente quilombolas” (LEITE,

2000, p.344). Destaca-se aqui a idéia de que o processo de reconhecimento se norteia pela

identificação coletiva, representativa, no caso, de um modo de vida comunitário, onde os sujeitos

assumem sua condição como membros de um grupo.

Segundo Leite (2000), a terra é fator preponderante para a continuidade do grupo e da

manifestação de sua identidade coletiva, mas não é absolutamente, fator que determina essa

identidade.

“Quer dizer: a terra, base geográfica, está posta como condição de fixação, mas não

como condição exclusiva para a existência do grupo. A terra é o que propicia condições

de permanência, de continuidade das referências simbólicas importantes à consolidação

do imaginário coletivo, e os grupos chegam por vezes a projetar nela sua existência,

mas, inclusive, não têm com ela uma dependência exclusiva” (LEITE, 2000, p. 344-45).

A autora avança na discussão ao ressaltar a capacidade organizativa de sociedades em

torno de um projeto de vida coletivo como o critério a ser seguido para o reconhecimento das

comunidades. Essa capacidade organizativa incorpora por sua vez, aspectos relativos a

parentesco, a memória coletiva e a formas de reprodução social (LEITE, 2000, p.345).

Outro critério que se relaciona às formas de reprodução social dessas comunidades é a

autonomia sobre seus processos produtivos, critério destacadamente conferido a comunidades

negras rurais. A manutenção dessa autonomia, responsável inclusive por garantir a resistência

histórica das comunidades frente a grupos hegemônicos, como senhores de escravos e grandes

proprietários de terras, é uma característica que unifica as comunidades temporalmente,

estabelecendo um fio condutor entre a luta de outrora e a luta atual por elas empreendida

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(FILHO, 2006, p.17).

A despeito da diversidade de situações que caracterizam a formação de quilombos no

Brasil, Filho (2006) destaca a luta pela autonomia como “o operante mais importante para se

pensar um conceito moderno de quilombo” (FILHO, 2006, p.17) e ressalta que essa luta

permanece até hoje através das comunidades, que passando da condição de escravos a

camponeses, buscam atualmente conquistar a posse de suas terras.

A recuperação do conceito de quilombo se dá na esfera institucional, onde se busca

afirmar uma luta política por direitos civis. Essa luta simboliza as estratégias de afirmação de

grupos sociais, com demandas e pleitos específicos, significa o alcance da posição de cidadãos de

direito legitimamente reconhecidos.

Sendo assim, a identidade política ultrapassa os limites territoriais tradicionalmente

reconhecidos como quilombolas. Carril (2006, p.158) faz um estudo sobre a representação

quilombola expressa por comunidades rurais e urbanas, considerando aspectos de resistência e

segregação étnica na conformação de territórios. A autora relaciona a identidade produzida por

comunidades rurais do Vale do Ribeira com a identidade produzida no bairro de Capão Redondo,

periferia da zona sul de São Paulo.

As comunidades do Vale, segundo a autora, incorporam a identidade quilombola a partir

de uma retrospectiva histórica que leva em conta, essencialmente, as relações comunitárias

estabelecidas com o passar do tempo e as formas culturais de apropriação do território. As

comunidades caracterizam-se como quilombolas pelo manejo dos recursos naturais, pelo uso

coletivo da terra, pela reprodução social em núcleos familiares, pelas práticas de sociabilidade

relacionadas à moradia, ao trabalho, ao lazer e à religiosidade. No bairro de Capão Redondo, a

comunidade que se auto-identifica quilombola, incorpora o termo como símbolo de resistência

frente a processos de segregação sócio-espacial relacionados à etnia. A identidade quilombola

está associada a manifestações culturais como o rap e o hip hop, cujas letras relacionam as

práticas de escravidão do passado às formas atuais de discriminação social.

Em ambos os casos, o termo quilombo é incorporado como recurso político de grupos que

buscam firmar sua posição social. Ao passo que no Vale, as comunidades buscam legitimar seu

direito de posse visando a reprodução da própria territorialidade, em Capão Redondo, a

comunidade denuncia uma territorialidade socialmente marginalizada através de manifestações

culturais, revelando a continuidade de um processo histórico de segregação racial e difundindo

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sua própria cultura (CARRIL, 2006, p.168).

A identidade quilombola representa a possibilidade de afirmação político-cultural de

grupos sociais através do reconhecimento de seus direitos pela Constituição Brasileira. Nesse

aspecto, ela também serve como medida de aferição do quanto o reconhecimento constitucional

da existência de grupos culturalmente diferentes na sociedade brasileira se traduz em políticas

que legitimem e valorizem as formas de manifestação ligadas à etnia negra.

Arruti (2003), ao analisar a evolução da legislação e das políticas públicas dirigidas à

população negra, incluindo-se aí as comunidades remanescentes de quilombos, descreve uma

trajetória que se inicia por pressão dos movimentos negros urbanos e se fortalece com o

surgimento de uma “militância quilombola”, fruto da organização de comunidades negras rurais,

cujos membros eram classificados como posseiros ou trabalhadores rurais (ARRUTI, 2003, p.11).

Essa nova dimensão do movimento negro ampliou as exigências sobre os direitos da

população e no caso das comunidades remanescentes de quilombos, estimulou a criação de

instrumentos que visavam garantir o reconhecimento das comunidades e a respectiva emissão de

títulos. Esse processo, contudo, além de moroso, apresenta retrocessos, como no caso da

publicação do decreto 3.912/2001 que além das funções já citadas, também transferia as

atribuições de reconhecimento e titulação, antes a cargo do Instituto Nacional de Colonização e

Reforma Agrária (INCRA), para o Ministério da Cultura, através da Fundação Cultural

Palmares (FCP).

O processo avançou particularmente no caso de algumas administrações estaduais, que

através de seus órgãos diretos, criaram políticas específicas para tratamento do tema. Os estados

de São Paulo e do Pará são os principais exemplos. Nesses estados, avançou-se no

estabelecimento dos critérios para o reconhecimento das comunidades, como se verá mais adiante

no caso das comunidades do Vale do Ribeira.

No Governo Federal, segundo Arruti (2003), as iniciativas ainda tardam a se viabilizar. O

ministério que tem mostrado maior comprometimento com a questão quilombola é o Ministério

do Desenvolvimento Agrário (MDA), demonstrando mais uma vez, o vínculo estabelecido entre a

causa quilombola e a questão agrária (ARRUTI, 2003, p.15). Por isso mesmo, muitas vezes, a

leitura feita através das políticas públicas sobre as comunidades é um tanto homogênea ao

considerá-lãs essencialmente como trabalhadores rurais.

Na prática, sobressaem ainda as dificuldades em torno do processo de regulamentação dos

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direitos constitucionais, seja quanto à definição conceitual do fenômeno, dos sujeitos de direito,

dos procedimentos e das competências institucionais para a execução e aplicabilidade do artigo

68.

“Cada um deles (procedimentos de titulação) enfrenta forte discordância dos diferentes

setores diretamente envolvidos, principalmente dos grupos interessados, e aponta a

direção dos conflitos, que vão desde a oposição às normas estabelecidas para as

titulações, às pressões das elites econômicas interessadas nas terras ocupadas pelas

comunidades negras, passando por disputas entre os órgãos do governo que teriam a

atribuição para conduzir o processo” (LEITE, 2000, p. 346).

Essa dificuldade decorre da ausência de uma “política regular de reconhecimento

massivo destas áreas conforme as disposições constitucionais” (ALMEIDA, 1997 apud

SUNDFELD, 2002, p.52), e ainda, da ausência de parâmetros que possam abranger a pluralidade

de estratégias e situações através das quais os processos de resistência territorial ao escravismo

(LEITE, 2000, p.346) se estabeleceram nas diversas regiões brasileiras.

O reconhecimento quilombola representa via de acesso à cidadania para comunidades

historicamente discriminadas no quadro da formação social brasileira. Sua capacidade de

organização e representação como grupo social é característica e condição para que os direitos

constitucionais que lhe são cabíveis se materializem.

A revisão conceitual de quilombo parece necessária para avalizar a qualidade e a

especificidade das demandas levantadas, sem contudo, se transformar num recurso restritivo ou

coercitivo de direitos constitucionais legítimos, podendo dessa forma operar como instrumento de

referência e mediação nos processos de reconhecimento. Por outro lado, tão necessário quanto,

parece a necessidade de se reforçar a disposição das instituições em proceder à concessão de tais

direitos. Essa disposição diz respeito à prática de sinergia e complementaridade por parte dos

órgãos cuja competência é garantir a manifestação da diversidade étnica-cultural brasileira por

meio da garantia das condições materiais de continuidade e sobrevivência cultural das

comunidades.

No caso do Vale do Ribeira, o processo de reconhecimento das comunidades demonstra a

variedade das formas de ocupação negra na região, abrangendo desde casos de escravos fugidos

ou libertos, até casos de pequenos produtores cujos grupos não manifestavam nenhum vínculo

com o regime escravista. Nesse contexto, formam-se as comunidades, agrupadas em torno da

possibilidade de ocupar e trabalhar a terra livremente.

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52

Concentração quilombola no Vale do Ribeira

O Vale do Ribeira localiza-se entre os estados de São Paulo e Paraná, num trecho de 520

km de comprimento, cuja maior parte situa-se em território paulista. A região ocupa 10% da área

do estado de São Paulo (Figura 2) e se divide em três sub-regiões: a Baixada do Ribeira com os

municípios de Eldorado, Jacupiranga, Pariquera-Açu, Registro e Sete Barras; a sub-litorânea com

os municípios de Iguape e Cananéia; e o Alto Ribeira, com os municípios de Iporanga, Apiaí e

Ribeira (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.111).

A região do Vale do Ribeira agrega a maior parte das comunidades remanescentes de

quilombos do Estado de São Paulo localizadas nos municípios de Eldorado e Iporanga; a região

também abriga as maiores áreas conservadas de Mata Atlântica do estado.

Em 1995, após apresentarem ação ordinária à Justiça Federal do Estado de São Paulo,

requerendo o reconhecimento e a titulação de suas terras, representantes da comunidade negra de

Ivaporunduva, buscavam apoio à causa através da Procuradoria da República e noticiavam a

existência de diversas outras comunidades negras no Vale do Ribeira (ANDRADE; PEREIRA;

ANDRADE, 2000, p.45). Esse processo deu início a uma série de trabalhos que seriam feitos, sob

a liderança do Ministério Público Federal, para a identificação das comunidades negras da

região, visando à garantia de seus direitos.

A iniciativa do ministério foi reforçada na época pelo fato de que os limites do recém

criado Parque Intervales, unidade de conservação estadual, coincidia com os limites de terras

ocupadas por cinco comunidades, a saber: Maria Rosa, Pedro Cubas, Pilões, São Pedro e a

própria Ivaporunduva (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.45).

Os trabalhos compreenderam visitas à região para a realização de levantamentos de

campo e pesquisas que fornecessem subsídios para a produção dos laudos antropológicos, que

por sua vez, subsidiariam as ações de garantia dos direitos das comunidades pleiteantes do Vale

do Ribeira. Nas visitas iniciais, confirmou-se a hipótese de que “as comunidades negras do Vale

do Ribeira de Iguape compunham um extenso e complexo campo de relações sociais, econômicas

e culturais (...)” (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.46) e essa constatação deu

origem a um grupo de trabalho responsável pela identificação das comunidades através de

levantamento etnográfico e pesquisa documental.

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53

Durante a realização das pesquisas, além das comunidades cuja ocupação territorial era

coincidente aos domínios conferidos ao Parque Intervales, foram incluídas as comunidades de

Nhunguara, Sapatu e André Lopes, cujos domínios territoriais coincidiam com a demarcação do

Parque Estadual do Jacupiranga (PEJ). Nota-se que a abrangência de diversas comunidades num

mesmo estudo refere-se à apresentação de um argumento antropológico comum, concernente às

formas de ocupação da região pelas comunidades.

Paralelamente, em 1996 no Estado de São Paulo, formava-se um Grupo de Trabalho10,

composto por diversas instituições de abrangência estadual, com o objetivo de conferir

aplicabilidade aos dispositivos constitucionais relacionados aos direitos das comunidades de

remanescentes de quilombos. Esse grupo surge em resposta do Governo do Estado às crescentes

solicitações das comunidades quilombolas, das organizações sociais do movimento negro e de

outras organizações da sociedade civil cujas causas mantinham afinidade entre si.

Através do grupo de trabalho, o Governo do Estado de São Paulo constituía um arcabouço

teórico-metodológico e favorecia a integração de diversos órgãos de sua administração a fim de

dar cumprimento ao artigo 68 do ADCT. A busca pelo cumprimento do dispositivo no estado

estimulou a criação de instrumentos jurídicos, incluindo sanção de lei e edição de decretos

estaduais, que são mais abrangentes frente à complexidade do processo de reconhecimento e

titulação das comunidades. Esses instrumentos estão voltados para além do cumprimento do

artigo 68, priorizando a regularização fundiária dos territórios ocupados pelas comunidades,

associada a um programa de desenvolvimento sócio-econômico das mesmas (ANDRADE;

PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.11).

Por meio da criação do Decreto nº. 42.839/98, o grupo de trabalho passou a incorporar os

critérios de auto-identificação e territorialidade para proceder ao reconhecimento das

comunidades. Enquanto a auto-identificação seria avaliada pelos estudos antropológicos, a

definição da territorialidade estaria condicionada à análise das formas de ocupação e exploração

dos recursos naturais, considerando-se as práticas produtivas tradicionais e o uso territorial para

as práticas de sociabilidade comunitária (SUNDFELD, 2002, p.63).

10

“O Grupo de Trabalho foi composto por membros da Secretaria da Justiça e da Cidadania, do Instituto de Terras,

da Secretaria de Meio Ambiente, da Procuradoria Geral do Estado, da Secretaria do Governo e Gestão Estratégica,

da Secretaria da Cultura, do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Antropológico, Artístico e Turístico do

Estado de São Paulo (Condephaat), do Conselho de Participação de Desenvolvimento da Comunidade Negra de São

Paulo, da Ordem dos Advogados do Brasil / Seção São Paulo – Subcomissão de Negros da Comissão dos Direitos

Humanos, e do Fórum Estadual de Entidades Negras do Estado de São Paulo” (SUNDFELD, 2002, p.59).

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54

Para proceder à delimitação dos territórios a serem titulados em favor das comunidades,

estabeleceu-se a elaboração de um Relatório Técnico-Científico (RTC) para cada comunidade, a

se realizar pelo Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP). O RTC considera a

localização da comunidade; a identificação e a descrição da área de acordo com os limites por ela

indicada, incluindo as atividades econômicas, de utilização para a auto-sustentação e manejo, e as

construções existentes; os critérios de pertencimento territorial/espacial relacionados à auto-

definição e às formas tradicionais de ocupação; e as relações com a sociedade circundante

(ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.16-17). Além do relatório também foi feito o

diagnóstico jurídico do território auto-identificado, composto pelo levantamento da situação

dominial, jurídico-ambiental e jurídica da comunidade (SUNDFELD, 2002, p.64).

No Vale do Ribeira, o trabalho de reconhecimento das comunidades se iniciou por aquelas

que tinham parte ou todo o território localizado nos limites do Parque Estadual de Intervales e por

outras três que tinham o território situado nos domínios do Parque Estadual do Jacupiranga.

Dessas três, duas comunidades fazem parte do estudo aqui proposto, André Lopes e Sapatu.

Além da sobreposição de áreas e das normatizações ambientais decorrentes da instalação

de unidades de conservação na região, as comunidades do Vale estavam envolvidas em outros

conflitos relacionados à propriedade do território, sendo o principal deles, a possibilidade de

construção de hidrelétricas na região. As iniciativas para o aproveitamento do potencial

hidrelétrico da região datam da década de 1950 e vêm até hoje perdurando como freqüente

ameaça à ocupação da terra pelas comunidades.

A Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto11 (UHE Tijuco Alto) é um empreendimento planejado

pela Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), empresa do Grupo Votorantim, cujo objetivo é

aumentar a oferta de energia elétrica para seu complexo metalúrgico localizado na cidade de

Alumínio, no interior do Estado de São Paulo. A localização do empreendimento está prevista

para o alto curso do rio Ribeira de Iguape, na divisa dos Estados de São Paulo e Paraná, cerca de

10 quilômetros a montante da cidade de Ribeira (SP) e Adrianópolis (PR), e a aproximadamente

a 333 quilômetros de sua foz, no complexo Estuarino-Lagunar de Iguape-Cananéia-Paranaguá 11

O IBAMA concedeu, em fevereiro desse ano, licença favorável à construção da UHE de Tijuco Alto.

Imediatamente, as comunidades, juntamente com um grupo de instituições que são contrárias à instalação do projeto,

organizaram protesto e formaram acordo junto ao IBAMA, para a realização de reuniões com o objetivo de

esclarecer questionamentos sobre os aspectos técnicos e sociais do empreendimento, anteriormente à emissão de

qualquer tipo de posição final relacionada à execução da hidrelétrica. Atualmente, os movimentos sociais e as

instituições envolvidas estão pressionando o IBAMA para que o órgão cumpra os compromissos firmados (ISA,

2008).

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55

(ISA, 2008).

Ao lado da UHE Tijuco Alto, a Companhia Energética do Estado de São Paulo (CESP),

planeja construir mais três usinas hidrelétricas ao longo do rio – Funil, Itaóca e Batatal – a jusante

da UHE Tijuco Alto. A instalação desse complexo de hidrelétricas alagaria parte do território de

algumas comunidades, além de grandes porções de áreas de proteção ambiental (ANDRADE;

PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.112).

A organização de pleitos e reivindicações, que emergiram como demandas positivas

associadas ao movimento negro na região, foram estimuladas pela atuação da Igreja Católica

junto às comunidades e reforçadas pela atuação do Movimento dos Ameaçados por Barragens –

MOAB (CHAGAS, 2001, p.7). Essas demandas promoveram maior contato entre as

comunidades que consolidaram certa capacidade organizativa capaz de fazer frente às

intervenções que têm impactos nos territórios por elas ocupados. A identidade quilombola, como

um recurso de reconhecimento do caráter de ocupação histórica e cultural mantida pelas

comunidades, transfigura-se como um argumento a favor do domínio territorial comunitário e

contrário à instalação de quaisquer novas intervenções que possam desestruturar suas formas de

reprodução social. Nas palavras de Chagas (2001, p.7):

“Na cena dos direitos insurgentes a própria positividade histórica, que alçou o sentido

de resistência, veio a potencializar uma interlocução com o Estado em outros termos e

talvez num patamar que os possibilitasse um lugar socialmente reconhecido. Deste

modo, é especialmente necessário considerar o contexto em que tais buscas de

regularização de terras são produzidas e também são produto”.

No caso das comunidades do Vale do Ribeira, o reconhecimento da identidade está

estritamente relacionado aos conflitos fundiários existentes na região. Contudo, os argumentos

para a definição da identidade quilombola são variáveis segundo o contexto social em que cada

comunidade se constitui.

Carvalho (2006, p.7) diz que mesmo entre bairros negros vizinhos na região, as razões de

sua origem variam entre aqueles que reconhecem laços históricos ligados à escravidão, inclusive

com relatos de fuga e isolamento geográfico, e aqueles que não relacionam sua história a nenhum

mito fundador, advindo da condição de escravo. No caso específico de seu estudo, envolvendo as

comunidades de São Pedro e Galvão, a autora diz que a identidade remanescentes de quilombos

vem sendo positivamente construída, associando-se a aspectos de parentesco e territorialidade e

transformando aspectos negativos que influências coloniais atrelaram, no passado, à identidade

negra (CARVALHO, 2006, p.80).

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No processo de reconstrução histórica da identidade das comunidades do Vale do Ribeira,

destacam-se os aspectos de autonomia e territorialidade. A autonomia desenvolvida pelas

comunidades aparece associada à quebra de ciclos econômicos na região, que se apoiavam no uso

do trabalho escravo. Ao passo que os grandes produtores se enfraqueciam politicamente devido

ao declínio econômico de suas atividades, a população negra liberta ou mesmo em estado de

fuga, consolidava estruturas baseadas em unidades familiares que produziam tanto para a

subsistência, como para a pequena comercialização, estabelecendo localmente, vínculos políticos

e sociais (SUNDFELD, 2002, p.78).

A territorialidade, por sua vez, é representativa das formas de uso e ocupação territorial

mantidas por essas comunidades. Essa territorialidade se conforma pela passagem da condição de

escravo a camponês (CARRIL, 2006, p.160; CHAGAS, 2001, p.4); ela incorpora aspectos de um

modelo de reprodução social intrinsecamente associado às condições ambientais do território.

“No vale do Ribeira, a presença de remanescentes de Mata Atlântica propiciou a

prática do extrativismo, como a extração do palmito e a existência de terras abundantes

e livres forneceu as bases, seja para a auto-sobrevivência ou para a comercialização,

bem como para a reprodução física e cultural desses grupos e seus modos de vida”

(CARRIL, 2006, p.159).

A construção dessa territorialidade, nos moldes em que se deu, está diretamente

relacionada ao estado de conservação ambiental da região. Carril (2006, p.161) e Carvalho (2006,

p.15), ambas as autoras que trabalharam no Vale do Ribeira, defendem a idéia de que as formas

de manejo e uso dos recursos naturais empreendidas historicamente pelas comunidades

garantiram em parte, a conservação do ecossistema de mata atlântica nessa região do estado.

Contraditoriamente, o estado de conservação ambiental na região é, atualmente, um dos

fatores que imprime restrições sobre o acesso das comunidades ao território. Mais do que a

conservação das áreas, as comunidades exercem suas práticas como substrato de um modelo

cultural de reprodução social. Nesse modelo, a terra é recurso e base de conformação de uma

sociedade, em que as comunidades constroem cotidianamente as relações sociais que propiciam a

sua permanência histórica no território.

O reconhecimento quilombola com a conseqüente titulação das terras em favor das

comunidades representa a continuidade da reprodução de territorialidades específicas,

conformadas por sociedades culturalmente diferenciadas. Apoiadas no arcabouço institucional

que lhes possa garantir seus direitos de posse sobre o território, as comunidades se auto-

identificam como quilombolas e remetem sua identidade não só a uma condição histórica

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legítima, mas especialmente ao processo atual de uso do território, processo esse cuja

manutenção é ameaçada por outras concepções culturais de uso territorial.

“Quer dizer, a concepção da terra enquanto território socialmente ocupado é

evidentemente chave para a vida desse grupo. O modo como essas famílias "guardam"

sua memória nessas estruturas narrativas, inscritas sobre o território, está intimamente

relacionado com a sua capacidade de imaginar o futuro, a partir da sua própria

condição de existência. Neste sentido, de fato, é importante considerar que dispor deste

território representa apropriar-se da própria história do grupo, das relações de

lealdade e solidariedade, do parentesco, da religiosidade, da ritualidade festiva e das

expectativas futuras projetadas sobre ele” (CHAGAS, 2001, p.15).

Dessa forma, parece fundamental que as instituições responsáveis pelo processo de

reconhecimento e titulação das comunidades, ao percorrerem o trajeto de reconstrução

antropológica da identidade quilombola das comunidades pleiteantes, possam também reconhecer

a natureza e a legitimidade dos pleitos. Os aplicativos jurídicos que encerram visões enrijecidas,

baseadas em conceitos restritivos e descontextualizados, não apreendem a dinâmica social que

historicamente dá conformidade a uma cultura, cuja forma de manifestação se pretende

resguardar.

A garantia dos direitos, portanto, está sujeita à consideração da contemporaneidade da

identidade construída. No caso das comunidades do Vale do Ribeira, a identidade se manifesta

pela defesa do território e das condições materiais de propagação de uma cultura. As

comunidades de André Lopes e Sapatu, inseridas nesse contexto, tiveram seus RTC concluídos

no ano de 2000, a partir do que foram formalmente reconhecidas como remanescentes de

quilombos.

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Figura 2. Mapa de localização do município de Eldorado no estado de São Paulo

Elaboração: Danúbia Caporusso (2008).

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Capítulo 5 – Histórico da ocupação negra regional: origem dos bairros de André Lopes e

Sapatu

O processo histórico de formação das comunidades está especialmente vinculado à

seqüência de atividades econômicas desenvolvidas na região e às formas como as comunidades

se manifestaram frente a elas.

Ivaporunduva novamente tem papel central no entendimento da formação histórica das

comunidades do Vale do Ribeira; ela é considerada a comunidade negra mais antiga da região.

Sua origem está ligada à atividade mineradora praticada na região, mais expressivamente durante

os séculos XVII e XVIII. Segundo registros históricos que compõem o laudo antropológico do

Ministério Público Federal, Ivaporunduva foi o lugar que abrigou o maior contingente

populacional entre mineradores e seus escravos, antes mesmo da fundação de Xiririca, atual

município de Eldorado e primeiro povoado do interior da região (ANDRADE; PEREIRA;

ANDRADE, 2000, p.66).

Depois de quase dois séculos de exploração, a mineração entrou em declínio na região e

os mineradores, gradualmente, abandonaram Ivaporunduva. Esse abandono deu-se inclusive em

relação aos trabalhadores escravos que se instalaram no lugar, através de cessões de terras de seus

antigos senhores ou simplesmente pela ocupação da área.

Essa ocupação se deu pela manutenção de pequenas roças de subsistência, inicialmente

criadas para abastecer os trabalhadores da mineração, mas que com o tempo, adquiriu relativa

estabilidade, transformando ex-escravos em pequenos produtores. A estabilidade da atividade

agrícola foi responsável por garantir certo equilíbrio quanto à dimensão da ocupação territorial

pelas comunidades negras e pelas propriedades que se utilizavam do trabalho escravo

(ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.68).

À medida que a população branca saía da região, a população negra ampliava sua

ocupação em Ivaporunduva. Esse fato causou repercussão regional, tornando Ivaporunduva

conhecido como povoado habitado por negros. A maioria negra e a fundação da Capela Nossa

Senhora do Rosário dos Pretos passou a atrair populações de negros libertos e fugidos que se

instalavam ao redor da capela, nos interiores e no entorno do povoado.

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“Instalados nas margens tributárias do Ribeira, em parcelas livres de terra,

complementavam a atividade agrícola por meio da caça, pesca e coleta e isolaram-se

em núcleos familiares que compunham grupo mais extenso unido por laços de

solidariedade próprios das relações de parentesco, compadrio e vizinhança.

Construíram uma identidade própria baseada na origem comum, na cor da pele e

sobretudo, na devoção à Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos” (ANDRADE;

PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.68).

Destacam-se, no caso de Ivaporunduva, as relações sociais desenvolvidas pela população

negra durante o período minerador. A abrangência de sua presença, compondo ao mesmo tempo,

relações livres e escravistas favoreceu a consolidação dessa população como grupo social,

integrado à rede de relações sócio-econômicas da região. Os pequenos produtores negros faziam

parte da economia regional e alimentavam o sistema de trocas fornecendo produtos para o

consumo local, além disso, eram considerados reserva de mão-de-obra para o trabalho nas

fazendas da região. Com isso, adquiriram autonomia e certo reconhecimento como moradores da

região, tendo inclusive registros de terras em seu favor (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE,

2000, p.73).

A crescente estabilidade alcançada pela população negra, somada ao seu domínio sobre as

técnicas de navegação propiciaram sua expansão para além do povoado de Ivaporunduva. Essa

expansão se deu por meio da ocupação das áreas dispostas às margens dos recursos hídricos da

região, sendo esses os principais canais de contato e comunicação entre os povoados negros que

aí se instalaram (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.74).

Os povoados negros formados na região eram compostos não só por populações de ex-

escravos, mas por grupos de pequenos produtores em busca de terras e por pequenos grupos

familiares que buscavam sua inserção na atividade de cultivo do arroz, em ascensão na região já

no século XIX. A ocupação das áreas girava em torno da necessidade de terras para cultivo,

empreendida tanto por fazendeiros, como por negros sem vínculo com o sistema escravista.

Segundo informações do laudo antropológico apresentadas no RTC de André Lopes, houve

diminuição considerável dos proprietários de terras que se utilizavam do trabalho escravo na

passagem do ciclo minerador para o ciclo rizicultor (STUCCHI, 1998 apud ITESP, 2000, p.13).

A participação dos pequenos produtores negros também é importante durante o ciclo

rizicultor. Além da produção de gêneros variados destinados à subsistência e ao mercado

regional, através da produção de arroz, esses produtores estabeleciam relações comerciais com o

mercado mais amplo, visto que o arroz era destinado ao abastecimento de províncias brasileiras,

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entre elas a do Rio de Janeiro, capital nacional na época (STUCCHI, 1998 apud ITESP, 2000,

p.13).

De forma geral, o início da ocupação negra no Vale do Ribeira, destacadamente os

séculos XVIII e XIX, demonstra que a população negra não se manteve em estado permanente de

isolamento social, tendo em vista sua condição de escravos ou ex-escravos. Em certos momentos,

os núcleos e povoados negros instalados se consolidaram como grupo de referência dentro da

estrutura social regional, fosse pela pequena produção de excedentes agrícolas, pela

disponibilidade de mão- de-obra ou pelos conhecimentos de navegação dos quais eram

detentores. Além disso, a ocupação negra na região teve origens variadas, abrangendo grupos

relacionados ou não ao sistema escravista.

Especialmente quanto às formas de reprodução social das comunidades negras do Vale do

Ribeira, destaca-se a expansão e a fixação territorial das populações a partir da composição de

laços de parentesco entre membros dos primeiros povoados, como no caso de Ivaporunduva e

São Pedro, e negros que chegaram mais tarde à região. Essa dinâmica resultou na formação de

diversos bairros existentes atualmente, dentre eles, André Lopes e Sapatu.

Origem do bairro de André Lopes

Segundo dados do RTC de André Lopes, a formação desse bairro deve ser compreendida

a partir de duas perspectivas principais: “1. A expansão territorial dos grupos negros

estabelecidos no entorno, como Ivaporunduva, São Pedro (antiga Lavrinha) e Nhunguara; 2. As

fugas de recrutamento para a Guerra do Paraguai” (ITESP, 2000, p.22).

Considerando-se a primeira perspectiva, destaca-se a existência de estreitos laços de

parentesco e relações sociais mantidos entre as comunidades vizinhas de André Lopes e

Nhunguara, que remetem a formação de ambas a uma origem histórica comum. Os bairros são

territorialmente contíguos e quando se trata da ocupação de Nhunguara, esse processo acaba se

estendendo naturalmente às áreas de André Lopes. Contudo, ressalta-se a existência de limites

territoriais tácitos já estabelecidos visto que o povoado de André Lopes já era conhecido como tal

no século XVIII, antes das principais incursões realizadas na área por moradores advindos de

Nhunguara.

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No caso de Nhunguara, algumas famílias são destacadamente citadas como responsáveis

por sua formação e a ocupação empreendida por estas famílias abrangia terras de André Lopes a

partir do século XIX. Segundo relatos apresentados pelo laudo do Ministério Público Federal, os

antepassados de Tomé Pedroso de Moraes, descendente de uma família instalada na Barra de

Nhunguara, seriam os responsáveis pela “abertura dos lugares” em Nhunguara e André Lopes

(ITESP, 2000, p.83). Tomé Pedroso de Moraes teve duas mulheres, Joana Dias de Ivaporunduva

e Donária Arcângela Furquim de São Pedro, povoados de formação mais antiga na região.

Donária Arcângela Furquim teve antepassados com importante função para a expansão da

ocupação negra na região. Ela foi neta de Bernardo Furquim, responsável pela formação das

atuais comunidades de Galvão e São Pedro, e foi filha de João Vieira, procedente de Nhunguara,

cujos familiares são reconhecidos pela formação da comunidade de André Lopes.

O tronco dos Vieira, composto por inúmeros irmãos, residia em grande parte em áreas de

Nhunguara. Conta-se que a partir de 1830, os primeiros descendentes dos Vieira, deslocando-se

para o interior de Nhunguara, acabaram ocupando áreas de André Lopes. Essa ocupação está

diretamente relacionada ao recrutamento de combatentes para a Guerra do Paraguai, segunda

perspectiva a ser considerada no processo de formação do bairro (ITESP, 2000, p.28).

Com o advento da Guerra do Paraguai, aumenta a pressão pelo alistamento de

combatentes e muitos homens são recrutados à força pelo exército, que incluía menores de 10 a

17 anos entre os alistados. O primeiro registro de alistados de Xiririca apresentou sete voluntários

em 1965, com uma desistência posterior no mesmo ano. Já em 1966, o município apresentava 54

recrutados. O baixo número de recrutados, somado a uma epidemia de cólera que vitimou quase

300 pessoas na época, despertou a atenção para o recrutamento de homens dos povoados negros

da região.

Essa atenção voltou-se especialmente para homens solteiros e sem propriedades de terras,

negros e descendentes, livres ou libertos que não possuíssem nenhum vínculo empregatício. Esse

fato somava-se ainda às preocupações dos poderes locais com o crescimento da população negra

na região, alvo de constantes recriminações sociais, mesmo considerando sua contribuição para a

produção agrícola local (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.85). Diante da

possibilidade de recrutamento, muitos negros refugiaram-se em possíveis esconderijos na região.

Esse é o caso da ocupação da atual Caverna do Diabo. A própria abertura da caverna foi

resultado da busca por abrigos na época da Guerra do Paraguai. O feito é atribuído a Domingos

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Vieira Dias, irmão de João Vieira. De acordo com o RTC de André Lopes, há relatos de que os

irmãos Vieira chegaram a ir para a guerra, e conseguindo escapar, se instalaram nas imediações

da caverna; nessa ocasião teria se dado a descoberta da gruta (ITESP, 2000, p.28).

A partir daí, há relatos de ocupação da área para a construção de roças e a instalação de

famílias. Com o passar do tempo e o término da guerra, os foragidos se tornaram ocupantes e

passaram a utilizar a caverna como depósito para a produção de grãos (ITESP, 2000, p.28). O

episódio da guerra, contudo, teve forte influência na vida dos moradores desse povoado. Algumas

famílias passaram a se autodenominar Paraguaia, uma alusão ao evento que envolveu alguns de

seus membros como fugitivos ou como combatentes (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE,

2000, p.92).

“Ocupando a condição de nome de família, a menção transforma-se numa referência de

caráter social que agrega grupos familiares diferentes em torno de uma mesma origem

histórica e social. (...) Estabeleceu-se como marca social a partir de processos de fuga

bem situados no tempo, revelando que os negros ocupavam uma posição, de certa

maneira frágil ou tensa, na estrutura social, ainda que fossem reconhecidos como livres

ou libertos”(ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.92).

A comunidade continuou a se expandir a partir da instalação de outras famílias e de suas

respectivas áreas de produção. No RTC de André Lopes constam relatos sobre a forma como os

moradores procediam ao fazer suas roças. Os limites territoriais ocupados pelas famílias não

eram rigidamente fixados, mas giravam em torno das necessidades das mesmas. O critério de

ocupação essencial era a possibilidade de abertura das capuavas, as roças de subsistência das

famílias. Ocupando dois ou três alqueires de área, as famílias se estabeleciam e criavam

acampamentos (ITESP, 2000, p.30).

Esse processo, chamado acamponesamento no relatório, deu seqüência à formação dos

atuais bairros das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (ITESP, 2000, p.31). Os

depoimentos dos moradores no relatório demonstram que a construção de uma roça dependia

mais da disponibilidade do sujeito do que da disponibilidade de áreas. As famílias tinham certa

autonomia para abrir suas roças em áreas desocupadas e esse processo se perpetuava com as

gerações seguintes; após trabalhar por alguns anos com os pais, o homem, mesmo solteiro,

construía e cuidava de sua própria roça.

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Origem do bairro de Sapatu

A formação do bairro de Sapatu é atribuída ao processo de expansão territorial das

comunidades negras em busca de terras agricultáveis. Essa necessidade aumentou com o declínio

da atividade mineradora e a ascensão da atividade rizicultora, consolidando o Vale como região

produtora e exportadora de cereais e as comunidades negras, como pequenos produtores rurais

(ITESP, 2000, p.31).

No processo de ocupação de Sapatu, as referências aos antepassados vinculam essa

comunidade a mesma rede de parentesco que envolvia as principais comunidades negras de seu

entorno. Destaca-se a instalação de Zeferino Furquim, filho de Bernardo Furquim da comunidade

de São Pedro. Zeferino teria se instalado em Sapatu ainda no século XVIII e se unido a duas

mulheres, Paula e Maria (ITESP, 2000, p.32). Um de seus filhos, chamado Júlio Furquim, teria

comprado terras de José Júlio da Silva, um comerciante negro, proprietário de terras adquiridas

oficialmente em doação pelos serviços prestados durante a Guerra do Paraguai e que vivia na

passagem para São Pedro (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.81; ITESP, 2000, p.32).

A guerra também repercutiu fortemente nessa comunidade, com a ida de moradores aos

campos de combate, seguida de voltas em fuga e busca por esconderijos na região. Dentre a

comunidade, também se apresentam famílias de sobrenome Paraguaia (ITESP, 2000, p.32). No

caso de Sapatu, ainda é feita menção sobre o trabalho escravo associado às fábricas de açúcar e

aguardente (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.81; ITESP, 2000, p.37)

A história de formação de Sapatu aparece muito mais breve nesse caso em vista do

contexto de formação regional traçado anteriormente, através das histórias de Ivaporunduva e

André Lopes. Esse fato é sintomático das raízes comuns que compõem o histórico de formação

da região, ademais das narrativas particulares de cada bairro. A atividade de mineração e seu

declínio, a seqüência do ciclo rizicultor, a Guerra do Paraguai foram fatores que influenciaram,

ao mesmo tempo, a dinâmica de formação de inúmeros povoados negros na região.

A tentativa de se encontrar uma origem exata, definida temporal e espacialmente nesse

processo, é infrutífera. Mas pode-se recorrer mais uma vez ao que é comum e que caracteriza de

modo geral, as formas de ocupação territorial dessas comunidades.

Como já destacado durante o histórico de André Lopes, o método de formação inicial dos

povoados estabeleceu-se em torno da possibilidade de construção de roças de subsistência que

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atendessem às necessidades materiais dos grupos. Esse processo aconteceu concomitante ao ciclo

minerador, visando a própria manutenção dos trabalhadores e mais especialmente a partir do

declínio da atividade e com a entrada do cultivo de arroz na região.

O cultivo de arroz por sua vez, parece ter imprimido certa dinâmica ao processo de

expansão da ocupação negra. Nesse caso, a itinerância da prática agrícola é estimulada pela

demanda por áreas promovida pela própria atividade e favorecida pela disponibilidade de terras

desocupadas na região. O caráter de itinerância se demonstra também pelas constantes idas e

vindas, entre povoados, de alguns dos principais antepassados das comunidades que se tornaram

lideranças no processo de formação dos bairros. Frequentemente, esses sujeitos aparecem

ocupando áreas em diversos bairros, desposando mulheres e deixando descendentes.

Esse é o caso, por exemplo, de Bernardo Furquim, escravo que teria chegado juntamente

com mais um grupo formado por mulheres e homens e que encontrou um grupo de ex-escravos já

instalados na atual comunidade de Pedro Cubas. Esse grupo teria indicado um lugar para o

acampamento do grupo recém-chegado, atual comunidade de São Pedro e mais tarde lhes

fornecido mudas e sementes para o cultivo de roças (CARVALHO, 2006, p.27).

Bernardo Furquim é tido como responsável pela formação de dois bairros na região, os

atuais São Pedro e Galvão. Consta que ele teve duas mulheres e vinte e quatro filhos; seus filhos

por sua vez, parecem ter dado seqüência à expansão territorial do tronco familiar, segundo o

relato: “(...) em Pilões tem Furquim, em Maria Rosa tem Furquim. Por causa dessa descendência

grande esparramou Furquim, vai indo, vai indo e vai esparramando um tanto para lá, um tanto

para cá. Em serra acima tem Furquim” (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.76).

Figuras como Bernardo Furquim deram importante contribuição para a expansão da rede

de parentesco na região; alguns de seus descendentes diretos aparecem na composição

genealógica das comunidades de André Lopes e Nhunguara. Uma das filhas de Bernardo

Furquim teria se casado com João Vieira, procedente de Nhunguara.

Essa dinâmica demonstra também que a disponibilidade de terras garantia relativa

liberdade para que os grupos se instalassem temporariamente e migrassem mais tarde em busca

de novas áreas. A itinerância somada às alianças de casamento estabelecidas entre os grupos

delineou um tipo de ocupação territorial característica na região que vincula o seu processo de

povoamento à expressiva presença da população negra.

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“Os levantamentos genealógicos permitem identificar padrões de fixação reiterados ao

longo do tempo que fundam uma sociabilidade que relaciona, de maneira específica, os

vários bairros negros do Vale do Ribeira formando uma continuidade sócio-histórica-

cultural” (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.76).

A expansão territorial dos grupos, apoiada na pequena produção agrícola, garantiu

estabilidade para a sua permanência na região. As roças particulares atendiam, em grande

medida, as necessidades familiares. A produção gerada, somada à criação de animais eram

suficientes para prover as famílias, inclusive quanto a outros produtos como sal, querosene e

tecidos que eram negociados em troca da produção familiar. Os mutirões para colheitas ou

plantio também são citados como muito comuns naquela época. Eles inclusive foram fonte de

integração entre moradores de povoados diferentes, como demonstra Carvalho (2006, p. 29) ao

descrever as estratégias de ocupação empreendidas por Bernardo Furquim na formação dos

bairros de Galvão e São Pedro.

A expansão dos grupos negros, sua participação na economia regional e sua inserção na

vida social da região, não passaram despercebidas às autoridades locais que desenvolveram

estratégias para conter esse movimento. A principal delas parece ter sido o recrutamento de

homens negros, vistos como população potencialmente apta para lutar na Guerra do Paraguai

(ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.89).

Contudo, a população negra desenvolveu, em resposta, estratégias de resistência que

conforme visto, ampliaram ainda mais sua ocupação pela região. A resistência aos processos de

perseguição e discriminação social aparece como laço que também unifica as comunidades

negras em torno de uma história coletiva. É notório que uma espécie de origem comum, fosse

pelo passado escravista ou mesmo pela etnia negra, facilitou em alguma medida, o adensamento e

as formas de relacionamento entre esses grupos.

As relações mantidas entre os grupos estavam fundamentadas em laços de parentesco e

solidariedade que conformaram uma cultura específica como fator de reprodução social na

região. Frente ao contexto da época, essa população consolida formas de relacionamento que a

define como grupo social, construtor de uma territorialidade específica em relação a outros

grupos sociais, já que como visto, os povoados negros mantiveram um regime de coexistência

com a sociedade regional. Com o passar do tempo, é possível identificar as formas de propagação

da construção histórica erigida por esses grupos, presente e manifesta nas formas atuais de

expressão cultural das chamadas Comunidades Remanescentes de Quilombos.

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Abaixo, segue a transcrição de parte das conclusões apresentadas no laudo antropológico

produzido para fins de reconhecimento de algumas comunidades do Vale do Ribeira:

“Concluímos portanto:

que as comunidades rurais negras de Ivaporunduva, São Pedro, Pedro Cubas, Sapatu,

Nhunguara, André Lopes, Maria Rosa e de Pilões são remanescentes de quilombo por

guardarem um vínculo histórico com comunidades de antigos quilombos; e que todas

elas fazem parte de uma „comunidade‟ em sentido mais amplo, formada pelos bairros

negros do vale do rio Ribeira do Iguape, que guardam igualmente, em seu conjunto, um

vínculo histórico com comunidades de antigos quilombos, uma vez que, tanto quanto as

anteriores, têm sua origem vinculada à emergência, nos séculos XVIII e XIX, de um

campo de relações sociais formado eminentemente por populações negras, inclusive

quilombolas, que se constituiu em conjunto com a ocupação territorial negra no vale,

possibilitando sua continuidade” (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.18).

Perguntado sobre o significado do reconhecimento da identidade quilombola, Sr. Pedro

Pereira, morador e liderança da Comunidade de Sapatu, conclui:

“(...) o reconhecimento já é um objetivo né, que dá mais uma firmeza pra gente como

comunidade, né, a gente brigar pra que seja respeitado esses direitos nossos de ter o documento

da terra pra comunidade, porque a gente tem sofrido tanto né, a gente até tem comentado que já

este ano já vai pra 507 anos de luta né, a gente vê que várias, vários tipos de posição que vem

pro Brasil, eles é respeitado o direito deles de sobreviver e até de conseguir patrimônio dentro

do Brasil e os negro até agora né, tá sendo difícil pra ser considerado e respeitado esse direito

que nós temo, agora garantido por lei né, que não foi o governo que colocou essa lei, foi o

próprio, a própria organização do povo negro né que fez valer essa lei (...)” (Entrevista em

03/01/2007).

Diante do histórico apresentado, buscamos identificar o significado e o teor social

construído em torno da identidade quilombola. O passado, como se verá, não está tão desconexo

com o presente, e a condição de resistência e afirmação política encampada pelas comunidades é

ainda hoje muito atual.

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Figura 3. Placa para visitantes na comunidade de André Lopes

Foto: Ivie Santana (2008)

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Capítulo 6 – Territorialidade como expressão material de uma identidade cultural

Quando se trata de analisar a territorialidade construída por uma população ou uma

comunidade, especialmente considerando-se que essa construção se dá em torno de um modo

específico de apropriação do espaço, é necessário identificar os componentes através dos quais a

materialização espacial ocorre.

A territorialidade, constituída por formas de produção e de sociabilidade, se torna

específica quando manifesta concepções diferenciadas, norteadas pela atribuição de outros

critérios de valor aos recursos territoriais, normalmente submetidos a um modelo hegemônico de

apropriação. Sua especificidade se dá à medida que essa diferenciação é apreendida na relação

dos sujeitos que atuam na construção do território. Sendo então contrária ou simplesmente

divergente quanto à natureza de conformação espacial, a territorialidade é classificada como

específica, diferenciada e torna-se assim, representativa de uma lógica cultural que se expressa

dialeticamente em relação a outras territorialidades existentes.

O Vale do Ribeira, caracterizado por um contexto regional que alia conservação ambiental

e estagnação sócio-econômica dentro do Estado de São Paulo, abriga territorialidades específicas,

classificadas inclusive segundo alguns indicadores de desenvolvimento; o Vale do Ribeira

paulista é considerada a região portadora de menor IDH do estado.

Por meio de outra perspectiva, buscamos analisar os fatores que compõem as

territorialidades construídas pelas comunidades remanescentes de quilombos de André Lopes e

Sapatu. Os critérios de análise são as formas de reprodução social dessas comunidades, situadas

frente ao contexto regional do qual fazem parte.

Os Relatórios Técnicos Científicos de André Lopes e Sapatu classificam as comunidades

negras do Vale do Ribeira como camponesas (ITESP, 2000, p.2; ITESP, 2000, p.4). Para

justificar tal conceito, se utilizam de referências advindas das Ciências Sociais que consideram

fundamentalmente o modo de apropriação espacial e de organização social das comunidades.

Nesse sentido, ressaltam a cultura de subsistência com baixo impacto ambiental, baseada no

trabalho familiar e com pouca participação no mercado através da produção de excedentes.

O caráter camponês, característico do compartilhamento do território e da expressão de

uma identidade (ITESP, 2000, p.9), está associado especialmente às formas como esses grupos

concebem o uso da terra e dos recursos dela provenientes. As relações, nesse caso, se baseiam no

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valor de uso atribuído a terra enquanto matéria-prima e meio de produção e não no valor de troca,

enquanto recurso para a comercialização (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.120).

Os estudos sobre comunidades camponesas sugerem que suas práticas de apropriação

territorial não se enquadram dentro dos conceitos e critérios da economia capitalista de mercado,

mas são conduzidas segundo prioridades outras como a satisfação das necessidades dos grupos

domésticos, unidade reprodutora essencial. Mesmo os excedentes comercializados como parte de

uma economia de mercado destinam-se a atender a esse princípio (ANDRADE; PEREIRA;

ANDRADE, 2000, p.123).

Essas economias são também fundamentadas nas relações de parentesco e solidariedade

mútua mantidas entre os núcleos familiares. Essa condição reitera a autonomia desenvolvida por

esses grupos e estabelece um regime comunal de uso da terra constituído através do trabalho, da

reprodução familiar, das festividades e de outros aspectos de sociabilidade. Destaca-se inclusive

que nessas sociedades não há dicotomização entre espaço e tempo de trabalho e lazer como nas

sociedades contemporâneas. Os espaços, além de comuns para ambas as práticas, abrigam a

continuidade do tempo de trabalho e de lazer como momentos intrinsecamente ligados na

experiência de vida dessas comunidades (ITESP, 2000, p.15).

Um exemplo dessa relação está na prática dos mutirões. Essa atividade, freqüentemente

praticada na região até algumas décadas atrás, caracterizava o exercício do lazer em decorrência

do exercício do trabalho. “O dono da roça não pagava os participantes do trabalho com

dinheiro, mas com refeições e baile no final do dia. Dessa forma, todas as famílias recebiam

ajuda dos demais e, em contrapartida, todos tinham a obrigação de ajudar sempre que alguém

convocava um mutirão” (ITESP, 2000, p.16).

O modelo comunitário de uso da terra dessas populações, inclusive denominado “terras

de preto” consiste na “existência de terras de uso comum, com parcelas indivisas que são

transmitidas de geração em geração ao conjunto de moradores de uma comunidade rural”

(ARRUTI, 2003, p.10). O uso comunal, contudo, admite a existência concomitante de usos

individualizados sobre a terra, correspondentes às áreas de domínio familiar. A prática do mutirão

expressa bem essa dinâmica entre uso individual e coletivo; ao passo que uma família em

particular reúne outras famílias para auxiliarem na colheita ou no plantio de sua produção, ela se

compromete em fornecer auxílio recíproco quando essas outras famílias necessitarem.

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A terra, o trabalho e o lazer, recursos não mercantilizáveis, definem-se como expressão de

existência dessas comunidades. Os relatos sobre a livre ocupação das terras, itinerante e

temporária, demonstram que os limites de fixação territorial mantidos pelas comunidades não se

estabeleceram rigidamente, mas a condição de acesso a terra para a sua reprodução social

constituiu-se como necessidade permanente.

“Esse modo de apropriação, por um lado, comporta a idéia de um direito

individualizado sobre a terra e, por outro, esse direito só se torna possível a partir da

existência de um território que contenha “áreas de reserva”, dada a plasticidade da

apropriação decorrente da mobilidade das casas e das roças. Trata-se de um contexto

rural de apropriação precária, uma vez que está apoiada na posse. São posses

individuais que fazem parte de um território maior e “comunal” referenciado a um

ancestral fundador” (ITESP, 2000, p.18).

A posse sobre o território é legitimada pelas formas de ocupação das famílias sobre a

terra. A terra é o elemento onde se fundamenta a construção da cultura camponesa (ITESP,

2000), já a cultura se constrói a partir da organização social que as comunidades imprimem ao

espaço, dando conformidade ao território, a própria territorialidade. Sendo assim, a posse

territorial constitui justamente a possibilidade de expressão material dessa cultura.

Em seu estudo sobre a comunidade de Ivaporunduva, Queiroz (1983) observa

inicialmente que não fosse pela marcada presença da etnia negra entre os habitantes da

comunidade, em termos de práticas culturais, ela se equiparava às comunidades dos bairros rurais

paulistas estudados anteriormente por outros autores12 (QUEIROZ, 1983, p.31). Adotando-se a

cultura caipira como referência, o autor destaca a relativa homogeneização da condição sócio-

econômica das famílias e a importância de determinadas práticas sociais para a reprodução de

cada núcleo em si. Descreve sobre eles: “São traços característicos dessas unidades de

povoamento e de seus componentes o seu acentuado isolamento, a posse e a disponibilidade de

terras, o trabalho doméstico, o auxílio vicinal e a ampla margem de lazer” (QUEIROZ, 1983,

p.47).

O autor atribui o isolamento identificado na comunidade de Ivaporunduva tanto às

condições sócio-econômicas da região, como a uma possível estratégia de constituição da

comunidade ao agregar o elemento negro e rural como essencial na sua formação (QUEIROZ,

1983, p.32).

12

Queiroz se refere aos estudos empreendidos por Cândido (1977) e Pereira de Queiroz (1967).

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Sobre a condição sócio-econômica das comunidades, a relativa homogeneização citada

compreende diferenciações entre os núcleos familiares, no entanto, essa condição as classifica, de

forma geral, como produtoras de economias marginais, subdesenvolvidas e primárias em termos

de tecnologia e produção de bens (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.126). Essa

análise, feita com base nos critérios de avaliação da economia capitalista, não leva em conta que

esse tipo de produção social abrange elementos simbólicos onde o sistema de trocas envolve

critérios mais amplos referentes à autonomia, ao parentesco, à solidariedade, à identidade coletiva

que conforma uma territorialidade específica, produto da base material combinada com a

organização social orientada por esses princípios.

“Aquilo que, do ponto de vista do Estado e da economia coloniais/nacionais, é um

processo de decomposição, representa, na verdade, para aqueles que vivenciam o

processo do ponto de vista das comunidades em si mesmas, a constituição de

especificidades sócio culturais, cuja mais evidente distinção em relação aos núcleos

populacionais da sociedade abrangente é o grau de autodeterminação na gestão de seus

próprios destinos, que segue a par com suas formas peculiares de ocupação territorial,

com sua organização social distintiva e com um conjunto de práticas econômicas

diferenciadas, por sua própria natureza de subsistência, daquelas da economia

colonial” (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.125-126).

Queiroz (1983, p.133) por sua vez, aponta duas perspectivas para o tratamento desta

questão. A primeira trata da hipótese de que essas economias, teoricamente primárias e carentes

de recursos, revelariam ao contrário, uma situação de abundância em vista da compatibilidade

entre a baixa produção e o baixo consumo. Por outro lado, a mesma situação encerraria, segundo

o autor, o risco de uma economia de poucos recursos se aproximar de uma situação de real

precariedade das condições de vida e de atendimento das necessidades básicas das comunidades.

O autor conclui, no caso de Ivaporunduva, que as práticas sociais comunitárias, tais como

os mutirões e as festividades operariam como mecanismos que visam garantir, através da

integração e da associação dos moradores em atividades coletivas, o acesso aos bens materiais de

forma eqüitativa a toda a comunidade (QUEIROZ, 1983, p.133).

As comunidades de André Lopes e Sapatu estão situadas nessa mesma condição de

classificação. Baseadas no trabalho familiar, as comunidades exercem práticas agrícolas voltadas

ao atendimento do próprio consumo, além de práticas extrativistas e outras atividades para a

complementação da renda doméstica, necessária para a aquisição de bens não produzidos por

elas.

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A produção agrícola é variada, abrangendo culturas temporárias tais como arroz, milho,

feijão, cana-de-açúcar, e culturas de frutas, tais como banana, abacaxi, maracujá, entre outras.

Também são cultivadas algumas hortaliças e vegetais silvestres, tais como coentro e gengibre. A

produção agrícola, especialmente a relacionada às culturas temporárias é praticada sob o regime

de coivara. Esse regime compreende um sistema de rodízio de culturas e espaçamentos de tempo

para o uso e aproveitamento da terra, compreende também técnicas tradicionais de preparo e

plantio.

“A roça era aberta antes do início das chuvas, em local de mata densa, onde o „cabeça‟

da família delimitava um trecho (entre 1 ha. e 6 ha., dificilmente maior) e fazia

derrubada da vegetação rasteira com o auxílio da força ativa de seu grupo doméstico,

normalmente os filhos maiores. A vegetação rasteira e de pequeno porte era então

empilhada em locais estratégicos do terreno e deixada por algum tempo até que secasse.

(...) Algum tempo depois, procedia-se à derrubada das árvores maiores, de acordo com

o planejamento logístico, para que a derrubada de umas pudesse auxiliar na queda das

outras. Os troncos maiores eram deixados no terreno, semi-queimados e o plantio era

feito imediatamente depois das queimadas das pilhas de vegetação derrubadas, agora

secas” (LA – MPF, 2000 apud ITESP, 2000, p.26).

Depois desse preparo, os produtos eram plantados, intercalando-se as culturas conforme o

tempo de colheita. As roças localizavam-se com certa distância das moradias, devido entre outros

fatores, à necessidade de deslocamento para a construção de novas roças, visto que as áreas

previamente utilizadas estariam em período de descanso.

“A terra era posta em período de descanso por períodos que chegavam a doze anos,

mas de forma nenhuma, inferiores a três para permitir a formação de uma cobertura

vegetal denominada, na região, capoeira ou capuava, que reconstitui os nutrientes do

solo, condição essencial para que ele possa ser novamente utilizado” (LA – MPF, 2000

apud ITESP, 2000, p.27).

A esse sistema de manejo agrícola se atribui justamente o caráter conservacionista das

técnicas comunitárias. O preparo da terra, tal como é feito garante a preservação dos nutrientes do

solo, fator essencial para o sucesso das plantações. O tempo de descanso por sua vez, é necessário

porque a terra utilizada já não garantiria uma boa plantação, além de se tornar inutilizável para a

função de plantio a partir de seu uso ininterrupto. Ressalta-se ainda, o fato de que a ocupação das

terras para uso agrícola das comunidades coibiu a expansão do uso agrícola dos grandes

produtores da região (GUANAES el alli, 2004, p.267), empreendida com técnicas mais

agressivas ao ambiente.

Nota-se que as práticas comunitárias não foram classificadas pelas próprias comunidades

como conservacionistas, mas são concebidas dentro da lógica de manutenção de reprodução

social das mesmas. Sendo assim, a conservação dos recursos naturais encerra a possibilidade de

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preservação de seu próprio modo de vida. Queiroz (1983, p.128) defende que, a despeito das

soluções técnicas dessas comunidades serem consideradas ineficientes, elas demonstram perfeita

adequação para a exploração dos recursos naturais disponíveis, especialmente porque se baseiam

no conhecimento empírico dos mecanismos ambientais.

É importante relativizar a perspectiva anterior, visto que o sistema de manejo comunitário

dos recursos naturais é considerado conservacionista dentro de determinada escala de uso; a

agricultura empreendida com a técnica das queimadas, como fazem as comunidades, não seria,

em uma escala de uso intenso, admitida como prática conservacionista. Além disso, a exemplo de

atividades extrativistas como a retirada do palmito juçara, as comunidades, dentro de

determinado contexto social, conforme se verá mais adiante, acabam empreendendo práticas

nocivas à conservação da espécie.

Além da prática agrícola, as comunidades possuem criações de pequeno porte, tais como

porcos, galinhas, patos, cabritos, entre outros. Essas criações destinam-se à complementação da

dieta alimentar das famílias e à comercialização, por troca ou venda, para a aquisição de outros

bens, pagamento de despesas externas, entre outros (LA – MPF, 2000 apud ITESP, 2000, p.24).

Destinada também à complementação da dieta alimentar das famílias, encontra-se a pesca,

praticada nos córregos e rios que banham os bairros (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000,

p.128).

Esse modelo de reprodução social que envolve toda a família (QUEIROZ, 1983, p.56-57)

é definido pela divisão de tarefas que incorpora o pai como chefe da unidade familiar e

responsável pela abertura e construção das roças juntamente com os filhos homens mais velhos; e

a mãe como responsável pelo plantio e pelos afazeres domésticos. Essa unidade se reproduz com

os filhos mais velhos construindo as próprias roças, sendo casados ou solteiros. Sendo casados,

parece mais comum que as unidades familiares se constituam em torno do núcleo familiar da

mulher, onde o genro auxilia o sogro e mantém suas próprias atividades (ANDRADE; PEREIRA;

ANDRADE, 2000, p.147).

O tempo de trabalho é regido segundo o ritmo imposto pelo calendário agrícola e as

etapas produtivas. Essa dinâmica garante às comunidades períodos seguros de ócio que estariam

relacionados à organização de festividades ou à execução de práticas produtivas complementares

à agrícola.

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Esse modelo de reprodução social, que rege a apropriação do território por meio do

estabelecimento subseqüente das unidades familiares, é característico destas comunidades no

período atual, contudo, algumas dessas práticas vêm sofrendo alterações a partir de alterações do

próprio contexto socioeconômico regional.

Queiroz (1983, p.56) chega mesmo a dizer que esse modelo prevaleceu do período em que

declina a atividade mineradora na região até a metade do século XX, confirmando temporalmente

a passagem das comunidades da condição de escravos a camponeses. A segunda metade do

século XX é especialmente marcada por iniciativas que tiveram como objetivo transformar o

contexto sócio-econômico da região em face de sua situação de atraso e isolamento frente ao

restante do Estado de São Paulo.

Essas iniciativas por sua vez, ao passo em que beneficiaram os núcleos urbanos da região,

impactaram especialmente a população rural, vítima de processos de especulação imobiliária,

promovida pela valorização das áreas através da construção de estradas e da instalação de

serviços de comunicação e abastecimento (QUEIROZ, 1983, p.36). Tais impactos serão

analisados mediante a alteração das condições de reprodução social mantidas pela comunidade.

Os impactos dizem respeito essencialmente a conflitos de ordem fundiária decorrentes da

instalação de infra-estrutura, de novas atividades econômicas e de unidades de conservação

estaduais. De forma geral, apreende-se dessas iniciativas a negligência em relação ao modo de

produção social que as comunidades vêm constituindo historicamente. Algumas das iniciativas

ou a hipótese delas, não apenas comprometem a reprodução das comunidades, como eliminam

sua chance de existência nos territórios que ocupam atualmente.

Nesse sentido, o reconhecimento quilombola é possuidor, fundamentalmente, do caráter

de resistência e afirmação de um grupo social, ademais da identidade histórica e das formas de

classificação cultural aqui identificadas. Ele é o recurso essencial que remete não só à expressão

da posse, mas à condição de propriedade territorial, garantia da livre manifestação de sua

territorialidade.

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Associações de Remanescentes de Quilombos das Comunidades de André Lopes e Sapatu

O bairro de André Lopes localiza-se na zona rural do município de Eldorado, distante

cerca de 50 km do perímetro urbano. Pelo bairro passa a rodovia SP-165 que liga o município de

Eldorado a Iporanga, a mesma estrada que dá acesso à Caverna do Diabo. O bairro foi assim

denominado em referência a uma lenda sobre o naufrágio de um sargento-mor da Ilha de São

Sebastião chamado André Lopes de Azevedo, residente da Freguesia de Tiririca e morto aos 15

de junho de 1764, com cem anos de idade (ITESP, 2000, p.83).

A Associação de Remanescentes de Quilombos da Comunidade de André Lopes iniciou

sua formação durante os anos de 1996 e 1997, mas foi oficialmente criada em 28/08/1998. A

criação foi motivada por uma ação judicial de despejo contra a comunidade, movida por um

senhor que se dizia proprietário de toda a área do bairro. Com o objetivo de se organizar em

defesa própria e com a perspectiva, na época, de ser reconhecida como remanescente de

quilombo, devido ao início dos estudos empreendidos pelo ITESP e pelo MPF, a comunidade

criou a associação.

Segundo o Sr. Adilson Oliveira, morador e liderança de André Lopes, a comunidade

possui cerca de 350 moradores e a associação de moradores possui em média 100 associados. As

formas de ocupação são variadas, abrangendo funcionários públicos, monitores ambientais,

artesãos, comerciantes, contudo, a principal atividade de seus moradores é a roça de subsistência,

com pequeno excedente para a comercialização (Entrevista em 18/07/2008).

A comunidade possui 1 escola estadual que atende alunos do ensino primário ao ensino

médio, a E.E. Maria Antonia Chules Princesa. Possui também 1 centro de artesanato, 1 quadra de

esportes, 1 posto de saúde, 1 centro comunitário que funciona como sede da associação de

moradores e como telecentro improvisado, 3 igrejas e 2 cabines de telefone público.

A área de atendimento à saúde é deficiente, especialmente em relação ao transporte de

pacientes. A cobertura de saneamento básica no bairro também é considerada precária, mais

quanto à destinação do esgoto que ao abastecimento de água. A comunidade é servida por

somente uma linha de transporte particular, que circula 2 vezes ao dia, fazendo o trecho da

comunidade até o município de Eldorado.

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Figura 4. Estrada de acesso à caverna na comunidade de André Lopes

Figura 5. E.E. Maria Antonia Chules Princesa

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Figura 6. Igreja e centro comunitário (ao fundo) de André Lopes

Figura 7. Bairro de André Lopes

Fotos: Ivie Santana (2008)

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O bairro de Sapatu também se localiza na zona rural do município de Eldorado, distante

cerca de 35 km do perímetro urbano e distribui-se ao longo das duas margens do rio Ribeira de

Iguape, por cerca de 5 km. O bairro também é cortado pela rodovia SP-165 (ITESP, 2000, p.31).

Dentro do bairro de Sapatu encontram-se “localidades contíguas distintas” (ITESP, 2000,

p.37), conhecidas como Indaiatuba, Cordas e Sapatu. Em conversa com o presidente da

associação de moradores, Sr. Josias Moreira, ele esclarece que essa divisão territorial é derivada

do fato de que o bairro é cortado por pequenos rios e foi inicialmente classificado segundo os

nomes desses rios. Ele também cita a existência de uma localidade com o nome Cafezal,

enquanto no RTC da comunidade, é citada uma localidade conhecida como Baixio Preto (ITESP,

2000, p.37), ambas pouco mencionadas atualmente. Todavia, essas antigas localidades

conformam um único bairro chamado Sapatu, reconhecido como tal pela administração

municipal de Eldorado e por pessoas de fora da comunidade (Entrevista em 17/07/2008).

O RTC da comunidade apresenta essa forma de classificação territorial, referindo-se à

existência de “sítios”, como espaço que agrega unidades nucleares, pertencentes a uma parentela

extensa, e de “bairros”, como espaço que agrega os diferentes sítios a partir das relações sociais

estabelecidas entre os moradores dos sítios, definidoras de limites territoriais (ITESP, 2000,

p.38). A despeito de qualquer iniciativa de cisão social que pudesse haver relacionada a essas

formas de classificação, o presidente da associação nega a possibilidade e afirma que todos se

reconhecem como moradores do bairro de Sapatu. Sobre a origem do nome do bairro, o

presidente relata:

“(...) Parece que tinha duas mulher quilombola lavando roupa no riacho, aí começaram a

brigar, uma xingou você é uma sapa, e a outra falou sapa é tu, aí ficou o nome Sapatu”.

O Sr. Pedro Pereira, morador da comunidade, conta que inicialmente formou-se uma

associação de pequenos produtores rurais em Sapatu, na época incentivada pela Igreja Católica,

com a finalidade de conter processos de grilagem de terras, inclusive com a existência de

conflitos. A associação foi pensada como alternativa para a comercialização da produção, mas

especialmente como recurso para proteger a comunidade nas disputas com grileiros (Entrevista

em 03/01/2007).

A partir da década de 1950, intensificaram-se os processos de grilagem empreendidos por

pessoas de fora da comunidade que usavam artifícios como a ocupação de terras com gado, troca

de terras por produtos ou dinheiro, até formas de coerção física e verbal. Algumas das terras

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ocupadas por grileiros passaram posteriormente a pertencer a terceiros, definidas como

propriedades particulares, inclusive com títulos expedidos (ITESP, 2000, p.42).

A primeira associação teve duração de 10 anos, quando no ano de 1997, por conta de uma

enchente que atingiu a comunidade, perdeu-se parte de seus documentos. Na mesma época, a

comunidade tomou conhecimento sobre os direitos garantidos a remanescentes de quilombos, e

previamente engajada na luta contra à construção das barragens na região, optou por cancelar o

registro da antiga associação e criar uma nova, como remanescente de quilombo (ITESP, 2000,

p.44). O objetivo da atual associação é garantir o título da terra, que deve ser emitido em seu

nome, como esclarece Sr. Pedro:

“(...) A prioridade é o documento da terra, porque a gente tendo o documento da terra em

mão, a gente tem mais força né pra lutar por outros direito, buscar os outros objetivo, e a gente

tá lutando pra isso né, acreditando né, apesar de que a gente sabe que encontra bastante

dificuldade né, até por exemplo na, assim na lentidão pelo processo de reconhecimento... o

reconhecimento teve das área, mas por exemplo conseguir o título da terra ainda tá achando que

tá muito lento demais...”.

A Associação de Remanescentes de Quilombos da Comunidade da Sapatu foi fundada em

08/08/199813; conta com cerca de 120 sócios, tendo em média 3 sócios por família. Existem

ainda, em média, 10 famílias que não são associadas.

Segundo o Sr. Josias Moreira, a principal ocupação dos moradores da comunidade de

Sapatu é a agricultura familiar, destacando-se a produção de banana voltada à pequena

comercialização, além da produção familiar para a subsistência. A comunidade possui 4

comerciantes, donos de pontos que funcionam como vendas e bares, 10 a 12 famílias que

trabalham com produção de artesanato, 15 famílias que trabalham na agroindústria comunitária e

10 monitores ambientais formados que guiam passeios turísticos. O presidente ainda cita a

presença de 2 a 3 funcionários públicos na comunidade.

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Informação concedida pelo atual presidente da associação de moradores do bairro de Sapatu. No RTC da

comunidade, é citado o ano de 1997 como data de fundação da associação.

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Figura 8. Rodovia SP-165 na comunidade de Sapatu

Figura 9. E.E. do bairro de Sapatu

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Figura 10. Bairro de Sapatu

Fotos: Ivie Santana (2008)

Sapatu possui 1 escola estadual que atende alunos de 1ª a 4ª séries; para os cursos de 5ª a

8ª séries do ensino fundamental, de ensino médio ou técnicos-profissionalizantes, os alunos da

comunidade devem se dirigir às escolas de André Lopes ou de Itapeúna, distrito municipal, ou ao

próprio município de Eldorado. A comunidade ainda possui 1 posto de saúde, 2 galpões para uso

comunitário, 1 agroindústria, 2 igrejas, 2 cabines de telefone público e 2 veículos para uso

comunitário.

O atendimento municipal quanto aos serviços de saúde são considerados insuficientes,

com constante falta de medicamentos e atendimento médico. O transporte que serve a

comunidade é feito através da mesma linha de ônibus que serve André Lopes; transita 2 vezes ao

dia, fazendo o trecho da comunidade até o município de Eldorado.

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Figura 11. Rio Ribeira no trecho entre as comunidades de André Lopes e Sapatu

Foto: Ivie Santana (2008)

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Capítulo 7: Da agricultura ao turismo: o território normatizado por políticas

desenvolvimentistas e legislação ambiental

A região é caracterizada por um histórico de desenvolvimento diferente do restante do

Estado de São Paulo, marcada por baixos indicadores sociais aliados à concentração das maiores

reservas de Mata Atlântica e à forte presença de populações tradicionais indígenas, quilombolas,

caiçaras e de agricultores familiares (HOGAN et al, 2000).

A partir de meados do século XX, a região do Vale do Ribeira, sob a acusação de ser uma

região estagnada social e economicamente, sofreu inúmeras intervenções de ordem estruturante

que tinham por objetivo alterar essa condição. A esse objetivo somaram-se TAM bém as

iniciativas governamentais direcionadas à regularização fundiária e ao controle da ocupação das

terras devolutas (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.111).

Nas décadas de 1930 e 1940, inicia-se uma política de colonização da região,

empreendida pelo Governo do Estado, cuja estratégia era possibilitar a ocupação do grande

contingente de trabalhadores disponíveis devido ao declínio da atividade cafeeira em outras

regiões do estado. Esse projeto, encampado pela proposta de cultivo de banana, gerou graves

problemas fundiários na região, à medida que promoveu o estabelecimento dos colonos sobre as

terras ocupadas pelos pequenos posseiros (CARVALHO, 2006, p. 11).

Carvalho (2006, p.12) demonstra que essa iniciativa prejudicou os pequenos posseiros,

garantiu a ocupação dos grandes produtores de banana sobre as terras devolutas, enquanto aos

colonos foi disponibilizada a terra sem condições para cultivá-la, inviabilizando a continuidade

dessa cultura, pouco lembrada hoje em dia na região. A autora argumenta que a política de

colonização, não atendendo aos próprios fins, serviu para fortalecer os grandes produtores de

banana através da concentração de terras e recursos, garantindo sua hegemonia política na região.

Já por volta da década de 1950, introduz-se uma atividade extrativista com impactos e

importância proporcionais aos que a atividade mineradora e rizicultora, em suas respectivas

épocas, representaram para a região do Vale do Ribeira. A extração do palmito juçara tornou a

região reconhecida pelo fornecimento do produto nacionalmente; em sua função, foram

instaladas indústrias em vários municípios (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.111).

A atividade envolveu boa parte dos pequenos produtores rurais da região. A grande

procura pelo palmito estimulou o abandono das roças e das criações, gerando por conseqüência, o

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enfraquecimento do sistema de organização social baseado na prática agrícola comunitária

(QUEIROZ, 1983, p.70). As condições de trabalho de extração do palmito submetiam os

pequenos produtores a grandes dificuldades, dispersando-se mata adentro, dormindo em

habitações precárias, alimentando-se mal e enfrentando diversas intempéries. Além disso, a

coleta do palmito era vendida a atravessadores que detinham a maior parte do lucro sobre a venda

do produto.

Ao abastecer o mercado de palmito, as famílias negligenciavam a produção agrícola

passando a reverter a renda gerada pela atividade extrativista na aquisição de bens que antes eram

produzidos por elas. Junto à dependência do atravessador, os pequenos produtores tornaram-se

ainda mais vulneráveis; os relatos presentes no trabalho de Queiroz (1983, p.72) demonstram que

o próprio atravessador fornecia produtos para os “palmiteiros”, comprometendo-os com uma

dívida previamente à entrega da produção.

O incentivo à expansão das atividades econômicas na região favoreceu, nas décadas de

1960 e 1970, a instalação de outras iniciativas que pudessem atrair mais investimentos, como no

caso da construção da Rodovia Régis Bittencourt, que liga os estados de São Paulo e Paraná, e da

SP-165, estrada que liga os municípios de Eldorado e Iporanga. Em torno da construção das

estradas, intensificou-se o processo de especulação imobiliária na região, com a conseqüente

valorização das terras (CARVALHO, 2006, p.12).

No caso específico da SP-165, a estrada expôs as comunidades a contatos mais intensos

com grupos externos, rompendo o relativo isolamento em que se mantinham até então

(ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.111; QUEIROZ, 1983, p.53). A sua construção,

também se relaciona o início da exploração predatória do palmito. A estrada facilitou a circulação

de mercadorias na região e a incorporação de novos hábitos de consumo pelas comunidades. As

famílias passaram a prover boa parte de suas necessidades através de compras nos armazéns

instalados à beira da estrada, muitas vezes entregando toda a produção para saldar suas dívidas

(ITESP, 2000, p.35).

Outra forma de incentivo ao desenvolvimento regional foi a concessão de licenças de

desmatamento para atividades como produção de chá, de cacau, de seringueira, criação de

búfalos, entre outras (ITESP, 2000, p.38). De modo geral, as formas de incentivo estatal

promoveram a concentração das melhores terras agricultáveis em poder dos grandes

proprietários, enquanto a extração predatória do palmito deu origem ao processo de criação de

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unidades de conservação que pudessem coibir e regulamentar a atividade (ANDRADE;

PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.131).

“A extração da parte comestível do palmito implica na derrubada da madeira toda,

aproveitando-se apenas a ponta da árvore e desprezando-se todo o resto. Isso faz com

que o custo ambiental da atividade seja desproporcional ao volume da produção,

considerando-se o tempo de maturação relativamente alto da espécie, em torno de seis

anos. Além disso, as trilhas abertas na mata para facilitar o acesso a novas palmeiras e

o armazenamento do produto também provocam impacto sobre a floresta. A semente do

palmito juçara é alimento para certas espécies silvestres, cujo processo excretor

promove a aspersão das sementes, o que permite o replantio da palmeira; em áreas

altamente impactadas, onde a retirada do palmito não é manejada adequadamente, essa

cadeia é interrompida” (LA-MPF apud ITESP, 2000, p.28).

Estima-se que o Vale do Ribeira detenha 8.350 km2 dos 13.000 km2 de vegetação de

mata atlântica primária e em formação secundária existente no Brasil; dessa forma, cerca de 75%

do território que compõe a região é regulado por legislação ambiental (ITESP, 2000, 28). Dentre

as unidades de conservação que impactaram a vida das comunidades da região, a primeira a se

instalar foi o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira em 1958; a motivação de sua instalação

esteve diretamente vinculada ao contexto de extração do palmito na região. Na seqüência,

instalaram-se o Parque Estadual de Jacupiranga em 1969, o Parque Carlos Botelho em 1982 e o

Parque Intervales em 1995 (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.114-115).

Paralelamente à instalação das unidades de conservação, a criação de outras áreas de

proteção ambiental e a regulamentação imposta pela legislação ambiental normatizaram

radicalmente os modos de vida e produção das comunidades. Juntamente com a APA Serra do

Mar, instalada em 1984, praticamente todas as comunidades negras do Vale do Ribeira foram

atingidas e impactadas pela transformação dessas áreas em reservas ambientais. A criação da

APA Serra do Mar intensificou o trabalho de fiscalização ambiental na região, coibindo a prática

agrícola e extrativista na região (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.115-116).

O corte do palmito tornou-se ilegal em 196514, a partir de uma lei que considerou como

contravenção penal a extração de produtos florestais; já, a prática de atividades agrícolas nessas

áreas ficou sujeita à concessão de licenças emitidas pelo órgão estadual licenciador em favor do

proprietário da terra a ser desmatada.

Essas imposições submeteram as comunidades a impasses legais e institucionais, fonte de

consideráveis conflitos e transformações de suas condições de reprodução social. Ao passo que a

principal atividade extrativista mantida pelas comunidades tornou-se ilegal, as licenças para a

14

Lei Nº. 4771 de 15/09/1965 do Código Florestal Brasileiro (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.116).

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prática agrícola eram concedidas mediante apresentação dos títulos de propriedade da terra, que

as comunidades, enquanto posseiras, não possuíam. Diante dessa situação, a extração do palmito

tornou-se a principal atividade econômica das comunidades por apresentar menores riscos de

autuação legal (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.116).

Apesar da diferença temporal entre meados do século XIX e a primeira década do século

XXI, a descrição das atividades de extração do palmito, referentes ao primeiro período ainda é

válida para o segundo. No contexto atual, mesmo tendo diminuído a importância da região para a

produção do palmito, essa atividade ainda representa uma das principais fontes de renda para as

comunidades. No entanto, as condições de sujeição a riscos relacionados à extração da espécie

expõem os moradores a situações ainda mais graves que as anteriores. Além dos riscos legais da

atividade, devido à escassez atual da espécie, os extratores permanecem durante maiores períodos

na mata, expostos aos próprios riscos do ambiente e das condições de trabalho.

Figura 12. Espécie de palmito Juçara

Foto: Ivie Santana (2008)

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As transformações alteraram especialmente a situação fundiária do Vale do Ribeira. A

valorização da terra enquanto recurso, atrelada às atividades econômicas, à construção de

estradas e infra-estrutura e à instalação de unidades de conservação ambiental demonstra a

confluência de diferentes interesses e intencionalidades regendo o uso e a ocupação do território.

Atualmente, as perspectivas de desenvolvimento da região giram em torno dos limites de

uso do potencial ecológico existente, controlado por uma série de restrições ambientais; muitos

dos recursos naturais já não estão disponíveis para a manutenção de atividades econômicas

extrativistas, inclusive as tradicionais, mantidas historicamente pelas populações locais. Por outro

lado, a necessidade de se criar mecanismos de desenvolvimento social que respondam às

demandas de geração de emprego e renda e melhoria no acesso a serviços de infra-estrutura como

possibilidades de diminuição da pobreza regional, submete o Vale do Ribeira a um conflito

permanente entre desenvolvimento e preservação (HOGAN, D. J. et al, 2000, p.389).

Tal conflito se inicia no Brasil, durante o período militar, entre 1964 e 1984

aproximadamente, quando extensas áreas foram arbitrariamente transformadas em unidades de

conservação, sem consulta prévia às populações locais, muitas vezes alvo de processos de

desapropriação, dos quais não foram minimamente ressarcidas (DIEGUES, 2000, p.16). Essas

políticas, além de transgredirem o direito das populações a terra, excluíam sua participação sobre

o uso do território, substituindo o conhecimento nativo, dado pelas práticas tradicionais de

produção, pelo conhecimento técnico-científico, representado pelos especialistas de ciências

naturais.

A permanência desse método de gestão dos recursos naturais, confinados em restritas

áreas de conservação, manipuladas por especialistas, gerou além de manifestações político-

sociais em favor dos direitos das populações envolvidas, a suspeita sobre a eficiência do próprio

método (DIEGUES, 2000, p.21). Assim, começam a surgir propostas que contemplam a

participação das populações locais na gestão dos recursos naturais, visto que anteriormente, elas

já mantinham essa função partindo de uma concepção complexa e integrada do manejo dos

ecossistemas e que vinha garantindo melhor manutenção dos recursos (PIMBERT, M. P.;

PRETTY, J. N., 2000, p.186).

Ferreira et al. (2001), ao analisar o contexto de instalação das unidades de conservação no

Brasil, diz:

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“O desafio enfrentado por órgãos governamentais e ONGs foi por longo tempo, definir

instrumentos institucionais adequados à criação de UCs, no âmbito dos perfis

socioambientais regionais, uma vez que a proposta parecia ser criar áreas legalmente

protegidas, sem que isso significasse abdicar do bem estar dos povos que nelas se

assentavam” (FERREIRA, L.C. et al, 2001, p.117).

A autora ainda ressalta que esse processo de constituição das unidades de conservação,

deu origem, em grande parte, aos conflitos vividos pela população local e pelos funcionários de

instituições públicas. Diz também que os planos de conservação, arquitetados externamente por

representantes nacionais e internacionais, demandaram a atuação de outros sujeitos no momento

de serem postas em prática, inclusive dos próprios moradores que receberam nova condição

política de participação em projetos com os quais não mantinham vínculos identitários.

Essa participação acaba sendo cerceada pelo Estado, que estabelece critérios de uso para

as unidades de conservação aos quais as populações locais devem se adaptar. Novos conflitos de

poder, relativos ao direito de uso da terra surgem a partir de então; as populações são tolhidas da

posse, da gestão da terra e da identidade que as vincula ao território, assim, acabam por vezes

perdendo o compromisso com o próprio sentimento de conservação, naturalmente manifestado

em suas antigas relações produtivas.

De forma geral, as populações sofrem não só pela perda da terra, mas pelo agravamento

de suas condições de vida, dado o deslocamento a que são submetidas ou a renovação forçada de

sua base produtiva. Sofrem também pela maior degradação ambiental decorrente do mau uso da

terra, pelos conflitos agrários e pelas restrições e punições da legislação ambiental (ARRUDA,

2000, p.280-281). Por fim, além de expropriadas territorial e culturalmente, as populações são

incorporadas a uma nova dinâmica social, onde têm suas funções pré-estabelecidas, como

responsáveis por protegerem os ecossistemas que habitam dentro de normas e princípios que

tampouco ajudaram a conceber.

“O manual da conservação normal é, portanto, muito mais que uma coleção de fatos

verdadeiros ou falsos. Pode ser melhor compreendido como um conjunto de escolhas

sobre visões de mundo e relações de poder. Essas escolhas não são entre áreas naturais

virgens e uso humano, mas entre diferentes tipos de uso e diferentes formas de controle

político. Ademais, a “objetividade” proclamada por este paradigma conservacionista é

por si mesma, uma forma de selecionar e modelar a natureza ou, neste contexto, as

áreas protegidas” (PIMBERT, M. P.; PRETTY, J. N., 2000, p.191).

A despeito da relação entre as políticas de desenvolvimento econômico e os parâmetros de

conservação ambiental, Rodrigues (1998) afirma que não se trata de questões divergentes, mas ao

contrário, complementares. Segundo a autora, a promoção do desenvolvimento norteado por

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condicionantes ambientais agrega uma variável social à relação e abre espaço para a consideração

de situações de desigualdade que encerram fatores políticos, econômicos e ambientais. No caso

de populações locais, residentes em áreas destinadas à conservação ambiental, a questão

fundamental gira em torno de sua manutenção nas áreas, considerando o direito à terra e a

garantia de suas condições de reprodução social (RODRIGUES, 1998, p.156-158).

Nesse contexto, surgem movimentos de resistência e luta política de populações que

buscam não só o reconhecimento do direito sobre o território, mas a autonomia para a gestão e

uso dos recursos disponíveis, mesmo dentro de políticas vigentes contrárias em certa medida, às

práticas tradicionais mantidas usualmente por elas (ARRUDA, 2000, p. 282).

De acordo com o estudo de Ferreira et al. (2001), onde é feita uma análise das relações

entre os grupos sociais no Vale do Ribeira e no litoral sul de São Paulo, estabelecidas em torno da

instalação de unidades de conservação e que envolviam moradores, instituições públicas e ONG,

esse processo foi constituído por diversas fases. Estas, por sua vez, vão desde os conflitos

gerados entre moradores e instituições, quando da instalação das unidades de conservação,

marcados por sentimentos de revolta e desconfiança das populações, passando pela constituição

de relações institucionais entre os diferentes atores em prol da gestão compartilhada do território,

até o fortalecimento da condição política de direito e representação das populações locais

(FERREIRA, L.C. et al., 2001, p.124-125).

Ainda nesse estudo, o conceito de tradição foi incorporado como referência de análise da

conformação política dos grupos e o que se observou foi que a própria noção de tradição se

tornou um argumento incorporado por eles para defenderem seu direito à terra, segundo uma

concepção já instalada pelos administradores das unidades de conservação. Muito mais que uma

identidade, a tradição se tornou um instrumento político que reforça as reivindicações da

população, mas que não as encerra, visto que suas aspirações já não estão mais restritas às

práticas de produção tradicionais (FERREIRA, L.C. et al., 2001, p.142).

Essas considerações sinalizam também para a heterogeneidade cultural presente entre a

própria população tida como tradicional, fator que se aglutina politicamente em torno das causas

sociais inerentes a todo grupo, como o direito à terra e aos recursos naturais. A heterogeneidade é

também um condicionante presente nas próprias relações que se estabeleceram a partir da

instituição das unidades de conservação à medida que se conformaram sob um mesmo espaço, as

noções de proteção ambiental, representativas de uma política internacional, e as noções da

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população, representativas de uma política local, atrelada à conquista de direitos sociais sobre o

uso do território.

As relações fruto desse contato promoveram, no caso do Vale, mudanças culturais que,

segundo os autores, a despeito de um processo de coerção social, iniciado com restrições

ambientais impostas ao território e representado pela possibilidade de rompimento da

tradicionalidade local, acabaram por gerar um rearranjo cultural, marcado por práticas políticas

emancipatórias da população (FERREIRA, L.C. et al., 2001, p.145).

O município de Eldorado conta com cerca de 70% de sua área total ocupada por

vegetação nativa e abrigava, há pouco tempo atrás, a sede do PEJ, uma das unidades de

conservação criadas no Vale do Ribeira. O parque foi considerado o segundo maior em extensão

territorial do Estado de São Paulo, comportando, em seus limites, moradores em situação

irregular, áreas de plantio, fazendas e parte do território das comunidades quilombolas de André

Lopes, Sapatu e Nhunguara (ANDRADE; PEREIRA; ANDRADE, 2000, p.114).

Diante dessa conformação territorial, sua instalação foi fonte permanente de conflitos,

inclusive com as próprias comunidades. No final de 2007, através de sanção de lei15 instituiu-se o

Mosaico de Unidades de Conservação do Jacupiranga no Vale do Ribeira (Figura 13). Com essa

lei, o antigo PEJ passou a ser o maior parque estadual de São Paulo, com área de 154.872,17 ha,

subdividido em três outros parques: o Parque Estadual Caverna do Diabo envolvendo os

municípios de Eldorado, Iporanga, Barra do Turvo e Cajati; o Parque Estadual Rio Turvo,

envolvendo os municípios de Barra do Turvo, Cajati e Jacupiranga e o Parque Estadual Lagamar

de Cananéia, envolvendo os municípios de Cananéia e Jacupiranga. Além dos parques estaduais,

o mosaico congrega cinco Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), quatro Áreas de

Proteção Ambiental (APA), duas Reservas Extrativistas (RESEX) e duas Reservas Particulares

do Patrimônio Natural (RPPN), integrando uma área de 243.885,15 ha (ISA, 2007).

A criação dessa lei se deu em resposta à necessidade de resolução dos conflitos fundiários

relacionados especialmente à sobreposição dos limites do antigo PEJ em relação aos territórios de

comunidades tradicionais da região. Os conflitos advindos desse contexto sinalizavam para a

necessidade de construção de estratégias que compatibilizassem o uso das comunidades com as

normas conservacionistas adotadas para a gestão do território.

15

Lei 12.810 do Governo do Estado de São Paulo que institui a criação do Mosaico de Unidades de Conservação no

Vale do Ribeira.

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Nesse sentido, foi criado um grupo de trabalho16, composto por representantes de

organizações governamentais e não-governamentais, municípios, universidades e comunidades

envolvidas, com o objetivo de redigir um novo projeto de lei, visto que em 2003 foi vetado

projeto anterior17 proposto com o mesmo objetivo. O grupo de trabalho formado apresentou o

projeto de lei à Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo em junho de 2007 e após

correções feitas em negociação entre algumas entidades do próprio grupo, o projeto foi aprovado

em 20 de dezembro de 2007.

O projeto que resultou na lei foi fundamentado em uma proposta participativa que propõe

um sistema de gestão também participativo para as áreas que fazem parte do mosaico. Essa

participação está estruturada na organização de conselhos, geral e em cada unidade, que passarão

a compor um sistema de gestão, responsável pela transmissão de informações entre os moradores

da região.

Os territórios das comunidades de André Lopes e Sapatu foram definidos como APA,

além dos territórios de outras comunidades quilombolas localizados nos municípios de Iporanga,

Barra do Turvo e Eldorado como Nhunguara, Ivaporunduva, Galvão, São Pedro, Pilões, Maria

Rosa, Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima e Praia Grande, totalizando área de 64.625,04 ha. A

APA corresponde a uma categoria de Unidade de Uso Sustentável segundo classificação dada

pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC)18. As regulações que operam e

definem os limites de uso dentro de uma APA estão expressas no artigo abaixo:

“Art. 15. A Área de Proteção Ambiental é uma área em geral extensa, com um certo

grau de ocupação humana, dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais

especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações

humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o

processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais.

§ 1o A Área de Proteção Ambiental é constituída por terras públicas ou privadas.

§ 2o Respeitados os limites constitucionais, podem ser estabelecidas normas e restrições

para a utilização de uma propriedade privada localizada em uma Área de Proteção

Ambiental.

§ 3o As condições para a realização de pesquisa científica e visitação pública nas áreas

sob domínio público serão estabelecidas pelo órgão gestor da unidade.

§ 4o Nas áreas sob propriedade privada, cabe ao proprietário estabelecer as condições

para pesquisa e visitação pelo público, observadas as exigências e restrições legais.

§ 5o A Área de Proteção Ambiental disporá de um Conselho presidido pelo órgão

responsável por sua administração e constituído por representantes dos órgãos

públicos, de organizações da sociedade civil e da população residente, conforme se

dispuser no regulamento desta Lei” (Lei Federal 9.985, 2000).

16

O grupo de trabalho foi coordenado por representante da Secretaria Estadual de Meio Ambiente de São Paulo. 17

Projeto de Lei 984 de 2003. 18

Criado pela Lei Federal 9.985 de 2000.

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93

Pela legislação, as atividades mantidas pelas comunidades devem obedecer a

determinados parâmetros e critérios de operação, definidos através de um conselho de gestão,

composto pelos moradores, entre outras representações. Ressaltam-se no texto legislativo a

pertinência das atividades de pesquisa científica e visitação pública como estratégias de

aproveitamento econômico da área.

Nesse contexto, o turismo ganha dimensão como atividade adaptada às condições de uso

do território, tanto por uma demanda social, referente à necessidade de geração de trabalho e

renda, como por uma norma externa, de cunho ambiental, mantida pela legislação referente às

áreas de proteção ambiental. A sua prática, tal como no caso das unidades de conservação,

compreende um processo de institucionalização territorial, em que diferentes sujeitos se

interpõem conectando noções e ações de uso culturalmente diferenciadas.

A identidade quilombola, como recurso político de acesso a terra se faz presente também

nas determinações e escolhas que as comunidades buscam materializar no território e o turismo,

fora do contexto tradicional de produção social, é mediado também por essa variável. Essa

condição lhes dá legitimidade para gerir seu próprio território, classificado como APA e mantido

sob administração do Estado, compondo os domínios do Mosaico do Jacupiranga.

Atualmente, as comunidades já se encontram envolvidas com a atividade turística através

da prestação de serviços relacionados às visitas turísticas realizadas no atual Parque Estadual

Caverna do Diabo e em outros atrativos localizados no entorno. Seu envolvimento, entretanto, já

não está restrito a condição de servidoras, mas endossadas pelo reconhecimento feito de seu

direito à terra, as comunidades se posicionam juridicamente como futuras administradoras de

recursos pertencentes ao seu território. Esse papel tem sido exercido frente aos poderes públicos,

instituições privadas, organizações não-governamentais, instituições científicas e outros possíveis

sujeitos envolvidos com o considerado território quilombola.

A aprovação do projeto de lei traz novo impasse que envolve diretamente as comunidades

de André Lopes e Sapatu, visto que cada uma possui, em suas respectivas áreas, importantes

recursos naturais que são considerados os principais atrativos turísticos do município de

Eldorado, a Caverna do Diabo, localizada em André Lopes e a cachoeira Queda do Meu Deus,

localizada em Sapatu. A caverna inclusive nomeia o então criado Parque Estadual Caverna do

Diabo.

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Figura 13. Mapa do Mosaico de Unidades de Conservação do Jacupiranga

Fonte: Instituto Socioambiental, 2008. Extraído de www.isa.org.br em 26/06/08.

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95

A respeito do processo de construção do projeto de criação do Mosaico do Jacupiranga, a

Sra. Maria Ignez Maricondi, funcionária do ITESP, conta que as comunidades estavam presentes

dentre os participantes do grupo de trabalho criado. Elas por sua vez, não se manifestaram

contrárias à proposta do mosaico que altera seus limites territoriais e propõe a administração das

áreas sob a forma de co-gestão. Um dos argumentos para a falta de manifestação comunitária,

segundo Maria Ignez, seria o fato delas ainda não serem tituladas em relação a essas áreas. Ao

falar sobre o novo formato do parque, envolvendo especialmente o uso da caverna, a Sra. Maria

Ignez diz:

“(...) Então o parque do norte, o Parque do Jacupiranga, a proposta chama Parque

Estadual Caverna do Diabo, eles (Secretaria de Estado de Meio Ambiente) não vão abrir mão da

Caverna do Diabo, você entendeu? O parque vai chamar Caverna... (...) A única coisa que deu

pra fazer foi colocar na lei que o parque tem que trabalhar com eles (as comunidades), que é

compartilhado (...) Então assim, quando publicar a lei, nós temos três meses pra sentar com as

comunidades e falar e aí, como é que nós vamos fazer essa gestão? Tá aqui na lei pra não ter

perigo de falhar (...)” (Entrevista em 04/04/07).

A entrevista foi realizada quando o Mosaico do Jacupiranga ainda era um projeto de lei.

As oficinas também foram realizadas antes da aprovação do projeto, nesse caso, as comunidades

trabalharam sob a perspectiva de gerirem, autonomamente, o uso dessas áreas.

Paralelamente, o município de Eldorado, considerado estância turística, teve seu plano

diretor elaborado durante o ano de 2006. O plano, intitulado “Plano Diretor de Desenvolvimento

Turístico e Agrícola” – PDDTA – é considerado “instrumento global e estratégico da política de

desenvolvimento Turístico e Agrícola, determinante para todos os agentes públicos e privados

que atuam no Município” (PREFEITURA MUNICIPAL DE ELDORADO, 2006, p.1).

Percebe-se portanto, que o turismo, além de atividade potencial para o aproveitamento

econômico das unidades de conservação da região, constitui-se em objeto de planejamento da

administração local, estratégico para o desenvolvimento do município de Eldorado. Os atrativos

em questão, a caverna localizada em André Lopes e a cachoeira em Sapatu, são considerados

recursos fundamentais para a realização dessa estratégia.

Baseado nesse contexto específico, analisamos os resultados das Oficinas de

Planejamento Comunitário do Turismo realizadas junto às Comunidades Remanescentes de

Quilombos de André Lopes e Sapatu, no período de abril a julho de 2006. A análise considera a

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proposta de planejamento comunitário do turismo frente ao contexto de construção do território

quilombola, exatamente esse, fonte de inúmeras expectativas públicas e privadas.

Considerando o caso das comunidades quilombolas do município de Eldorado no Vale da

Ribeira/SP, buscamos compreender se o planejamento do turismo, baseado em noções

comunitárias de gestão, pode fomentar um processo de legitimação cultural no espaço. As

comunidades em questão possuem um histórico de luta pela terra em que diferentes sujeitos –

poder público, iniciativa privada, organizações não-governamentais, instituições científicas – se

sobrepõem influenciando a forma de apropriação de uma porção do território que lhes foi

constitucionalmente outorgada e onde a atividade turística surge como alternativa de geração de

renda e desenvolvimento social para as comunidades.

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97

PARTE III: PLANEJAMENTO COMUNITÁRIO DO TURISMO: POSSIBILIDADES DE

INTERVENÇÃO TERRITORIAL

Capítulo 8: Relação entre universidade e comunidades: Oficinas de Planejamento

Comunitário do Turismo

A proposta de realização das Oficinas de Planejamento Comunitário do Turismo teve

início a partir de uma chamada realizada pelo Programa Comunidades Quilombolas (PCQ) em

29/09/2005. O PCQ é vinculado à Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (PREAC)

da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e tem como objetivo trabalhar, em parceria

com as associações quilombolas do Médio Vale do Ribeira, pelo seu desenvolvimento sócio-

cultural. O programa, atuante desde 2003, envolve oito comunidades quilombolas, André Lopes,

Galvão, Ivaporunduva, Nhunguara, Pilões, Poça, São Pedro e Sapatu. E atualmente, realiza ações

e projetos nas áreas de cultura, informática, educação e sistemas de fabricação.

Na referida chamada, foi apresentado o histórico do programa, bem como o tipo de

relação que ele mantém com as comunidades, enfatizando-se nesse aspecto a metodologia

desenvolvida a partir de uma abordagem que considera a autonomia e a participação comunitária

como fundamentos para a construção de quaisquer projetos em parceria. Na ocasião, também

foram apresentados os trabalhos que vinham sendo executados e as demandas das comunidades

reportadas ao programa.

No caso das demandas, adotou-se a estratégia de subdividi-las em grupos de trabalho

temáticos, onde os interessados pudessem se enquadrar segundo a afinidade com o assunto. Havia

um grupo intitulado “Grupo de Trabalho de Turismo e Educação Ambiental”, onde constavam

demandas relacionadas a estruturação do turismo nas comunidades, baseadas desde já, na idéia de

uma atividade atrelada a princípios de educação ambiental.

O grupo inicialmente interessado contou com a participação de dois estudantes de pós-

graduação em Geografia, uma estudante de graduação em Geografia, uma estudante de graduação

em Biologia e uma estudante do Centro Superior de Educação Tecnológica (CESET). O grupo

formado deveria trabalhar na elaboração de uma proposta que seria apresentada em resposta às

comunidades, em reunião marcada entre elas e os responsáveis pelo grupo de trabalho.

A seguir, o quadro de demandas referentes ao GT de Turismo e Educação Ambiental.

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98

PROGRAMA COMUNIDADES QUILOMBOLAS – CHAMADA 2005 – Sistematização das demandas

GRUPO DE TRABALHO: Turismo e Educação Ambiental

Tipo de ação ou

atividade

Título Metas/resultados esperados Finalidade do plano de trabalho

Levantamento,

estudo, produção

material,

capacitação

Atrativos

Naturais

Inventário dos atrativos de seu território em registro em

base cartográfica;

Caracterização de pelo menos um atrativo selecionado em

cada comunidade;

Avaliação da capacidade de suporte e elaboração de plano

de manejo;

Levantamento e registro da história relativa aos atrativos;

Capacitação gerencial de moradores para uso dos atrativos

em educação ambiental e turismo;

Elaboração e edição de catálogo dos atrativos;

Operação de visitação.

1. Estabelecer os princípios, abordagens

e conteúdo do (s) projeto (s) e das

ações;

2. Aprovar a elaboração do trabalho em

assembléias e indicar representantes

para participar;

3. Construir equipe e definir agenda.

Projeto de

desenvolvimento,

implantação de

empreendimento e

capacitação

Turismo e

Educação

Ambiental

Implantação de pousadas, camping e outros equipamentos

e empreendimentos para turismo e visitação com gestão

pelos moradores;

Aquisição de equipamentos, ferramentas, etc;

Capacitação técnica, administrativa, gerencial e

empreendedora dos moradores;

Implementação de empreendimento(s) turístico(s);

Elaboração de material e implementação de estratégias para

comunicação e divulgação;

Implementação de programas e atividades de interesse

escolar ou turístico;

Acesso aos recursos do governo do Estado de São Paulo

para o turismo no Vale do Ribeira.

1. Estabelecer os princípios, abordagens

e conteúdo do (s) projetos (s) e das

ações;

2. Aprovar a elaboração do trabalho em

assembléias e indicar representantes

para participar;

3. Construir equipe e definir agenda.

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A partir da análise das demandas relacionadas ao tema “Turismo e Educação Ambiental”,

o grupo de trabalho optou por desenvolver uma metodologia baseada no planejamento do

turismo, visto que as demandas apresentavam grande diversidade entre si, compreendendo desde

levantamentos dos recursos disponíveis, como os atrativos, passando pela capacitação da

comunidade, até a instalação de equipamentos e empreendimentos turísticos. Essa proposta

conferia certa segurança ao grupo, considerando-se o seu desconhecimento inicial em relação ao

contexto sócio-cultural das comunidades e a sua responsabilidade sobre a concretização de

qualquer intervenção relacionada ao turismo, mesmo realizada em regime de parceria.

Dessa forma, as oficinas representavam uma proposta de formação reflexiva das

comunidades em torno da iniciativa de se desenvolver o turismo localmente. Partiu-se do

pressuposto de que o turismo empreendido espontaneamente, sem quaisquer formas de regulação

ou controle, poderia impactar negativamente as comunidades, considerando-se a influência que a

atividade exerce sobre a configuração do território. E ainda, pelo fato de as comunidades

pleitearem o título do território que ocupam, o planejamento figuraria, nesse contexto, como

importante instrumento para que elas pudessem definir, autonomamente, o uso turístico de seus

territórios.

Nesse caso, a proposta do grupo de trabalho consistia, na primeira fase, em suscitar

discussões comunitárias acerca da natureza da atividade turística que se desejava empreender nas

comunidades, e posteriormente, em trabalhar na elaboração de projetos que pudessem viabilizar a

idéia de turismo construída. Daí a definição “oficina”, por conter em toda a fase do trabalho, o

caráter de construção, fosse de idéias e propostas, até projetos propriamente.

A proposta elaborada foi inicialmente apresentada aos componentes do programa, e após a

incorporação de algumas correções sugeridas, foi finalizada para posterior apresentação às

comunidades. A apresentação feita às comunidades ocorreu durante reunião realizada em

12/11/2005 na escola de Sapatu. Nessa reunião, estavam presentes representantes das

comunidades de André Lopes, de Nhunguara e de Sapatu, além do Grupo de Apoio (GA) do PCQ

e dos representantes de cada grupo de trabalho que tivesse uma proposta a ser apresentada.

No início de dezembro de 2005, em reunião entre o GA do PCQ e os representantes dos

grupos de trabalho formados, foram anunciados os resultados da reunião com as comunidades.

No caso do GT de Turismo e Educação Ambiental, as comunidades de André Lopes e Sapatu

manifestaram interesse pela realização das Oficinas de Planejamento Comunitário do Turismo.

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A seguir, o formato da proposta apresentada às comunidades em 12/11/2005.

Programa Comunidades Quilombolas

Grupo de Trabalho Turismo e Educação Ambiental

A proposta de trabalho será dividida em duas etapas:

1) Oficina de discussão sobre o turismo:

Nesta etapa, vamos discutir como se faz o planejamento turístico com a participação da comunidade. Para

isso, vamos usar estudos de casos e com eles avaliar os pontos positivos e negativos do turismo. Vamos

ver como a comunidade participou do planejamento turístico e como a atividade turística foi

desenvolvida nesses casos.

-Qual é a infra-estrutura que a comunidade precisa para viabilizar o turismo (vias de acesso, posto de

informação, pousada, restaurante, acampamento, loja de artesanato...)? ;

-Quais os atrativos que a comunidade irá disponibilizar para a prática do turismo (cachoeiras, estrutura do

próprio bairro, trilhas, cavernas, rio...)?;

-Quais são os efeitos da presença de maior número de pessoas na comunidade durante a temporada

turística (consumo de água e energia, geração de lixo e esgoto...)?;

-Háverá um limite de turistas para a comunidade receber?;

-Haverá um limite de pessoas para visitar os atrativos?;

-Qual o tipo de turista que a comunidade que receber (crianças e jovens, adultos, famílias, escolas...)?;

-Quais são as funções necessárias para se trabalhar com turismo (guia, recepcionista, cozinheiro/a,

vendedor/a, fotógrafo/a...)?;

-Como a comunidade pensa em vender seus roteiros turísticos (agências de turismo, página na

internet...)?;

-Como a comunidade conseguirá financiamento para comprar equipamentos ou realizar alguma obra

(governos, empresas, cooperativas de crédito...)?;

-Como será feita a divulgação do turismo na comunidade (jornal, internet, agências de turismo, rádio,

tv...)?;

-Quais os parceiros possíveis para capacitação da comunidade (escolas técnicas, faculdades,

universidades...)?

-Quais serão os objetos de parceria entre as comunidades e outras organizações para viabilizar o turismo?

CALENDÁRIO: Essas oficinas acontecerão em um ou dois finais de semana a partir da segunda

quinzena de fevereiro de 2006.

2) Oficina de planejamento do turismo:

Na segunda etapa serão feitas novas oficinas para se definir quais são as demandas mais importantes para

a comunidade desenvolver o turismo. Com as demandas escolhidas, começaremos um projeto de

planejamento com a comunidade através de grupos de trabalho.

CALENDÁRIO: Essas oficinas acontecerão logo depois da primeira etapa e a duração delas será

definida junto à comunidade.

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Entre os dias 19 e 22/01/2006, foram realizadas as primeiras reuniões entre o grupo de

trabalho e as comunidades de André Lopes e de Sapatu para que se desse início à realização das

oficinas. A partir desse momento, a relação passou a ser entre os representantes da universidade e

os representantes das associações de moradores de cada bairro. Esse foi o momento de

reconhecimento das identidades para ambos os parceiros, tanto do grupo de trabalho, como das

comunidades, e com base nessa relação, o trabalho das oficinas seria desenvolvido daí em diante.

O objetivo dessas primeiras reuniões foi discutir uma proposta inicial com cronograma e

atividades para a realização das oficinas. Dessa forma, foi apresentada uma programação que

compreendia uma etapa para a discussão sobre o turismo, uma etapa para a constituição de uma

“comissão de turismo” nas comunidades e etapas posteriores, que contemplavam algumas

demandas comunitárias como temas a serem trabalhados pelo planejamento turístico.

A idéia de formação de uma “comissão de turismo” em cada comunidade consistia na

proposta de articular um grupo responsável pela coordenação e pela execução das atividades

relacionadas ao turismo. Essa comissão seria constituída após a etapa de discussão sobre o

turismo; dessa forma, esperava-se que a comissão formada já contasse com alguns fundamentos

para nortear sua atuação. Além disso, até a sua formação, a etapa de discussão seria aberta à

comunidade, podendo envolver maior número de moradores, o que seria interessante pelo fato

das repercussões derivadas do turismo envolverem a comunidade de forma geral.

A proposta foi apresentada as duas comunidades. Em Sapatu, em reunião especificamente

marcada para tanto, a proposta foi aceita e os moradores presentes se comprometeram em

discutir, entre si, a organização das oficinas, considerando participantes, dias, horário e local para

a realização das atividades. Com esta definição, os representantes da comunidade entrariam em

contato com os coordenadores do PCQ. Já em André Lopes, a proposta foi apresentada durante a

realização de uma assembléia comunitária; alguns representantes reforçaram o interesse pelo

trabalho, mas alegaram que precisavam discutir melhor como se organizariam para a realização

do trabalho.

A partir daí, o grupo aguardaria o retorno das comunidades para dar início ao trabalho. A

seguir, a proposta de programação inicial apresentada às comunidades. Nota-se que o período de

desenvolvimento das atividades é abrangente e não indica o tempo exato de duração de cada

oficina. Essa proposta por sua vez, deveria ser elaborada pelas próprias comunidades, de acordo

com a dinâmica de organização interna de cada uma delas.

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Programação inicial das atividades do Grupo de Trabalho Turismo e Ed. Ambiental

ETAPA 1: Realização de oficinas para apresentar e discutir a atividade turística, usando estudos

de caso sobre o turismo comunitário no Brasil.

Tempo previsto de duração da ETAPA 1: um a dois meses.

Sugestão de calendário: fevereiro e março de 2006.

ETAPA 2: Constituição de uma “comissão de turismo” na comunidade, composta por lideranças

envolvidas com a atividade turística e que vão representar as decisões comunitárias frente a

outras comunidades e demais instituições (universidade, ONG, empresas, órgãos públicos).

Tempo previsto de duração da ETAPA 2: um mês

Sugestão de calendário: abril de 2006

*** Nessa etapa, a comissão de turismo formada pela comunidade pode dar início à elaboração

de um documento com as normas que a comunidade estabelecer para a prática do turismo. Esse

documento poderá ser constantemente revisto e refeito e deve servir para regular os limites da

atividade turística e a conduta dos turistas.

ETAPA 3: Elaboração de roteiro prévio dos possíveis atrativos (naturais e culturais) e produtos

oferecidos pela comunidade que possam ser aproveitados para a prática do turismo.

ETAPA 4: Início dos trabalhos para a realização do inventário dos atrativos e dos produtos

turísticos da comunidades. Busca de parcerias e financiamento para as atividades de:

1 – Registro dos atrativos em base cartográfica;

2 – Levantamento e registro da história relativa aos atrativos;

3 – Avaliação da capacidade suporte e elaboração de plano de manejo dos atrativos naturais.

ETAPA 5: Avaliação do potencial turístico das comunidades após a fase de inventário para a

escolha dos atrativos que serão utilizados para a visitação turística. Levantamento das condições

preliminares dos atrativos para operacionalizar as visitas.

Tempo previsto de duração das ETAPAS 3, 4 e 5: oito meses.

Sugestão de calendário: maio a dezembro de 2006.

Ao final da ETAPA 5, iniciarão os trabalhos de elaboração de roteiro, catálogos,

operacionalização de visitas e capacitação dos moradores. Essa nova etapa deve ser definida a

partir do planejamento feito pelos próprios moradores e da busca de parceiros e financiadores

para a execução dos trabalhos.

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Passados mais de um mês desde as reuniões anteriores, as comunidades solicitaram a

retomada das atividades através do programa. Na ocasião, estava disponível um edital do

Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) para financiamento de projetos não agrícolas.

Dessa forma, ao retomarmos o contato com as comunidades, a idéia era também aproveitar a

oportunidade do edital para a elaboração de uma proposta de financiamento das atividades das

oficinas. A partir desse momento, o grupo de trabalho se desfez e as atividades relacionadas às

oficinas foram integralmente assumidas como objeto de estudo do curso de mestrado.

Como ponto de partida para a elaboração de uma proposta a ser submetida ao edital,

considerou-se a proposta anterior, apresentada às comunidades. No período de 08 a 12/03/2006,

realizamos reuniões com as duas comunidades para a consolidação de uma proposta comum. O

edital financiava apenas ações de custeio, o que não compreendia obras ou instalações; dessa

forma, a proposta baseou-se nas atividades das oficinas, tais como realização de inventários

turísticos, construção de projetos e alguns serviços específicos.

Com uma proposta preliminar, realizamos reunião com a presença de representantes das

duas comunidades no dia 16/03/2006. Nessa reunião, em vista do fato da proposta contemplar

apenas ações de custeio, representantes da comunidade de Sapatu propuseram a inclusão da

compra de mais equipamentos utilizados pelos monitores ambientais da comunidade durante as

visitas turísticas. Alguns equipamentos já haviam sido considerados e com a inclusão dos novos,

propostos por Sapatu, o orçamento seria inviabilizado. Nesse momento, a discussão tomou novo

rumo e a proposta comum de se realizar o planejamento turístico nas comunidades se diluiu

dentre os interesses de cada uma das comunidades.

Os representantes da comunidade de Sapatu justificaram que atividades como as oficinas

de planejamento se pareciam com processos de formação dos quais as comunidades já haviam

participado; por essa razão, os representantes privilegiavam ações relacionadas à

operacionalização e à infra-estrutura turística. Enquanto isso, os representantes da comunidade de

André Lopes manifestaram interesse pela realização das oficinas, justificando que desejavam

estruturar o turismo na comunidade de acordo com certos critérios, integrado a uma campanha de

educação ambiental e voltado a um público específico.

Na tentativa de conciliar os interesses de ambas as comunidades para a conclusão da

proposta a ser submetida ao edital, foi elaborada a proposta final que contemplava atividades de

planejamento do turismo e atividades para a estruturação de dois atrativos turísticos a serem

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escolhidos em cada comunidade, sendo uma ação decorrente da outra. Esta proposta foi então

aprovada em assembléia comunitária nas duas comunidades e enviada ao ministério em

25/03/2006.

A seguir, o quadro de avaliação da proposta enviada ao MDA.

Objetivo Específico Meta Indicadores de

Resultados Meios de Verificação

Fomentar o desenvolvimento do turismo a

partir de processos de planejamento turístico e

gestão comunitária nos Quilombos de Sapatu e

André Lopes em Eldorado – SP.

4 atrativos turísticos

organizados e 2 planos

de turismo com código

de conduta, normas de

organização, plano de

ações e projetos

executivos

fotografias e

documentos

6.1. Formar grupo de trabalho;

formar grupo de planejamento;

definir calendário e lugar de

realização das atividades do projeto

30 moradores

organizados em grupos

de trabalho e de

planejamento

ata de assembléia,

presença nos encontros

de trabalho e produção

efetiva de normas

explícitas

6.2. Realizar atividades de análise

sobre o turismo nas comunidades

30 moradores

capacitados em análise

de turismo com normas

de conduta definidas

comunitariamente

ata de assembléia e

documentos

6.3. Executar as primeiras ações de

planejamento turístico nas

comunidades

2 projeto de

financiamento para

infraestrutura turística

documento

6.4. Constituir grupo gestor de

turismo em cada comunidade

10 moradores

organizados em grupo

gestor de turismo

ata de assembléia e

regimento do grupo

6.5. Planejar e organizar a visitação

em quatro atrativos selecionados

4 atrativos turísticos

organizados e com

estrutura mínima

fotografia e documentos

6.6. Produzir relatórios de avaliação

do plano de ação dos atrativos 2 relatórios documento

6.7. Elaborar plano de ação

comunitário para o turismo

2 planos de ação em

turismo documento

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Essa proposta constituiu o Objetivo 6 do projeto intitulado “Assistência Técnica e

Extensão Rural para Agricultores Familiares dos Quilombos André Lopes, Galvão, Nhunguara e

Sapatu do Vale do Ribeira (SP)”. O projeto não foi contemplado pelo ministério.

O processo de elaboração da proposta para submissão ao edital do MDA é representativo

da dinâmica de trabalho que se estabeleceria com cada uma das comunidades durante a realização

das oficinas de planejamento. As comunidades de André Lopes e Sapatu apresentaram, desde

esse momento, perspectivas e tratamentos diferenciados quanto ao desenvolvimento do turismo

comunitário. A partir da realização das oficinas, essa diferenciação se evidencia, demonstrando a

diferenciação existente entre as dinâmicas internas de cada comunidade, fruto de contextos

sociais específicos.

Após o envio da proposta ao MDA, retornamos às comunidades para definir o início das

oficinas de planejamento. Ainda durante as reuniões para a elaboração da proposta que seria

enviada ao MDA, informamos às comunidades que, por parte da universidade, as oficinas seriam

realizadas durante o período de seis meses, independente do financiamento do ministério. No

período de 05 a 10/04/2006, nos reunimos com representantes das duas comunidades para

discutir as formas de organização das oficinas, grupo responsável, participantes, local e tempo de

duração.

A princípio, a comunidade de Sapatu, optou por oficinas com duração de 4 horas,

realizadas 4 vezes durante a semana, a partir das 18hs, no centro comunitário da associação de

moradores. A comunidade de André Lopes por sua vez, optou por oficinas com duração de 3

horas, realizadas 5 vezes durante a semana, a partir das 19hs, no centro de artesanato da

associação de moradores. Dessa forma, as oficinas seriam realizadas em semanas diferentes em

cada comunidade.

As atividades realizadas em parceria com a universidade e com outros parceiros são

negociados através da associação de moradores de cada comunidade. A iniciativa de participar de

alguma atividade é definida durante assembléia comunitária, de acordo com o interesse dos

moradores e com o comprometimento deles. Em André Lopes inclusive, a comunidade tem o

hábito de delegar a responsabilidade sobre a organização das atividades a um ou mais

representantes específicos, pessoas que sejam referências para determinados assuntos dentro da

comunidade.

Com frequência, os responsáveis pela realização das atividades nas comunidades

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106

concentram-se em um grupo de lideranças que assumem tanto a coordenação dos trabalhos, como

a direção da própria associação de moradores. Para a realização das oficinas de planejamento do

turismo, os monitores ambientais das comunidades constituíam um grupo de participantes em

potencial, além dos jovens, que viam na prática do turismo, uma perspectiva de trabalho.

Com o passar do tempo, o público foi se delineando, bem como o comprometimento que

cada comunidade estabeleceu com o trabalho, a partir da função que as oficinas representavam

frente aos demais compromissos comunitários e pessoais. As oficinas de planejamento se

constituíram em uma atividade extra, com a qual as comunidades se envolviam de acordo com a

disponibilidade e o interesse pelo tema.

Os horários escolhidos para a realização das oficinas eram aqueles possíveis dentro do

cotidiano das comunidades. De forma geral, durante o dia, os participantes se ocupavam com as

atividades rotineiras, como a roça, a escola, o comércio, a monitoria no parque, as atividades

domésticas ou outro tipo de trabalho, e durante a noite, participavam de atividades como as

oficinas. Muitas vezes, participar de atividades como essas durante as noites ou no final de

semana, significava para os participantes, abdicar de horários livres, utilizados para o lazer e a

convivência familiar.

Esse é um fator preponderante para a organização de quaisquer iniciativas de projetos e

atividades junto às comunidades. A realização de reuniões e atividades de trabalho específicas,

bem como a participação dos moradores, estão condicionadas ao contexto cotidiano comunitário.

No caso das oficinas de planejamento, o horário definido pelos próprios participantes garantiu a

viabilidade do processo em alguma medida, mas em determinados momentos, a pouca

participação comunitária foi capaz de comprometer ou alterar o curso das atividades

programadas.

Ao todo, no período de abril a julho de 2006, foram realizadas 20 reuniões envolvendo 23

moradores na comunidade de André Lopes, no entanto, o grupo que manteve assiduidade durante

todo o período, teve em média 8 pessoas. Esse grupo era composto por 3 monitores ambientais, 2

comerciantes e 3 jovens, todos vinculados à associação de moradores, sendo 2 deles pertencentes

à diretoria da associação na época, incluindo-se o presidente.

No mesmo período, foram realizadas 15 reuniões envolvendo 21 moradores em Sapatu,

com um grupo assíduo de 10 pessoas. Esse grupo era composto por 3 monitores ambientais, 1

funcionário público, 1 aposentado, 1 artesã, 1 produtor rural e 3 estudantes, todos vinculados à

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107

associação de moradores, sendo 4 deles pertencentes à diretoria da associação na época,

incluindo-se o presidente.

De forma geral, os participantes das oficinas, em ambas as comunidades, mantinham

práticas agrícolas nas roças familiares.

Com as datas definidas, iniciamos a realização das oficinas de planejamento com as

comunidades de André Lopes e Sapatu. O conteúdo programático que orientou a dinâmica das

oficinas foi o mesmo para as duas comunidades, alterando-se o método de abordagem de acordo

com o retorno e o aproveitamento dos participantes em relação às atividades. Durante todo o

processo, a comunidade de Sapatu esteve adiantada quanto ao conteúdo programático, por ter

definido a data inicial para as oficinas anteriormente a André Lopes.

Alguns eventos, relativos à discussão sobre o turismo nas comunidades, organizadas pela

Prefeitura de Eldorado por exemplo, foram aproveitados como oportunidades de trabalho e

envolveram representantes das duas comunidades simultaneamente.

Os resultados das Oficinas de Planejamento Comunitário do Turismo e a análise deste

trabalho, produzida frente ao contexto sócio-cultural das comunidades de André Lopes e Sapatu,

compreendem o conteúdo do capítulo seguinte. Optamos por transcrever as idéias e os conceitos

elaborados durante as oficinas da forma mais fidedigna possível, adequando formas de

concordância gramatical ou algumas formulações que fossem estritamente necessárias para a

compreensão do conteúdo.

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Figura 14. Centro comunitário de Sapatu

Figura 15. Centro de artesanato de André Lopes

Fotos: Ivie Santana (2008)

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Capítulo 9: O caso das comunidades de André Lopes e Sapatu

A abordagem inicial para a realização das oficinas foi identificar as expectativas que cada

comunidade tinha em relação ao que seria produzido a partir do trabalho. Frente às expectativas,

a proposta das oficinas de planejamento foi explicada mais uma vez, na tentativa de esclarecer os

objetivos e compatibilizá-los com as expectativas comunitárias quando possível.

A comunidade de Sapatu apresentou como expectativas:

1. Entender o processo de planejamento como uma ferramenta comum para ser usada em

qualquer projeto da comunidade;

2. Preparar a comunidade de Sapatu para receber o turismo.

As expectativas da comunidade de André Lopes foram:

1. A comunidade espera entender como planejar e executar ações para desenvolver o turismo de

acordo com os seus princípios;

2. A comunidade pretende desenvolver o turismo aliado a projetos de educação ambiental;

3. A comunidade pretende trabalhar com públicos específicos.

A comunidade de Sapatu apresentou uma perspectiva mais abstrata em relação ao

planejamento comunitário do turismo, identificando o planejamento em si como ferramenta para

ser utilizada nos diversos projetos e atividades a serem empreendidos pela comunidade. O

objetivo de se preparar para receber o turismo não demonstra, nesse momento, nenhuma

expectativa específica em relação à própria preparação, a comunidade não qualifica inicialmente

a forma como o turismo deve se desenvolver.

A comunidade de André Lopes por sua vez, apresenta concepções já elaboradas em

relação à prática turística desejada e a noção de planejamento comunitário representa o

instrumental utilizado para a concretização da atividade, de acordo com os princípios já

estabelecidos.

Na sequência desta atividade, procuramos trabalhar a idéia de cada comunidade em

relação ao turismo. Buscamos aqui identificar a concepção da atividade enquanto prática social,

ademais das qualificações que as comunidades pudessem atribuir a um tipo desejado de turismo.

Para suscitar a discussão, utilizamos definições formais e citações de textos sobre o tema.

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“O turismo compreende as atividades que as pessoas realizam durante suas viagens e

estadias em lugares diferentes ao seu entorno habitual, por um período de tempo consecutivo,

inferior a um ano, para fins de descanso, negócios e outros” (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO

TURISMO, 1994).

A comunidade de Sapatu desenvolveu conceitos que definem o turismo basicamente como

uma possibilidade de troca de experiências, motivada pela curiosidade do turista em relação a um

lugar ou a uma cultura. Esse conceito por sua vez, ampliou a discussão para as repercussões

derivadas desse movimento de troca, mais especialmente para as preocupações em torno do

relacionamento entre turistas e comunidade. Algumas frases elaboradas expressam essas idéias:

Passar imagem da realidade para o turista;

O turista não pode ter medo da comunidade;

O turista não pode trazer sua cultura para a comunidade;

O turista não pode desrespeitar as normas da comunidade.

O turismo, visto pela comunidade como uma atividade cujas repercussões são

inicialmente preocupantes, é visto também como atividade econômica potencial. Nesse sentido,

avançamos na discussão a partir do que a comunidade esperava do próprio turismo. As

expectativas da comunidade de Sapatu sobre o turismo consistiam na possibilidade de geração de

renda e outros benefícios para as famílias, na divulgação da causa quilombola para os turistas, na

transmissão de conhecimentos sobre a comunidade e na própria troca de experiências com

pessoas de fora. Destaca-se aqui a expectativa de um participante da oficina:

Mudar a idéia dos turistas que imaginam que os quilombos não podem se atualizar.

O participante justificou a consideração com base no fato de que os turistas que visitam as

comunidades interessados na cultura quilombola, querem encontrar famílias vivendo em casas de

pau-a-pique e desempenhando atividades artesanais, como se elas estivessem destinadas a viver

para sempre dessa forma. O participante questionava essa visão como equivocada e considerava

importante esclarecer os turistas quanto a essa situação.

De forma geral, a comunidade demonstrou que se considera diferente do turista, não só

pela condição de moradora, mas por sua cultura, ou mais propriamente, pelo seu modo de

reprodução social. Esse modo admite atualizações, mas permanece distinto quando a comunidade

afirma que o turista não deve impor sua cultura a cultura comunitária.

Além disso, a comunidade avançou na identificação de algumas situações já

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experimentadas, relatadas durante as oficinas pelos monitores ambientais e por participantes que

não trabalhavam diretamente com o turismo. Ela definiu casos onde o turista demonstra ter medo

da comunidade e onde a comunidade demonstra ter medo do turista.

A primeira perspectiva se apresenta:

Quando o monitor está guiando um passeio e os turistas desconfiam de para onde ele os está

levando;

Quando turistas pedem informação, mas mal abaixam os vidros do carro;

Quando a comunidade oferece produtos para os turistas e eles ficam desconfiados ou

inseguros

Quando as crianças pedem dinheiro na estrada.

A segunda perspectiva se apresenta:

Quando turistas homens abordam mulheres da comunidade na estrada;

Quando turistas consomem drogas entre a comunidade e algumas vezes chegam a oferecer

para seus moradores;

Quando turistas entram nos sítios e nas casas da comunidade sem se apresentar.

Com base nesse contexto, a comunidade elaborou algumas conclusões e algumas

estratégias de atuação a partir das conclusões. Quanto às conclusões, ela considerou que:

O turista deve estar conscientizado para visitar a comunidade;

A comunidade deve dar exemplo de comportamento para o turista;

A estrutura do turismo deve ser preparada de acordo com o que a comunidade tem para

oferecer e não de acordo com o que o turista quer consumir;

É importante definir normas para se desenvolver o turismo na comunidade.

Para o tratamento dessas conclusões, a comunidade elaborou como estratégias:

Conscientizar a comunidade sobre o turismo;

Formar um grupo de trabalho dentro da comunidade para cuidar das questões relacionadas

ao turismo;

Fazer uma cartilha com normas da comunidade para os turistas.

O grupo de trabalho de turismo seria responsável tanto pela conscientização da

comunidade sobre o turismo, como pela conscientização do turista sobre a comunidade. Os

participantes consideraram o turismo como atividade cuja responsabilidade envolve toda a

comunidade, especialmente no caso de situações geradas pela diferença de comportamento entre

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turistas e comunidade. Nesse sentido, a comunidade propôs que o turismo comunitário tenha

caráter educativo e que se privilegie a visitação de grupos escolares. A criação de uma cartilha,

com normas de conduta para o turista dentro da comunidade, figurou como estratégia para se

evitar possíveis conflitos como os citados anteriormente.

Além disso, o grupo de trabalho teria a responsabilidade de organizar o turismo na

comunidade, incluindo-se aí a realização de ações para melhorar a infra-estrutura de recepção do

turista. Essa infra-estrutura, para a comunidade, compreendia desde pequenas iniciativas como a

venda dos produtos comunitários, até outras mais abrangentes como a construção de pousadas e a

divulgação turística da comunidade.

A comunidade de André Lopes concebeu o turismo de forma parecida a Sapatu,

fundamentalmente como oportunidade para se adquirir e trocar conhecimentos e experiências nos

lugares visitados. A partir da definição contudo, a discussão que evoluiu entre o grupo foi a de

como promover a permanência do turista na comunidade.

Tal discussão não ignorou as possíveis repercussões da atividade sobre a vida

comunitária, mas ficou concentrada na responsabilidade da comunidade em conduzir esse

processo, diante da sua convivência prévia com uma atividade turística não planejada.

Destacamos algumas considerações:

Olhar do turista voltado para a Caverna do Diabo;

O turista pode conhecer a comunidade, além da caverna;

A comunidade e os moradores podem se preparar para superar as expectativas do turista;

Organizar a estrutura de hoje para o turista não sair frustrado e organizar a de amanhã

para que o turista venha preparado para a comunidade;

Através do turismo, o visitante pode experimentar a forma como se vive no quilombo;

Há diferenças entre a estrutura que se encontra no parque e a que se espera encontrar na

comunidade.

As considerações remetem claramente à situação do turismo de visitação à Caverna do

Diabo, localizada no antigo Parque Estadual do Jacupiranga (PEJ), que faz divisa com a

comunidade. A comunidade demonstrou a intenção de expandir o turismo para além da caverna,

incluindo-se como uma opção de visitação.

Em conversa com o Sr. André Luiz P. de Moraes, uma das principais lideranças de André

Lopes, a relação da comunidade com o modelo turístico inicialmente empreendido no bairro é

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esclarecida. Após a criação do PEJ, uma das alternativas desenvolvidas pela administração da

unidade de conservação foi disponibilizar a caverna para a visitação turística. Esse processo foi

instalado sem nenhuma consulta à comunidade e o turismo praticado, mesmo envolvendo o

bairro como área de passagem, não gerou benefícios aos moradores; ao contrário, a presença do

parque restringiu o acesso da comunidade ao uso da caverna, além do exercício de outras práticas

comunitárias.

“(...) A partir do momento em que o Estado tomou, é, aquele espaço lá como modelo

turístico, começou a desenvolver o turismo né, então a partir a comunidade foi assim meio que

obrigada a sair de lá e deixar aquele espaço pro Estado tá administrando e aí começa, começou

essa questão, a relação que até então com a caverna, a relação, a relação boa né, o pessoal

utilizava a caverna pra abrigo, pra guardar alimentos, pra uma série de coisas, começaram a

não poder mais fazer isso e aí então eles tiveram que (...) gerou um conflito na verdade, porque

ali criou um parque, o Estado viu que ali tem um potencial, criou um parque, uma unidade de

conservação, né e começou a criar uma série de regras que muitas delas vão contra a forma né

que a comunidade utiliza a natureza né, planejou um turismo é, única e exclusivamente pro

Estado ser beneficiado né, não vendo, não vendo a comunidade, não incluindo a comunidade

dentro desse processo (...)” (Entrevista em 13/11/2006).

O processo de exclusão da comunidade frente à instalação do turismo de visitação à caverna é

uma das referências que norteia a concepção de uma nova atividade turística a ser desenvolvida

na comunidade, de acordo com as considerações:

O planejamento deve ser feito agora com base em um processo histórico que foi imposto sem

consulta à comunidade;

O direito de posse do território é uma forma de se proteger contra os interesses privados.

É interessante notar que as primeiras discussões com a comunidade de André Lopes

revelaram a principal questão referente ao desenvolvimento do turismo na comunidade. A

caverna, ao passo que foi razão da instalação de uma atividade que trouxe prejuízos à

comunidade, representa ao mesmo tempo, a possibilidade de estruturação de um novo modelo de

turismo, que inclui a comunidade como condutora de um processo que possa, dessa vez, gerar

benefícios sociais em seu favor. Além disso, a discussão revela o impasse que envolve a

comunidade em torno do direito de uso sobre caverna, por ser um bem público localizado em

terras reconhecidas como pertencentes à comunidade, nesse caso, terras particulares.

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Figura 16. Parque Estadual do Jacupiranga

Foto: Ivie Santana (2008)

A próxima atividade teve por objetivo trabalhar a idéia de planejamento, dando ênfase ao

processo e aos recursos que o compõe. Para isso, utilizamos um texto que apresentava o processo

de planejamento estruturado nas seguintes etapas:

SITUAÇÃO INICIAL INFORMAÇÃO DECISÃO

AÇÃO SITUAÇÃO FINAL

“Os iguanas são lagartos que vivem no continente americano. Seu habitat era a terra

firme e eles alimentavam-se de vegetais terrestres.

Os iguanas dependiam de grama para sobreviver, um alimento que é escasso ou

inexistente em Galápagos.

Em uma larga escala de tempo, os iguanas de Galápagos foram progressivamente

alterando seus hábitos.

Os iguanas de Galápagos alteraram seu comportamento enfrentando as águas do mar,

aprendendo a mergulhar e a comer as abundantes algas da ilha.

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Os iguanas de Galápagos simplesmente mergulhavam no mar e comiam as algas

abundantes existentes nos ecossistemas marinhos da ilha” (PETROCCHI, 1998).

Cada frase correspondia a uma etapa do processo de planejamento e a forma como as

comunidades identificavam cada fase e constituíam a seqüência da história, representava uma

situação diferente. Dessa forma, optamos por dividir cada grupo em subgrupos para que eles

pudessem, através dos próprios resultados, discutir as formas de construção do processo de

planejamento.

A partir da atividade, a comunidade de Sapatu desenvolveu algumas considerações a

respeito do planejamento:

Informações que ajudam para o planejamento: idéia que já se viu ou situação que já se

viveu;

A informação diminui o risco de se arrepender;

Planejar inclui riscos também;

A roça é um bom exemplo de planejamento na comunidade;

O planejamento não pode ser feito na correria;

Quando houver divisão do grupo sobre as opiniões, é preciso mais tempo para se discutir;

As pessoas devem estar informadas sobre o que se está discutindo;

A falta de concordância entre a comunidade leva à falta de ação;

A comunidade deve ser mais participativa, independente do interesse individual de cada

morador.

Tais considerações demonstram a importância que o grupo atribui à informação, tanto a

sua disponibilização, como a reflexão sobre ela. Essa discussão levantou situações relacionadas à

dinâmica de funcionamento da associação de moradores da comunidade. Durante a oficina,

discutiu-se o fato de que a informação é restrita a algumas pessoas dentro da associação, bem

como a responsabilidade sobre a realização de projetos. Dessa forma, a ampliação da informação

e da discussão a respeito de determinados assuntos poderia se tornar um fator complicador para a

viabilização de ações. Por outro lado, ações como o desenvolvimento do turismo, que envolviam

toda a comunidade, não poderiam deixar de ser discutidas em âmbito comunitário.

As decisões comunitárias são tomadas durante assembléia geral, convocada pela diretoria

da associação de moradores. Durante as assembléias, os assuntos são expostos e caso haja

necessidade, são votados; a aprovação de quaisquer ações é obtida por meio de consenso

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comunitário. Esse foi o caso, por exemplo, da realização das oficinas de planejamento

comunitário do turismo. Todavia, as decisões, mesmo tomadas em assembléia geral, partem de

representantes e grupos específicos dentro da comunidade que tem maior envolvimento com

determinado assunto. Esses grupos, não raro, são formados por pessoas que compõem o corpo da

diretoria da associação.

Os moradores que não tem um bom conhecimento sobre determinadas ações que ocorrem

na comunidade, tornam-se de certa forma, inaptos para opinar contrária ou favoravelmente. A

concentração da informação e do próprio poder de decisão dentro da comunidade permanece

assim, ciclicamente concentrada. Por outro lado, quando o assunto passa a ser abertamente

discutido, ele pode se tornar fonte de impasses que inviabilizam a execução de ações e projetos e

estimulam iniciativas particulares dentro da comunidade.

Com base na mesma atividade, a comunidade de André Lopes avançou nas seguintes

considerações:

Qualquer inversão na ordem do planejamento pode significar a extinção da espécie;

A morte de alguns lagartos foi necessária para a fase de adaptação da espécie e a conquista

de um novo habitat.

O grupo participante da oficina se ateve especialmente à ordem estabelecida pelo processo

de planejamento, dando maior atenção às conseqüências que a má composição dessa ordem

pudesse gerar. Nesse sentido, o grupo propôs que fosse feita uma simulação de determinada

situação, envolvendo a Caverna do Diabo, onde a comunidade tivesse que elaborar uma ação

planejada, em resposta a uma demanda.

O próprio grupo imaginou o contexto situacional e a partir daí, estruturou o planejamento.

De acordo com a situação, a hipótese era a de que a comunidade assumisse a gestão do núcleo e

se estruturasse para manter a visitação da caverna, coordenando os serviços normalmente

prestados no parque. A ausência das três principais lideranças representava um fator motivador

para a organização da comunidade. Esse detalhe expressa a situação de concentração de

informações e responsabilidades em torno de alguns membros específicos da comunidade e a

necessidade, imposta pela situação, de preparação de outros membros que se comprometam com

as questões comunitárias.

O grupo ainda trabalhou na elaboração do planejamento para uma situação de gestão

permanente da caverna. Nessa situação, cada uma das etapas do planejamento foi caracterizada,

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considerando-se a estrutura proposta no início da atividade. Após esse exercício, o grupo fez uma

avaliação das duas propostas de planejamento, considerando a situação emergencial e a situação

permanente.

Como se observa a seguir, o planejamento turístico, voltado especialmente para o caso da

Caverna do Diabo, vai se conformando como a questão fundamental a ser trabalhada nas oficinas

com a comunidade de André Lopes.

“Situação Emergencial na Caverna do Diabo”

SITUAÇÃO INICIAL: o núcleo da caverna é administrado pelo parque;

INFORMAÇÃO: o núcleo da caverna passa a ser administrado pela comunidade sem três das suas

principais lideranças;

DECISÃO: formar um grupo na comunidade para manter o núcleo da caverna em funcionamento

nos dias seguintes;

AÇÃO: funcionamento normal e provisório com divisão de funções:

Coordenação geral:

Supervisão de todos os serviços do núcleo;

Articulação de pessoas da comunidade para a prestação dos serviços;

Comunicação com as lideranças que estão fora;

Atendimento de situações emergenciais.

Coordenação da monitoria e da recepção:

Organização dos serviços de monitoria;

Controle dos serviços de recepção e venda de ingressos.

Coordenação do restaurante:

Organização dos serviços de cozinha e alimentação.

SITUAÇÃO FINAL: conseguir manter o núcleo da caverna aberto à visitação durante os primeiros

dias até que as lideranças da comunidade retornem da viagem.

A atividade seguinte baseou-se na idéia de que as comunidades pudessem identificar os

recursos necessários para a estruturação do turismo local, definindo inclusive quais seriam os

recursos que já estariam disponíveis para isso. Nesta atividade, utilizamos um texto que

apresentava a relação entre SISTEMA TURÍSTICO, MEIO EXTERNO e CLIENTE. Além disso,

trabalhamos alguns conceitos trazidos pelos casos de turismo comunitário no Brasil, como os

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analisados durante o Capítulo 2 deste trabalho. A comunidade de Sapatu avançou da identificação

dos componentes de cada um dos elementos trabalhados pelo texto, como a seguir:

SISTEMA TURÍSTICO:

Monitores;

Equipamentos;

Atrativos (cavernas, cachoeiras, rio, mirantes, trilhas, dança, culinária, etc);

Infra-estrutura da comunidade (igreja, escola, campo de futebol, fábrica de banana, centro

de artesanato, casas dos moradores, etc);

Comunidade.

MEIO EXTERNO:

Meios de comunicação;

Igrejas;

Universidades;

ONG;

Mercado do turismo;

Governos (programas de governo);

Serviços públicos.

CLIENTE:

Turistas (estrangeiros, de aventura, ecológico, cultural, terceira idade);

Grupos escolares;

Pesquisadores.

Com a definição elaborada pelo grupo, discutimos, utilizando os casos de turismo

comunitário como exemplos, qual seria a importância de cada um desses elementos para a

estruturação do turismo na comunidade de Sapatu. O grupo identificou a inter-relação existente

entre todos os elementos, mas concluiu que teria maior capacidade de intervenção quanto ao

SISTEMA TURÍSTICO.

O grupo também discutiu prioridades para se estruturar o turismo na comunidade, teve

dúvidas sobre se o melhor critério seria atender as expectativas do turista ou orientar o turismo de

acordo com os próprios recursos. Essa discussão tratou especialmente da questão da infra-

estrutura, não só a necessária para garantir condições de acesso e uso dos atrativos, mas a

relacionada à prestação de serviços, como recepção, hospedagem e alimentação. O grupo se

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dividiu entre aqueles que defendiam a instalação de obras e equipamentos na comunidade como

condição básica para a realização do turismo e aqueles que acreditavam ser possível estruturar a

atividade com o que já se possui.

Em André Lopes, as discussões permitiram que o grupo formulasse considerações

específicas a serem adotadas para a estruturação do turismo na comunidade. Essas considerações

referiam-se a relação de prestação de serviços estabelecida entre turistas e comunidade. São elas:

A boa impressão do turista pode ajudar na divulgação da comunidade;

A estrada mal conservada é um problema do ponto de vista do turista;

A avaliação do turista pode ajudar a melhorar a prestação de serviços na comunidade;

O turista precisa ser informado sobre a comunidade;

É preciso controlar o comportamento do turista;

Padronizar as informações sobre a caverna;

Padronizar os serviços e o trabalho dos monitores;

Cuidar da segurança do turista (convênio com a Santa Casa de Eldorado, adquirir

medicamentos e equipamentos de segurança, formular atestados de responsabilidade quando

o turista não quiser cumprir as normas de segurança).

Nota-se neste caso, que as considerações definidas para a prática do turismo estão mais

próximas da condição presente da comunidade na época de realização das oficinas. A atenção do

grupo se concentrou nas possibilidades de melhoria dos serviços já prestados pela comunidade ou

por outros sujeitos como o Estado, no caso da estrada e o município, no caso do atendimento à

saúde. O grupo se norteou pelo fato de que o investimento na relação com o turista, dentro dos

recursos e das possibilidades que a comunidade dispõe para atendê-lo, constitui em uma forma de

fortalecimento do turismo comunitário.

As atividades até aqui descritas foram trabalhadas nas primeiras oficinas realizadas em

cada comunidade; elas tiveram por objetivo fomentar discussões de natureza conceitual a respeito

do turismo e do planejamento. Essas discussões nos permitiram identificar dinâmicas existentes

nas comunidades que foram determinantes para o desenvolvimento das oficinas, imprimindo

características específicas, advindas do próprio contexto comunitário. Em Sapatu, destaca-se a

insegurança da comunidade a respeito do desenvolvimento de uma atividade pouco conhecida

por seus moradores; em André Lopes, destaca-se a necessidade de regulação sobre uma atividade

já presente na vida comunitária. A partir daí, demos início a atividades voltadas mais

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propriamente às demandas comunitárias.

Nas oficinas seguintes, a comunidade de Sapatu desenvolveu uma proposta de

planejamento para a área da Queda do Meu Deus.

A Queda do Meu Deus é o principal atrativo turístico do bairro; trata-se de uma cachoeira

localizada em terras reconhecidas como pertencentes à comunidade de Sapatu, e de acordo com

informações do ITESP, encontra-se atualmente sob a condição de terra devoluta do Estado.

Contudo, ao iniciarmos as oficinas, a informação transmitida pela própria comunidade foi a de

que essa área era considerada terra particular. O proprietário havia contratado um morador da

comunidade para cuidar da área e o morador por sua vez, alegava que o proprietário não se

comunicava com ele há mais de um ano.

ESTRUTURAÇÃO DO ATRATIVO QUEDA DO MEU DEUS

AÇÃO TIPO de AÇÃO PARCEIROS POSSÍVEIS

1 – Cascalhar a estrada de acesso à

Queda;

Infra-estrutura Prefeitura Municipal de Eldorado

2 – Terraplanagem e cascalho para

estacionamento;

Infra-estrutura Prefeitura Municipal de Eldorado

3 – Construção de quiosque com

banheiros e área para alimentação

(elaboração de projeto e busca de

financiamento para as obras);

Infra-estrutura e

Serviço

Prefeitura Municipal de Eldorado,

comércio local, UNICAMP

4 – Sinalização; Infra-estrutura Feita pela própria comunidade

com os materiais disponíveis

5 – Área para acampamento (serviços

de terraplanagem e cobertura do solo);

Serviço Prefeitura Municipal de Eldorado

e a própria comunidade

6 – Melhoramento das trilhas

(aquisição de materiais);

Infra-estrutura Prefeitura Municipal de Eldorado

e comércio local e financiadores

7 – Pesqueiro (terraplanagem e

cobertura do solo, plantio de mudas,

instalação de bancos e barracas.

Serviço Prefeitura Municipal de Eldorado,

comércio local, UNICAMP,

ITESP, DPRN, ISA, IF e BIRD

O atrativo recebia visitantes que na época pagavam R$2,00 para entrar e faziam o passeio

sempre acompanhados por um monitor ambiental. A visita à Queda do Meu Deus é uma das

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principais opções de visitação turística da região depois da Caverna do Diabo. O grupo trabalhou

o planejamento para o atrativo dentro deste contexto e sua idéia consistia em estruturá-lo para

aumentar o número de visitantes e sua divulgação na região.

No entanto, para dar prosseguimento a essas ações, a comunidade necessitava certificar-se

sobre a legalidade da iniciativa, em vista da condição considerada da área, como terra particular.

Para isso, definiu como primeira ação, ter uma conversa com um advogado a fim de sanar as

seguintes dúvidas:

As ações planejadas pela comunidade para a área da Queda são legais do ponto de vista de

jurídico, enquanto a comunidade não obtém o título das terras?

Quais os riscos que qualquer ação ou tipo de parceria para executar obras na área da

Queda oferece para a comunidade?

As parcerias são legais mesmo sem o título das terras?

É possível dar início aos trabalhos sem consultar o atual proprietário da área?

Se a comunidade realizar alguma benfeitoria na área, ela pode perdê-la?

É possível fazer projetos para conseguir financiamento para uso da área da Queda em nome

da Associação de Moradores de Sapatu?

Figura 17. Placa de anúncio da cachoeira Queda do Meu Deus

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Figura 18. Área de acesso à cachoeira Queda do Meu Deus

Figura 19. Trilha de acesso à cachoeira Queda do Meu Deus

Fotos: Ivie Santana (2008)

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A comunidade de Sapatu ainda avançou na elaboração de um texto inicial que pudesse

compor uma cartilha informativa a ser apresentada aos turistas que visitassem a comunidade. A

seguir, o texto elaborado:

“Considerando que hoje a área dos atrativos da comunidade está nas mãos de terceiros e

conseguindo indenizar esses terceiros, a comunidade já pode utilizar os atrativos livremente,

independente do título. A comunidade poderia utilizar esses atrativos para educação ambiental,

a importância de hoje é você ter uma relação com a natureza, dependendo dos atrativos.

A ameaça que se tem com as barragens é que se perde tudo, a moradia, a cultura e os

atrativos. A barragem, se saísse, ela estragaria todos esses recursos, animais, plantações,

atrativos, levando atualmente a cultura da comunidade. A maior parte da nossa cultura é gerada

através da terra, a cultura no campo é uma e na cidade é outra. Hoje não estamos preparados

para morar agrupados, normalmente moramos uns distantes dos outros e livremente, cada um

com seus costumes e com a cultura da comunidade.

A geração de renda está baseada atualmente nos próprios recursos. Planejar um órgão

para preparar a comunidade, mas com os recursos bem posicionados. Como aqui nós temos a

área muito grande, considerada pelo parque, os recursos não são possibilitados pela

comunidade. Hoje, o cumprimento agrícola está mais posicionado pela banana, pelos recursos

das áreas apropriadas”.

O texto é revelador do contexto comunitário e da condição paralela do turismo dentro

desse contexto. Ele é expressivo quanto à forma como a comunidade concebe sua cultura,

baseada na apropriação dos recursos naturais, e quanto às ameaças à manutenção dessa cultura,

como no caso da presença dos chamados “terceiros”, proprietários particulares de terras, das

barragens e do parque. A possibilidade do turismo é levemente lembrada quando se trata do

aproveitamento dos atrativos para a prática da educação ambiental.

Durante o período de realização dessas atividades com a comunidade de Sapatu, a

Prefeitura do Município de Eldorado convocou uma reunião para tratar sobre o Conselho

Municipal de Turismo (COMTUR). Ambas as comunidades foram convidadas para a reunião.

Na reunião, ocorrida em 17/05/06, estavam presentes representantes do comércio turístico

de Eldorado, vereadores, representantes da prefeitura e das associações de moradores do bairro de

Sapatu e André Lopes. A reunião começou com manifestações contrariadas de participantes ao

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saberem que as reivindicações feitas ao prefeito sobre o COMTUR haviam sido negadas. O caso

é que o COMTUR permanecia como órgão consultivo do município e com diretoria nomeada

pelo prefeito. As novas reivindicações consideravam que o COMTUR passasse a ser um órgão

deliberativo, formado por representantes de diferentes grupos do município, com presidente

escolhido em eleição e com administração do repasse de 1% do ICMS do município.

O COMTUR é um órgão obrigatório para o município de Eldorado pelo fato deste ter sido

reconhecido como “estância turística” pelo Governo do Estado e por receber repasses

orçamentários específicos por essa condição. Esses repasses por sua vez, seriam de administração

do COMTUR, porém, no caso de Eldorado, a prefeitura detinha a administração sobre esses

recursos, definindo assim os limites de atuação do COMTUR, que se tornou um órgão sem

independência operacional e administrativa. As novas reivindicações eram uma tentativa de

alterar a estrutura do COMTUR, procurando torná-lo mais dinâmico e participativo.

Na reunião ficou decidido encaminhar as reivindicações através de uma proposta formal

ao prefeito de Eldorado e consultar a legislação atual que rege o COMTUR para saber como

legalizar essas reivindicações. Os representantes das comunidades de Sapatu e André Lopes que

participaram da reunião relataram que o COMTUR é assunto antigo no município e desde que

existe, em quase nada tem avançado.

Segundo o Sr. Lélis Ribeiro, empresário hoteleiro do município de Eldorado, o

COMTUR, durante 8 meses em que recebeu o repasse de cerca de 1% de ICMS (Imposto sobre

circulação de mercadorias e prestação de serviços) realizou algumas ações que repercutiram

positivamente para a promoção do turismo no município. A construção do posto de informações

turísticas do município foi uma dessas ações. Contudo, com a mudança da administração

municipal, o repasse do recurso foi suspenso e o conselho perdeu sua operacionalidade

(Entrevista em 09/04/2006).

O empresário traça um histórico do desenvolvimento do turismo no município. Conta que

a atividade teve início na década de 1970, com intensa visitação à Caverna do Diabo,

caracterizada pelas excursões de um de dia de duração. No entanto, com a promoção de outros

roteiros turísticos no Brasil, que envolviam cavernas e outros atrativos naturais, as visitas ao

parque diminuíram sensivelmente. Em meados da década de 1990, a administração municipal da

época adotou medidas de incentivo ao turismo e nesse período, foram elaborados novos roteiros

turísticos, com cavernas e cachoeiras ainda não visitadas; houve a formação dos primeiros

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monitores ambientais do município, sendo parte deles, moradores das comunidades quilombolas,

e a formação posterior da Associação dos Monitores Ambientais do Município de Eldorado

(AMAMEL). Esses fatores estimularam a permanência do turista por mais tempo no município e

em resposta a esse movimento, 3 pousadas e 2 agências de turismo foram abertas no município,

além da construção de um espaço público chamado Aldeia Cultural.

Todavia, com a mudança de administração, a política de apoio ao turismo não se manteve

e de lá pra cá, o número de turistas vem caindo consideravelmente, enquanto os

empreendimentos montados como pousadas, hotéis e restaurantes estão sendo fechados.

Em março de 2007, por iniciativa do Departamento Municipal de Turismo, houve uma

reunião para o restabelecimento do COMTUR. A idéia inicial foi compor o grupo para em

seguida, dar prosseguimento a algumas ações como a alteração da lei que rege o conselho.

Segundo o Sr. Lélis, o grupo pretendia ter acesso à gestão de recursos como o próprio ICMS e um

recurso específico, repassado aos municípios considerados estâncias turísticas, como é o caso de

Eldorado. Na época da conversa, em abril de 2007, esse recurso era administrado diretamente

pelo executivo do município.

A nova composição do conselho previa uma vaga para um representante do então PEJ e

uma vaga para monitores ambientais, considerando que eles são, em sua maioria, membros das

comunidades quilombolas.

A idéia de trabalhar atividades relacionadas à gestão do turismo municipal com as

comunidades consistia em uma forma de ampliar a noção do planejamento comunitário. Cientes

das iniciativas empreendidas pelo poder público, especialmente considerando o turismo como

atividade potencial para o desenvolvimento do município e a importância estratégica que os

atrativos localizados nos bairros de André Lopes e Sapatu representam para a prática da

atividade, as comunidades poderiam articular parceiros e recursos para viabilizar seus projetos,

como havia sido discutido nas oficinas já realizadas. Contudo, a manifestação dos representantes

das comunidades restringiu-se ao comentário feito ao final da reunião.

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Figura 20. Praça central do município de Eldorado

Figura 21. Praça em Eldorado

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Figura 22. Placa de informações turísticas em Eldorado

Figura 23. Espaço público Aldeia Cultural - Eldorado

Fotos: Ivie Santana (2008)

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Já em André Lopes, as próximas oficinas evoluíram quanto ao planejamento que o grupo

desejava fazer em duas perspectivas, uma voltada para o núcleo Caverna do Diabo e outra

voltada para a comunidade.

Após a elaboração das duas propostas de planejamento para a caverna, considerando a

condição emergencial e a condição permanente, o grupo trabalhou na revisão de suas propostas,

até chegar a uma final. Essa proposta segue abaixo:

PLANEJAMENTO PARA A CAVERNA DO DIABO

INFORMAÇÃO DECISÃO AÇÃO SITUAÇÃO FINAL

Tipo de

público;

Como

organizar as

ações dentro

do núcleo;

Trabalhar com públicos

mistos nos finais de

semana e feriados e

oferecer novos programas

e roteiros durante a

semana (pesquisa,

oficinas, eventos, outros

atrativos);

Fazer divulgação orientada

para cada público;

Orientar e capacitar a

comunidade;

Atualizar a versão de

descobrimento da caverna;

Integrar os grupos de

trabalho da comunidade ao

trabalho com turismo;

Escolher a forma de

administração do núcleo;

Fazer parcerias para

projetos;

Fazer planos de manejo

para os atrativos.

Organizar grupos de

trabalho para

visitação;

Buscar informações

para montar novos

roteiros e programas

de turismo;

Utilizar meios de

comunicação para

divulgar o turismo na

comunidade;

Buscar parcerias para

capacitar a

comunidade;

Organizar as

atividades em grupos

de trabalho;

Executar a forma de

administração

escolhida para o

núcleo;

Fazer projeto para

destinação de

resíduos.

Envolvimento da

comunidade;

Controle da visitação;

Melhor uso da caverna

e dos recursos;

Melhor retorno

financeiro;

Melhor qualidade de

vida;

Comunidade envolvida

e informada;

Melhor aproveitamento

do turismo;

Independência na

administração do

núcleo;

Funcionamento legal da

caverna;

Diminuição dos

conflitos com a

comunidade;

Melhor conservação da

área.

O grupo manteve a utilização das etapas de planejamento apresentadas e considerou a

SITUAÇÃO INICIAL, única etapa que não consta no quadro, como o contexto já mencionado,

de instalação de uma atividade turística excludente em relação à comunidade, concentradora de

renda e geradora de conflitos pelos impactos causados à vida comunitária.

Voltada para a comunidade, a proposta de planejamento construída consistiu em:

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Construir o PIT (Posto de Informação Turística) para informar o turista sobre a vida em

André Lopes, a cultura quilombola e o turismo na comunidade no momento de sua chegada;

Inserir a comunidade na atividade turística através da formação de guardas-mirins;

Educar a comunidade para romper com as barreiras criadas pelo turismo;

Produzir fichas de avaliação para o turista expressar sua opinião sobre o turismo na

comunidade;

Estimular o retorno do turista e tentar causar boa impressão para que ele divulgue a

comunidade;

Capacitar monitores para atender a públicos diferenciados (crianças, idosos, deficientes,

homossexuais, etc.);

Diversificar os roteiros com visitas a caverna e a outros atrativos;

Promover reciclagem dos monitores: cursos de primeiros socorros, cursos de astronomia e

outros;

Divulgar as visitas à comunidade em escolas da região para garantir a freqüência de

visitação durante o ano inteiro;

Adquirir equipamentos de segurança e estabelecer regras de segurança para os passeios;

Fazer planos de manejo para os atrativos;

Formular cartilha de regras sobre comportamento e visitação para o turista que visita a

comunidade;

Padronizar os serviços e as informações no núcleo da caverna;

Estabelecer regras para as visitas ao núcleo;

Tentar minimizar os pontos negativos das visitas (falta de infra-estrutura por exemplo)

através do bom tratamento ao turista;

Tornar a comunidade responsável pelo turismo e pelo bom tratamento do visitante, e também

pelo controle do seu comportamento, caso seja necessário;

Construir o PCC (Ponto de Comunicação Comunitária) para articular a comunicação entre

os diferentes pontos da comunidade e poder agir com mais rapidez no caso de alguma

emergência.

Ao elaborar as duas propostas de planejamento, o grupo buscou integrar a prática do

turismo na comunidade, empreendida inicialmente de forma fragmentada. A Caverna do Diabo,

como principal atrativo para aproveitamento turístico, constituía também a principal demanda

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para o planejamento comunitário. A perspectiva de gerir a área da caverna exigia que a

comunidade se preparasse tecnicamente para administrar um recurso, cuja forma de apropriação

foi modificada com o passar do tempo, considerando o uso da caverna feito por seus

antepassados. Além da caverna, mas especialmente por conta de sua presença no território, a

comunidade deveria estar igualmente preparada para administrar as repercussões advindas do uso

turístico desse recurso.

Um caso que simboliza essa situação em que a comunidade busca afirmar seu direito de

uso e gestão sobre a caverna está na história contada sobre sua descoberta. O Sr. Carlos Roberto

da Silva Moraes, morador de André Lopes e monitor ambiental, apresenta a versão comunitária:

“(...) o pessoal aqui, que vivia próximo da caverna, eles viviam da plantação, né, devido

as lenda, eles né, plantavam suas coisas e armazenavam dentro da caverna. Outro dia

amanhecia alguns do lado de fora, alguns comido, alguns bagunçado e como eles acreditavam

muito em fantasma e assombração, eles acreditavam que algum tipo de espírito mal tinha feito

aquilo com os alimento deles né, sendo que eram os próprios bichos, paca, catete, esses bichos

que comiam né os alimentos deles, mas como a maioria deles eram afro-descendente né, tinha

muito aquela coisa de acreditar em candomblé né, essas coisas, então mexe muito com espírito,

então eles acreditavam que eram esses espírito mau que tinha feito aquilo com os alimento dele

né e a maior parte das roça deles onde eles faziam seus plantio, era próximo da entrada da

caverna, então na hora do almoço que eles tavam descansando né, do almoço, imaginavam ouvir

gritos, vozes dentro da caverna pelo barulho que a água do rio faz dentro da caverna, então eles

passaram a ter uma crença, que se não fosse o inferno, seria uma entrada para o inferno né, os

gritos, vozes que eles escutavam terem sido das alma que o diabo tinha carregado pra dentro da

caverna... mas o nome real mesmo, que bem antes de surgir o nome Caverna do Diabo, bem

antes disso, tinha um nome que o pessoal aqui que vivia aqui né, eles deram Gruta da Tapagem

né, porque gruta, caverna né, tapagem em Tupi- Guarani significa lugar misterioso ou lugar

obscuro né, então aí surgiu esse nome Caverna do Diabo mais pra chamar atenção da mídia na

época, isso tudo acaso, por causa de um alemão que foi o primeiro explorador da caverna né,

falam que ele foi o primeiro descobridor, mas foi o primeiro explorador que aqui já vivia gente,

então esse primeiro explorador, foi no, isso aconteceu no ano de 1891 né, ele veio aqui perdido

na mata, que na verdade ele não era pesquisador de caverna, ele era pesquisador de erva

medicinais, tinha se perdido na mata e o pessoal que vivia aqui informou pra ele desse lugar

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misterioso e ele como curioso, como todo mundo é né, então ele foi até esse lugar que eles

falaram, acendeu a tocha né, na época era aquelas tocha de bambu, entrou dentro da caverna,

ele achou impressionante né, aquele lugar de tanta beleza e começou a andar, tinha vez que ele

ficava dias, horas dentro da caverna, o pessoal muitas vezes acreditavam até que ele tinha sido

carregado pelo diabo né, que tava muito demorando, então foi assim que esse homem levou essa,

essa notícia pra São Paulo e na época foi negado por ele, ele pediu uma ordem pra exploração,

mas foi negado né, e aí começaram vim outros pessoal mandado pelo, pelo governo né, até que

chegou o coronel Rodolfo Petená né, que veio aqui que tem hoje como um dos primeiros assim

explorador da caverna né, então ele veio, fez a travessia da caverna né, no ano de 1965, não, é,

1965, ele fez a primeira travessia, demoraram 24 horas, tal e veio vários outros grupo, o grupo

de Michel Lebret né e assim por diante...”. (Entrevista em 09/04/2007).

Figura 24. Núcleo Caverna do Diabo – PEJ

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Figura 25. Acesso à Caverna do Diabo

Figura 26. Restaurante do núcleo Caverna do Diabo

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Figura 27. Espaço para exposição de artesanato comunitário no núcleo

Figura 28. Entrada para a caverna

Fotos: Ivie Santana (2008)

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Na sequência, outra atividade empreendida pela administração municipal, motivou a

reunião das duas comunidades, dessa vez para tratar da elaboração do Plano Diretor de Eldorado.

A reunião contou com a presença de representantes das comunidades de André Lopes,

Galvão, Nhunguara, São Pedro e Sapatu e de representantes da prefeitura de Eldorado,

responsáveis pela elaboração do plano diretor.

A reunião, realizada em 12/06/06, começou com a apresentação de um representante da

prefeitura explicando que o município de Eldorado, por ser considerado estância turística, era

obrigado a ter um plano diretor. O prazo de elaboração desse plano era outubro de 2006 e o

período de aplicação previsto para a execução do plano seria de 15 a 20 anos, a contar do início

de 2007. Caso o plano diretor não fosse feito dentro do prazo, o município perderia o repasse de

recursos específicos que são concedidos a municípios considerados estâncias turísticas.

A apresentação da proposta do plano diretor de Eldorado para as comunidades rurais era

uma das etapas de elaboração do plano e a partir de um texto base, foram marcadas audiências

públicas para discussão e aprovação do texto. Após a fase das audiências, o texto deveria ser

refeito para incorporar as alterações aprovadas e esse espaço seria aberto à participação da

população. A versão final do texto por sua vez, passaria pela aprovação da Câmara dos

Vereadores, realizada em sessão aberta.

Dentre as propostas do plano, havia uma sobre o zoneamento municipal com base nas

atividades de agricultura e turismo para a zona rural. Segundo o técnico da prefeitura, os recursos

municipais seriam aplicados de acordo com o zoneamento municipal e com a articulação das

comunidades de bairro e associação de moradores. Um desses recursos é justamente o Fundo

Estadual para Estâncias Turísticas, concedido pelo Departamento de Apoio ao Desenvolvimento

das Estâncias (DADE), que a princípio é destinado ao desenvolvimento turístico do município,

mas que pode ser usado para outras funções desde que acompanhado de justificativa relacionada

à atividade turística.

As comunidades questionaram a aplicação desses recursos pela prefeitura, pediram para

incluir a prestação de contas municipal como norma do plano diretor, solicitaram que o texto base

do plano fosse entregue a elas antes das audiências públicas e solicitaram ainda, maior

participação nas decisões políticas do município, através de mais atenção, mais acesso às

informações e mais espaço para participação.

O plano diretor para o município de Eldorado foi aprovado no final de 2006. O texto o

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define como instrumento estratégico para o planejamento e a gestão municipal, baseado na

política de desenvolvimento agrícola e turístico, condicionante para a atuação de agentes públicos

e privados no município.

Dentre os princípios e objetivos gerais do plano, destaca-se: “III – Desenvolvimento

socioeconômico do município tendo como base o respeito ao meio ambiente e as tradições

culturais, principalmente no que se refere às ações Turísticas e Agrícolas no município”.

O plano foi construído em função do município de Eldorado ser considerado “estância

turística”; essa característica garante um repasse importante ao município, advindo do Fundo

Estadual para Estâncias Turísticas. Além disso, por abrigar unidades de conservação em sua área,

o município também recebe repasse do ICMS do Estado. Esses dois condicionantes, um referente

à conservação ambiental e outro, referente ao desenvolvimento turístico, impõem a adoção de

critérios específicos para a o planejamento do município e para o aproveitamento de seus

recursos.

Da seção que trata especificamente do turismo, destaca-se o seguinte parágrafo do artigo

35:

“XIX - elaborar projetos específicos visando melhorias nos seguintes pontos turísticos do

município:

a) Quanto aos Roteiros:

Caverna do Diabo;

Queda do Meu Deus;

Vale das Ostras;

Trilha do Bugio e Complexo do Rolado;

Caverna do Frias;

Trilha do Lamarca;

Rio Batatal;

Trilha da Ressurgência e Gruta das Ostras;

Mirante do Angico.

E outros que vierem a ser diagnosticados e implantados.

Para a implantação de um plano de manejo e utilização racional desses roteiros poderá

estabelecer uma parceria entre a Prefeitura Municipal e o legítimo possuidor das áreas em

questão”.

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Grande parte desses atrativos localiza-se nas áreas reconhecidas como pertencentes às

comunidades André Lopes e Sapatu. Ambas são alvos diretos da política proposta pela

administração municipal, visto que dividem seus territórios com as unidades de conservação e

tentam garantir a gestão dos principais atrativos turísticos de Eldorado. Contudo, pelo histórico

de intervenções apresentado, o principal interlocutor com quem as comunidades têm discutido o

uso dessas áreas é o Governo Estadual, inclusive em relação à política de reconhecimento

quilombola. Nesse contexto, a administração municipal, a partir da aprovação do plano diretor,

assume maiores responsabilidades na condução do planejamento para o município.

A atividade seguinte, realizada com as duas comunidades, consistiu na proposta de

elaboração de pequenos projetos comunitários a serem submetidos a um edital disponibilizado

pelo Instituto para o Desenvolvimento Sustentável e Cidadania do Vale do Ribeira (IDESC), uma

organização não-governamental atuante na região.

A começar pela comunidade de Sapatu, a proposta do edital foi apresentada durante

oficina que tinha por objetivo inicial instrumentalizar o grupo para a elaboração de projetos

comunitários, visto que essa é atualmente, uma das principais formas de financiamento para as

ações e os projetos empreendidos pelas comunidades.

O grupo foi dividido em dois subgrupos que elaboraram, cada qual, uma proposta de

projeto:

1 – “Projeto de desenvolvimento do ECOTURISMO em Sapatu”;

Turismo direcionado a grupos escolares;

Formação de roteiro turístico incluindo a área da Queda do Meu Deus, a fábrica de banana,

o centro de artesanato e um projeto de criação de mudas nativas;

Construção de quiosque;

Melhoramento das trilhas;

Capacitação da comunidade.

O projeto é uma importante forma de geração de renda na comunidade através do

aproveitamento dos recursos naturais protegidos até hoje. Ele apresenta como benefícios:

Sociais: divulgação e valorização da comunidade;

Ambientais: conservação ambiental dos recursos através do turismo;

Econômicos: geração de renda e integração de outras atividades econômicas.

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2 – “Projeto de viveiro de plantas nativas para reflorestamento e comercialização”;

Viveiro de mudas para reflorestamento, comercialização e visitação turística;

Criação de mudas de ervas medicinais e espécies em extinção.

O projeto é importante porque tem diferentes funções: uso turístico, reflorestamento de

áreas degradadas, fornecimento de ervas medicinais para a comunidade e comercialização de

mudas. Ele apresenta como benefícios:

Sociais: divulgação da comunidade através do trabalho com mudas e do turismo;

Ambientais: repovoamento de espécies, reflorestamento e recuperação da natureza;

Econômicos: geração de renda através da venda de mudas e do turismo.

Com as duas propostas, o grupo reunido novamente, avaliou a viabilidade de ambas para a

comunidade. A avaliação das propostas teve como resultados:

Proposta 1

Bom aproveitamento da área da Queda do Meu Deus;

Alto custo do projeto;

Boa justificativa;

Poucas ações de conservação ambiental.

Proposta 2

Pouca geração de renda para a comunidade;

Boa idéia e boa justificativa;

Importante para a conservação ambiental;

Falta de dimensão e localização da área do viveiro;

Pouco interesse para o turismo.

A partir da avaliação das propostas, o grupo, em sua maioria, julgou a “Proposta 2” como

melhor. Essa proposta, de forma geral, mantinha mais afinidade com o grupo e com a própria

comunidade, que caso tivesse a proposta aprovada pela ONG, assumiria pela primeira vez, a

gestão integral de um projeto. Contudo, a maioria do grupo foi questionada pelo fato da proposta

não ter importância turística; os questionamentos partiram especialmente de alguns monitores

ambientais que tinham interesse em melhorar a estrutura de recepção na área da Queda do Meu

Deus.

Como não havia consenso entre o grupo, optamos, em conjunto, por discutir melhor o

assunto e definir uma proposta. Foram marcados mais cinco encontros com a comunidade de

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Sapatu para que entre as duas propostas elaboradas, fosse escolhida aquela que seria submetida

ao IDESC.

Os encontros seguintes tiveram pouca participação da comunidade, fato que prejudicou o

andamento do trabalho, pois em pequeno número, os representantes não se sentiam seguros para

optar por uma proposta, elaborá-la e organizar a documentação necessária para enviá-la dentro do

prazo, no caso, final do mês de junho de 2006. Além disso, nos encontros que reuniram mais

representantes, não se chegou a um consenso sobre a melhor proposta, o grupo permaneceu

dividido entre a proposta de ecoturismo na Queda do Meu Deus e a proposta do viveiro

medicinal.

Sendo assim, no dia 21/06/2006, no último encontro relacionado à discussão das

propostas, ficou decidido que a comunidade amadureceria suas decisões e esperaria pela abertura

de um novo edital.

Em André Lopes, o processo foi o mesmo e o grupo elaborou as seguintes propostas:

1 – “Projeto de Educação Ambiental na comunidade de André Lopes”;

Compra de equipamentos audiovisuais;

Contratação de palestrantes e monitores;

Busca de parceria para a produção de vídeo sobre a cultura quilombola;

Agendar visitas de grupos escolares à comunidade;

Produzir novos vídeos com os grupos.

O projeto tem importância social e ambiental por trabalhar com práticas de conservação

ambiental.

2 – “Projeto de conservação de espécie para fins de geração de renda a médio e longo prazo

na comunidade de André Lopes”;

Construção de viveiro de palmito juçara;

Repovoamento da espécie em extinção em áreas degradadas;

Comercialização de mudas e formação de espaço para visitação e educação ambiental;

Envolvimento da comunidade nas atividades relacionadas ao viveiro;

Registro das atividades e das etapas de crescimento do palmito através de documentos

digitais.

O projeto é importante porque integra um outro projeto atualmente em desenvolvimento

na comunidade (projeto de repovoamento da espécie juçara em parceria com o Instituto Sócio-

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Ambiental – ISA) e assim, ganha força para envolver a comunidade. Ele apresenta como

benefícios:

Sociais: conscientização da comunidade e de visitantes sobre o manejo da espécie;

Ambientais: recuperação de espécie em extinção e de áreas degradadas;

Econômicos: geração de renda para a comunidade através da comercialização de mudas

e da visitação turística.

Após a apresentação das propostas, os grupos partiram para a fase de avaliação:

Proposta 1:

Orçamento acima do limite permitido;

A proposta não especificou número de participantes;

A proposta não especificou como pode gerar renda para a comunidade.

Proposta 2:

Como pensam em fazer o registro digital das comunidades sem ter equipamentos?;

Quanto significa médio e longo prazo?;

Existiriam visitantes interessados no projeto?;

O orçamento seria suficiente para todas essas ações?;

A comunidade se envolveria pelo preço estipulado das diárias?;

As pessoas da comunidade trabalhariam voluntariamente pelo projeto?.

O tipo de avaliação feita em relação à “Proposta 2” sinalizava para a viabilidade do

projeto. O grupo reunido se propôs a discutir melhor a proposta a fim de melhorá-la e submetê-la

ao edital. Não houve nesse caso, nenhum questionamento sobre a natureza do projeto e sua

relação com o turismo.

Foram marcados mais sete encontros com a comunidade de André Lopes para definir a

proposta de construção de viveiro da espécie juçara na comunidade. Nesses encontros foram

trabalhadas todas as exigências do edital quanto a: APRESENTAÇÃO, JUSTIFICATIVA,

METAS, ATIVIDADES, METODOLOGIA e MONITORAMENTO, MEMÓRIA de

CÁLCULO e PLANILHAS ORÇAMENTÁRIAS, documentos que se referem aos materiais,

equipamentos e serviços utilizados para a execução do projeto.

A proposta foi concebida como uma parceria entre a Associação dos Remanescentes de

Quilombo do Bairro de André Lopes e o Instituto Sócio-Ambiental (ISA), com a colaboração da

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) através das Oficinas de Planejamento

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Comunitário do Turismo. O projeto representa uma das demandas da comunidade, o que

favoreceu o envolvimento e a participação dos representantes na sua criação.

A proposta intitulada “Conservação da espécie do palmito juçara em extinção para fins

de geração de renda a médio e longo prazo no Quilombo André Lopes” foi enviada ao Instituto

para o Desenvolvimento Sustentável e Cidadania do Vale do Ribeira (IDESC) em 30/06/2006

com os respectivos documentos do proponente, a Associação dos Remanescentes de Quilombo do

Bairro de André Lopes, e foi aprovada em agosto de 2006.

A última atividade realizada com as comunidades como parte da programação das

oficinas teve por objetivo avaliar o andamento das oficinas. A princípio, a idéia era que a

avaliação servisse para orientar as próximas atividades, contudo, por falta de condições de ambas

as comunidades em dar seguimento às atividades, as oficinas foram encerradas com essa

avaliação.

A avaliação de ambas as comunidades foi feita com base nas seguintes atividades:

Diagnóstico da situação do turismo atual nas comunidades;

Levantamento de demandas para o desenvolvimento do turismo local;

Participação na discussão sobre o plano diretor municipal e o conselho municipal de turismo

de Eldorado;

Elaboração de planos para atrativos turísticos já em utilização;

Elaboração de projetos para apresentação a editais.

Avaliação em Sapatu:

Um resultado das oficinas é a organização de informações para o planejamento do turismo

na comunidade;

A comunidade não conseguiu se articular para formar um grupo de trabalho responsável

pelo turismo;

Houve muita discussão e discordância na hora de elaborar propostas de turismo para a

comunidade;

A discussão sobre temas paralelos tomou muito tempo e tirou o foco da discussão sobre o

turismo;

Houve desinteresse do grupo quando assuntos paralelos foram discutidos, por exemplo, como

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no caso da titulação de terras;

Faltou entendimento entre a comunidade e havia imposição de idéias contrárias entre alguns

membros;

Faltou comprometimento da comunidade em relação às oficinas, às vezes o grupo estava

forte, às vezes estava fraco;

As oficinas não atenderam às expectativas da comunidade.

Avaliação em André Lopes:

Ótima avaliação das oficinas;

Dificuldade de entendimento de termos técnicos;

Bom desempenho da professora;

Uso de materiais adequados;

Boa participação do grupo de turismo da comunidade;

Pouco número de participantes da comunidade;

Boas propostas formuladas;

Falta de ação para realizar as propostas formuladas;

O coordenador do grupo de turismo não conseguiu articular os participantes;

Os participantes do grupo não mantiveram a frequência nas oficinas;

Falta de concentração, brincadeiras e atrasos do grupo fizeram com que se perdesse tempo

nas oficinas;

As regras do café, do horário e de ouvir quando um está falando não foram sempre

cumpridas;

O planejamento para a Caverna do Diabo teve bom andamento;

Para haver a consolidação do plano para a caverna, precisa haver maior participação da

comunidade;

A comunidade se saiu bem na elaboração de projetos, principalmente por ter sido o

primeiro;

O objetivo da oficina de elaboração de projeto foi cumprido;

O tempo foi suficiente, a comunidade foi organizada, os materiais foram bons e professora

teve uma boa relação com o grupo.

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As atividades de avaliação das oficinas aconteceram no dia 08/08/2006 em Sapatu e no

dia 10/08/2006 em André Lopes. Entre os meses de agosto e outubro de 2006, prazo final

estipulado para a realização das oficinas, as comunidades não se organizaram para retomar as

atividades das oficinas.

Os grupos que participaram das Oficinas de Planejamento Comunitário do Turismo,

tratado por vezes como “comunidade”, são os representantes da Associação de Remanescentes de

Quilombo do Bairro de Sapatu e da Associação de Remanescentes de Quilombo do Bairro de

André Lopes, que com maior ou menor freqüência, fizeram parte das atividades propostas pelas

oficinas e são como tal, realizadores, no plano das idéias e das ações, de uma proposta de turismo

para a comunidade.

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Capítulo 10: O planejamento comunitário do turismo como instrumento de legitimação

cultural em território quilombola

De forma geral, as expectativas das comunidades a respeito da proposta de planejamento

do turismo estavam, inicialmente, relacionadas a processos operacionais como a estruturação de

atrativos ou a aquisição de equipamentos. As oficinas por sua vez, tinham como objetivo

fomentar um processo de reflexão sobre a forma como o turismo poderia ser desenvolvido nos

territórios das comunidades; nesse sentido, sua realização parece ter cumprido o proposto.

As comunidades se dispuseram a fazer as reflexões propostas durante as atividades e tais

reflexões desencadearam determinadas respostas e iniciativas nos grupos. No caso de Sapatu,

destaca-se a expressiva resistência que, parte do grupo que compôs as oficinas, manifestou em

relação à estruturação do turismo na comunidade. A resistência, representada pela falta de

consenso comunitário para a construção de um projeto, remete à necessidade que o grupo, como

parte da comunidade, teve em discutir melhor a gestão do território.

Segundo o presidente da associação de Sapatu, Sr. Josias Moreira, o turismo a ser

desenvolvido na comunidade, de acordo com os atrativos que possuem, seria o turismo ecológico.

Ele destaca a presença de cavernas e cachoeiras em território comunitário e afirma que para

melhor aproveitamento desses atrativos, é necessário investir em infra-estrutura. Fala ainda que o

uso desses atrativos não gera benefícios diretos à comunidade, posto que são administrados de

forma particular, mas deverão gerar a partir da titulação das terras. Esse é o caso do principal

atrativo localizado no bairro, a Queda do Meu Deus.

A Queda está sob os cuidados de um morador associado, que recebe um valor

determinado pela entrada de visitantes. Para a visitação da Queda é necessário que um monitor

ambiental acompanhe o percurso. O grupo, durante as oficinas, teve a possibilidade de construir

um projeto para o aproveitamento da área da Queda, no entanto, o grupo demonstrou maior

interesse pela viabilização de um projeto de viveiro de mudas medicinais. Ao final, a falta de

consenso entre o grupo não permitiu que nenhuma iniciativa se materializasse.

A comunidade de Sapatu não apresentou um histórico negativo em relação ao turismo,

entretanto, fez repetidas ressalvas à instalação da atividade, especialmente considerando-se a

construção de infra-estrutura turística. Essa discussão diz respeito fundamentalmente ao uso que a

comunidade concebe para seu território. A despeito de o turismo ser considerado como atividade

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potencial para o desenvolvimento da comunidade, seus representantes, pela falta de consenso,

demonstraram que a atividade não é uma prioridade comunitária. Por outro lado, ao passo que a

falta de consenso se afirmava como decisão comunitária, sobressaíam iniciativas paralelas, de

caráter individual, como no caso do uso da Queda do Meu Deus.

As iniciativas de construção de obras e equipamentos turísticos representaram fator de

insegurança para a comunidade devido ao fato dela não ser ainda titulada. Dessa forma, até que

se titulem as terras reconhecidas, atribuindo à comunidade o direito de uso e gestão sobre o

território, os moradores demonstraram respeitar as condições e os limites de uso praticados uns

pelos outros.

Alguns moradores, por estabelecerem uma relação específica com o turismo, como no

caso dos monitores ambientais, apoiaram o desenvolvimento turístico da comunidade, contudo,

mesmo para esses moradores, o turismo ainda representa atividade complementar de geração de

renda, paralela às atividades de agricultura, subsistência ou comércio. O presidente da associação

atesta, por sua vez, que o turismo se constitui em alternativa para a comunidade frente às

imposições da legislação ambiental, ao substituir as práticas de produção de roças comunitárias

por exemplo.

Entretanto, as formulações do grupo sinalizaram justamente para a manutenção de

práticas através das quais a comunidade define sua cultura, inclusive em relação à cultura do

turista, visto como alguém muito diferente dos moradores. As comunidades desenvolveram

constantes formulações a respeito do relacionamento com os turistas, ressaltando as diferenças

entre o comportamento e as práticas sociais de ambos. Essa diferença representava, a princípio,

possibilidades de conflitos sociais que a comunidade trabalhou formas de evitar.

A defesa da maioria do grupo por uma proposta de viveiro de ervas medicinais, mesmo

não representando nenhum avanço do ponto de vista turístico, é expressiva sobre as escolhas que

o grupo, enquanto representantes da comunidade, definiu para o aproveitamento do território. A

construção de um viveiro implicaria na possibilidade de geração de renda, objetivo primordial do

turismo, porém baseada em conhecimentos, recursos e capacidades que a comunidade já dispõe e

sem as possíveis intervenções, advindas da atividade turística.

A representatividade comunitária, auferida nas oficinas, pela participação e forma de

intervenção dos moradores, foi notoriamente restrita ao considerarmos toda a população do

bairro. Contudo, simbolizou a dinâmica de articulação política da própria comunidade, contexto

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em que as responsabilidades pela gestão das ações sobre o território são também assumidas por

um grupo restrito dentro da associação de moradores. Além disso, a composição do grupo

garantiu certa heterogeneidade de opiniões.

Todavia, mesmo demonstrando receio e insegurança quanto à estruturação da atividade

turística, o grupo não manifestou discordâncias radicais sobre essa perspectiva. A comunidade,

com cerca de 10 monitores ambientais formados, está envolvida com o turismo, dependente

principalmente, do fluxo dirigido a Caverna do Diabo. Outra forma com que a comunidade se

aproxima do turismo é através da venda de produtos comunitários como o mel e o artesanato.

Ao que parece, a possibilidade de desenvolvimento turístico da comunidade de Sapatu,

incluindo a estruturação dos próprios atrativos, está condicionada a um processo de

amadurecimento político da própria comunidade em relação à gestão do território. Esse processo

avança à medida que sucessivas propostas de intervenção territorial, tais como o turismo, são

apresentadas às comunidades como possibilidades a serem discutidas e ou como circunstâncias a

serem trabalhadas.

A comunidade de André Lopes, vizinha à comunidade de Sapatu, apresentou reações

diferenciadas em relação à proposta de desenvolvimento comunitário do turismo, a despeito de

ambas estarem sujeitas a um mesmo contexto sócio-espacial. André Lopes destacou o início de

seu envolvimento com o turismo através das iniciativas de visitação à Caverna do Diabo

empreendidas pela administração do PEJ na década de 1970.

Esse envolvimento inicial foi expressivo para a comunidade, diante dos reflexos causados

à dinâmica comunitária pela alteração na forma de conceber o aproveitamento de um recurso de

uso comunitário. Além da alteração que implicou no rearranjo cultural e espacial de práticas

comunitárias, a comunidade se sentiu depositária dos efeitos gerados por uma atividade sobre a

qual não exercia qualquer influência ou controle.

A Caverna do Diabo é o principal atrativo turístico do município de Eldorado. Para se

chegar à caverna, os visitantes têm de passar, necessariamente, pela comunidade de André Lopes,

bairro que mantém maior proximidade física com o atrativo. A caverna inclusive localiza-se em

território reconhecido como pertencente à comunidade, contudo, por se tratar de um patrimônio

público da União, sua gestão e manejo são feitos pelo Estado, em âmbito estadual e federal.

Dessa forma, a comunidade não considerou o turismo como potencial a ser desenvolvido,

mas como atividade já presente no território. Suas estratégias de atuação frente a essa situação

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consistiram em trabalhar formas de regulação sobre a atividade, controlando seus impactos

negativos e potencializando seus efeitos positivos como a geração de renda.

Nesse sentido, durante as oficinas, o grupo trabalhou em duas frentes, considerando-se o

planejamento do turismo para a comunidade e para a Caverna do Diabo. Essa perspectiva encerra

a noção de que o turismo de visitação da caverna, como já experimentado, repercute na

organização territorial das práticas comunitárias. As formulações desenvolvidas para o

planejamento do turismo na comunidade caracterizaram-se pelas formas de controle dos impactos

sócio-culturais decorrentes da presença dos turistas na comunidade. O planejamento do turismo

na caverna representou por sua vez, a possibilidade do exercício de um direito, relativo à

participação na gestão de um recurso que compõe historicamente o território comunitário.

As estratégias, contudo, foram simples, não se basearam diretamente na construção de

obras e equipamentos turísticos, mas em processos de capacitação para a prestação de serviços e

de controle sobre o uso e a disposição dos recursos comunitários, naturais e sociais, para

finalidade turística. O grupo concebeu o turismo comunitário como prática educativa, voltada à

difusão da cultura quilombola e dessa forma, privilegiou ações que não alterassem as formas de

uso territorial já estabelecidas pela comunidade.

O projeto de viveiro de juçara simbolizou essa idéia de forma especial. A concepção do

projeto buscou garantir, sob normas legais, a prática de uma atividade comunitária que se tornou

proibida pela legislação ambiental. O extrativismo do palmito, mesmo ilegal, representa

importante fonte de renda para famílias da comunidade, nesse caso, o projeto consiste em

alternativa para a manutenção da atividade dentro de parâmetros ambientalmente permitidos.

Além disso, como o projeto foi construído em um espaço proposto para se pensar o

desenvolvimento turístico da comunidade, o grupo incorporou a realização de visitas com grupos

de escolas ao viveiro, como atividade turística associada à educação ambiental.

O grupo demonstrou coesão nas suas decisões, inclusive quanto à definição do projeto.

Pela finalidade do projeto, percebe-se que entre o grupo de trabalho, a noção comunitária estava

fortalecida, o que influenciou diretamente a construção do projeto, bem como os demais

resultados produzidos durante as oficinas. Essa noção garante em alguma medida a

representatividade comunitária, mesmo que as atribuições e responsabilidades em relação à

associação de moradores fossem restritas a determinados moradores de André Lopes.

O Mosaico de Unidades de Conservação do Jacupiranga, instituído via publicação de lei,

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apresenta níveis de importância diferenciados para os diferentes sujeitos que estão envolvidos

com o uso dos recursos que compõem as unidades de conservação. A proposta do Estado, com a

criação do mosaico, é tentar solucionar os conflitos gerados pela criação do antigo PEJ em áreas

habitadas por comunidades tradicionais. Além disso, o fato de se redimensionar a área ocupada

pelo extinto parque, dividindo-a em unidades de conservação menores, deve favorecer o controle

e a fiscalização ambiental sobre áreas que freqüentemente sofrem processos de invasão.

Em conversa no dia 09/04/2006 com o Sr. Rodrigo Aguiar, diretor do Departamento de

Meio Ambiente de Eldorado, o projeto era considerado interessante, visto que o novo Parque

Estadual Caverna do Diabo se localiza quase integralmente nas imediações do município. Com

esse nome, o parque se consolida como referência para a visitação turística, por conta do

conhecimento já existente sobre a caverna, o que estimularia o desenvolvimento da política

municipal de turismo. Além disso, a gestão das áreas seria facilitada pela proximidade da

administração do parque com o município e as comunidades, co-gestoras das áreas.

O presidente da associação de Sapatu, na época da realização das oficinas, considerava

interessante a aprovação de um projeto que pudesse resolver os conflitos sobre o uso das áreas,

especialmente em relação à Queda do Meu Deus e da Caverna do Diabo. Todavia, manifestava

dúvidas sobre os termos da gestão em parceria proposta pelo Estado; dizia que até que essas

condições estivessem claras, não era possível emitir uma opinião favorável ou não ao projeto.

Durante o mesmo período, o representante da comunidade de André Lopes que fazia parte

do Conselho Gestor do antigo PEJ, Sr. André Luiz P. de Moraes, relatou como a participação das

comunidades auxiliava o processo de gestão das áreas, considerando os diversos usos que lhe são

destinados. Nesse caso, ele apresentava o argumento das práticas comunitárias concebidas sob a

ótica conservacionista como um modelo diferenciado de apropriação territorial, que deveria ser

tratado dentro de uma perspectiva também diferenciada pela legislação ambiental e pelos órgãos

responsáveis por seu cumprimento.

O diálogo em torno dessas questões que se referem às formas práticas como as

comunidades exercem sua cultura, tais como a roça ou a extração de espécies para alimentação e

construção de moradias, é fundamental para garantir seu direito de uso e acesso ao território. A

negociação com base no reconhecimento das ações e intenções dos diversos sujeitos que atuam

sobre um mesmo espaço, parece uma alternativa interessante para que as estratégias adotadas

permitam a coexistência de racionalidades e culturas diferentes.

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A luta pelo reconhecimento do território representa para as comunidades, a esperança e o

direito de manifestarem sua cultura livremente, seja simbólica e materialmente. Em um processo

de intervenção histórica, as comunidades resistem, acolhem e se adaptam a essas intervenções e

com o direito que lhes foi outorgado, atualmente possuem maior poder para atuar sobre elas.

As comunidades de André Lopes e Sapatu estão inseridas no mesmo contexto de

intervenção territorial gerada pela construção da SP-165, pela criação do PEJ e pelas

conseqüentes normatizações trazidas pela legislação ambiental, onde o turismo surge como

alternativa para o uso e aproveitamento territorial. Nota-se que da condição de populações que

historicamente resistiram a processos de intervenção sócio-espacial, sem que sua participação

fosse considerada como critério para a definição do uso e da gestão territorial, as comunidades

vêm agora, por meio do reconhecimento de um direito cultural, afirmando um posicionamento

político no processo de construção dos territórios que ocupam.

O trabalho demonstra que a tentativa de integrar a institucionalização de políticas

fundiárias e ambientais a projetos de desenvolvimento territorial passa muitas vezes ao largo da

dinâmica de produção social que populações locais já vinham consolidando no território. A falta

de articulação e diálogo na sobreposição dessas políticas tem gerado senão conflitos, processos

morosos de resolução e concessão de direitos civis adquiridos que não incorporam contextos

sócio-culturais já instituídos espacialmente. No caso de populações quilombolas, o caráter

cultural se torna um recurso de representação política, usado como canal de afirmação de outros

modelos que não aqueles sugeridos ou propostos como normas de uso territorial. Já no caso do

turismo, esse fato foi especialmente constatado, dada a insegurança e a resistência das

comunidades envolvidas no trabalho em relação a própria atividade.

Enquanto não obtém a titulação em seu favor, as comunidades negociam formas de

intervenção que são pensadas para o uso de seus territórios. No espaço de reflexão aberto pela

realização das oficinas, as comunidades notadamente conduziram um processo de visualização do

próprio território, indo além do objetivo aparentemente proposto, qual seja, o de realizar o

planejamento do turismo. Elas trabalharam norteando-se fundamentalmente pela dinâmica

comunitária, determinando prioridades e escolhas concretas para a conformação do território.

Essa dinâmica, composta por idéias que tanto divergem quanto se aproximam, define a própria

política comunitária; a falta de ação é sintomática de um posicionamento político onde se negam

propostas em detrimento da propagação de um modelo já estabelecido.

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Os resultados das oficinas são muito menos expressivos quanto à possibilidade de

desenvolvimento do turismo, do que quanto à possibilidade de se reconhecer no planejamento

territorial, uma proposta de desenvolvimento comunitário, apoiado em bases culturais

historicamente construídas. Nesse sentido, o planejamento identificado como recurso para a

projeção de uma determinada concepção sobre o território, constitui-se num instrumento de

reflexão e intervenção para a materialização plena ou a legitimação de uma cultura específica.

É também em torno dessa possibilidade que residem as condições de sustentabilidade do

processo de produção territorial. Essas condições estão diretamente vinculadas à manutenção da

própria população no território, considerando-se a manifestação de suas práticas sócio-culturais

como recursos para a subsistência e a reprodução das comunidades. Orientada inicialmente pela

perspectiva comunitária, a noção de sustentabilidade se expande ao relacionar diferentes

sujeitos na condução do processo de produção territorial. As respectivas intenções, muitas vezes

com a capacidade política que manifestam, devem estar integradas à dimensão comunitária, não

só pelo reconhecimento do direito civil, mas fundamentalmente pelo reconhecimento civil do

direito que essas populações possuem sobre a gestão do território que habitam historicamente.

O planejamento territorial comunitário dá voz a esse direito, posto que instrumentaliza

as intenções comunitárias para a negociação sobre o futuro do território e especialmente sobre a

vida no território. Um instrumento que pode ser usado para institucionalizar a representação

comunitária, por vezes negligenciada justamente pela falta de um instrumental técnico.

A trajetória de desenvolvimento da região, em especial a referente ao contexto das

comunidades de André Lopes e Sapatu demonstra que tal negligência vigorou na instalação de

planos e políticas públicas dirigidas aos territórios atualmente reconhecidos como quilombolas.

Com a perspectiva de alterar esse quadro de relações institucionais, as comunidades podem

lançar mão do recurso do planejamento comunitário para manifestar suas propostas no processo

de negociação, com demais sujeitos, sobre o uso e a apropriação do território.

Tal planejamento por sua vez, conforme se observou através da experiência das oficinas,

é depositário de um sentido de mundo, de conhecimentos e práticas construídos historicamente

e que caracterizam uma forma de expressão cultural contemporânea. Nesse caso, o

planejamento territorial, como ferramenta utilizada pelas comunidades, demonstra a

possibilidade de fusão da técnica com o sentido para a manifestação e propagação de um

modelo de sociedade.

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