nº 1 • terça 04 de JUlho Verdadeiro Abrir com chave de ouro · de “bonecas russas”....

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Abrir com chave de ouro O s últimos ensaios de His- tória do Cerco de Lisboa têm sido abertos ao públi- co. Neste momento são já muito pequenos os ajustes a fazer num espectáculo cujo funcionamento José Gabriel Antuñano e Ignacio García comparam a um conjunto de “bonecas russas”. Dificilmente poderia ser de outra maneira quan- do, num instante, está D. Afonso Henriques em cena, falando aos cruzados, e, no outro, o revisor Raimundo Silva, sem saber se te- lefona ou não à directora literária por quem se apaixonou algures no final dos anos 80. O próprio José Saramago é arrolado como perso- nagem, para aconselhar o revisor que, na sequência do seu acto de rebeldia (à conta do “não” que escreveu nas provas, subverteu completamente o papel dos cruza- dos na conquista de Lisboa), se vê obrigado a escrever um romance para não ser despedido. Dos quatro espectáculos que compõem a programação de amanhã, três são estreias. Para além de História do Cerco de Lisboa estarão em cena as novas criações do Útero e do Teatro da Garagem: Operários e Ela diz. UMA PARÁBOLA Operários, a peça que assinala o 20.º aniversário do Útero, é tam- bém aquela com que Miguel Mo- reira e Romeu Runa regressam a Almada. E, de facto, voltar a casa serviu, num primeiro momento, de mote. A água, por exemplo, converteu-se num elemento cen- tral desta performance, e o pas- sado fabril do município, que tem como principal ícone os estaleiros da Lisnave, traduz-se em palco, de modo objectivo, num adereço em forma de barco e num figurino que corresponde a uma actualiza- ção do tradicional fato-de-maca- co. No entanto, Miguel Moreira já reconheceu, em entrevista ao MaisTMJB, que Operários é da ordem do conceptual e do expe- rimental, estando inclusivamente mais próximo de um espectáculo de dança. A peça inclui também um excerto de Heliogabalo, ou o Anarquista coroado, de Artaud. UMA EXPERIÊNCIA Finalmente, no Teatro Taborda, será possível assistir àquela que Carlos J. Pessoa quis que fosse uma experiência de escrita um pouco diferente da que tinha sido até agora”. Escreveu, por isso, um discurso quase automático, no fe- minino, feito de associações livres e de sugestões – “uma espécie de metralha verbal que serve de es- capatória para as personagens”. Ela diz é, no fundo, uma partitura musical, um longo poema escrito a duas vozes, entre uma Mãe e uma Filha que desfiam, diante de todos, medos, memórias e convic- ções. Para a actriz Fernanda Ne- ves, o facto de parecer abstracto dá uma imensa liberdade ao pú- blico”. O encenador conclui com uma provocação: “Quem é ela e o que é que ela diz? Tudo isto cria um espaço de identificação e de problematização, um espaço de pensamento”. Verdadeiro para que possa ser outro F icou na cabeça a frase que Jorge Silva, interpretando José Saramago, lançou ontem no ensaio geral de Histó- ria do Cerco de Lisboa: “Quan- do escreveste não, alteraste a História a que chamam verda- deira. Tens de inventar outra, para que possa ser falsa – e fal- sa, para que possa ser outra”. Mutatis mutandis, também o Festival de Almada tem de se reinventar a cada nova edição. Tem de ser outro para que possa ser verdadeiro e assim cumprir aquilo que há 34 edições vem inscrevendo no seu código ge- nético. Este ano o amarelo deu lugar ao azul e a flor negra viu- -se substituída por um ser ala- do de expressão tragicómica e carácter artesanal que presta homenagem à essência do tea- tro. Com ele vieram também os caracteres que agora povoam as paredes e os materiais do Fes- tival, acarinhando aqueles que, escolhendo ser actores, hoje fazem parte das nossas lem- branças mais queridas. Este ano damos também as boas-vindas a uma nova figura homenage- ada – o cenógrafo e figurinista António Lagarto marca pre- sença neste Festival com uma exposição na Sala Polivalente da Escola D. António da Costa e com uma instalação no Átrio – e teremos, um mestre de ori- gem estrangeira (e no feminino) a dirigir o ciclo O sentido dos Mestres: a actriz e encenadora norueguesa Juni Dahr é a di- namizadora da quarta edição. A Folha Informativa também mudou ligeiramente (tem uma nova rubrica, de numerologia) e há caras novas por aí, estagiá- rios e espectadores que depres- sa aprendem com os outros o que há, afinal, de tão verdadeiro neste Festival. Nº 1 • TERÇA 04 de JULHO História do Cerco de Lisboa, a partir de José Saramago, com dramaturgia de José Gabriel Antuñano e encenação de Ignacio García, é uma co- -produção entre A Companhia de Teatro do Algarve, a Companhia de Teatro de Almada, a Companhia de Teatro de Braga e o Teatro dos Aloés. © Rui Carlos Mateus

Transcript of nº 1 • terça 04 de JUlho Verdadeiro Abrir com chave de ouro · de “bonecas russas”....

Abrir com chave de ouro

Os últimos ensaios de His-tória do Cerco de Lisboa têm sido abertos ao públi-

co. Neste momento são já muito pequenos os ajustes a fazer num espectáculo cujo funcionamento José Gabriel Antuñano e Ignacio García comparam a um conjunto de “bonecas russas”. Dificilmente poderia ser de outra maneira quan-do, num instante, está D. Afonso Henriques em cena, falando aos cruzados, e, no outro, o revisor Raimundo Silva, sem saber se te-lefona ou não à directora literária por quem se apaixonou algures no final dos anos 80. O próprio José Saramago é arrolado como perso-nagem, para aconselhar o revisor que, na sequência do seu acto de rebeldia (à conta do “não” que escreveu nas provas, subverteu completamente o papel dos cruza-dos na conquista de Lisboa), se vê obrigado a escrever um romance para não ser despedido.

Dos quatro espectáculos que compõem a programação de amanhã, três são estreias. Para além de História do Cerco de Lisboa estarão em cena as novas criações do Útero e do Teatro da Garagem: Operários e Ela diz.

Uma parábolaOperários, a peça que assinala o 20.º aniversário do Útero, é tam-bém aquela com que Miguel Mo-reira e Romeu Runa regressam a Almada. E, de facto, voltar a casa serviu, num primeiro momento, de mote. A água, por exemplo, converteu-se num elemento cen-tral desta performance, e o pas-sado fabril do município, que tem como principal ícone os estaleiros da Lisnave, traduz-se em palco, de modo objectivo, num adereço em forma de barco e num figurino que corresponde a uma actualiza-ção do tradicional fato-de-maca-co. No entanto, Miguel Moreira já reconheceu, em entrevista ao MaisTMJB, que Operários é da ordem do conceptual e do expe-rimental, estando inclusivamente mais próximo de um espectáculo de dança. A peça inclui também um excerto de Heliogabalo, ou o Anarquista coroado, de Artaud.

Uma experiênciaFinalmente, no Teatro Taborda, será possível assistir àquela que Carlos J. Pessoa quis que fosse “uma experiência de escrita um pouco diferente da que tinha sido até agora”. Escreveu, por isso, um discurso quase automático, no fe-minino, feito de associações livres e de sugestões – “uma espécie de metralha verbal que serve de es-capatória para as personagens”. Ela diz é, no fundo, uma partitura musical, um longo poema escrito a duas vozes, entre uma Mãe e uma Filha que desfiam, diante de todos, medos, memórias e convic-ções. Para a actriz Fernanda Ne-ves, o facto de parecer abstracto “dá uma imensa liberdade ao pú-blico”. O encenador conclui com uma provocação: “Quem é ela e o que é que ela diz? Tudo isto cria um espaço de identificação e de problematização, um espaço de pensamento”.

Verdadeiro para que possa ser outro

Ficou na cabeça a frase que Jorge Silva, interpretando José Saramago, lançou

ontem no ensaio geral de Histó-ria do Cerco de Lisboa: “Quan-do escreveste não, alteraste a História a que chamam verda-deira. Tens de inventar outra, para que possa ser falsa – e fal-sa, para que possa ser outra”. Mutatis mutandis, também o Festival de Almada tem de se reinventar a cada nova edição. Tem de ser outro para que possa ser verdadeiro e assim cumprir aquilo que há 34 edições vem inscrevendo no seu código ge-nético. Este ano o amarelo deu lugar ao azul e a flor negra viu- -se substituída por um ser ala-do de expressão tragicómica e carácter artesanal que presta homenagem à essência do tea-tro. Com ele vieram também os caracteres que agora povoam as paredes e os materiais do Fes-tival, acarinhando aqueles que, escolhendo ser actores, hoje fazem parte das nossas lem-branças mais queridas. Este ano damos também as boas-vindas a uma nova figura homenage-ada – o cenógrafo e figurinista António Lagarto marca pre-sença neste Festival com uma exposição na Sala Polivalente da Escola D. António da Costa e com uma instalação no Átrio – e teremos, um mestre de ori-gem estrangeira (e no feminino) a dirigir o ciclo O sentido dos Mestres: a actriz e encenadora norueguesa Juni Dahr é a di-namizadora da quarta edição. A Folha Informativa também mudou ligeiramente (tem uma nova rubrica, de numerologia) e há caras novas por aí, estagiá-rios e espectadores que depres-sa aprendem com os outros o que há, afinal, de tão verdadeiro neste Festival.

nº 1 • terça 04 de JUlho

História do Cerco de Lisboa, a partir de José Saramago, com dramaturgia de José Gabriel Antuñano e encenação de Ignacio García, é uma co- -produção entre A Companhia de Teatro do Algarve, a Companhia de Teatro de Almada, a Companhia de Teatro de Braga e o Teatro dos Aloés.

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Juni Dahr: “A Casa da Cerca é o lugar perfeito para Hedda Gabler”

H edda Gabler está em cena desde 2011. Tudo come-çou quando Juni Dahr

estava a praticar desporto num bosque, em Oslo, e deu com uma casa entre o arvoredo, de amplas vidraças. Na altura, foi muito cla-ro para si que aquele era o lugar de Hedda, uma das heroínas de Henrik Ibsen. “Interesso-me mui-to pelos papéis femininos e pela forma como as mulheres são re-presentadas no teatro”, reconhece a actriz e encenadora norueguesa. “Por isso gosto tanto de Ibsen. Porque ele concebe personagens e peças extraordinárias, nas quais as mulheres são as protagonistas. Não são heroínas, são verdadeiros seres humanos, cheios de confl itos e com decisões difíceis de tomar.” No caso de Hedda, uma mulher a que o marasmo da vida de casa-da ameaça retirar todo o brilho, a proximidade com a Natureza fun-ciona como uma chave de leitura adicional, enriquecendo a trama e a personagem: “O conceito passa por incluir a Natureza no espectá-culo. Para que seja possível sentir até que ponto Hedda está presa”. Da Noruega para a Casa da Cerca, em Almada, foi um pequeno pas-

Surpreendemo-la na Casa da Cerca, ontem ao final do dia, prestes a dar por terminado o primeiro ensaio em Almada depois do êxito obtido por Hedda Gabler na última edição do Festival. Sempre bem-disposta, Juni Dahr conversou com a Folha Informativa sobre o es-pectáculo em que mais espectadores votaram no ano passado para que regressasse agora.

so. A visita ao espaço em 2013, aquando da sua primeira presen-ça no Festival de Almada (com Mulheres de Ibsen), fez nascer de imediato a vontade de montar o espectáculo em terras lusas. “A Casa da Cerca é o lugar perfeito para Hedda Gabler. É uma casa antiga, sofi sticada e aristocráti-ca, e dá para sentir que combina bastante com a personalidade de Hedda”. De facto, a paisagem a perder de vista deixa antever a extensão dos seus horizontes: “Ela está à procura da beleza, do amor verdadeiro, de ideias verdadeiras. Na Casa da Cerca, a atmosfera é inspiradora”. No entanto, por ou-tro lado, este tipo de espectáculo (a que os investigadores já atribuí-ram a designação de site specifi c), também constitui um desafi o para o elenco. Sem qualquer tipo de som ou de luz artifi cial, os intér-pretes são obrigados a descobrir as potencialidades de cada novo es-paço e a lidar com a proximidade do público. Foi assim na Polónia, no Irão ou até mesmo no Japão – um local que Juni Dahr recorda quando comentamos a quantidade de diligências necessárias, junto das autoridades portuguesas, para

se ouvirem os disparos exigidos pela representação. “Pior mes-mo foi no Japão. Tivemos de le-var connosco, da Noruega, uma arma. Fomos barrados em todas as alfândegas”, brinca a actriz que está em Almada pela terceira vez com a sua companhia, a Visjoner Teater, e que se mostra radiante por regressar não só como prota-gonista do Espectáculo de Honra, mas também como dinamizadora daquela que será, até ao momento, a edição mais prática do ciclo O sentido dos mestres. A entrega do prémio do público acontece já no próximo dia 07 de Julho, na Casa da Cerca, no fi nal da última sessão de Hedda Gabler.

RESTAURANTE DA ESPLANADA

• Pato com laranja• Bacalhau com natas

Hoje

Amanhã• Entrecosto na frigideira

com grelos• Salmão no forno com mel

e batata doce

AGENDA DE AMANHÃ

15:00 e 19:00 Hedda Gabler

Casa da Cerca

21:30 Operários

Teatro-Estúdio António Assunção

21:30 Ela diz

Teatro Taborda

21:30 História do Cerco

de LisboaTeatro Municipal Joaquim Benite

os intérpretes do espectáculo francês desta noite que são almadenses

de gema.

Todos os anos são colocadas à venda as assinaturas para o Festival de Almada. E to-

dos os anos as entradas que dão acesso à totalidade dos espectácu-los apresentados são rapidamente procuradas pelos espectadores.

Últimas assinaturas à vendaDepois de mais de metade das assinaturas disponíveis ter sido vendida antes da apresentação integral da programação, ainda é possível adquirir as últimas uni-dades de uma assinatura que com-preende duas modalidades: a As-

sinatura Geral, no valor de 75€; e a Assinatura Clube de Amigos do TMJB de apenas 60€ Neste mo-mento, as Assinaturas encontram--se à venda na bilheteira do Teatro Municipal Joaquim Benite, nas lojas FNAC e no site da CTA.

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