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FACULDADE DE SÃO BENTO
BACHARELADO EM FILOSOFIA
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
NILTON BULGUERONI
ARISTÓTELES E A DEMOCRACIA
São Paulo
2018
FACULDADE DE SÃO BENTO
BACHARELADO EM FILOSOFIA
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
ARISTÓTELES E A DEMOCRACIA
Nilton Bulgueroni
Monografia apresentada no curso de Bacharelado
em Filosofia da Faculdade de São Bento de São
Paulo, como requisito parcial para a obtenção do
título de bacharel em Filosofia.
Orientadora: Profª. Drª Rachel Gazolla de
Andrade
São Paulo
2018
À minha esposa e eterna parceira, Solange, pela
paciência e compreensão ao longo de todo o
curso, e à minha filha, Renata, pelo incentivo e
pelo entusiasmo com que acompanhou todas as
etapas desta jornada.
AGRADECIMENTOS
Com este trabalho, encerra-se, para mim, um ciclo muito especial: a retomada da vida
acadêmica após algumas décadas de ausência. À sensação de dever cumprido junta-se um
outro sentimento, que é um misto de saudades e vontade de buscar novos desafios. Foram
pouco mais de três anos de imensa satisfação. Considero-me um privilegiado por ter tido a
oportunidade de passar por essa experiência em plena maturidade. Mas não tenho dúvida de
que essa empreitada poderia ter sido bem diferente, talvez frustrante, se não houvessem
pessoas ao meu lado que me auxiliassem e incentivassem.
Seria muito difícil elencar o nome de todos, por isso gostaria de deixar meus sinceros
agradecimentos à instituição Faculdade de São Bento. Agradeço a todos: corpo diretivo,
coordenadores, professores e funcionários. São essas pessoas que fazem da entidade uma
combinação de seriedade, competência, descontração e simpatia.
Uma experiência tão rica como a que passei, não poderia ser fechada de outra forma, se não
com uma chave-de-ouro. E também nesse ponto fui privilegiado ao ter sido aceito como
orientando neste trabalho pela Professora Rachel Gazolla de Andrade. Seu conhecimento e
sua capacidade são inquestionáveis e tudo o que eu poderia dizer sobre isso pouco
acrescentaria. Prefiro destacar sua generosidade e a maneira tranquila e objetiva com que
conduziu as discussões no processo de orientação. À Professora Rachel, a minha imensa
gratidão.
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo apresentar uma visão consistente do pensamento de Aristóteles
no que diz respeito à democracia. No contexto desta monografia, por democracia entende-se
simplesmente a forma de governo, ou regime, em que a soberania é exercida pela maioria dos
cidadãos, podendo dela haver várias espécies, conforme detalhado no corpo do trabalho.
Dentre as possíveis abordagens para se discorrer sobre o tema proposto, optou-se por uma
divisão em duas partes. A primeira parte é dedicada a uma exposição de escritos políticos do
filósofo reunidos em sua obra A Política. São destacadas suas análises sobre os diversos
regimes políticos e, particularmente, sobre aquele que ele considera como o melhor regime
viável: a polítía (ou república), que é uma das espécies de democracia. A segunda parte tem
um caráter mais especulativo. Nela são estudados alguns tópicos que fundamentam ou que
integram o posicionamento de Aristóteles apresentado na primeira parte do trabalho. Dentre
eles, destacam-se: a ética, o papel da cidade, a distribuição de poderes e a importância das
leis.
Palavras-chave: Aristóteles. Democracia. Politía. Política. República.
ABSTRACT
This study aims to offering a consistent view of Aristotle’s thinking regarding democracy. In
this monography’s context, the word democracy represents simply the political regime in
which the power is exercised by the majority of citizens. There are various species of
democracy, as detailed in the body of the study. Among the possible approaches to manage
the discussion about the theme ‘Aristotle and the Democracy’, we opted to divide it into two
parts. The first one is dedicated to an exposition of the philosopher’s political writings,
gathered in the book Politics. In this part, Aristotle’s analyzes about the various political
regimes are highlighted, specially regarding the best viable regim in his opinion: the politía
(or republic), which is one of the species of democracy. The second part has a more
speculative character. It’s composed by the analyze of some topics that either underlie or are
part of the Aristotle’s positioning, presented at the first part of this work. Among these topics
the following stand out: ethics, the role of the city, the distribuition of powers and the
importance of laws.
Key-words: Aristotle. Democracy. Politía. Poiltic. Republic.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................1
2 PRIMEIRA PARTE – A POLÍTICA..................................................................................2
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ............................................................................................2
2.2LIVRO...................................................................................................................................3
2.3 LIVRO III ............................................................................................................................6
2.4 LIVRO IV...........................................................................................................................14
3 SEGUNDA PARTE – ANÁLISE DA OPÇÃO PELA REPÚBLICA .............................19
3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ..........................................................................................19
3.2 FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA ..........................................................................................19
3.3 O HOMEM E A CIDADE .................................................................................................25
3.4 A REPÚBLICA COMO O MELHOR REGIME VIÁVEL ...............................................29
3.5 FRAGILIDADES DA REPÚBLICA E A ADOÇÃO DE CONTROLES .........................34
4 CONCLUSÃO .....................................................................................................................40
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................42
LISTA DE ABREVIAÇÕES
OBRAS DE ARISTÓTELES CITADAS
EN – ÉTICA A NICÔMACO
Pol – A POLÍTICA
OBRAS DE PLATÃO CITADAS
Leis – AS LEIS
Rep - A REPÚBLICA
1
1. INTRODUÇÃO
O legado filosófico-político deixado por Aristóteles concentra-se basicamente nas obras
Ética a Nicômaco, Ética a Eudemo e A Política. Elas são as principais fontes para se extrair o
pensamento aristotélico sobre as diversas formas (ou regimes) de governo, dentre elas a
democracia. Sua interpretação não é uma tarefa simples. O próprio termo democracia não é
claro para nós – leitores modernos – podendo levar a uma interpretação equivocada da real
intenção do filósofo. Além disso, nos seus escritos, o filósofo faz várias referências a regimes
nos quais a soberania cabe ao povo sem significar tais regimes como democracias1. No
entanto, a maior dificuldade reside em identificar o real valor atribuído por Aristóteles ao
regime democrático em comparação com os demais.
Nosso tema, Aristóteles e a Democracia, busca atingir uma visão mais consistente do
pensamento aristotélico no caso da democracia, implicando uma análise cuidadosa dos seus
textos de A Política e de algumas de suas principais interpretações, pois é nessa obra que o
filósofo trata de forma mais explícita os diversos regimes políticos.
A Primeira Parte deste trabalho tem um caráter expositivo sobre o tratamento dado por
Aristóteles ao tema democracia, em A Política. A Segunda Parte tem um caráter mais
analítico. Nela procuramos fazer um estudo de alguns aspectos que fundamentam ou que
compõem o pensamento do filósofo apresentado na Primeira Parte, a partir da leitura de
alguns especialistas. Por fim, apresentaremos as nossas conclusões.
1 Por ora, vamos adotar o termo democracia em um sentido mais lato, como entendido hoje: o regime cujo
soberano é o povo. Nos momentos oportunos, faremos as distinções necessárias.
2
2. PRIMEIRA PARTE – A POLÍTICA
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A Política é considerada como o marco inicial daquilo que hoje conhecemos com o
nome de ‘filosofia política’, conforme assinala F. Wolff:
“Com a Política de Aristóteles, a filosofia pôs-se finalmente à altura da
cidade, de seu lugar propriamente humano no mundo, e de seu lugar próprio
no mundo das ‘coisas humanas’. Primeiro livro de ‘filosofia política’, em
que se cruzam então, pela primeira e última vez, estas duas rotas gregas que,
até então, permaneciam paralelas: a filosofia e a cidade”.2
Diferentemente do que ocorre em A República de Platão, Aristóteles expõe uma
reflexão a partir de experiências históricas e tradições gregas antigas. Na elaboração de A
Política, Aristóteles baseou-se na comparação de organizações cívicas existentes, ou que
existiram, pesquisando mais de 150 instituições de governo da época. O resultado foi
consolidado em oito livros, que podem ser agrupados logicamente em quatro grandes temas.
1. Teoria dos fundamentos da política, com abordagem descritiva: Livros I e III;
2. Teoria dos fundamentos da política, com abordagem prescritiva: Livros II, VII e
VIII;
3. Análise dos regimes existentes: Livro IV;
4. Aconselhamentos no sentido de estabelecer e preservar regimes (o que, para muitos,
inspirou Maquiavel): Livros V e VI.3
2 Wolff, Francis. Aristóteles e a Política. São Paulo: Discurso editorial, 1999. p. 21. 3 Embora esta seja a divisão tradicional da obra, na edição da Nova Fronteira, que tomamos por base existe uma
divergência na organização dos livros. Nela eles aparecem na seguinte ordem: I, II, III, VII, VIII, IV, VI e V.
Entretanto, no texto manteremos a divisão tradicional.
3
Nos Livros III e IV de A Política, encontram-se os elementos que oferecem maiores
subsídios para o nosso tema e, por esse motivo, eles são o objeto desta parte do trabalho. Mas,
para sua melhor compreensão, é necessário um conhecimento prévio do pensamento de
Aristóteles sobre comunidades, seus tipos e, em especial, a cidade. Esses conceitos, entre
outros, integram o Livro I. Por ele iniciaremos nossa exposição.
2.2 LIVRO I
Aristóteles tem como tese central que a finalidade da cidade é o soberano bem.
Diferencia-se de vários outros filósofos, para os quais a cidade é considerada como um mal
necessário para que as pessoas consigam viver, ou melhor, sobreviver. Para ele, a cidade não é
apenas para se viver, mas para se viver bem. Essa tese é primordial em toda a análise feita
pelo estagirita, inclusive no que diz respeito ao nosso tema: a democracia.
Pode-se dizer que a tese aristotélica baseia-se em três premissas:
1. A cidade é uma comunidade.
2. Toda comunidade é constituída em vista de um certo bem.
3. De todas as comunidades, a cidade é a mais soberana e aquela que inclui todas
as outras.
Na primeira premissa, o termo comunidade pode ser considerado como um
agrupamento de homens unidos por uma finalidade comum. Isso vale para uma cidade, um
casal, uma confraria religiosa, um grupo de viajantes, uma quadrilha de bandidos, etc..
Mas existem três características que diferenciam a cidade de todas as outras
comunidades: 1) As partes que a compõem: famílias, linhagens, vilarejos, etc.. Aristóteles as
considera como ‘causa material’ da cidade; 2) O fato de a cidade ter uma constituição, ou
regime, que ele considera como sua ‘causa formal’; 3) A sua própria finalidade (ou ‘causa
4
final’) que é o viver bem, a vida melhor possível. Vale destacar que o filósofo não apresenta
uma ‘causa motriz’ para a cidade por considerá-la um ser natural.
Com relação à segunda premissa, ela se justifica pelo princípio geral de que todos os
homens fazem o que fazem em vista do que lhes parece ser um bem. Aqui, o conceito de bem
não tem um caráter moral, mas de finalidade. A morte de um condenado pode ser um bem
para a cidade.
A terceira premissa, ou seja, a soberania da cidade sobre todas as outras comunidades,
fundamenta-se no fato de a cidade englobar todas as outras comunidades. Dadas as
características formais e finais de comunidade, vistas acima, conclui-se pela sua superioridade
sobre as demais comunidades em todos os aspectos. Como consequência desta premissa,
deduz-se que a ciência de gerir os interesses da cidade é superior a todas as outras ciências.
Ela é a Política.
Aristóteles faz uma divisão progressiva da cidade em suas partes constitutivas: a
comunidade mínima é o lar. Os lares se agrupam em vilarejos que, por sua vez, também se
agrupam formando a cidade. Historicamente, o lar surgiu primeiro. Foi, e é, de suma
importância principalmente nas questões relacionadas com a sobrevivência humana. À
medida que foram se agrupando em vilarejos e os vilarejos em cidades, as relações humanas
foram se tornando mais complexas e sofisticadas.
O filósofo concebe o lar como constituído por três relações elementares: 1) homem-
mulher (casal); 2) senhor-escravo (despótica); e pai-filho (parental). Ele faz uma detalhada
explanação sobre cada uma dessas relações, suas características e o tipo de autoridade
exercido em cada uma delas. Este detalhamento não será aqui apresentado por estar fora do
escopo deste trabalho; entretanto, a título de ilustração, segue um quadro que resume as
principais diferenças entre as essas relações:
5
RELAÇÃO CARACTERÍSTICA AUTORIDADE
Conjugal
Horizontal entre os sexos. Homem e
Mulher.
Política. Exercida sobre
seres livres e iguais.
Despótica
Vertical entre as funções
econômicas ou estatutos sociais.
Senhor e escravo.
Despótica. Exercida sobre
seres não livres.
Parental
Vertical entre as gerações. Pai e
criança.
Régia. Exercida sobre seres
livres e desiguais.
Ao analisar o vilarejo, Aristóteles é mais econômico, já que suas características estão
distribuídas entre as dos lares e as da cidade, constituindo-se o vilarejo em um estágio
intermediário. Já a cidade, por ser o estágio superior entre as comunidades, deve possuir uma
característica fundamental: a autarquia (ou autossuficiência). Na análise sobre a gênese das
comunidades, o filósofo aponta que cada nível de comunidade foi surgindo para prover aquilo
que o tipo anterior não conseguia: por exemplo, o lar surgiu para prover necessidades que o
indivíduo sozinho não seria capaz. Nesse sentido, a cidade surgiu para prover necessidades
que o vilarejo sozinho não conseguia.
A autarquia da cidade pressupõe um número mínimo de pessoas, é o fim natural das
comunidades e o fim da própria cidade. É sinônimo de vida perfeita e de felicidade. Nas
palavras do filósofo:
“A sociedade constituída por diversos e pequenos burgos4 forma uma cidade
completa, com todos os meios de se abastecer por si, e tendo atingido, por
4 Expressão que pode ser compreendida como “vilarejos”.
6
assim dizer, o fim que se propôs. Nascida principalmente da necessidade de
viver, ela subsiste por uma vida feliz. Eis por que toda cidade se integra na
natureza, pois foi a própria natureza que formou as primeiras sociedades [...]
É evidente, pois, que a cidade faz parte das coisas da natureza, que o homem
é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade ...”
(Pol., I, 1, 1252b -1253a).
A natureza é o começo e o fim. A natureza de cada comunidade é a de satisfazer as
necessidades da cidade que, por sua vez, existe em vista de si mesma. A autarquia é ao
mesmo tempo um fim e algo de excelente. Se há uma coincidência entre Bem e o seu fim,
conclui-se que a cidade faz parte das coisas naturais. O homem é incompleto e tende por
natureza à vida política; ele é naturalmente político porque é naturalmente carente. Se fosse
isento de deficiências seria um sobre-humano; se vivesse numa progressão infinita de seus
desejos, seria um degradado. É um ser necessitado e com vistas à completude.
2.3 LIVRO III
Nos três primeiros capítulos do Livro III, Aristóteles discorre sobre o que é o cidadão e
quais são os seus valores. Inicialmente esclarece que o conceito de cidadão pode sofrer
algumas distinções, em função do tipo de regime político vigente na cidade. O que é cidadão
em uma democracia pode não o ser em uma aristocracia. Apesar disso, toma como base o
conceito de cidadão em uma democracia, o que já é um indício de que este será o tipo de
governo que ocupará mais espaço na sua análise. Em uma democracia, diz ele, é considerado
cidadão o indivíduo cuja principal característica é poder participar da administração da justiça
e dos cargos públicos da cidade. Essa participação, entretanto, é limitada em outras formas de
governo, o que leva a um conceito mais geral: cidadão é aquele que tem uma voz deliberante
nas assembleias públicas e no tribunal. Este novo conceito estende-se aos governos que são
apenas parcialmente democráticos, como veremos.
7
De qualquer modo, o fato de o indivíduo estar domiciliado na cidade não lhe garante a
cidadania. Não são considerados cidadãos: os anciãos, as crianças, os condenados, os
estrangeiros e os escravos. A cidadania tem um caráter hereditário que é regulamentado de
formas diversas, dependendo da cidade e do momento.
“Às vezes, no sentido comum, define-se o cidadão como sendo aquele que é
filho de pai e mãe cidadãos, e que não o seja apenas de um dos dois. Outros
exigem mais; por exemplo, que os avós em primeiro grau tenham sido
cidadãos ou ainda os ascendentes em segundo e terceiro graus”.
(Pol., III, 1, 1275b)
Estabelecido o conceito de cidadão, o filósofo passa a tratar da seguinte questão: a
virtude de um bom cidadão é a mesma de um homem de bem? É sabido que, para Aristóteles,
a cidade tem uma finalidade comum: o viver bem de todos. Portanto, deve haver algo em
comum nas virtudes de todos os seus cidadãos, embora cada um tenha a sua função. Mas uma
cidade tem a sua própria forma de governo, o que faz como que o conceito de boa cidadania
não seja o mesmo para todas as cidades. Por outro lado, o que caracteriza um homem de bem
é a virtude una e perfeita. Ora, conclui-se que nem sempre uma forma de governo carrega em
si o cidadão virtuoso e o homem perfeito. Sendo assim, para Aristóteles, somente em uma
cidade perfeita as duas coisas deveriam coincidir de modo que todos os seus cidadãos seriam
homens de bem.
Deve-se também considerar que a cidade é composta de instâncias e funções
dessemelhantes, o que faz com que a virtude de uma instância não deva ser a mesma de outra
instância, pois existem entre elas várias relações de mando e obediência. A virtude dos que
mandam é diferente da daqueles que obedecem. O correto exercício do mando ou da
obediência é o que caracteriza os bons cidadãos.
***
8
Nos capítulos 4 e 5 do Livro III, Aristóteles discorre sobre as formas de governo
(politeíes)5 existentes e suas diferenças.
Ele inicia sua explanação tratando de um tema importante na análise a que se propõe: a
autoridade. Considerando as comunidades primárias já apresentadas, ele ressalta que na
relação senhor-escravo, ambos têm o mesmo interesse, mas a autoridade do senhor tem por
primeiro objeto a conveniência do senhor e por objeto secundário a conveniência do escravo6:
“La autoridade del amo, aunque haya en verdade un mismo interés para el
esclavo por naturaleza y para el amo por naturaleza, sin embargo no menos
se ejerce atendendo a la conveniência del amo, y sólo accidentalmente a la
del esclavo, pues si el esclavo perece no puede subsistir la autoridad del
amo”. (Pol., III, 4, 1278 b)7
No caso das relações familiares, a autoridade tem por objeto o interesse dos governados
(mulher e filhos) mas pode-se voltar acidentalmente em benefício do senhor. O autor cita o
exemplo do piloto de um navio: ele deve visar ao interesse da tripulação, porém acaba
incluindo aí o seu próprio interesse, já que ele faz parte da tripulação.
Quando reflete sobre a cidade, se ela se funda na semelhança dos cidadãos, é natural
que cada qual tenha o direito de exercer a autoridade como tal. Na prática, porém, é fácil à
cidade apresentar vícios como os que fazem os detentores do poder (que ele denomina
magistrados) desejarem se perpetuar nos cargos, “como se a continuidade do poder pudesse
dar a saúde aos magistrados que estão atacados de doenças crônicas”. (Pol., III, 4, 1279a). É
evidente que todos os regimes que se propõem à utilidade geral são justos e todo os que
5 Este termo corresponde ao plural de politeía que significa: constituição, regime, forma de governo, organização
política, etc. 6 Excepcionalmente adotamos aqui a edição em língua espanhola da Editora Gredos, relacionada nas Referências
Bibliográficas, por a considerarmos mais fiel ao texto original nesta passagem da obra. 7 “A autoridade do senhor, ainda que, na realidade, exista em um mesmo interesse para o escravo por natureza e
para o senhor por natureza, exerce-se mesmo assim atendendo à conveniência do senhor e apenas
acidentalmente à do escravo, pois se o escravo morre não pode sobreviver a autoridade do senhor” (tradução
livre).
9
partem do interesse particular já têm por fundamento um falso princípio, pois estamos falando
de uma politeía e de uma cidadania. Esse é um primeiro critério que diferencia as
constituições boas das más.
Existe um segundo critério de diferenciação das constituições: a autoridade suprema da
cidade pode repousar nas mãos de um só indivíduo, de vários indivíduos ou de uma multidão
de indivíduos. Este critério não se aplica na avaliação qualitativa absoluta das constituições,
mas, sim, numa avaliação relativa, permitindo uma hierarquização própria dentro da cada um
dos dois subgrupos de regimes: os justos e os viciosos. Por isso, Aristóteles define em poucas
e importantes linhas, seis regimes de governos que constituem as referências e a base para sua
teoria, salientando que qualquer regime existente na prática, constitui-se de uma combinação
entre dois ou mais desses regimes. Ele inicia pelo regime teoricamente melhor de todos: a
realeza (ou monarquia), que é o bom governo de um só:
“Entre os Estados8, dá-se comumente o nome de realeza àquele que tem por
objetivo o interesse geral; e o governo de um reduzido número de homens,
ou de vários, contanto que não o seja de um só, chama-se aristocracia – seja
porque a autoridade esteja nas mãos de diversas pessoas de bem, seja porque
tais pessoas dela fazem uso para o maior bem do Estado. Finalmente, quando
a multidão governa no sentido do interesse geral dá-se o nome de república,
que é comum a todos os governos. [...] Os governos viciados são: a tirania
para a realeza, a oligarquia para a aristocracia, a demagogia para a
república”. (Pol., III, 5, 1279a-b)
Antes de prosseguir nossa exposição, cabe aqui um esclarecimento sobre a
nomenclatura adotada pelo filósofo no que diz respeito aos regimes governados pela multidão.
Infelizmente, nos diversos textos e traduções que pesquisamos, não existe um consenso,
8 Neste contexto, por Estado deve-se compreender ‘cidade’.
10
exceto em um fato: ao governo que na tradução acima é denominado como república,
Aristóteles não atribui um nome específico traduzível nas línguas modernas, designando-o
simplesmente como politía9. Observa-se também que na tradução acima não aparece o termo
democracia. Alguns tradutores e autores o utilizam em vez de república, outros em vez de
demagogia. Ainda se observa seu uso em um sentido mais abrangente (qualquer regime em
que o povo é soberano), como fizemos até agora. Mas essa dificuldade é ainda maior se
considerarmos que o próprio Aristóteles utiliza em seus textos a palavra democracia
indistintamente, nessas três acepções.10
Isto posto, tomemos as seis formas de regime, três justas: realeza, aristocracia e
república, e três viciosas: demagogia, oligarquia e tirania. Não faz sentido colocá-las em
uma escala, pois seria como comparar objetos de naturezas diferentes. Mas Aristóteles
considera, no plano teórico, uma superioridade da realeza em relação à aristocracia e desta
em relação à república. Da mesma forma, a demagogia seria um mal menor em relação à
oligarquia, e esta, em relação à tirania. Neste raciocínio, a pior das constituições justas
(república), se aproxima da melhor das constituições viciosas (demagogia), o que pode
justificar, em determinadas circunstâncias, ambas terem sido referenciadas como um só:
democracia.
Na sequência, Aristóteles faz uma consideração etimológica do emprego dos termos
oligarquia e demagogia. Ele as trata respectivamente como ‘governo que visa o interesse dos
ricos’ e ‘governo que visa o interesse dos pobres’. A distinção estaria então no número de
governantes, ou o no seu poder aquisitivo? Ele esclarece que, existindo uma suposta cidade
em que os ricos fossem mais numerosos, caso eles governassem, ainda assim esse governo
9 Alguns intérpretes consideram politía como sinônimo de politeía (forma de governo), mas trata-se de um
equívoco, pois referem-se a objetos distintos. 10
Procuraremos utilizar a terminologia adotada pelo tradutor Nestor Silveira Chaves na edição da Nova
Fronteira apontada na Bibliografia: democracia – no sentido amplo, república – a justa democracia (politía) e;
demagogia – a democracia viciosa.
11
deveria ser chamado de oligarquia. Portanto, os nomes aqui adotados estão mais relacionados
com o poder aquisitivo do que com o número de governantes. Essa hipotética situação nunca
se verificou na prática, ou seja, os ricos sempre são uma minoria, o que evita a equivocidade
na adoção desses termos.
***
Os capítulos 6 e 7 são os mais importantes do Livro III no que diz respeito ao tema
deste trabalho. Neles, o estagirita faz uma exaustiva análise sobre os prós e os contras das
diversas constituições, tomando por base o critério do número de indivíduos que detêm o
poder soberano. É importante constatar que, diferentemente de Platão em A República,
Aristóteles não busca uma constituição ideal; considera que cada cidade tem as suas
idiossincrasias, e que o regime bom para uma cidade pode não ser bom para outra. Mas o que
pode se depreender de sua análise é a tendência em considerar o regime republicano, isto é, a
politía, como o mais adequado à maioria das cidades.
Inicialmente, é feita uma série de questionamentos sobre quem deve ser o ‘soberano do
Estado’, ou seja, quem deve governar a cidade. A multidão? Os ricos? Os pobres? Um tirano?
etc. A conclusão é de que qualquer resposta, por si só, não é isenta de objeções. Tudo é
vicioso e injusto de uma ou de outra parte.
Ele coloca então a seguinte questão: “Deve-se entregar a soberania à multidão, em
detrimento aos homens eminentes11
, sempre em minoria?” (Pol., III, 6, 1281a). Ele mesmo
responde que, apesar dos embaraços, esta parece ser uma boa solução. Os que formam a
multidão, embora cada um deles não seja superior, prevalecem quando estão reunidos:
“Cada indivíduo, em uma multidão, tem a sua parte de prudência e virtude.
Da reunião desses indivíduos, faz-se, por assim dizer um só homem que
11
Expressão que pode ser compreendida como “mais virtuosos”.
12
possui uma infinidade pés, mãos e sentidos. O mesmo acontece em relação
aos costumes e à inteligência. Aí está porque a multidão julga melhor as
obras dos músicos e dos poetas; porque um aprecia uma parte, outro outra e
todos reunidos apreciam o conjunto”. (Pol., III, 6, 1281b)
Mas a massa de cidadãos não é constituída por homens que se distinguem por serem
ricos, talentosos ou virtuosos. Existe um risco em lhes atribuir as magistraturas12
mais
importantes, pois pode haver injustiças por falta de probidade e erros por ignorância. Por
outro lado, também não se pode excluí-los de todos os cargos. A cidade, como uma multidão
pobre e sem regalias, estaria repleta de inimigos. A saída proposta por Aristóteles é dar à
multidão uma parte nas deliberações públicas e nos julgamentos.13
Sólon e outros
legisladores instituíram que essa classe de cidadãos elegesse os seus magistrados e os fizesse
prestar contas da sua gestão, embora esses ‘eleitores’ não tenham acesso direto ao exercício
dessas magistraturas14
. Reunidos em assembleia geral, todos eles têm uma inteligência
suficiente, uma vez que estão misturados a homens de talento e virtude. Porém, cada cidadão
sozinho é incapaz de deliberar e julgar com a mesma propriedade.
Ainda assim, objeta-se: se esses cidadãos não são capazes de exercer as magistraturas,
como podem eleger e julgar os magistrados? Primeiramente, isso é respondido com o mesmo
raciocínio que levou a multidão às funções acima apontadas: o todo é superior a cada uma
das partes. Além disso há um outro aspecto a considerar: nem sempre o melhor juiz é quem
age. Numa casa, por exemplo, o chefe de família julga melhor o seu conforto do que o
arquiteto que a construiu. Isto posto, Aristóteles aborda um tema importante para as cidades,
independentemente da constituição adotada: o peso das leis. As leis verdadeiramente boas e
úteis devem ser soberanas e o magistrado (seja um homem, alguns homens ou a multidão) só
12
Por magistraturas entendem-se os cargos relativos à administração da pólis, e por magistrados, os seus
ocupantes. 13
Essa solução é fundamental e será tratada com mais propriedade na 2ª parte deste trabalho. 14
Ressalta-se que não se trata do sistema de representatividade conhecido em nossos dias. Esse tema será
abordado na 2ª parte deste trabalho.
13
pode ser soberano nas situações particulares em que as leis não dão conta. Aqui não se trata
de as leis serem boas ou más, elas sempre devem ser seguidas. É natural que os bons governos
tenham leis justas e os corrompidos, leis injustas.
Feitas essas considerações, o autor retoma a discussão sobre a diferença entre justiça e
igualdade e sobre as qualidades que permitem a um ou mais homens pleitearem acesso às
magistraturas. Elas variam de acordo com o tipo de constituição, porém, em linhas gerais, são:
nobreza, liberdade, riqueza, justiça e valor guerreiro. Mas há uma importante ressalva:
“ Todos esses elementos, ou pelo menos alguns, parecem disputar-se, a justo
título, a vida da cidade; mas quanto à sua felicidade, é a educação e a
virtude que deverão disputá-la com mais justiça ...”. (Pol., III, 7, 1283a)
Aristóteles destaca que, em todos os governos analisados, cada um tem a sua
particularidade e sua diferença reside basicamente na escolha do soberano. Em uma cidade
são os ricos, em outra, os nobres, etc. Mas pode haver uma cidade em que todas essas
condições ocorrem ao mesmo tempo. Quem escolher? Novamente, a resposta recai sobre o
governo da multidão pois, na somatória, ela é superior em todos esses aspectos.
Numa cidade como essa, existem de um lado os cidadãos melhores e do outro a
multidão. A quem o legislador deve atender ao elaborar as leis mais justas? Nesse caso, a
justiça coincide com a igualdade: deve-se atender igualmente ao interesse do Estado e ao
interesse dos cidadãos. O cidadão em geral é quem manda e obedece alternadamente. A
situação melhor de todas dá-se quando o cidadão pode e quer ao mesmo tempo mandar e
obedecer, conformando sua vida às regras da virtude.
***
Os capítulos finais do Livro III são dedicados à análise de dois temas: o ostracismo e a
realeza. Vamos nos limitar apenas a algumas considerações sobre eles.
14
O ostracismo ocorre quando um cidadão, ou um grupo reduzido de cidadãos, apresenta
uma superioridade de mérito incomparável com o mérito dos demais. Por um lado, pela lei
estabelecida ele (ou eles) não pode (m) governar; por outro lado, seria uma injúria ele (s) ter
(em) que se submeter a uma lei que lhe (s) é inferior. A solução adotada é afastá-lo (s)
temporariamente da cidade. Aristóteles advoga que as leis prevejam esse tipo de situação de
forma a atender ao interesse geral, embora admita que, em tese, o mais sensato seria entregar
o poder a esse (s) cidadão (s).
No que diz respeito à realeza, ou seja, à boa constituição exercida por um único
indivíduo, o filósofo discorre sobre cinco tipos distintos. Eles se diferenciam de acordo com o
maior ou menor grau em que o poder é concedido ao rei, variando desde um simples
generalato vitalício submetido a leis, até um poder absoluto. Aqui são levantadas diversas
questões, já abordadas nos capítulos anteriores, e ratificados os argumentos que sustentam a
defesa da democracia. Mas o estagirita não desautoriza a realeza. Ele reitera que o que é bom
para um povo pode não ser para um outro, condenando apenas as formas corrompidas de
constituição:
“A natureza admite o governo absoluto, o governo real e a forma
republicana, baseada na justiça e no interesse comum, mas a tirania não se
conforma com a natureza, nem as outras formas alteradas e corrompidas que,
por conseguinte, são absolutamente contrárias a ela”. (Pol., III, 11, 1288a)
2.4 LIVRO IV
No Livro IV, Aristóteles também desenvolve uma análise sobre os diversos tipos de
regime, porém agora tendo como ponto de partida as diferentes constituições praticadas à sua
época. Já de início, admite que a ciência política deve se preocupar com aquilo que é o mais
15
excelente, a forma de governo perfeita, mas também com aquela que convém a este ou àquele
povo, porque é inviável à maioria dos povos ter essa forma perfeita.
“Não se trata apenas de considerar a melhor constituição, mas ainda aquela
que é praticável e que, ao mesmo tempo oferece aplicação mais fácil, e que
melhor se adapta a todos os Estados”. (Pol., IV, 1, 1288b)
Adverte aos legisladores que reformar um governo já existente é tão ou mais difícil
do que instaurar um novo. Lembra que, apesar da divisão apresentada no Livro III, não
existem apenas seis formas de governo, mas inúmeras: diversas espécies de oligarquia,
diversas espécies de democracia, etc..”15
Aliás, esse fato dá o tom de todo o Livro IV. Boa
parte dele é dedicada a detalhar as diferenças entre as diversas espécies de cada forma de
governo. Aqui, vamos destacar apenas os pontos relativos ao nosso tema.
A causa da multiplicidade de formas de governo está no fato de a cidade se compor de
muitas partes. Existem ricos, pobres e a classe média. Mesmo no interior dessas classes,
existem subdivisões. Por exemplo, em uma cidade, a maioria dos pobres é de lavradores, em
outra, de artesãos, etc. A forma de governo não é outra coisa senão a ordem estabelecida na
distribuição das magistraturas. Elas são distribuídas aos cidadãos sob a influência daqueles
que já tomam parte delas, ou por um princípio de igualdade comum entre ricos e pobres.
Existem tantos governos possíveis quanto as combinações de superioridade ou inferioridade
entre as partes da cidade.
***
No Capítulo 3, o filósofo apresenta um dos pontos mais importantes e discutidos do seu
pensamento político. A tese é que, na prática, existem duas formas principais de governo: a
15
Aqui aparece o conceito de espécies de governo. Ele se refere às variações possíveis dentro de cada um dos
seis tipos de governo definidos no Livro III.
16
democracia e a oligarquia. Todas as demais derivam dessas duas. Vale ressaltar que nessa
análise ele toma o termo democracia no seu sentido lato:
“Admitem-se duas espécies principais de governos, como se admitem duas
espécies de ventos, os do norte e os do sul; os outros não passam de
alterações desses. Assim, há duas formas de governo – a democracia e a
oligarquia; porque considera-se a aristocracia como uma espécie de
oligarquia, e o que se denomina república não passa de uma democracia”.
(Pol., IV, 3, 1290a)
Aristóteles ratifica a observação feita no Livro III: a democracia só existe quando o
governo é exercido por uma maioria livre e pobre e a oligarquia por uma minoria de ricos e
nobres. Na sequência, ele apresenta quatro espécies de democracia e quatro espécies de
oligarquia, num grau decrescente de justiça em cada uma. No caso da democracia, a primeira
espécie é basicamente o tipo de constituição que ele denomina república, e a última é a
demagogia. Aliás, a demagogia nem mereceria ser tratada como uma espécie de democracia,
pois, etimologicamente, a palavra democracia implica governo e a demagogia nem é governo.
Na análise das espécies de democracia, ressalta que o papel das leis é muito importante,
pois os pobres têm que trabalhar e não dispõem de tempo vago para decidir sobre tudo. Eles
só podem se reunir em assembleias em casos de necessidade, ou seja, para as situações
particulares não previstas nas leis. No Capítulo 6, Aristóteles passa a tratar mais propriamente
da república:
“ Os característicos desse governo serão mais fáceis de reconhecer, agora
que temos definido a oligarquia e a democracia porque a república é, para
bem dizer, um misto das duas formas. Mas comumente se dá o nome de
república aos governos que têm certa tendência para a democracia, e o nome
de aristocracia aos que mais se inclinam para a oligarquia, porque a
17
educação e a nobreza dos sentimentos são comumente atribuídas aos ricos”.
(Pol., IV, 6, 1293b)
O texto acima é emblemático não só para ilustrar o conceito de república como
combinação de democracia e oligarquia com um viés mais democrático, como também para
destacar a estreita ligação entre riqueza e virtude que, ao que tudo indica, fazia parte do senso
comum à época. Essa característica se faz presente em vários pontos da Política, em especial
nas análises relacionadas à aristocracia.
Aristóteles ainda prescreve algumas maneiras para se fazer uma composição adequada
de legislações oligárquicas e democráticas para que se chegue a uma mistura perfeita para a
república. É o ponto médio entre dois extremos. Dá como exemplo o governo da
Lacedemônia.
***
No Capítulo 9 o autor volta a justificar sua opção pela república como a melhor forma
de governo para a maioria dos estados e indivíduos. É certo que ele já declarara a realeza e a
aristocracia como as formas mais justas de governo, porém aqui admite que, para esses
regimes, são necessárias pessoas com virtudes sobre-humanas e uma educação que exija
aptidões e recursos excepcionais. Isso torna esses governos inacessíveis às cidades. Afirma
que, em termos práticos, a república é a forma de governo mais adequada pois ela se
aproxima da aristocracia; ambas são constituídas pelos mesmos elementos. Como será visto
na 2ª parte deste trabalho, já na Ética a Nicômaco, Aristóteles defendia que a vida feliz é
baseada na virtude e a virtude é a média entre dois extremos. A melhor vida está na condição
média, que é possível para todo indivíduo.
Esse raciocínio vale também para os Estados: as cidades são compostas por homens
ricos e pobres que, em geral, vivem em permanente tensão. Mas para o governo se sustentar,
18
ela deve ser formada por cidadãos iguais e semelhantes, e isso só ocorre na situação média.
Daí conclui que só pode haver Estados bem administrados quando a classe média for mais
numerosa que as outras classes. Constata que, na prática, nos Estados em que a classe média é
mais numerosa, há menos sedições que nos outros. Entretanto, admite que jamais existiu uma
verdadeira república pois: “Os homens desde muito tempo contraíram o hábito de não poder
suportar a igualdade; ao contrário, eles só procuraram mandar ou resignar-se ao jugo daqueles
que mantêm o poder”. (Pol., IV, 9, 1296a-b)
Ao fundamentar as considerações acima, Aristóteles aponta para uma de suas ideias
mais importantes: a amizade como um elemento necessário para a consolidação e a
estabilidade das comunidades em geral e da cidade em particular.
Os últimos capítulos do Livro IV são dedicados ao estudo detalhado das inúmeras
espécies de governos, levando em conta as características de suas três partes constituintes: o
poder deliberativo, as magistraturas e a administração da justiça; com o que não nos
ocuparemos neste trabalho.
19
3. SEGUNDA PARTE – ANÁLISE DA OPÇÃO PELA REPÚBLICA
3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A exposição feita na 1ª Parte nos dá fortes indícios da simpatia da Aristóteles pelo
regime democrático. Porém, devemos ser cautelosos para evitar conclusões imprecisas.
Nesta 2ª Parte, procuraremos levantar alguns aspectos que julgamos relevantes para uma
melhor reflexão sobre o nosso tema, tendo por base os textos do filósofo, além de textos de
comentadores, estudiosos e outros filósofos. Iniciaremos por dois temas que fundamentam o
posicionamento do Aristóteles quanto às diferentes formas de regime: a Ética e o seu conceito
de Cidade. Na sequência analisaremos com mais detalhes a sua opção pela república como o
melhor regime viável; e concluiremos com uma análise sobre as fragilidades inerentes a esse
regime e os cuidados propostos pelo estagirita no sentido de minimizá-las e preservar a
estabilidade do governo.
3.2 FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA
“Após estudar essas coisas, teremos uma perspectiva ampla, dentro da qual talvez
possamos distinguir qual é a melhor constituição, como deve ser ordenada cada uma e que leis
e costumes lhe convém utilizar a fim de ser a melhor possível”. (EN, X , 9, 1181-b).
Com as palavras acima, Aristóteles encerra aquela que é considerada por muitos a sua
principal obra sobre Ética: Ética a Nicômaco. A citação acima é emblemática no sentido de
demonstrar a forte relação entre Ética e Política na visão do filósofo, embora ele lhes dispense
tratamentos separados. Entre os estudiosos, existe praticamente um consenso de que A
Política é uma continuação natural de Ética a Nicômaco. Para F. Wolff, ambas as obras têm
o mesmo objeto: as ‘coisas humanas’; mas existe uma autonomia da política em relação à
ética:
20
“ A ‘filosofia das coisas humanas’, segundo a expressão de Aristóteles (Ét.
Nic., X, 10, 1181 b 15), tem seguramente um objeto uno, o humano enquanto
tal, mas que pode ser focalizado de dois pontos de vista distintos, que são
respectivamente adotados pelas duas obras que conhecemos como Ética a
Nicômaco e A Política. A conduta dos indivíduos constitui a matéria-prima
da ética, e a história das cidades com seus regimes constitui a da política. De
uma para outra há múltiplos laços, com sentido duplo: a política continua
sendo, para Aristóteles – é ao menos o que ele afirma no início de sua Ética -
, a suprema ciência da qual dependem o estudo e a efetivação do ‘soberano
bem’”.16
Aristóteles não inovou ao tratar a estreita relação entre Ética e Política como algo
necessário. Seu mestre Platão adotou o mesmo princípio em A República, estabelecendo um
paralelismo entre as virtudes (e os vícios) dos homens, com as virtudes (e os vícios) das
cidades, ou melhor, dos seus regimes de governo. Ele nos leva a inferir que a cidade é uma
extensão do indivíduo, consequentemente, a Política é uma extensão da Ética.17
Aristóteles
alinha-se a Platão e dá um destaque à sua diferença fundamental: a Ética tem por objeto o
indivíduo, enquanto a Política tem por objeto a cidade. Elas se completam. Daí ele ser
considerado por muitos como o fundador da ciência política.
U. Wolf, em sua obra A ‘Ética a Nicômaco’ de Aristóteles, faz um importante
esclarecimento sobre Ética na Antiguidade, já que atualmente é comum tratar a Ética e a
Moral como equivalentes ou a Moral como uma parte da Ética:
“... a ética refere-se ao bem, desenvolve representações do bem viver e do
bem agir, ao passo que o ponto de empuxo da moral representa o que é
devido, as normas sociais. Em seu conteúdo principal, a filosofia prática
16
WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. São Paulo: Discurso editorial, 1999. p. 20. 17
Cf. Rep, VIII, 544d-e
21
hodierna é uma filosofia moral, enquanto Aristóteles escreve uma ética no
sentido de uma doutrina do bem viver”. 18
O bem viver corresponde ao agir correto e à boa reflexão, que vão ao encontro da
própria natureza humana; este bem viver expressa a virtude de cada um, o que, para o grego, é
digno de inveja. Já aquilo que conhecemos como Moral está no campo do dever. A autora
destaca que o filósofo não deixa esse tema de lado, mas o trata sob a ideia de justiça:
“O que corresponde ao nosso âmbito de moral é encontrado em Aristóteles
sob o título de justiça; isso, todavia, não como um âmbito separado próprio
da administração do conflito de interesse, mas inserido por um lado na
própria perspectiva política – a questão da boa ordenação da pólis -, por
outro lado na perspectiva ética – a questão da justiça enquanto virtude de
caráter”.19
Se ela tiver razão, na própria Ética a Nicômaco, Aristóteles já trata de um tema
‘político’: procura-se não só a virtude individual que é a justiça da alma como a própria
justiça da cidade. De fato, já no início da obra, Aristóteles discorre sobre a precisão da ciência
política juntamente com a Ética. Segundo ele, embora elas tenham o ‘status’ de ciência:
“Nossa discussão será adequada se tiver tanta clareza quanto comporta o
assunto, pois não se deve exigir a precisão em todos os raciocínios por igual,
assim como não se deve busca-la no produto de todas as artes mecânicas”.
(EN, I, 3, 1094b)
Ressalta que a ciência política estuda o nobre e o justo, mas esses assuntos são
permeados por opiniões e incertezas. Diante disso, devemos nos contentar em atingir um
simples delineamento da verdade (já que trabalhamos com premissas incertas) e em aceitar os
18
WOLF, Ursula. A Ética a Nicômaco de Aristóteles. São Paulo: Edições Loyola, 2010. p. 11. 19
Ibid., p. 13.
22
diferentes pontos de vista. O grau possível de precisão da Política e da Ética, ao contrário da
matemática, por exemplo, é o de meramente provável.
Essa questão da imprecisão é retomada no Livro II, no qual o filósofo apresenta o
importante conceito de mediana, ou meio-termo. Aristóteles o inicia discorrendo sobre o que é
a virtude (arete). Para ele, um estado da alma é: ou uma paixão (pathos), ou uma faculdade
(dynamis) ou uma disposição de caráter (hexis). É necessário determinar a qual desses estados
da alma corresponde a virtude. Segue a sua conclusão:
“Ora, nem as virtudes nem os vícios são paixões, porque ninguém nos chama
bons ou maus devido às nossas paixões, e sim devido às nossas virtudes ou
vícios. [...] Por estas mesmas razões não são faculdades, porquanto ninguém
nos chama de bons ou maus nem nos louva ou censura pela simples
capacidade de sentir paixões. [...] Por conseguinte, se as virtudes não são
paixões nem faculdades só resta uma alternativa: a de que sejam disposições
de caráter”. (EN, II, 5, 1105b-1106a).
Mas a virtude é um tipo particular de disposição de caráter, pois tem um papel duplo:
além de tornar seu portador bom, faz também com que ele desempenhe bem suas funções
como ilustra o estagirita:
“Por exemplo, a excelência do olho torna bons tanto o olho como a sua
função, pois é graças à excelência do olho que vemos bem. [...] Portanto, se
isto vale para todos os casos, a virtude do homem também será a disposição
de caráter que o torna bom e o faz desempenhar bem a sua função”. (EN, II,
6, 1106-a)
Aristóteles constrói sua célebre teoria de que a virtude consiste na escolha de um meio
termo, ou mediana, situado entre um excesso e uma falta. O excesso e a falta caracterizam os
vícios. Por exemplo: a virtude da coragem é o meio-termo entre o vício da covardia (falta) e o
23
vício da temeridade (excesso)20
. É importante lembrar que, apesar dessa alegoria geométrica,
a busca da virtude não é uma ciência exata. A mediana não é a mesma para todos os
indivíduos. G. Reale e D. Antiseri veem na relação entre mediana e virtude uma síntese da
sabedoria grega:
“Aqui, há quase que uma síntese de toda a sabedoria grega que encontra
expressão típica nos poetas gnômicos, nos Sete Sábios, que haviam
identificado no ‘meio intermédio’, no ‘nada em excesso’ e na ‘justa medida’
a regra suprema do agir, assim como há também a lição pitagórica que
identificava a perfeição no ‘limite’, e ainda, por fim, há o aproveitamento do
conceito de ‘justa medida’, que desempenha papel tão importante em
Platão”.21
Em sendo assim, Aristóteles estabelece uma ligação com o que se destaca na Ética a
Nicômaco com o nome de phrônesis (que é traduzido de uma maneira simplista como
prudência)22
:
“A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e
consistente em uma mediana, isto é, a mediana relativa a nós, a qual é
determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de
sabedoria prática”. (EN, II, 6, 1106b-1107a)
Esse ‘princípio racional’, ou seja, a prudência, é uma virtude dianoética (que se dá por
meio do intelecto) da alma, que é associada aos assuntos humanos e às coisas que podem ser
objetos de deliberação. Existe, portanto, uma íntima relação entre a prudência e a capacidade
de deliberar. Aquele que delibera bem é um homem prudente.
20
Cf. EN, II, 6, 1106-b 21
ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. História da Filosofia – Filosofia pagã antiga, v.1. São Paulo: Paulus,
2003. p. 220. 22
Pode ser também traduzido como clarividência ética, inteligência prática, etc. A comentadora Ursula Wolf, a
exemplo do que faz para outros conceitos, opta por manter o termo grego.
24
A alma humana compreende ainda uma outra virtude dianoética: a sabedoria (sophía),
que é voltada para o conhecimento teórico e a contemplação, e U. Wolf esclarece que
Aristóteles chega a essas duas virtudes (aretai) por meio de uma investigação feita no Livro
VI: “O resultado mostra que [...] sophía e phrônesis são aretaí, e quiçá sophía como a aretê
da razão teorética e phrônesis como a aretê da razão prática”.23
Desse modo, poder-se-ia dizer
que a sabedoria é ‘científica’ e a prudência é ‘calculadora’. E. Berti destaca que ambas
buscam a verdade, cada uma a sua maneira:
“Ambas as partes da alma racional [...] têm como ‘obra’ a verdade: a
científica tem como obra a verdade pura e simples, isto é, o simples
conhecimento de como são as coisas, enquanto que a calculadora tem como
obra a ‘verdade prática’, isto é, a ‘verdade de acordo com o desejo reto. [...]
Nota-se a originalidade do conceito de ‘verdade prática’, de todo estranho
tanto à ciência como à ética modernas e contemporâneas”.24
Essa última observação de Berti corrobora o fato de o ato de deliberar aplicar-se a
objetos variáveis. Ninguém delibera sobre assuntos científicos, mas, para Aristóteles, “...
delibera bem no sentido irrestrito da palavra aquele que, baseando-se no cálculo, é capaz de
visar à melhor, para os homens, das coisas alcançáveis pela ação”. (EN, VI, 7, 1141b). A
prudência não dispensa o conhecimento de princípios gerais, embora privilegie o
conhecimento dos fatos particulares, já que está sempre envolvida com a ação. É usual
homens experientes terem mais sucesso que os teóricos nas suas deliberações. O filosofo dá
como exemplo dois homens: um que sabe que as carnes leves fazem bem para a saúde, mas
não conhece os tipos de carne leve. Já outro não conhece a relação entre carnes leves e a
23
WOLF, Ursula. A Ética a Nicômaco de Aristóteles. São Paulo: Edições Loyola, 2010. p. 149. 24
BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. São Paulo: Edições Loyola, 1998. p. 144-145.
25
saúde, porém sabe, pela experiência, que a carne de frango é saudável. Com certeza o segundo
se dará melhor na preservação ou restauração de sua saúde.25
Vale observar que o ato de deliberar não é exclusividade do agir (como práxis), mas
também se aplica ao produzir (como poiésis). Um marceneiro, por exemplo, delibera sobre a
cor e o modelo da cadeira que produzirá. Ele deve também usar de reflexão para bem
deliberar, mas ele não será chamado de prudente pois o seu agir relaciona-se a um
determinado objeto.
3.3 O HOMEM E A CIDADE
É inquestionável a visão altamente positiva de Aristóteles sobre o papel da cidade na
vida do homem. Para ele, a cidade existe naturalmente e, consequentemente, o homem é um
animal político, conforme descrito no Livro I de A Política e apresentado na Primeira Parte
deste trabalho. Isso serve de fundamento para sua análise sobre os diversos tipos de regime.
Mas essas premissas não podem ser consideradas como unanimidades entre os filósofos.
Vamos aqui brevemente apresentar o pensamento de dois renomados filósofos sobre essa
questão: Thomas Hobbes e Hanna Arendt. O primeiro se opõe, enquanto a segunda se alinha
ao estagirita.
Por cerca de dois mil anos, os conceitos aristotélicos de homem político e cidade natural
foram aceitos, até que Hobbes publicasse a obra Do cidadão (1642), em que ele procura
destruí-los. Para o filósofo inglês, o homem busca naturalmente o seu próprio interesse e a
cidade não passa de um meio para ele atingir esse fim. Y. Frateschi sintetiza essa visão:
“A crítica hobbesiana à teoria política tradicional opera por meio da
substituição do princípio do zoon politikon pelo princípio do benefício
próprio, que afirma que a natureza humana conduz, em primeiro lugar, à
25
Cf. EN, VI, 6, 1141-b
26
procura do que o homem considera bom para si mesmo, sendo todo o resto
desejado no interesse desse fim, inclusive a comunidade política”.26
Hobbes argumenta que, se o homem fosse um animal que naturalmente nasceu para
associar-se, as próprias crianças conheceriam os benefícios da sociedade e nela ingressariam.
O mesmo raciocínio se aplica a homens ignorantes alienados. Ressalta que seus argumentos
são fortemente baseados na experiência e admite que a solidão é inimiga dos homens, que os
homens procuram reunir-se com os demais; porém, essa necessidade pode ser suprida por
simples reuniões, e não por sociedades. O fato de termos esse tipo de necessidade não nos
autoriza a concluir pela naturalidade da cidade.
Nessa linha, faz uma breve análise dos motivos que levam os homens a agrupar-se,
tomando três exemplos: o comércio, o desempenho de algum ofício e o prazer e descontração
da mente. Sua conclusão: “Toda associação, portanto, ou é para o ganho, ou para a glória -
isto é: não tanto pelo amor de nossos próximos quanto pelo amor de nós mesmos”.27
Admite
que esses benefícios, por serem baseados na vontade, não garantem que a sociedade seja
grande e duradoura. Eles podem ser obtidos mais facilmente pelo domínio do que pela
associação com outros, mas existe um outro fator que faz com que a sociedade sobreviva: o
medo. A sociedade é mais forte do que os indivíduos, e isso permite que ela evite um estado
de guerra de todos contra todos. Nas palavras de Hobbes: “Devemos, portanto, concluir que a
origem de todas as grandes e duradouras sociedades não provem da boa vontade recíproca que
os homens tivessem uns para com os outros, mas do medo recíproco que uns tinham dos
outros”.28
Assim sendo, a cidade (que é uma sociedade duradoura) é um meio para conservação.
Ela é um produto artificial gerado pelo contrato social, como nota Frateschi:
26
FRATESCHI, Yara. A Física da Política. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. p. 28-29. 27
HOBBES, Thomas. Do cidadão. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 28. 28
Ibid., p. 28.
27
“Hobbes destrói esse edifício teórico29
ao substituir o princípio do zoon
politikon pelo princípio do benefício próprio: se o que os homens desejam
por natureza é algum bem para si e tudo o mais é desejado no interesse desse
bem primário, a cidade é meio e não fim em si mesma; e, se ela é escolhida
como meio para a promoção da autoconservação, ela é produto da criação
humana”. 30
O fato de considerar a cidade como um meio implica logicamente que Hobbes admite
outros meios de o homem atingir seu fim. A cidade se funda na razão e na palavra. Na linha
do pensamento aristotélico, a razão tem um papel fundamental para o bem do homem. Isso
não ocorre para Hobbes – a razão tem um papel secundário, instrumental para que se atinja o
bem maior que é o benefício próprio. Com isso, ele legitima a adoção de outros meios como a
guerra, a dominação, etc. para que homem atinja seus fins. Isso traz como consequência uma
certa anuência para com os regimes políticos considerados injustos por Aristóteles, como a
tirania e a oligarquia.
***
Para se comparar Aristóteles com Hanna Arendt, tomemos a obra A Condição Humana,
em que a filósofa faz uma análise fenomenológica das três manifestações do homem durante
sua existência:
1) O labor – que corresponde à atividade associada ao processo biológico do corpo
humano. A condição para o labor é a própria vida.
2) O trabalho – é a atividade que produz um mundo artificial, totalmente distinto do
mundo natural. A condição para o trabalho é a mundanidade.
29
A autora se refere ao pensamento aristotélico. 30
FRATESCHI, Yara. A Física da Política. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. p. 42.
28
3) A ação – é a única atividade que se exerce entre os homens sem a mediação de
coisas mundanas. A condição para a ação é a pluralidade.
O labor e o trabalho têm um caráter privado, ou seja, estão vinculados à existência do
homem com sua finitude. A ação tem um caráter público, está associada à permanência da
espécie humana na Terra e a uma certa aspiração à imortalidade. Este caráter público leva à
condição de pluralidade da ação, como explica a autora:
“A ação [...] corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que
homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os
aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta
pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua
non, mas a conditio per quam – de toda a vida política”.31
Para Arendt, a ação é o diferencial entre o homem e os outros animais, e nela estão
implícitas liberdade e fragilidade humanas. À diferença do labor e do trabalho, o processo
deflagrado pela ação não tem um fim ou um resultado acabado de uma vez por todas. Quem
age nunca sabe exatamente o que está fazendo porque o ‘quem’ de cada homem envolvido na
ação permanece sempre oculto para o próprio agente. R. R. Alves Neto resume a posição de
Arendt sobre a fragilidade da ação:
“A fragilidade inerente ao agir provém justamente do fato de que a liberdade
de começar espontaneamente algo novo incide sobre uma rede
predeterminada de relações, ou seja, ação atua sobre seres também capazes
de agir”.32
A solução para superar essa fragilidade da ação e criar um mundo mais adequado ao
aparecimento humano foi a instauração da experiência democrática da cidade (polis) pela
31
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 15. 32
ALVES NETO, Rodrigo Ribeiro, A Pólis Democrática: A “Solução Grega” para a Fragilidade da Ação,
Revista Hypnos – nº20, p. 126.
29
Antiguidade grega. Arendt a denomina ‘Solução Grega’, que se constituiu em um modo
inédito de convivência, um meio de preservar o caráter ‘público’ do mundo, por meio de
processos decorrentes da iniciativa de agir e falar. Conforme ressalta Alves Neto: “Muito
mais que uma mera mutação nas organizações sociais antigas, a fundação da polis é uma
autêntica instauração do político ou do advento do plano político”.33
O alinhamento do pensamento da Arendt com o de Aristóteles sobre a importância da
cidade para que o homem desenvolva aquilo que ele possui de mais humano é explicitado pela
filósofa ao insistir no ato vivo e na palavra falada como as maiores realizações de que somos
capazes e que tiveram por base a noção aristotélica de energeia (efetividade)34
. Segundo a
autora, são todas as atividades que esgotam seu significado no próprio desempenho,
prescindindo de um fim, ou de uma obra acabada. É o que ocorre com a ação e o discurso, a
obra não sucede e extingue o processo, mas está nele contida. Ela acrescenta:
“Em sua filosofia política, Aristóteles tem ainda clara consciência do que
está em jogo na política, ou seja, nada menos que a ergon ton anthropou (‘a
obra do homem’ enquanto homem)35
; e se definiu essa obra como ‘viver
bem’ (eu zen), queria com isto dizer claramente que a ‘obra’, neste caso, não
é o produto do trabalho, mas só existe na pura efetividade da ação”.36
3.4 A REPÚBLICA COMO O MELHOR REGIME VIÁVEL
Conforme apresentado na Primeira Parte deste trabalho, nos Livros III e IV de A
Política, Aristóteles discorre sobre a busca do melhor regime viável, e acaba optando pelo que
ele denomina politía, termo para o qual adotamos a tradução por república. Não é nosso
33
Ibid., p. 128. 34
Tratada em Ética a Nicômaco, Física e Da Alma 35
EN, I, 7, 1097b 36
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,2007. p. 219.
30
objetivo repetir os argumentos do filósofo que o levaram a essa conclusão, mas analisar
aspectos relevantes de sua argumentação.
Tomemos como ponto de partida o conceito de politeía (regime, constituição, etc.).
Pode-se considerá-lo como a relação entre os órgãos políticos de decisão e o poder central (ou
governo) mas, num sentido mais lato, pode-se estendê-lo à relação entre os que detêm o poder
e os excluídos. Na essência, o que diferencia os tipos de regime é a distribuição de poderes
entre governantes e governados e, além disso, a distribuição interna desses poderes entre
aqueles que têm alguma participação nas magistraturas, ou seja, no governo.
A divisão em seis regimes apresentada no Livro III de A Política, é estabelecida por
meio de dois critérios independentes: o número de governantes e as finalidades do regime. O
primeiro critério é tradicional do pensamento clássico: a soberania é exercida por um, vários
ou muitos indivíduos. Com esse critério, Aristóteles não introduz nenhuma novidade. Além
disso, fica claro que não se pode usar apenas este critério para se chegar a uma conclusão
sobre o melhor regime. Já o segundo critério inova ao trazer implícito o conceito de ‘causa
final’ da cidade: ela existe não apenas para se viver, mas para viver bem. Portanto, existem
duas possibilidades: o poder é exercido visando o bem de todos, ou o poder é exercido
visando apenas o bem dos governantes. Este é o critério de justiça, daí os regimes pautados
pelo bem de todos serem tratados na obra como regimes justos. São eles: a realeza, a
aristocracia e a república.
Considerando a forma pura de cada um desses três regimes, não faz sentido buscar o
‘melhor’ tendo por base a justiça. Todos são absolutamente justos. Admite-se, inclusive, que
uma dada cidade adote qualquer um deles, tendo por base características que lhe são próprias.
Mas, como o que diferencia esses regimes é a distribuição dos poderes entre os cidadãos,
Aristóteles faz uma análise mais aprofundada desse aspecto. Uma distribuição justa do poder
implica que cada cidadão ou partido tenha uma parcela do poder de acordo com suas virtudes
31
ou méritos. Mas o poder não pode ser considerado um bem a ser repartido, e sim um
instrumento de felicidade de todos. Haveria sempre uma sensação de disputa e injustiça que
comprometeria o ‘cimento’ da cidade: a amizade. Isso leva a concluir que, dentre os regimes
justos, só existe um capaz de tomar as melhores decisões e alcançar o bem comum: o regime
popular, em que as deliberações são efetuadas pelo conjunto do povo. Em uma palavra, a
república.
Nota-se que a opção pela república está em perfeita sintonia com o seu conceito de
cidade, apresentado no Livro III de A Política e analisado em mais detalhes no item anterior
deste trabalho: O Homem e a Cidade.
Aristóteles deixa patente que a pluralidade de opiniões enriquece as deliberações e os
julgamentos. Uma assembleia do povo é uma multiplicidade que forma uma unidade, da
mesma forma com o que ocorre com a cidade. Ela não é um amontoado. A mescla dos
defeitos e qualidades dos indivíduos leva a uma unidade de outra ordem. A lei é
imprescindível ao regime justo. Porém, ela tem um caráter geral, competindo a quem detém o
poder, o soberano, deliberar sobre as questões particulares não abrangidas por ela. Esse
soberano não pode ser levado pelo humor ou pela paixão. A deliberação coletiva permite que
isso seja resolvido, pois ela é insensível às singularidades das paixões individuais.
P. Aubenque ilustra o pensamento de Aristóteles ao estabelecer uma comparação entre
as decisões ‘científicas’ tomadas por um homem sábio e as deliberações coletivas:
“O diálogo incerto dos homens que deliberam, mesmo se são prudentes,
nada tem a ganhar se comparado com o monólogo seguro do homem
competente, do sophos. Mas assim como nada se parece tanto com a ciência
como a falsa ciência, a ciência não é de modo algum um socorro onde a
realidade na qual convém agir não é suficientemente determinada para ser
32
conhecida cientificamente. A democracia é, por certo, um regime medíocre
[...] mas esta mediocridade [...] é o reflexo do mundo em que vivemos”.37
Observa-se mais uma vez, no plano político, o embate entre a sabedoria (no decidir) e a
prudência38
(no deliberar), conforme discutido sob a ótica do indivíduo no item 2 da Segunda
Parte deste trabalho – Fundamentação Ética.
A opção pela república tem claramente um fundamento prático. Pelas indicações ao
longo do texto, não significa que Aristóteles considere esse o melhor regime, mas o melhor
regime viável para a maioria das cidades, dadas as limitações da natureza humana. Essa
natureza prática também se faz presente na importante passagem do Livro IV, em que ele
ratifica a opção pela república, a partir dos dois regimes mais comuns à sua época: a
democracia e a oligarquia. Reale e Antiseri resumem essa conclusão:
“Aristóteles afirma que, em abstrato são melhores as primeiras duas formas
de governo39
, mas realisticamente considera que, no concreto, dado que os
homens são como são, a forma melhor é a politía, que é substancialmente
uma constituição que valoriza o segmento médio. Com efeito, a politía é
praticamente caminho intermediário entre a oligarquia e a democracia, ou se
assim se preferir, uma democracia temperada pela oligarquia, assumindo-lhe
os méritos e evitando-lhe os defeitos”.40
Modernamente, tem-se uma leitura intrigante de N. Bobbio sobre essa ‘engenharia
política’ proposta por Aristóteles: se tomado ao pé da letra o sistema de divisão dos seis
regimes, tanto a democracia (no lato senso) como a oligarquia são regimes injustos. Como
pode a mistura de dois sistemas corrompidos resultar em um sistema adequado à maioria dos
37
AUBENQUE, Pierre. A Prudência em Aristóteles. 2ª ed. São Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008. p. 185. 38
Para Aubenque, o modelo de conduta individual prudente tem origem política, em especial no ‘Conselho de
Anciãos’ que era uma instituição deliberativa da democracia grega. 39
Os autores referem-se à realeza e à aristocracia. 40
ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. História da Filosofia – Filosofia pagã antiga, v.1. São Paulo: Paulus,
2003. p. 222.
33
Estados? Para Bobbio, a resposta a essa questão está nas considerações feitas por Aristóteles
permitindo-se dispensar o critério numérico implícito em cada um desses regimes e adotar o
critério de riqueza: oligarquia como governo dos ricos e democracia como governo dos
pobres:
“Dizia-se, portanto que a politía é uma mistura de oligarquia e democracia.
Agora que se disse em que consistem a oligarquia e a democracia, somos
capazes de compreender melhor em que consiste esta mistura: é um regime
em que a união de ricos e pobres deveria sanar a maior causa de tensão de
toda sociedade, a saber, precisamente a luta de quem não tem contra quem
tem. É o regime que deveria assegurar melhor do que qualquer outro a ‘paz
social’”.41
Bobbio dá indícios de um tema que lhe parece caro: a estabilidade. “Tema
verdadeiramente central na história das reflexões sobre o ‘bom governo’, porque um dos
critérios fundamentais com base nos quais se costuma distinguir (mesmo hoje) entre o bom e
o mau governo é se ele é ‘estável’, e em que medida”.42
Os argumentos do filósofo italiano
parecem-nos consistentes com o que se observa nos regimes políticos ao longo dos séculos.
Cabe ainda destacar uma afinidade entre o pensamento aristotélico e o pensamento
platônico no que diz respeito ao melhor regime possível como resultante de uma ‘mistura’.
Platão é reconhecidamente um crítico contundente da democracia, em especial pelo conteúdo
de A República. Porém, em suas obras políticas mais tardias, O Político e As Leis, ele faz
certas concessões a este tipo de regime.
Especificamente no diálogo As Leis, ao tratar sobre regimes possíveis, Platão ressalta a
importância da sabedoria como a prerrogativa mais alta para um bom governo. Porém, ela
41
BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. São Paulo: EDIPRO, 2017. p. 46. 42
Ibid., p.48.
34
não é suficiente para um regime viável: é necessária uma mistura da pretensão baseada na
sabedoria com pretensões baseadas em outros tipos de superioridade. Essa mistura é entre
sabedoria e liberdade. Por isso, a maioria dos regimes consiste em uma composição de
monarquia e democracia. Seguem as palavras do estrangeiro ateniense - personagem que
nesse diálogo encarna o pensamento platônico:
“Há duas formas de constituição que são, por assim dizer, as matrizes a
partir das quais todas as outras nascem. Destas uma é chamada
adequadamente de monarquia e a outra, democracia [...]; as restantes são
praticamente todas [...] modificações dessas duas. Ora, é essencial que uma
constituição encerre elementos dessas duas formas de governo se quisermos
que disponha de liberdade e amizade combinadas com a sabedoria. [...] a
menos que um Estado participe dessas duas formas jamais poderá ser bem
governado”. (Leis, III, 693d-e)
Em seguida, ele cita cidades que não fizeram a mistura na medida certa e, portanto, não
foram bem-sucedidas: Atenas excedeu-se na democracia e a Pérsia, na monarquia. Como
exemplos positivos, que se aproximaram da medida justa, ele menciona Creta e Esparta que,
aliás, são as suas principais referências nessa obra.
Vê-se aqui a afinidade dos dois filósofos: 1) na fundamentação da tese da mistura de
regimes – a justa medida; 2) na escolha de um de seus componentes – a democracia e 3) no
resultado dessa mistura – o melhor regime viável. Diferem apenas na escolha do segundo
componente da mistura: a monarquia para Platão e a aristocracia para Aristóteles, o que
mereceria uma análise mais aprofundada do conceito desses dois regimes para cada um deles,
que não é o nosso objetivo.
35
3.5 AS FRAGILIDADES DA REPÚBLICA E A ADOÇÃO DE CONTROLES
Modernamente, entendemos que o principal elemento constituinte de toda a democracia
é a liberdade. A exemplo do que ocorre com todas as disposições humanas, ela deve ser usada
sem falta nem excesso, mas numa justa medida. Nos nossos dias, a liberdade é tratada como
um valor absoluto. Conforme destaca F. Wolff, isso não se aplica a Aristóteles: “Ora, esta
ideia de liberdade está longe de ser, para Aristóteles, um valor político indiscutível, como ela
é para nós”.43
Para o estagirita, ‘ser livre’ se dá em duas dimensões: 1) Não ser escravo; 2)
Ter condições para bem deliberar em de acordo com o regime, ou a ordem estabelecida na
cidade.
O mau uso da liberdade é um risco característico da democracia, mas não é o único. Por
se tratar de um governo feito por homens, ela não está totalmente imune aos riscos existentes
em outras formas de governo como insurreições e abusos de poder.
Ao discorrer sobre a estrutura da república, é patente a preocupação do filósofo com
todas essas fragilidades: as inerentes a qualquer regime e as específicas da democracia, já que
a república não deixa de ser uma espécie de democracia. Diante disso, ao descrever a
república (no Livro III de A Política), ele prescreve alguns controles para minimizar os riscos
que poderiam corrompê-la e transformá-la em uma outra forma de governo. Vamos tratar
brevemente de três controles: delimitação de poderes, subordinação às leis e alternância de
cargos.
No que tange aos poderes, uma das maiores críticas que se faz aos regimes que têm o
povo como soberano é a atribuição de magistraturas importantes a pessoas que não tenham
competência para tal. Platão é muito enfático nesse aspecto em sua crítica à democracia em A
43
WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. São Paulo: Discurso editorial 1999. p. 133.
36
República, em especial na Alegoria do Navio44
. Aristóteles concorda com seu mestre, mas não
entende que esse argumento sirva para desautorizar os regimes populares como um todo. A
solução por ele adotada é a de limitar a participação popular às funções deliberativas e
judiciais da cidade. E isso não é pouco. As magistraturas que exigem uma competência
técnica e/ou experiência no assunto seriam exercidas por indivíduos que possuem essas
competências, nomeados e supervisionados pelo povo mediante assembleias deliberativas e
judiciais.
Segundo J. Barrera, as funções deliberativas e judiciais estão em perfeita sintonia com a
filosofia antropológica desenvolvida por Aristóteles na Ética a Nicômaco. Elas não são
funções exclusivas da democracia, mas sua atribuição ao povo faz-se necessária nas cidades
mais populosas:
“En efecto, todo régimen debe incluir funciones “judiciales” y
“deliberativas”, que no necessariamente, insisti, tendran una expresión
constitucional semejante a la democrática, aun cuando parece que debido al
crecimento de las ciudades ya no se pueda pensar em outra forma de
gobierno”.45
Mesmo limitando-se a soberania popular às funções deliberativas e judiciais, F. Wolff
vislumbra um outro risco, não explicitado por Aristóteles em seus textos: a unidade
decorrente da assembleia do povo não poderia sobrepujar também os indivíduos em termos de
vício? - “Tudo se passa como se uma alquimia secreta fizesse com que a totalidade dos
cidadãos tivesse por sua unidade acesso a um nível sobre-humano de virtude – e não de
44
Cf. Rep, VI, 488a–489a. 45
BARRERA, Jorge Martínez, Ciudadanía y Representación Política en Aristóteles, Revista Hypnos – nº7, p.
140. (“Com efeito, todo regime deve incluir funções ‘judiciais’ e ‘deliberativas’, que não necessariamente,
insiste, terão uma expressão constitucional semelhante à democracia, mesmo que pareça que, devido ao
crescimento das cidades, já não se possa pensar em outras formas de governo” – tradução livre).
37
vício”. 46
Na concepção de Wolff, a eventual omissão do filósofo se justifica no próprio
conceito de cidade para Aristóteles. Como já foi visto, em uma cidade digna desse nome,
existe o efeito da amizade. Não é uma simples associação, não se admite uma luta por
interesses, mas o interesse comum e, nesse quadro, a assembleia potencializa as decisões e
julgamentos mais adequados.
A par da delimitação dos poderes, Aristóteles tem em vista também a importância das
leis na viabilidade e estabilidade dos regimes, não apenas do republicano. Por melhor que seja
a forma de regime, as leis são imprescindíveis. Esse princípio permeia toda a argumentação
de Aristóteles, e se encontra explicitado na seguinte passagem de A Política:
“É necessário que os governos sigam às leis; boas ou más, justas ou injustas,
como eles próprios o sejam. A única coisa clara é que as leis devem ser
sobretudo de acordo com o governo, e uma vez firmado este princípio, é
natural que os bons governos possuam leis justas, e os governos corrompidos
tenham leis injustas”. (Pol., III, 6, 1282b)
Em determinados momentos da obra, tem-se a sensação de que o filósofo está se
dirigindo diretamente ao legislador, tal a importância que ele dá a essa função. Apesar disso,
pela experiência, ele reitera que não existem leis perfeitas em política por dois motivos: 1) a
política está ligada à contingência do mundo humano; 2) as leis têm um caráter geral e a
administração política se dá em casos particulares. Isso não minimiza a importância das leis.
São elas que determinam a distribuição dos poderes em cada regime e, no caso da república,
servem de referência para as deliberações e julgamentos populares. Em suas análises sobre os
regimes corruptos, Aristóteles aponta como o último estágio de decadência o abandono das
leis.
46
WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. São Paulo: Discurso editorial, 1999. p. 138.
38
Outro instrumento de controle a ser considerado é a alternância de cargos. Ela é a
melhor maneira de minimizar a restrição prática que impede uma estrutura ideal: todos os
cidadãos livres governando e governados sempre e simultaneamente.
Faz-se aqui necessária uma distinção entre a participação dos cidadãos: 1) nas diversas
magistraturas; 2) nas funções deliberativas e judiciárias. O primeiro caso foi discutido quando
tratamos da distribuição de poderes. Acrescente-se que, na verdadeira república, as
magistraturas jamais podem ser vitalícias ou hereditárias, competindo ao legislador
determinar os critérios para a alternância do cargo, desde que sempre subordinados à
deliberação popular.
No segundo caso, a própria participação nas assembleias deliberativas e judiciárias pode
ser feita por meio de representantes, para suprir as limitações de tempo e de espaço. Também
neste caso, compete ao legislador estabelecer os critérios de tempo do mandato, e de forma
seleção (eleição ou sorteio); mas eles devem ter por princípio a possibilidade de participação
igualitária de todos os cidadãos ao longo do tempo.
Observando ambos os casos, percebemos que não podemos confundi-los com os
sistemas de representação política que conhecemos em nossos dias. Conforme explica
Barrera47
, para Aristóteles a democracia é a única constituição que oferece a possibilidade de
uma participação majoritária na excelência das ações políticas. Quando um cidadão ‘faz’
política, coloca em ação as suas melhores faculdades, as que foram objetos de um cuidadoso
treinamento na virtude. Poderia soar como um disparate delegar essa ação a terceiros. Mas, ao
participar da deliberação para atribuição de magistraturas específicas, ou de representantes
nas assembleias o cidadão não está abrindo mão de sua cidadania, e sim exercendo essa
cidadania, contribuindo para o melhor funcionamento da cidade. Adicionalmente, o fato
47
Cf. BARRERA, Jorge Martínez, Ciudadanía y Representación Política en Aristóteles, Revista Hypnos – nº7,
p. 150.
39
desses cargos estarem potencialmente abertos para serem exercidos por qualquer cidadão e a
sua alternância reforçam a soberania do povo.
O mecanismo de alternância de cargos contribui para a estabilidade do regime, dada a
oportunidade de todos os cidadãos participarem da administração da cidade,
independentemente de pré-requisitos como nascimento ou riqueza. Isso diminui a tensão
latente entre governantes e governados. Além disso, é sabido que uma eventual consolidação
de indivíduos em determinados cargos leva-os a se considerarem ‘donos’ desses cargos e,
consequentemente, à acomodação e à arrogância, vícios que comprometem o principal bem de
uma cidade justa: a amizade.
Para finalizar, seguem algumas palavras de F. Wolff sintetizando a importância desse
assunto entre os argumentos aristotélicos em favor da (boa) democracia:
“Em seu favor, há de início argumentos inteiramente práticos: a democracia
é talvez o mais estável dos regimes, o mais socialmente equilibrado, ou seja,
o menos arriscado, porque é difícil corromper ou seduzir o povo inteiro.
Mas, mais profundamente, é o único a permitir a alternância real dos cargos
entre os cidadãos”.48
48
WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. São Paulo: Discurso editorial, 1999. p. 134.
40
4. CONCLUSÃO
Vivemos em uma época em que somos diariamente ‘bombardeados’ por um excesso de
informações. Evidentemente isso tem um lado altamente positivo, que é a facilidade sem
precedentes de acesso às informações que nos interessam. Porém, pagamos um preço que, na
nossa visão, se traduz em três problemas centrais: a invasão de nossa privacidade; a perda de
tempo filtrando e descartando aquilo que não nos interessa e, talvez o pior de todos, a
permanente dúvida sobre a veracidade das informações que chegam até nós.
Nestes tempos, a oportunidade de se fazer um trabalho de pesquisa sério, em tempo
adequado, com a orientação correta e fontes fidedignas é um privilégio. Foi o que sentimos
durante esta jornada. O tema escolhido partiu do interesse pessoal pela Filosofia Política,
incrementado pelas aulas da disciplina correspondente, e a afinidade com o pensamento de
Aristóteles. Para sua formulação definitiva: Aristóteles e a Democracia, foram decisivas as
considerações feitas por nossa orientadora, no sentido de estabelecer o escopo adequado para
um Trabalho de Conclusão de Curso. Trata-se de um tema clássico, já que remonta a quase
2.500 anos mas, ao mesmo tempo, atual. Muitas das situações descritas pelo estagirita
parecem extraídas do noticiário de ontem.
Nosso objetivo não foi o de trazer nenhuma novidade, mas sim o de buscar informações
de diversas fontes e instigar a reflexão sobre o pensamento de Aristóteles no que diz respeito
à Democracia. Conforme salientado no início deste trabalho, não se trata de uma tarefa
simples, a começar pelo próprio conceito de democracia, quer na Antiguidade Grega, quer
nos dias atuais. Mas acreditamos que o esforço não foi em vão. De forma bastante resumida,
seguem nossas principais conclusões:
Caracteriza-se como democracia o governo em que o poder é exercido pelo
povo;
41
Para Aristóteles, a melhor forma de governo viável é uma espécie de democracia
(que ele denomina politía ou república);
A melhor forma de governo em termos absolutos seria a aristocracia, porém ela
só seria viável se existissem alguns indivíduos com virtudes sobre-humanas, daí
a opção da república como melhor forma viável;
O grande fundamento para a opção pela república é que o todo é superior a
cada uma das partes;
Uma característica importante da república é que a soberania do povo deve se
limitar a funções deliberativas e judiciárias – o que não é pouco. As funções de
governo que requeiram conhecimento técnico devem ser exercidas por
indivíduos com competência para tal, escolhidos e supervisionados pelo povo;
Outras características importantes da república são a incondicional subordinação
às leis e a adoção de mecanismos de alternância de cargos, de maneira que todo
e qualquer cidadão tenha o direito de participar da administração da cidade.
Em síntese, observa-se que Aristóteles vê a democracia de uma maneira bastante
positiva desde que dentro de determinados limites e com controles que possibilitem a sua
implantação e a sua estabilidade.
Esperamos ter aqui cumprido os objetivos a que nos propusemos, reiterando nossa
satisfação na elaboração de todas etapas deste texto e agradecendo desde já as críticas e
sugestões no sentido de aperfeiçoá-lo.
42
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Fragilidade da Ação, Revista Hypnos – nº20, 1º sem 2008.
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43
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WOLF, Ursula. A ‘Ética a Nicômaco’ de Aristóteles. Tradução: Enio Paulo Giachini. São
Paulo: Edições Loyola, 2010.
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Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Discurso editorial, 1999.